XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
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CONTEMPORANEIDADE – CRIANÇAS E AS NOVAS FORMAS DE
LEITURA
Dione Machado Silva Coelho
PPGE UFRJ/Colégio Pedro II
Resumo
Pensar a leitura entre as crianças na contemporaneidade é pensar na multiplicidade de
maneiras de ler. Não existe uma única forma de contato com a leitura. A História Cultural
(DARNTON,1995; CHARTIER,1994,1995,1998; CAVALLO,1998) nos ensina através das
diferentes maneiras de ler ao longo da história que as novas formas de leitura definem
novos gestos, novas relações com o escrito e novas formas de pensar. Nesta perspectiva
este trabalho tem como objetivo refletir sobre as formas de leitura que as crianças estão
trazendo e nos revelando dentro da escola na contemporaneidade. Segundo Agamben
(2010), ser contemporâneo é manter os olhos fixos no tempo e para isso é preciso
deslocamento. O conceito de dispositivo trazido por este autor também é fundamental para
compreendermos os gestos de leitura, como movimentos condicionados e controlados pelas
e nas circunstâncias e usos nas quais são efetuadas. Este trabalho também fundamenta as
concepções de linguagem e de sujeito nas teorias de Mikhail Bakhtin (1988, 2010) para
quem, o conhecimento de um outro requer um movimento exotópico, ou seja, exige um
deslocamento de lugar que possibilite o sujeito ver do ponto de vista do outro aquilo que
ele mesmo não é capaz de ver do lugar aonde se encontra. Pensar a contemporaneidade
assim como identificar os diferentes modos de ler das crianças, no espaço escolar, exige
este movimento de tensão que nos leve a enxergar vestígios de gestos aparentemente
antigos e inteiramente estranhos ao momento em que vivemos, mas que ao mesmo tempo
podem estar nos revelando novos gestos, característicos de uma contemporaneidade digital.
Palavras-chave: criança - contemporaneidade - infância - práticas de leitura - escola
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A contemporaneidade, as crianças e suas formas de ler
Em seu livro O que é o contemporâneo? E outros ensaios, Agamben (2010) afirma
que poderíamos definir a “fase extrema do desenvolvimento do capitalismo em que nos
encontramos como a fase de gigantesca acumulação e proliferação de dispositivos”. Segue
afirmando que não há um só instante em que não somos definidos ou controlados por
algum deles. Como não é objetivo deste trabalho discutir o conceito de dispositivo, segue
então apenas para efeito de esclarecimento, a definição do autor, para quem o termo
significa “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar,
determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e
os discursos dos seres viventes”. (Id.,p.40).
O autor menciona “a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o
cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares”(Id.,p.40-41) e inclui entre
eles, a linguagem como alguns do objetos que nos capturam, nos controlam e de certa
forma nos dominam. Portanto, não são apenas as instituições de poder, tão obviamente
comprometidas com a disciplina, que nos aprisionam e nos impõem determinados
movimentos.
Ao mesmo tempo, Agamben (Ibid.) afirma que que tais dispositivos não são obra do
acaso e sim parte do processo de “hominização” (Id. p.43, grifo do autor) que transformou
o homem em ser humano. Nunca em tão pouco tempo tantos objetos foram inventados e
fabricados. Inventam-se os desejos e posteriormente criam-se os objetos para atender
àqueles. Assim, podemos pensar que o que nos torna humanos também nos aprisiona.
É nesta realidade, repleta de coisas, tecnologias, instrumentos, bugigangas,
parafernálias, e brinquedos eletrônicos de todo tipo que se encontram as crianças na
contemporaneidade. Mas o que é a contemporaneidade?
A contemporaneidade também é apresentada como “uma singular relação com o
próprio tempo, que adere a este e, ao mesmo tempo, dele toma distâncias; mais
precisamente, essa é a relação com o tempo que a este adere através de uma dissociação e
anacronismo” (Id., p.59). Nesta perspectiva, ser contemporâneo é não coincidir com o
tempo, é ser capaz de afastar-se para a partir do deslocamento poder ter a visão do seu
próprio tempo. Para Bakhtin (2010) é este excedente de visão, que pressupõe um lugar
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exterior ao que o sujeito do conhecimento ocupa e que só é possível a partir de seu
deslocamento, que vai possibilitar a compreensão enquanto conhecimento. A este lugar
exterior proporcionado pelo deslocamento Bakhtin (Ibid.) chama de exotopia. Segundo o
autor “[A] grande causa para a compreensão é a distância do individuo que compreende –
no tempo, no espaço, na cultura – em relação aquilo que ele pretende conhecer de forma
criativa.”(Id., p.366, grifo do autor).
Agambem
também
propõe
outra
definição
para
“contemporaneidade:
contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as
luzes, mas o escuro” (2010, p.62). Este escuro não consiste na falta ou na negação de algo
que existe, ao contrário, consiste em algo que por ter sido ofuscado, nossa visão não
captou. Precisamos desenvolver a capacidade de neutralizar a luz que ofusca a visão
daquilo que não pode fisicamente nos alcançar, ser visto. Explicar o contemporâneo é
tentar enxergar o escuro, mas também ter consciência das luzes que nos impedem de
enxergar e por isso, só aparentemente, nos cega.
Como falar do contemporâneo sem falar das coisas que o constituem e que nele são
constituídas? Como não falar de seus dispositivos? Daquilo que nos aprisiona e que nos
torna os mesmos, nos fazendo repetir?
Este texto refere-se à parte da pesquisa de campo ora em andamento em uma escola
pública de ensino fundamental do Rio de Janeiro e tem como objetivo refletir sobre as
formas e os gestos de leitura trazidos pelas crianças e revelados em sala de aula. Estas
práticas, como a história da leitura nos indica, nem sempre são novas, inusitadas.
A atitude de distanciamento que nos coloca no lugar do contemporâneo, nos
possibilita pensar nossa prática, fazendo-nos questionar até que ponto vimos nos repetindo
e cristalizando formas antigas de trabalho que não avançam, que não mudam e que de certa
forma não ajudam nossos alunos. Somente a partir de um inventário do que se tem,
poderemos buscar alternativas, inovar, inventar novas formas de ver e agir. Nosso objetivo
é mais o de problematizar algumas das implicações que as novas formas de leitura podem
trazer para a escola, do que apresentar soluções ou formas de trabalhá-la.
A História Cultural nos mostra como os textos impressos em suas diferentes formas
– discursivas e materiais – foram recebidos e apropriados de diferentes modos por grupos
distintos em momentos históricos diversos.
A história da leitura pode assim ser
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apresentada de diferentes pontos de vista, além de muitas vezes ser confundida com a
própria história do livro. Conforme Chartier e Cavallo nos lembra, “não existe texto fora
do suporte que permite sua leitura (ou da escuta), fora da circunstância na qual é lido (ou
ouvido)” (1998, p.9).
Portanto para compreendermos os gestos suscitados pelo ato da leitura também
torna-se peça indispensável de observação, o suporte que o constitui. Este também
determina e condiciona os gestos.
Darnton afirma que a leitura “não evoluiu numa direção única, a da extensividade.
Ela assumiu muitas formas diferentes entre diferentes grupos sociais em épocas diversas”
(1995, p.155). Portanto, seria difícil discutir essas diferenças e suas singularidades ao
longo de toda a história da leitura, no curto espaço de tempo que possuímos para discutir o
tema neste artigo. Assim sendo, pretendemos inscrever a leitura e seus gestos, não em um
tempo específico, mas após o início da Idade Moderna em suas modalidades de leitura - em
voz alta e silenciosa, - para passarmos a refletir sobre essas formas, que durante muito
tempo tornaram-se predominantes entre as pessoas e como a partir dos textos criados para
serem lidos com tais propósitos, gestos e práticas foram sendo reveladas e construídas. Até
que ponto encontramos “formas antigas” (grifo nosso) de leitura em situações de sala de
aula nos dias de hoje e como ressignificá-las como práticas contemporâneas?
A leitura oral em voz alta, compartilhada, servia tanto para informar como para
alegrar e passar o tempo. Era exercida em pé, em praça pública, no âmbito familiar ou em
grupos reduzidos. Enquanto a leitura individual se restringia aos que sabiam ler e podiam
adquirir livros, a leitura em voz alta, pública, transitava pelos diversos segmentos, das elites
às pessoas do povo. E se constituía em uma das formas mais populares de leitura praticada
no Antigo Regime, na França e na Alemanha. Darnton descreve uma de suas variações,
conhecida como veillée:
Enquanto as crianças brincavam, as mulheres costuravam e os homens consertavam suas
ferramentas, alguém do grupo que soubesse decifrar um texto lido iria regalá-los com as
aventuras de Les quatre fils Aymon, Till Eulenspiegel ou alguma outra história apreciada
dentre o repertório corrente dos livretos populares baratos.(Id., p. 157)
Nas oficinas, no século XIX, a leitura em voz alta também era muito praticada entre
os trabalhadores, que se revezavam nessa prática. Muitas vezes chegavam até mesmo a
contratar alguém para que lesse com o único intuito de prazer e divertimento. Mesmo com
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a difusão do livro, após o advento da imprensa, essa forma de leitura se manteve
dominante, começando a desaparecer apenas durante o nosso século. Darnton afirma que
hoje a leitura oral pública, substituída pelos meios de comunicação de massa perdeu sua
função política, embora sobreviva em alguns espaços, como
[...] vestígio de uma prática em vias de extinção e como exercício bem ritualizado de
aprendizagem [...] ela se torna um dos símbolos da leitura ‘primária’ hesitante ou enfática,
que se julga com indulgência ou reprovação, conforme o caso, quer se trate de crianças
noviças ou de adultos iletrados.(Id., p.157)
O autor também afirma que, apesar de a leitura oral ter perdido seu espaço político,
ainda hoje muitos se mantêm informados através das notícias, que são lidas na televisão. E
defende que talvez a televisão não seja tanto uma ruptura com o passado como muitos
podem querer acreditar e que os livros durante muito tempo contaram mais com ouvintes
do que com leitores. Diferentemente da forma com que os leitores se apropriavam da
leitura de textos em voz alta – para diversão, informação, prazer - , hoje a leitura feita na
televisão e nos meios de comunicação em geral, tem o objetivo de informar e por isso, seus
gestos são outros. Mais moderados e menos dramatizados.
A partir de uma imagem de leitura datada de 1610 a partir da qual Darnton descreve
uma situação de leitura, podemos imaginar como agiam seus leitores:
Ela mostra os livros, pesados volumes in foliu comprimidos em altas prateleiras que se
destacam das paredes, numa sequencia determinada pelas rubricas da bibliográfica clássica:
Jurisconsulti, Medici, Historici, e assim por diante. Os estudiosos estão espalhados pelo
aposento, lendo os livros em balcões erguidos a altura do ombro, sob as prateleiras. Eles
leem de pé, protegidos do frio por chapéus e capas grossas, com um pé apoiado numa barra
para aliviar a pressão do corpo. A leitura não havia de ser cómoda na era do humanismo
clássico. (Id., p.156)
A leitura como prática privada, segundo Darnton (Ibid.), constituía-se experiência
restrita ao círculo de pessoas cultas cujas condições sociais permitiam a compra do livro,
contudo Chartier (1994, p.15-16) nos alerta para esse tipo de classificação que impõe
fronteiras rígidas entre as práticas sociais, lembrando-nos que existem outros fatores de
diferenciações como gênero, geração, religião, agremiações profissionais entre outras,
plenamente pertinentes.
A partir da introdução da prática da leitura silenciosa na sociedade, a leitura solitária
introduziu uma outra forma de relação com o livro, trazendo a liberdade de estar a sós, na
intimidade - em oposição à leitura pública, partilhada. A biblioteca, para os que a ela
podiam ter acesso, passou a ser lugar de afastamento, de privacidade, de refúgio. Os gestos
de leitura também passaram a ser outros.
Pessoas podiam ser vistas, principalmente
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mulheres, recostadas em confortáveis cadeiras “abandonadas” (grifo nosso) ao ato da
leitura. Aos poucos o corpo vai se distanciando da leitura. Os movimentos dos olhos são os
novos gestos.
Leituras e rupturas
Darnton (1995) observa que, mesmo conhecendo as formas de leitura de outros
grupos ao longo dos tempos, não é possível de fato saber como os textos, em seus diversos
formatos, foram lidos e que sentidos lhes foram atribuídos. Muito menos os gestos
construídos. Segundo o autor, pode-se apenas supor já que se desconhece o que se passava
entre os leitores e os textos lidos. "Seja lá o que fosse" (Id., p. 163), as interpretações
empreendidas por determinados grupos poderiam ser feitas segundo maneiras que nos
escapam inteiramente. Tal afirmativa pode ser fundamentada em uma das proposições
sobre a leitura, desenvolvida por Michel de Certeau,
A primeira delas lembra, contra todas as reduções que anulam a força criativa e inventiva
dos usos, que a leitura não é jamais limitada, não podendo, assim, ser deduzida dos textos
dos quais ela se apropria. A segunda sublinha que as táticas dos leitores, insinuadas nesse
‘lugar próprio’ produzido pelas estratégias da escrita, obedecem a regras, lógicas, modelos.
Fica, assim, enunciado o paradoxo fundador de toda a história da leitura, que deve postular
a liberdade de uma prática da qual só podemos capturar as determinações.(1990, p.251 apud
CHARTIER, 1994, p. 27)
Entretanto, se é apenas suposição o que se pode fazer, como afirma Darnton pois
"não sabemos de fato" (Ibid. P.147) as formas como os textos foram lidos e, as
interpretações e os significados atribuídos à leitura, por nossos ancestrais, e obviamente
seus gestos, conhecer e entender tais práticas nos dias de hoje é capturar, as determinações
dessas formas e tecer as interpretações como defende Chartier (Ibid., p.27). O autor, então,
destaca a necessidade de se observar, em nossos dias, formas de leitura que de certa
maneira desapareceram:
Por exemplo, a leitura em voz alta, em sua dupla função: comunicar o texto aos que não o
sabem decifrar, mas também cimentar as formas de sociabilidade imbricadas igualmente em
símbolos de privacidade – a intimidade familiar, a convivência mundana, a convivência
letrada. Uma história da leitura não deve, pois, limitar-se à genealogia única da nossa
maneira contemporânea de ler em silêncio e com os olhos. Ela tem, também e sobretudo, a
tarefa de encontrar os gestos esquecidos, os hábitos desaparecidos. (Id., p. 17)
Não há dúvida de que a leitura pública em voz alta perdeu seu espaço político,
contudo tais gestos podem ser encontrados entre nós, mas é preciso buscar seus sentidos,
seus significados. Talvez eles estejam menos esquecidos e perdidos do que possamos
pensar ou ver. Cabe a nós encontrá-los, entendê-los e ressignificá-los descobrir seu novo
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valor.
Podemos conceber “a nossa maneira contemporânea de ler” como uma
multiplicidade de formas de ler. Basta observar nas ruas, nos lares, nas escolas, nas igrejas,
nos teatros, pessoas lendo para outros: seja a bíblia, seja um livro de história para o filho,
sejam as manchetes dos jornais pendurados nas esquinas, um comentário de futebol, uma
crônica, uma mensagem recebida no celular, na internet, nas redes sociais ou em qualquer
aparato digital.
Assim como Chartier (Ibid), Darnton (Ibid) concebe tais determinações, que
orientam e governam as variações das leituras, como fruto de um contexto históricocultural, no qual são construídas e afirma que esquemas de interpretação “fazem parte de
configurações culturais, que variam imensamente ao longo do tempo.
Como nossos
antepassados viviam em mundos mentais diferentes, deviam ler de maneira diferente, e a
história da leitura pode ser tão complexa quanto a história do pensamento”(Id., p. 172-173).
Para compreender a atividade de leitura, práticas e gestos empreendidos por um
determinado grupo, é preciso captar a lógica, as regras e os modelos - as determinações que orientam e governam os dispositivos, determinando e condicionando novos hábitos e
comportamentos. Tais determinantes, ao mesmo tempo que orientam e influenciam as
diversas formas de leitura de um grupo, são constituídas por elas no e pelo grupo,
diferenciando-o e definindo-o.
Linguagem e Leitura
A leitura não é somente uma operação abstrata de
intelecção; ela é engajamento do corpo, inscrição num
espaço, relação consigo e com os outros. Chartier,
(1994, p.16)
A leitura como forma de interação verbal, é historicamente situada e encontra-se,
portanto, vinculada às condições concretas em que se constitui. Ao mesmo tempo,
constituindo-se e sendo constituidoras dos sujeitos que dela tomam parte, as práticas de
leitura revelam assim, em cada tempo e espaço, gestos e modos de ler, que por serem
produções ideológicas, exigem novos sentidos e significados. Bakhtin afirma que:
“[O] livro, isto é, o ato de fala impresso, constitui elemento da comunicação verbal. Ele é
objeto de discussões ativas sob a forma de diálogo e, além disso, é feito para ser apreendido
de maneira ativa, para ser estudado a fundo, comentado e criticado no quadro do discurso
interior, sem contar as reações impressas, institucionalizadas, que se encontram nas
diferentes esferas da comunicação verbal (críticas, resenhas que exercem influência sobre os
trabalhos posteriores, etc.)” (1988, p.123).
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A citação de Bakhtin acima deixa entrever a coincidência na concepção de livro e
leitura. Mas a partir de sua conceituação de livro, podemos inferir um conceito de leitura
que ao constituir-se em forma de diálogo e manter-se em interação com outras formas
verbais de comunicação, passa também a fazer parte da cadeia verbal assim como a
enunciação.
Na perspectiva de compreendermos as práticas de leitura e seus gestos, na
contemporaneidade, é preciso portanto, pensarmos nas condições e usos em que tais
práticas efetivamente se constroem e se efetuam, ou seja, seu tempo histórico, o espaço
físico , o ambiente, os sujeitos, levando-se em conta não somente os textos em seus
discursos, mas também em sua materialidade e concebendo os gestos, não como elemento
exterior ao sentido e significado constituídos no ato de leitura, mas também como elemento
constituidor desta mesma atividade.
Ao discorrer sobre a psicologia do corpo social, Bakhtin afirma que “este elo de
ligação entre a estrutura sócio-política e a ideologia, definida como a esfera da ciência, arte,
etc., se efetua sob a forma de interação verbal (ou, mais genericamente, semiótica), a
psicologia do corpo social se transforma num conceito metafísico ou mítico (a “alma
coletiva”, “o inconsciente coletivo”, “o espírito do povo”, etc.)” (1988, p.41, grifos do
autor). Segundo o autor, este elo é o meio ambiente onde se constituem todas as formas de
interações verbais, que enquanto cadeias ideológicas ininterruptas se manifestam em
diferentes formas de discurso. Afirma também que tais manifestações verbais estão “por
certo ligadas aos demais tipos de manifestação e de interação de natureza semiótica, à
mímica, à linguagem gestual, aos gestos condicionados, etc.”(Id., p.42).
A internet, vídeo games, redes sociais, assim como a leitura e a escrita são
tecnologias que podem ser compreendidas como meios de interação social. Desta forma,
para entendermos as mudanças nas relações com as práticas de leitura estabelecidas pelas
crianças em sala de aula, precisamos começar a refletir sobre as formas de ler que esses
novos dispositivos estão revelando e que de certa maneira condicionam os sujeitos,
principalmente as novas gerações.
Não podemos duvidar de que, com seus suportes, estas tecnologias estão trazendo
novas formas de ler, novos gestos, novos códigos, novas formas de interação e de
enunciação. Mas o que estaria mudando?
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Chartier (2002, p.31) enfatiza o fato de que ler numa tela, não é a mesma coisa que ler
no códex. A nova representação do escrito muda a noção de contexto espacial. Na tela, a
forma como o texto se organiza e como o leitor se movimenta em relação a este texto,
assim como o modo com que a informação é acessada mudaram.
O modo de identificação e de manuseio do texto também mudaram e agora, este passa a ser
acessado na vertical.
Enquanto o livro no formato de códex tem uma organização visível que nos permite
distinguir e classificar os discursos de maneira que a materialidade do computador e os
aparelhos digitais não nos permitem, a textualidade digital tem outra dimensão física. Ela é
tridimensional. Por outro lado, os novos dispositivos de leitura (tablets entre outros) nos
oferecem uma possibilidade de movimentos facilitadores. É leve, fácil de manusear e
carregar, além de ser possível armazenar centenas e milhares de textos sem pesar.
Leituras contemporâneas
As três cenas a seguir relatam práticas de leitura em diferentes situações. A primeira é
o relato de uma cena filmada por uma família americana e que circulou na internet durante
um tempo na época em que morreu Steve Jobs, criador da Apple. O vídeo mostra uma
menina de aproximadamente 1 ano manuseando um iPad e posteriormente uma revista. As
duas cenas seguintes fazem parte do acervo de vídeo de da pesquisa em andamento em
turmas de 5º ano de uma escola pública durante uma atividade de livre escolha de livros na
aula de Português. As atividades são de turmas diferentes.
Cena 1: O vídeo “Revista é um iPad que não funciona”, cujo título sintetiza bem o que pode vir a ser uma
revista, ou quem sabe até mesmo o livro, para as próximas gerações, introduz a menina manuseando um iPad.
Ela aperta o dedinho, desliza-o e vê imediatamente que as figuras mexem, mudam, aparecem e desaparecem.
Em seguida aparece um subtítulo: “Isso não funciona”. Desta vez, a menina está diante de uma revista. Ela
folheia, alisa e aperta as folhas da revista com o indicador, com movimentos de quem já domina (levanto em
conta sua idade) tanto uma revista quanto aparelhos eletrônicos que respondem a movimentos e toques feitos
diretamente na tela, os chamados touch screen. Demonstra, como toda criança curiosidade e entretenimento.
Aparece novo subtítulo: “Esta tão pouco funciona”. A menina reaparece com outra revista. Os movimentos,
seguidos de uma sonoplastia típica digital, se repetem e inicia o processo de frustração. Nota-se que os
movimentos com o dedinho forçando, empurrando a revista, esperando a resposta como em uma tela digital,
começam a ficar mais repetitivos, intensos e rápidos. Outro subtítulo: “Sem serventia”. Outra vez, com uma
revista, encontra um encarte colado em uma página, tenta alguma coisa com ele. Aperta-o, escarafunchandoo, mas nada. Sinais de impaciência começam a aparecer. Um outro subtítulo questiona “Será que está
quebrado?”. A criança se desinteressa e empurra a revista. Próximo subtítulo: “Ainda assim meu dedo
funciona”. Após apertar algumas vezes a revista, sem obter “resposta” aperta a própria perninha algumas
vezes. O toque aumenta em intensidade parecendo querer comprovar a funcionalidade do dedo em sua perna.
Sente-o. Demonstrando impaciência, irritação e descontentamento busca pelo iPad. Encontra-o e começa a
dar gritinhos e a demonstrar sua alegria e prazer.
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O título e subtítulos que anunciam cada cena introduzida traduzem perfeitamente a
situação em que vivemos, pelo menos, no que diz respeito a relação com a leitura e seus
novos gestos. Esta cena, riquíssima em detalhes, nos permitiria uma discussão e análise
que infelizmente não nos possibilita. Gostaríamos de enfocar como um comportamento,
aparentemente simples, pode se constituir em gesto de leitura e marcar um tempo, a partir
de um novo suporte em que se é dado a ler. Outra questão que nos colocamos é como a
facilidade no manuseio de um novo meio, como o de um tablete por exemplo, pode levar
pouco a pouco, a um deslocamento a outra forma de leitura e até mesmo ao
desaparecimento da velha modalidade.
Gestos tão bem assimilados e aparentemente simples como virar a página de uma
revista ou um livro podem tornar-se desinteressante e até mesmo desaparecer. Enquanto a
leitura do rolo antes do códex, por exemplo, mobilizava o corpo inteiro e exigia das mãos e
braços um espaço que impedia a leitura em espaços mais restritos, a leitura de um tablet, ao
contrário demanda apenas um ínfimo movimento do dedo, cujo toque na tela, efetua o
trabalho necessário. Se nem mencionar sobre os sensores que obedecem o movimento das
pupilas. Podemos também empreender um outro deslocamento e tentar encontrar estes
mesmos gestos e formas de leitura construídas e criadas a partir de um novo suporte, em
outras condições de produção, aparentemente distinta, embora no mesmo tempo.
Cena 2:
Dois meninos leem um livro de geografia. Abrem aleatoriamente o livro e se deparam com uma página sobre
relevo geográfico. Um deles, Hugo, desliza os dedos sobre a cachoeira desde a parte superior até a inferior
desabando no lago enquanto faz o barulho imitando a correnteza.
Hugo (nome fictício) tem doze anos, lê fluentemente, é ótimo aluno, gosta de ler e tira
ótimas notas. O movimento empreendido por ele não tele relação com a falta de habilidade
com a leitura, tampouco lê este livro. Somente observa as figuras com o amigo. Os dois
brincam com o livro, que não apresenta nenhum artifício extra, enquanto riem e comentam
as fotografias. Seriam esses movimentos comuns entre crianças ledoras, antes da era do
touch screen, da era digital? Que sentidos lhe são atribuídos, para que os utilizam as
crianças?
Cena 3
Cinco meninas riem muito, porém baixo, mas chamam minha atenção. Apontam para o livro, que encontra-se
sobre a mesa. Duas estavam sentadas. Uma em frente à outra, enquanto as outras permaneciam de pé. Voltam
apontar para o livro. Agora, parecem estar em outra parte do texto. Continuam a rir. Agora, apontam apenas
para uma delas. Fui aproximando-me. Mas para minha surpresa não pararam e ao contrário me incluíram na
conversar. Perguntei o que liam. Mostraram-me o livro: “Eu te gosto, você me gosta” de Marcia Kupstas. Pedi
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emprestado, o que fizeram imediatamente ao final do tempo de leitura.
Após a leitura do livro, foi mais fácil entender e explicar todo aquele burburinho e o
movimento durante a atividade de leitura das meninas. Uma delas, para quem todas
apontavam estava namorando um menino da sala. O livro falava sobre as emoções,
decepções e alegrias de uma menina no dia dos namorados. Ao rever o vídeo pudemos
perceber o movimento de seus braços, seus rostos, o balanço dos corpos, as idas e vindas.
Posição que a princípio poderíamos pensar incômoda, para elas não parece perturbar ou
cansar. O prazer da leitura e da troca pareciam superar qualquer desconforto. Este episódio
nos remete à cena de leitura ocorrida por volta do século XVII, reproduzida por Darnton e
por mim relatada no início deste trabalho, em que segundo o autor, a leitura naquele tempo
“não devia de ser cômoda” (1995, p.156), ao contrário dos dias de hoje, onde
principalmente nos momentos livres, mesmo no espaço escolar, como no caso das meninas
aqui relatado o prazer e a comodidade são esperados. Para entender os gestos de leitura,
atribuindo-lhes um sentido é preciso entender as condições em que suas práticas se
constroem.
Essas cenas de leitura entre as crianças, também nos mostram e nos fazem pensar que
a leitura de corpo inteiro não é característica somente das crianças pequenas. Cada leitor,
com suas experiências próprias, interage com a leitura e promove experiências e práticas
compartilhadas. A partir de seus gestos, percebemos como são tomadas pela leitura, como
se
envolvem de corpo inteiro e interagem entre elas, trazendo suas experiências e
inquietações.
Compreender a leitura em suas práticas e rupturas ao longo da história nos ajuda a
entender e refletir sobre elas nos dias de hoje, projetando-as no futuro. Apesar de termos
em determinadas épocas características de práticas de leituras mais marcantes, isso não
quer dizer que diferentes formas não sejam coexistentes. A contemporaneidade e seus
novos dispositivos de leitura nos impõem novas formas de ler e consequentemente novas
práticas, novos gestos, novas formas de engajamentos corporais e intelectuais, mas elas não
se excluem.
Proporcionar momentos e espaços
que possibilitem as crianças, na escola,
independentemente de suas idades, usarem o corpo é de extrema importância. Que possam
ler juntas, sussurrar, segredar, rir. Tais práticas, vestígios de comportamentos introduzidos
com a expansão do livro e o surgimento da leitura silenciosa em espaços privados,
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sobrevivem no mundo digital, onde também são encontrados índices de uma cultura oral
medieval em que o partilhar da leitura era fundamental, não só para a informação como
para o prazer e o deleite no entretenimento.
Conclusões
Este trabalho teve como objetivo refletir sobre a leitura entre as crianças no tempo
em que vivemos. Para isso, foi preciso empreender um movimento de deslocamento para
tentar perceber os traços do passado que as práticas de leitura ainda nos revelam, mas que
ao mesmo tempo poderiam nos estar indicando traços de uma contemporaneidade. O
trabalho de reflexão constituiu-se mais como um desafio de ler no escuro do que em trazer
respostas clarificadoras.
Quem lê, onde lê, o que lê, como lê, para quê e para quem se lê são variantes que
governam práticas leitoras. Os sujeitos leem de acordo com seus interesses e expectativas.
A perspectiva da Histórica Cultural situou nosso trabalho em relação à leitura, concebendoa como prática inserida historicamente e portanto sendo determinada pelas condições em
que é produzida. Mas também, ao revelar as diferenças e rupturas históricas das práticas de
leitura trazendo a tensão entre o passado e o presente, nos ajudou a exercer o deslocamento
necessário para tentar enxergar índices de uma contemporaneidade.
Sem ter a pretensão de explicar o contemporâneo, mas na perspectiva de refletir
sobre o tempo em que vivemos, este texto também pretendeu refletir sobre nosso trabalho
como professores, e a partir de um entendimento de que a leitura constitui também um
dispositivo, pensar as práticas de leitura e seus gestos como práticas condicionadas e
determinadas, para que possamos encontrar caminhos para o novo em sala de aula, criando
assim formas diferentes e criativas de ensino de leitura levando em consideração não
apenas as atividades, mas os sujeitos envolvidos, os novos suportes e os espaços. E que
estes sejam agradáveis e acolhedores.
Relembrando Michel de Certeau: “Emancipado dos lugares, o corpo que lê se acha
mais livre em seus movimentos.”(1998, p. 272).
Referências Bibliográficas
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Junqueira&Marin Editores
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Vídeo disponível em <http://thenextweb.com/shareables/2011/10/13/this-baby-tried-to-usea-glossy-magazine-like-an-ipad-and-failed> Acesso em: 27 fev.2012, 7:20.
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Livro 1 - p.003117
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