Apelação Cível n. 2012.028686-5, de Itajaí Relatora: Desa. Maria do Rocio Luz Santa Ritta AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR ACIDENTE DE TRÂNSITO. COLISÃO ENTRE PEDESTRE E AUTOMÓVEL EM VIA URBANA. ENTRECHOQUE DE VERSÕES VEROSSÍMEIS. ENREDO PROBATÓRIO MAIS PRÓXIMO DA ASSERÇÃO DA DEMANDADA. DESCONSIDERAÇÃO DA PROVA QUE TAMBÉM NÃO AJUDA O AUTOR, POR GERAR PERPLEXIDADE. RESPONSABILIDADE CIVIL NÃO DELINEADA A CONTENTO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. A apresentação de duas versões colidentes sobre acidente de trânsito, hipoteticamente possíveis e aptas a creditar à parte contrária a responsabilidade pelo infortúnio, obriga o autor a comprovar a sua, por estar a seu cargo expor o fato constitutivo do direito. Descumprido tal ônus (art. 333, I, do CPC), a improcedência do feito é medida que se impõe. Recurso desprovido. Vistos, relatados e discutidos estes autos de Apelação Cível n. 2012.028686-5, da comarca de Itajaí (1ª Vara Cível), em que é apelante José Guilherme Machado e apelados Sandra Bepler Bittencourt e Indiana Seguros S.A.: A Terceira Câmara de Direito Civil decidiu, por unanimidade, negar provimento ao recurso. Custas legais. O julgamento, realizado nesta data, foi presidido pelo Exmo. Sr. Des. Fernando Carioni, com voto, e dele participou o Exmo. Sr. Des. Marcus Tulio Sartorato. Florianópolis, 17 de julho de 2012. Maria do Rocio Luz Santa Ritta RELATORA RELATÓRIO Trata-se de ação de ressarcimento por acidente de veículos ajuizada por José Guilherme Machado em face de Sandra Bepler Bittencourt. Relata o autor que no dia 10.2.2004 foi atropelado pela ré, que conduzia um GM Celta, quando tentava atravessar na faixa de pedestres localizada na Avenida Marcos Konder, em Itajaí, o que lhe causou diversas fraturas e longa convalescença. Finaliza postulando: a) indenização por todas as despesas médicas que teve de suportar; b) ressarcimento por danos morais, em valor sugerido de 1000 salários mínimos; c) indenização por danos estéticos; d) indenização pela perda laborativa mensal, no valor de R$ 920,00, até o completo reestabelecimento; e) pensão vitalícia por incapacidade laboral relativa. Citada, a ré apresentou contestação, na qual articulou preliminarmente a impossibilidade jurídica do pedido. No mérito destacou que o acidente não se deu na faixa de pedestres, e foi originado por travessia súbita do demandante, sem qualquer possibilidade de reação, o que enseja culpa total deste pelo infortúnio, ou ao menos a responsabilidade concorrente. Sucessivamente, impugnou o montante da indenização por danos materiais, e esclareceu ainda que o seu seguro já cobriu diversas despesas médicas do acionante. Antes de encerrar, postulou a denunciação da Indiana S.A. à lide. Deferida a litisdenunciação, a Indiana S.A. compareceu ao processo para expor sua defesa. Em seguida houve impugnação às contestações. Regularmente processado o feito, sobreveio sentença que deu pela improcedência do pedido inicial. Entendeu o MM. Juiz que o autor não comprovou a sua versão, e na realidade a única testemunha presencial tributa a ele toda a culpa pela tragédia, por declarar que ele atravessou a via de surpresa, fora da faixa. Imputou ao acionante as custas e honorários (R$ 1.500,00 a cada um dos acionados), embora suspensa a cobrança tendo em vista a concessão da assistência judiciária. Irresignado, o demandante interpõe recurso de apelação. Argumenta que há presunção de culpa por parte de quem atropela pedestre em via urbana, não derruída pelo réu, mormente porque a testemunha visual a que se refere a sentença teria prestado depoimento eivado de contradições. Reclama assim a reforma da sentença a quo, com a condenação da parte demandada à totalidade da indenização descrita na inicial. Após as contrarrazões, ascenderam os autos a esta Corte. Gabinete Desa. Maria do Rocio Luz Santa Ritta VOTO Em intróito destaco que a ação versa sobre responsabilidade civil aquiliana, portanto fulcrada no art. 186 do Código Civil, o que demanda prova da ação ou omissão lesiva a outrem, usualmente a cabo do demandante, nos termos do art. 333, I, do CPC. Isso posto, no caso, constata-se que o acidente de trânsito deu-se sobre o leito asfáltico da Avenida Marcos Konder, em Itajaí, na tarde de 10.2.2004, e o autor alega que foi colhido pelo GM Celta em alta velocidade quando cruzava uma faixa de pedestre, enquanto a ré o desdiz, e assinala que seguia normal com seu veículo, até que o demandante encetou travessia açodada e imprevisível da via, sem qualquer possibilidade de reação. Pois bem. O boletim de ocorrência firmado pela autoridade policial, e trazido com a exordial, apenas exprime o relato prestado naquela ocasião pela demandada, que está assim vazado: RELATO DA CONDUTOR DO V01: QUE TRANSITAVA COM SEU VEÍCULO, (SIC) PELA AV. MARCOS KONDER, SENTIDO NORTE/SUL, À ESQUERDA DA PISTA, EM PROVÁVEL VELOCIDADE PERMITIDA PARA O LOCAL, QUANDO EM CERTO MOMENTO NÃO SABENDO PRECISAR O CERTO, MAS TUDO INDICA QUE O PEDESTRE (VÍTIMA) CRUZOU A VIA, DA DIREITA, PARA A ESQUERDA DA PISTA, RUMO AO CANTEIRO CENTRAL, NÃO PERCEBENDO A CHEGADA DO V01, QUAL (V01) QUE NÃO CONSEGUIU TENTAR DESVIO E FAZER USO DE FREIOS, NO MOMENTO DO OCORRIDO. Destaque-se que o demandante não foi ouvido por estar ferido, e como não houve qualquer ponderação acerca das circunstâncias do sinistro pela autoridade policial, o documento é inconclusivo, devendo ser descartado como elemento de convicção da culpa. Em seguida deparo-me com várias fotos batidas no local (fls. 30/35), mas primeiramente é bom que se diga que isoladamente não atestam o excesso de velocidade da ré. Sem medição técnica qualquer colocação do tipo seria especulativa, sobretudo se certos indícios desmentem a rapidez, quer porque apenas o parabrisa do GM Celta foi danificado, quer porque o carro ficou parado logo na frente da ambulância que socorreu o autor, assim próximo da vítima, e normalmente quem vem muito rápido estanca bem adiante do ponto de impacto. De mais relevante naqueles elementos, tem-se ainda a alegada mancha de sangue no chão da via pública, se é que de sangue mesmo se trata, pois o boletim não traz croqui ou qualquer referência aos vestígios, que está situada adiante da faixa de pedestres, aspecto que impede concluir com exatidão que o atropelamento aconteceu sobre a faixa de segurança, em violação ao art. 214 do Código de Trânsito, que dispõe: Art. 214. Deixar de dar preferência de passagem a pedestre e a veículo não motorizado: I - que se encontre na faixa a ele destinada; II - que não haja concluído a travessia mesmo que ocorra sinal verde para o veículo; III - portadores de deficiência física, crianças, idosos e gestantes: Gabinete Desa. Maria do Rocio Luz Santa Ritta Infração - gravíssima; Penalidade - multa. IV - quando houver iniciado a travessia mesmo que não haja sinalização a ele destinada; V - que esteja atravessando a via transversal para onde se dirige o veículo: Infração - grave; Penalidade - multa. Para encerrar o aspecto probatório, quando se analisam os depoimentos colhidos em juízo, também não há nada que firme com solidez a tese inicial. Luiz Gonçalves de Jesus e Marcio Salai não viram o infortúnio, relatando apenas aspectos profissionais da vida do autor enquanto laborava na Madeireira Bittencourt. Valdir Aparecido Rodrigues também não presenciou o sinistro, foi o policial que compareceu ao local após o fato. Aliás, disse que havia avaria no carro "só no parabrisa", o que reforça o indicativo de que o veículo da ré dificilmente seguia muito ligeiro. Paulo Rogério Luco, por sua vez, assistiu o sinistro, mas destacou, contra o autor, que: (...) eu trabalhava de taxi e a gente fazia rodízio; sempre um carro em frente a entrada nova do hospital; (...) eu estava estacionado no ponto de taxi ali; estou sentado e estou olhando ao meu lado esquerdo; (...) eu vi um senhor correndo, correndo, ele veio, eu estou sentado aqui olhando, foi a hora que ele passou e atravessou entre dois ou três veículos estacionados, ele atravessou, quando atravessou foi colhido; (...) foi fora da faixa de segurança, já tinha passado, tanto que no momento da colisão eu sai do carro e fui prestar socorro e ele, ele tentou se levantar eu não deixei, por favor o senhor não levanta eu vou chamar o Corpo de Bombeiros; (...) a lesão dele eu acho que foi na cabeça; (...) Tudo isso é de enorme importância no processo de que ora se cuida, porque se de um lado a versão do autor é hipoteticamente possível, também a da ré, endossada por aquele testigo, é factível, já que eventual cruzamento da estrada fora da faixa, de inopino e com pressa, significa afronta ao art. 69 do CTN, deixando a última sem culpa pelo acidente, conforme iterativa jurisprudência desta Corte: APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS E MATERIAIS. ATROPELAMENTO DE CRIANÇA FORA DA FAIXA DE SEGURANÇA. ALEGAÇÃO DE EXCESSO DE VELOCIDADE ISOLADA DO CONTEXTO PROBATÓRIO E NÃO PREPONDERANTE PARA A ECLOSÃO DO EVENTO. MENOR QUE, DESACOMPANHADA DO RESPONSÁVEL, COM O INTUITO DE ATRAVESSAR A RUA, ADENTRA ABRUPTAMENTE NA VIA URBANA. AUSÊNCIA DE CULPA DO CONDUTOR DO CAMINHÃO. CULPA DOS PAIS DA VÍTIMA, NA MODALIDADE IN VIGILANDO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA MANTIDA. RECURSO DESPROVIDO. Todo o pedestre, antes de implementar a travessia de alguma via pública, deve cercar-se das cautelas necessárias, sobretudo quando ao fluxo de veículos, de tal maneira que não venha a surpreender o motorista, deixando-lhe numa situação de absoluto aprêmio, impedido-o de evitar o atropelamento. (Apelação Cível n. 2009.013039-3, de Modelo, Rel. Des. Jorge Luis Costa Beber, j. 2.12.2011) APELAÇAO CÍVEL. AÇÃO DE REPARAÇÃO DE DANOS CAUSADOS EM ACIDENTE DE TRÂNSITO. BOLETIM DE OCORRÊNCIA. PRESUNÇÃO JURIS TANTUM. ATROPELAMENTO. CRIANÇA QUE INGRESSA DE INOPINO NA PISTA DE ROLAMENTO. DEVER DE VIGILÂNCIA DOS PAIS NÃO OBSERVADO [...]." Gabinete Desa. Maria do Rocio Luz Santa Ritta (Apelação Cível n. 2004.029385-6, de Garuva, Relator: Des. Domingos Paludo, j. 14.09.2009). Agora um detalhe. A parte autora aponta discrepâncias no depoimento do único testigo visual, por argumentar que ele fez mal análise dos ferimentos havidos no autor (disse que eram na cabeça, quando na maior parte foram nas pernas), e ainda porque argumentou que o acionante ficou na frente do GM Celta após o impacto, quando seria o contrário conforme as fotos juntadas. Sobre o assunto, porém, é importante dizer que se for desconsiderado o elemento em questão, advém a ausência total de prova visual da batida, caso em que tudo remete às declarações das partes, que são ambas factíveis, não cedendo a da ré, com segurança, ante aquilo que as fotografias fornecem nos autos. Nesse caso, destarte, o autor indiscutivelmente falhou com seu ônus probatório, pois a prova constitutiva do direito recai sobre seus ombros, nos termos do art. 333, I, do CPC. Acerca do tema observa Carlos Roberto Gonçalves (In Responsabilidade Civil. 6. ed. Saraiva, 1995, p. 646): É de lei que o ônus da prova incumbe a quem alega (CPC, art. 333, I). Ao autor, pois, incumbe a prova, quanto ao fato constitutivo do seu direito; e ao réu, quanto à existência de fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor (inc. II). A vontade concreta da lei só se afirma em prol de uma das partes se demonstrado ficar que os fatos, de onde promanam os efeitos jurídicos que pretende, são verdadeiros. A necessidade de provar para vencer, diz Wilhelm Kisch, tem o nome de ônus da prova (Elementos de derecho processual civil, 1940, p. 205). Claro está que, não comprovados tais fatos, advirá para o interessado, em lugar da vitória, a sucumbência e o não-reconhecimento do direito pleiteado (Frederico Marques, Instituições de direito processual civil, Forense, vol. 3, p. 379). Do repertório de decisões desta Corte, outrossim, transcrevo: APELAÇÃO CÍVEL - ACIDENTE DE TRÂNSITO - BOLETIM DE OCORRÊNCIA MERAMENTE DESCRITIVO - PROVA ORAL CONTRADITÓRIA ENTRECHOQUE DOS DEPOIMENTOS COLIGIDOS - CULPA DO AGENTE NÃO CONFIGURADA - IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO FORMULADO - SENTENÇA CONFIRMADA - RECLAMO DESPROVIDO. Se mesmo com o exame criterioso das provas e com o confronto dos elementos de convicção produzidos pelos litigantes, não for possível ao julgador proferir um veredicto conclusivo, há entrechoque absoluto de provas, que enseja a improcedência do pedido formulado, mesmo porque incumbiria ao autor a prova dos fatos constitutivos (Apelação cível 2001.023116-6 de Brusque. Rel. Des. Monteiro Rocha, j.7.8.2003) No mesmo sentido, haure-se da jurisprudência do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul: Apelação Cível. Acidente de Trânsito. Ausência de prova. Conflito de versões. Havendo conflito de versões e inexistindo prova ou conteúdo probatório suficiente para gerar um juízo de convicção, a improcedência da ação é o corolário decorrente da prova. Apelação desprovida. (TJRS. Apelação Cível n. 70000448258, Rel. Des. Roque Miguel) Antes de encerrar, convém ainda destacar que o fato de a ré ter acionado o seu seguro para cobrir despesas médicas do demandante não pode isoladamente atribuir-lhe o dever reparatório nesse processo, pois o contrato em Gabinete Desa. Maria do Rocio Luz Santa Ritta questão visa a se precaver de danos com terceiros, e é comum que as pessoas dele façam uso para prevenir litígios em torno do sinistro. Já a consagração judicial da responsabilidade civil típica, para implicar a reparação das demais perdas, exige como sempre a prova cabal da culpa pelo acidente, o que não acontece na hipótese em tela. Em suma, sob qualquer prisma que se analise a contenda a improcedência da pretensão pórtica é de rigor. Destarte, nega-se provimento ao recurso. Gabinete Desa. Maria do Rocio Luz Santa Ritta