XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 DIFERENÇA, ALTERIDADE E APRENDIZAGEM: DESAFIOS INFANTIS AO SABER DOCENTE Maria Teresa Esteban Universidade Federal Fluminense Carmen Sanches Sampaio UNIRIO Resumo As políticas oficiais de avaliação do desempenho dos estudantes vêm fomentando desenhos curriculares, práticas pedagógicas e projetos de formação docente continuada que demandam/ buscam uniformização e homogeneidade. Na perspectiva hegemônica, à aprendizagem se compreende/vê como um processo linear e progressivo, realizado por movimentos previsíveis, segundo modelos predeterminados. Os resultados e processos infantis que se distanciam dos padrões predefinidos frequentemente são tratados como dificuldades de aprendizagem, o que indica o não reconhecimento de sua qualidade, questão que articula o trabalho de pesquisa que vimos desenvolvendo. Nosso estudo encontra apoio em teorias pós-críticas e pós-coloniais, considerando seus desdobramentos nos estudos sobre alfabetização, currículo e formação docente. A opção epistemológica orienta a definição metodológica, que privilegia a pesquisa com o cotidiano escolar, em turmas de anos iniciais do ensino fundamental. Nossas pesquisas se constituem pela análise sistemática de atividades escolares das crianças, observação de suas interações em sala de aula e das propostas docentes, além de constantes conversas com as crianças e com sua professora. Acompanhando o trabalho pedagógico de uma mesma turma por mais de um ano, pudemos observar diferentes processos de aprendizagem de crianças que inicialmente poderiam ser classificadas como com dificuldades de aprendizagem. Os resultados encontrados levam ao questionamento do conceito de dificuldade de aprendizagem e ao estabelecimento de outras relações entre diferença, alteridade e aprendizagem. Palavraschave: alfabetização; diferença, alteridade e aprendizagem; dificuldades de aprendizagem. Era preciso, decía él [Joseph Jacotot], escoger entre dos ideas de la igualdad:la que se afirma aquí y ahora como una presuposición a verificar, y la que se repele hacia el futuro como una meta a alcanzar a través del progreso de la civilización y la labor de la Escuela Pública. Quien hace de la igualdad un fin refuerza de seguro la maquina desigualitaria. (Rancière, 2008) As políticas oficiais de avaliação do desempenho dos estudantes vêm fomentando desenhos curriculares, práticas pedagógicas e projetos de formação docente continuada que demandam/buscam uniformização e homogeneidade. Sob o discurso e a promessa de uma escola de qualidade e democrática, redutora das desigualdades sociais, as políticas públicas implementadas determinam não apenas o que estudar, mas também como estudar; se empenham em “controlar” os resultados obtidos e, nesse processo, Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002951 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 2 desconhecem experiências vividas cotidianamente, nas escolas, por estudantes e professores(as) contribuindo para reproduzir o que procuram reduzir. Reforçam, sobretudo, a concepção hegemônica de aprendizagem compreendida como um processo linear e progressivo, realizado por movimentos previsíveis, segundo modelos predeterminados. Um dos eixos articuladores da política educacional é a avaliação estandardizada, apresentada como procedimento indispensável à produção da qualidade da escola brasileira. Com a centralidade posta nos exames nacionais, articulados à busca de índices desejáveis e do alcance de metas, a mensuração consolida-se como o elemento condutor das práticas pedagógicas na escola, fortalecendo sua função de normalização dos que nela conseguem permanecer. As concepções que norteiam o projeto educacional vigente fazem com que os resultados e processos infantis que se distanciam dos padrões predefinidos frequentemente sejam tratados como dificuldades de aprendizagem. A relação entre a manifestação da diferença na aprendizagem no cotidiano escolar e o diagnóstico de dificuldades de aprendizagem constitui o foco deste trabalho, tendo como referência nossas pesquisas com o cotidiano escolar. 1 - Igualdade como direito de todos à aprendizagem As afirmações de Jacotot, pedagogo francês dos inícios do século XIX, lembranos Rancière (2004, p.12), são atuais. Sua defesa, a favor da igualdade de inteligências levou-o a uma questão filosófica e política: saber se o ato mesmo de receber a palavra do mestre – a palavra do outro – é um testemunho de igualdade ou de desigualdade (...) saber se o sistema de ensino tem por pressuposto uma desigualdade a ser “reduzida”, ou uma igualdade a ser verificada. Nosso sistema de ensino empenha-se na redução das desigualdades a partir do pressuposto de uma igualdade homogeneizante: a variedade de hierarquias, classificações e desqualificação dos estudantes (e docentes) leva à cristalização da(s) diferença(s) como inferioridade. Quase a totalidade das crianças brasileiras tem acesso à escola, mas, no seu interior, em sua cotidianidade, muitas vão aprendendo que são incapazes para aprender. Acreditar no princípio defendido por Jacotot, o da igualdade das inteligências, significa do nosso ponto de vista, algo muito simples, mas que faz toda a diferença no dia-a-dia da sala de aula: reconhecer a capacidade que as crianças e jovens têm para aprender. A afirmação de Jacotot de que a igualdade não se concede, nem se reivindica, Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002952 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 3 ela se pratica, ela se verifica (RANCIÈRE, 2004) clama por uma ação pedagógica emancipadora, praticada cotidianamente, que reconheça crianças e jovens de classes populares como sujeitos de conhecimento, com seus modos singulares e próprios de aprendizagem, legitimando-os como sujeitos capazes que são de dizer, pensar, decidir, fazer escolhas, (re)elaborar as informações às quais têm acesso, dentro e/ou fora da escola, criar, produzir conhecimentos. Uma prática pedagógica que não compreenda a(s) diferença(s) como justificativa para nomear, classificar, selecionar, excluir; que interrogue a normalidade instituída: os estudantes que não correspondem às expectativas de aprendizagem, definidas previamente pelas escolas e políticas oficias de avaliação, passam a ser compreendidos e classificados, de um modo geral e com bastante freqüência, como os que possuem dificuldades de aprendizagem. A tensão igualdade/desigualdade, atravessada pela diferença como elemento constituinte dos processos sociais e escolares, nos obriga a questionamentos sobre como lidar com um projeto de educação para todos, centrado na obrigatoriedade escolar e comprometido com o desenvolvimento de habilidades, competências e conhecimentos prévios e uniformemente determinados, quando entendemos ser fundamental (re)conhecer e legitimar diferenças e singularidades, experiências, saberes e fazeres, desejos e curiosidades de diferentes sujeitos que vivem e dão vida à escola. O projeto de educação para todos tem como referência uma homogeneidade nos resultados que guarda poucas conexões com a realidade social brasileira, marcada por profundas diferenças culturais e desigualdades sociais. Tais diferenças têm implicações nos processos de aprendizagem infantil, em seus interesses de aprendizagem, em suas demandas ao ensino. Sabemos que a ideia de igualdade é um dos pilares da expansão dos sistemas educativos modernos. Sabemos, também, que igualdade compreendida como homogeneidade e neutralização das diferenças provoca desigualdades, hierarquizações, seleção, classificação e exclusão - social e escolar. É possível pensar e praticar uma educação escolar aberta à alteridade? Uma abertura que possibilite o (re)encontro na diferença? Diferença(s) que não seja(m) riscada(s), apagada(s), ignorada(s), marginalizada(s)? Essas perguntas exigem, do nosso ponto de vista, compreender e lidar cotidianamente com a igualdade como projeto ético-político democrático de uma escola pública referendada, simultaneamente, no princípio da igualdade e no princípio do reconhecimento da diferença (SANTOS, 2010, p.51). Esse é o desafio fundamental que emerge! Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002953 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 4 É necessário não esquecer que a escola seletiva e excludente que conhecemos, tão bem, convive em seu interior com práticas pedagógicas solidárias e inclusivas. Espaços de aprendizagens alheios aos interesses e desejos de estudantes e docentes constituem essa escola tão conhecida que abriga, também, em seu interior modos de aprender e ensinar articulados à vida, a perguntas explicitadas, dúvidas e ainda não saberes existentes e partilhados com o outro – colegas e professoras(es). Modos hegemônicos e contra-hegemônicos em permanente tensão e conflito, próprios de um cotidiano escolar complexo, polifônico, plural. 2 - Sala de aula: espaçotempo privilegiado para pensar e praticar a alteridade em alfabetização e a alfabetização a partir da alteridade Acompanhando o trabalho pedagógico de uma mesma turma por dois anos – no 1º e 2º anos do Ensino Fundamental-, em uma escola pública, pudemos observar diferentes processos de aprendizagem de crianças que inicialmente poderiam ser classificadas como com dificuldades de aprendizagem. Porém, os resultados que temos sistematicamente encontrado em nossas pesquisas, das quais aqui apresentamos uma das situações vivenciadas, levam ao questionamento do conceito de dificuldade de aprendizagem e ao estabelecimento de outras relações entre diferença, alteridade e aprendizagem. Não por acaso, nossos estudos encontram apoio em teorias pós-críticas e póscoloniais, considerando seus desdobramentos nos estudos sobre alfabetização, currículo e formação docente. A opção epistemológica orienta a definição metodológica, que privilegia a pesquisa com o cotidiano escolar, em turmas de anos iniciais do ensino fundamental. Nossas pesquisas se constituem pela análise sistemática de atividades escolares das crianças, observação de suas interações em sala de aula e das propostas docentes, além de constantes conversas com as crianças e com sua professora. *** Ewellen, criança tímida, muito quieta, em sala, quase não falava. Observava, com curiosidade, o que acontecia. Interessada, realizava todas as atividades propostas no seu tempo e ritmo. Seu uniforme e material escolar bem cuidados revelavam a atenção e esmero de sua mãe para com a filha. Sua irmã mais velha, estudante dos anos finais do ensino fundamental, na mesma escola, era responsável pelo seu deslocamento entre casa-escola-casa. A incompatibilidade dos horários de sua irmã com os seus contribuía para a irregularidade de sua frequência à escola. Sua mãe, responsável pela Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002954 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 5 família, trabalhava todo o dia. Ewellen vivia na Tijuca, no Morro do Turano, com sua mãe e quatro irmãos – três mais velhos do que ela, com idade entre 11 e 14 anos e um irmão menor, de 6 anos. Garantir a escolaridade de seus filhos é um valor para a mãe de Ewellen, por isso, apesar das dificuldades encontradas, a família se organizava de modo a garantir que todos estudassem. A professora, ciente dessa situação, apesar do número excessivo de faltas de Ewellen, garantia sua matrícula. Mas, por que, num primeiro momento, o percurso realizado por Ewellen poderia ser claramente interpretado como indicador de suas dificuldades de aprendizagem? A resposta, para nós, é igualmente clara: porque as respostas da menina não correspondiam aos resultados esperados de acordo com seu período de escolarização, o que evidenciava sua impossibilidade de seguir o percurso de aprendizagem previsto. Queremos discutir essa relação, ainda tão presente nas salas de aula das escolas públicas brasileiras e, do nosso ponto de vista, tão prejudicial para a produção de um processo pedagógico de qualidade, em que a aprendizagem sempre se realiza. Ao expor sua diferença, a menina traz para a centralidade da reflexão modos como se trata a alteridade na dinâmica aprendizagemensinoi. Nos obriga a pensar nos tempos escolares, nas expectativas que se formam a partir deles e nos modos como os tempos são preenchidos no cotidiano escolar. A essa reflexão se vincula o debate sobre os conceitos de aprendizagem, de alfabetização e de avaliação que sustentam as práticas propostas no projeto oficial e as realizadas pelas professoras e professores em diálogo com os/as estudantes. Quanto tempo uma criança precisa para aprender a ler e a escrever? Quando começa a contagem desse tempo? Quando ela termina? Os documentos oficiais determinam a idade de oito anos como limite para que todas as crianças estejam alfabetizadasii. Essa delimitação indica uma desconsideração dos percursos de vida das crianças, que vai muito além de suas experiências como estudantes, ainda que as compreenda. Todas as crianças aos seis anos, quando ingressam no ensino fundamental, não têm a mesma experiência com a língua escrita. Portanto, chegam à escola com conhecimentos diferentes sobre a língua, com expectativas diferentes sobre o uso da escrita e com contatos com diferentes modalidades da linguagem escrita, expressão das diferenças culturais existentes no Brasil. Simultaneamente é preciso considerar que nem todas as diferentes formas de ser, viver, conhecer e se expressar são igualmente aceitas no contexto escolar por adquirirem valores sociais desiguais, em decorrência da diferença colonial (MIGNOLO, Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002955 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 6 2003) que estrutura a sociedade brasileira e tem no domínio da escrita um de seus primeiros indicadores. Obviamente, à diferença cultural, com seus matizes de desigualdade, se somam as desigualdades sócio-econômicas, que também precisam ser consideradas. Nesse contexto, o tratamento do percurso e/ou do resultado infantil que não se enquadra no padrão vigente como dificuldade de aprendizagem indica o não reconhecimento de sua qualidade e legitimidade. Tal procedimento aproxima diferença de deficiência, através da ideia de dificuldade, gerando um sentimento de incapacidade naquelas crianças classificadas como os que não aprendem o que deveriam aprender em determinado tempo escolar, seguindo um determinado percurso e apresentando determinados resultados. Esse processo, ainda que com maior sutileza do que encontrada em momentos anteriores, continua responsabilizando os excluídos pelo seu próprio fracasso. Porém, o experienciado por Ewellen, com seus colegas e professora, no dia-a-dia da sala de aula, referendava-se no (re)conhecimento de diferentes e singulares modos pelos quais essas crianças se relacionavam com o aprendizado da leitura e da escrita. Que conhecimentos revelavam sobre a linguagem escrita? Se interessavam por esse aprendizado? Liam e escreviam? Como liam e/ou escreviam? Ousavam escrever como sabiam e podiam? Ou se recusavam a ler e a escrever? Que temas mobilizavam o grupo nas rodas de conversas, realizadas diariamente? Perguntava-se Ana Paula, professora da turma, desde o primeiro dia de aula. Nesse sentido, desenhar, escrever, ler, ouvir histórias, contar histórias, brincar, observar, escutar, falar, tomar decisões, concordar, discordar, conversar fazia parte da rotina dessa sala de aula. Ana Paula, desde vários anos, vem se desafiando a praticar uma ação alfabetizadora que não desconsidere as histórias e experiências das crianças com a linguagem escrita. Pensar e praticar a alfabetização como experiência (SAMPAIO, 2008): viver cotidianamente com as crianças, no dia-a-dia da escola, práticas alfabetizadoras que abram possibilidades para que cada um, individualmente e coletivamente, possa fazer-se outro nas relações de alteridade e, nesse fazer-se, possa vivenciar processos próprios e singulares de compreender, de aprender, de ensinar. Uma educação/alfabetização, sobretudo, ética, onde sou absolutamente responsável pelo outro, como lembra-nos, com insistência, Carlos Skliar. (...) es el otro quien provoca la llamada; es el otro quien nos induce a realizar un gesto; es a partir del otro que nos hacemos responsables, obligándonos a dialogar con él. (2007, p. 30- 31.) Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002956 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 7 Esse é o contexto da sala de aula no qual aprendíamos, também com as crianças e professora, no processo investigativo, a reconhecer (e legitimar) potencialidades, desejos, lógicas infantis. *** Ewellen (e mais uma colega), ao final do 1º ano de escolaridade, não lia e não escrevia do mesmo modo que as outras crianças. No entanto, com ajuda, pistas, sinalizações, ambas liam e escreviam, como sabiam e podiam - uma escrita que se distanciava, muitas vezes, da escrita convencional. Ewellen estava integrada ao processo vivido por sua turma, embora não mostrasse as mesmas aprendizagens que os demais. Porém, no ano seguinte, quando cursaria o segundo ano, logo no mês de abril teria de se submeter à Provinha Brasiliii, cujos parâmetros colocariam a menina em um dos seus níveis mais baixos, interpretados, no discurso oficial, como evidências de dificuldade de aprendizagem, como se pode apreender dos fragmentos a seguir: Foi instituída, por meio da Portaria Normativa nº 10, de 26 de abril de 2007, a Provinha Brasil, com os seguintes objetivos: a) avaliar o nível de alfabetização dos educandos nos anos iniciais do ensino fundamental; b) oferecer às redes de ensino um resultado da qualidade da alfabetização, prevenindo o diagnóstico tardio das dificuldades de aprendizagem. (INEP: 2011; p. 04) Recomenda-se especial atenção no trabalho com as crianças que estão nos níveis 1 e 2, visto que o esperado é que as crianças, no término do segundo ano de escolaridade, atinjam, pelo menos, os níveis 3 ou 4. (idem; p. 19) As políticas públicas avaliativas implementadas indicam procedimentos sociais e escolares que contribuem, sutil e paulatinamente, para a transformação da diferença em dificuldade e esta relação, ao se consolidar, serve como justificativa para a desigualdade decorrente de um processo escolar pouco exitoso. Na medida em que o processo infantil deixa de ser investigado a partir de suas próprias marcas para ser comparado a um padrão fixo e reduzido de habilidades e verificado por intermédio de questões fechadas e descontextualizadas, dificulta-se a possibilidade de diálogo com o movimento efetivamente vivido pela criança e, consequentemente, de proposição de um processo pedagógico que atenda a suas demandas e potencialidades, vendo-a como parte de um coletivo em que seu processo e as atividades ganham sentido. Como o discurso oficial não serviu como norteador da prática pedagógica na turma de Ewellen, seu processo de Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002957 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 8 aprendizagem continuou sendo percebido pela professora como expressão de sua alteridade. A participação no cotidiano da sala de aula nos mostra que a aprendizagem infantil se relaciona à ampliação da sua autonomia. A professora reconheceu a legitimidade do processo de aprendizagem da menina e contribuiu para que ela fortalecesse sua capacidade de expressar seus conhecimentos, mesmo que frequentemente atravessados por seu ainda não saber. A avaliação se realizava como um processo em que a reflexão individual e coletiva orientava a compreensão dos sentidos que as propostas iam adquirindo em sua realização e dos efeitos que provocavam na aprendizagem de cada um/a dos/as estudantes. No mês de novembro, no 1º ano de escolaridade, Ewellen, ao se autoavaliar escreveu: EU JÁ APRENDI A ESCREVEISETO SOZIA PARAIACOPACABANA EU QUERO APENDE A LE. Seu texto nos diz das palavras que já aprendeu a escrever sozinha: inseto (tema do projeto de estudos desenvolvido pelas crianças, por opção delas, no inicio do ano); praia e copacabana. Revela-nos seu desejo: eu quero aprender a ler. Mas, nos diz, sobretudo, que saberes e ainda não saberes são constitutivos do processo de aprender. Ela sabe e ainda não sabe. Um modo dialógico de compreender o processo de aprendizagemensino que interroga e desnaturaliza dicotomias clássicas - sabe/não sabe; acompanha/não acompanha a turma; escreve/não escreve; lê/não lê; tem dificuldades/não tem dificuldades -, que alimentam, nas palavras de José Contreras Domingo, a Pedagogia da normalidade, (la pedagogía de lo neutro), la que hace vacío de las diferencias (...) la pedagogía que se basa sobre el saber qué hacer antes de tener una experiencia concreta, antes de conocer la singularidad de sus alumnos, como personas concretas con sus propias historias, antes de vivir la singularidad de las situaciones y las relaciones particulares en las que se está inmerso, en cuanto que docente, como un otro para los otros (sus alumnas y alumnos). La que no hace vacío en sí y escucha para dejarse decir por el otro quien el otro es, quiere, necesita; la que no hace vacío y se escucha a sí para pensar lo apropiado a la situación. (2001, p. 8) Na contramão dessa perspectiva, Ewellen experienciava um processo alfabetizador podendo narrar as experiências de sala de aula e narrar-se como sujeito dessas experiências, se reconhecia e se percebia valorizada como capaz de aprender, embora os resultados de suas ações nem sempre se enquadrassem nos padrões Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002958 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 9 predefinidos de aquisição de habilidades e desenvolvimento de competências. Na sala de aula, autonomia infantil e autonomia docente dialogam intensamente, pois em interação a criança reconhece as potencialidades e limites de seu processo e assume sua responsabilidade com sua aprendizagem e de seus colegas, sendo capaz de propor movimentos que favoreçam a aprendizagem de todos; do mesmo modo a professora, reconhecendo os efeitos de suas ações na aprendizagem infantil, tem fortalecida sua capacidade de elaborar as propostas de ensino segundo sua percepção das necessidades e potencialidades do grupo com que trabalha e de interpretar os resultados, alimentando seu processo de açãoreflexãoação. Nesse processo experiencia um movimento permanente de ir tornando-se melhor professora no exercício de ser professora. Em uma de nossas conversas, Ana Paula, professora de Ewellen, enfatiza: Hoje, após cinco anos com uma mesma turma [do 1º ao 5º ano de escolaridade do EF] e com a presença da Carol [uma criança surda] posso ver de outro modo esse processo alfabetizador. Estou mais atenta, mais calma, mais capaz para intervir no processo vivenciado pelas crianças. É incrível minha mudança, meu próprio movimento (...) estou aprendendo, a cada ano, a lidar de um modo diferente com as diferenças das crianças. É um desafio não ver as diferenças como dificuldades. Mas, é possível... mas precisei e preciso de ser ajudada. Sozinha, não sei não!! (Caderno de Campo, 17/03/2009) Para Ana Paula aprenderensinar com o outro constitui seus modos de ser professora. Atenta ao próprio processo de mudança persegue, nas ações pedagógicas realizadas, relações de reciprocidade e solidariedade entre ela e as crianças e entre as próprias crianças. A escrita coletiva de um texto sobre o que descobriram sobre um besouro que se fingia de morto encontrado no pátio da escola revela-nos maneiras muito próprias e singulares de intervenção docente e discente experienciadas por esse grupo. O texto pensado por toda a turma e escrito no quadro por várias crianças que se alternavam, a pedido da professora, ia sendo produzido a partir de sugestões, sempre discutidas pelo grupo. A discussão girava em torno da estrutura textual; do conteúdo a ser dito; de como dizer o que se quer dizer; de como se escreve tal ou qual palavra; a pontuação e acentuação necessárias... um processo que exige ouvir o outro e a si próprio; refletir sobre a língua; fazer escolhas; ser paciente com o tempo do colega, às vezes demorado para quem já escreve com mais autonomia; ajudar e ser ajudado. É importante destacar que todas as crianças, e não apenas as que já estavam alfabetizadas, ou possuíam mais “facilidade”, podiam ser escribas do texto, no quadro. Mas, o modo como a professora interagia com cada uma delas, no momento de registrar o pensado pelo grupo, era diferente. Igualdade no direito de aprender (mais) Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002959 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 10 sobre a linguagem escrita no processo de registrar a carta no quadro, mas, diferença no modo de ser interpelado, questionado, ajudado, pois os (des)conhecimentos que possuíam não eram os mesmos; os processos vivenciados também não eram os mesmos. Cada criança que ia ao quadro escrevia uma parte do texto. Ewellen foi solicitada a escrever: essas foram as nossas descobertas. Ficou quieta, pensativa. Perguntei se sabia escrever a palavra essas. Ela confirmou com a cabeça que sim e escreveu ESA. A professora lembrou que essa palavra possuía “um segredo”. Com a intervenção das crianças, Ewellen acrescentou mais um S, mas, manteve a palavra no singular. Foi necessário um tempo maior para que compreendesse o uso do plural ou a necessidade de tantos S em uma mesma palavra. Ajudada ora pela professora ora pelos colegas, que apontavam no alfabeto a letra necessária; que diziam a ordem das letras e esperaram (solidariamente) seu tempo para pensar e escrever, Ewellen finalizou o registro do texto, no quadro, revelando-nos conhecimentos que, até então, não havíamos percebido. Porém, se comparada aos colegas podia ser enquadrada em uma posição inferior aos demais, consolidando diagnóstico de dificuldade de aprendizagem. No ano seguinte, quase dois meses após o início do ano letivo – no 2º ano de escolaridade – chego à escola e encontro as crianças no pátio comemorando o aniversário de um colega de classe. Ewellen, que até então eu não havia reencontrado, vem ao meu encontro, me abraça e com um sorriso largo, olhos vivos, corpo mais ereto, me pede, pela primeira vez, meu caderno de campo (as crianças, com frequência, registravam nesse caderno perguntas, histórias, experiências vividas) e escreve: EU ADORO LER E SCEVR (EWELLEN). Assina, toda orgulhosa, com letra cursiva. Me devolve o caderno e vai brincar. Uma colega que ao nosso lado estava, me diz: - Tia, ela agora fala!! 3 – Múltiplas aprendizagens em percursos singulares A alteridade, quando articuladora da atividade pedagógica, estimula que à aprendizagem se experimente como processo reflexivo, crítico e compartilhado, impossível de ser enquadrado e reduzido aos estreitos limites do exame estandardizado que define previamente e sem conhecimento dos diferentes cotidianos vividos pelos estudantes e pelas professoras os fragmentos de conteúdo escolar que devem ser adquiridos e os modos de verificá-los. Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002960 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 11 Ewellen, como tantas outras crianças, não tem qualquer dificuldade de aprendizagem. Apresenta um processo peculiar que precisa ser compreendido pela professora a partir de um intenso diálogo em que cada uma possa se expor, ser vista pela outra, com seus limites e potencialidade, sem negar o que cada uma pode ser, mas negociando permanentemente para que cada uma possa assumir seus limites como desafios possíveis de serem superados na interação com os sujeitos com quem compartilham suas vidas e com o mundo, tendo no conhecimento – e em especial na aprendizagem da linguagem escrita – um instrumento valioso dessa relação. Certamente, compreender o processo de cada uma das crianças de uma sala de aula é um grande desafio para a professora e para o professor, especialmente daquelas que fazem percursos diferentes dos previstos. Por isso, o processo aprendizagemensino é um desafio tanto para estudantes como para docentes; um desafio baseado no diálogo, na partilha, na ação coletiva; um desafio que só se pode se enfrentado no encontro com o outro. A avaliação classificatória, baseada em parâmetros e procedimentos predeterminados, em escalas fixas, em padrões de produção e de interpretação dos resultados pouco conectados à dinâmica da sala de aula pouco pode contribuir com o movimento requerido pelo cotidiano escolar efetivamente comprometido com a aprendizagem de todos. A avaliação como prática de investigação (ESTEBAN, 2001), vinculada às proposições da avaliação para a aprendizagem (STOBART, 2010), indica, como nos mostra o vivido na turma da professora Ana Paula, potencialidades ao se articular ao processo pedagógico, não se prender a estereótipos, como um mero procedimento de mensuração da aquisição de fragmentos de conteúdos pelos/as estudantes. A redução do conhecimento a fragmentos limita a aprendizagem e, simultaneamente, o ensino, contribuindo para diminuir as possibilidades de produção de conhecimentos pelos grupos que cotidianamente interagem nas experiências da sala de aula. Entretanto, o que pode uma prática alfabetizadora vivenciada como experiência? Uma prática atenta aos acontecimentos cotidianos, aos desejos e necessidades explicitadas pelos diferentes sujeitos que vivem esse processo; aberta ao imprevisto, aos movimentos singulares experienciados pelas crianças. Como saber os processos vividos senão observando as relações entre as crianças; observando seus modos de se relacionarem com o conhecimento; chegando mais perto, se colocando à escuta, disponível para uma ação docente que assume riscos, se dispõe à surpresa? Uma prática Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002961 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 12 alfabetizadora como um testemunho de igualdade, na perspectiva defendida por Jacotot (RANCIÈRE, 2004), porque reconhecedora da capacidade de todos para aprender. Referências bibliográficas: CONTRERAS DOMINGO, José (2001). Percibir la singularidad, y también las posibilidades, en las relaciones educativas ¿Una pedagogía de la singularidad? Clase 3, Curso Pedagogías de las diferencias Cohorte 7, FLACSO, Buenos Aires, Argentina. ESTEBAN, M.T. (2001) O que sabe quem erra? Reflexões sobre avaliação e fracasso escolar. Rio de Janeiro, DP&A. INEP (2011). Provinha Brasil – Guia de Correção e de interpretação de resultados. Disponível em <http://portal.inep.gov.br/web/provinha-brasil/edicoes-anteriores> Acesso em 10.01.2012. MIGNOLO, Walter. (2003) Histórias locais/Projetos globais. Belo Horizonte, UFMG. RANCIÈRE, J. (2008). La lengua de la emancipación. In: JACOTOT, Joseph. Lengua Materna – enseñaza universal. 1ª ed. Buenos Aires: Cactus. ________. (2004) O mestre ignorante – Cinco lições sobre a emancipação intelectual. 2ª ed., Belo Horizonte, Autêntica. SAMPAIO, Carmen Sanches. Alfabetização e Formação de Professores – aprendi a ler (...) quando misturei todas aquelas letras ali... (2008). Rio de Janeiro: WAK editora. SANTOS, Boaventura de S. (2010). Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: SANTOS, B. S. & MENESES, Maria Paula (orgs) Epistemologias do Sul. São Paulo: Cortez. SKLIAR, Carlos. (2007) La educación (que es) del otro. Argumentos y desierto de argumentos pedagógicos. 1ª ed. Buenos Aires: Centro de Publicaciones Educativas y Material Didáctico, 2007. STOBART, G. (2010). Tiempos de prueba: los usos e abusos de la evaluación. Madrid: Morata. i A opção epistemológica e política de interrogar modos de dizer, compreendidos historicamente como oposições binárias, leva-nos a escrever juntos determinados termos no sentido de revelar sua indissociabilidade. ii - O Plano Nacional de Educação para o decênio 2011-2020 apresenta como uma de suas metas “Alfabetizar todas as crianças até, no máximo, os oito anos de idade”. iii - A Provinha Brasil “tem como principal objetivo realizar um diagnóstico dos níveis de alfabetização das crianças após um ano de estudos (…) com base em cinco diferentes níveis de desempenho, identificados a partir das análises pedagógica e estatística das questões de múltipla escolha que as crianças responderam no pré-teste. (Guia de Correção 2011) Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002962