XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 2 ATIVIDADE MATEMÁTICA NO PROCESSO FORMATIVO DO PROFESSOR Marisa da Silva Dias Faculdade de Ciências - UNESP Resumo. O enfoque deste texto é apresentar as reflexões teóricas e as primeiras análises de uma pesquisa que tem como tema geral a apropriação dos modos de ação docente para a organização do ensino e cujo objetivo é investigar a atividade matemática do licenciando, quando este se envolve em uma atividade orientadora de ensino. No desenvolvimento da pesquisa, considerou-se a articulação das disciplinas Prática de Ensino e Estágio Curricular Supervisionado como um ambiente didático-pedagógico favorável para esta investigação. Os sujeitos são estudantes do terceiro ano do curso de licenciatura em matemática de uma universidade pública do estado de São Paulo. Os aportes teóricos fundamentam-se na perspectiva histórico-cultural e no materialismo histórico e dialético, notadamente a teoria da atividade, os quais definem a dialética na qual o ser humano se constrói. A pesquisa é qualitativa com princípios colaborativos, por esse motivo o professor-pesquisador considera-se também sujeito. Os procedimentos teórico-metodológicos guiam-se principalmente pela atividade orientadora de ensino, tanto na organização da proposta de ensino quanto da coleta de dados. Os primeiros resultados referem-se à apropriação e à objetivação do conceito de base numérica, inicialmente manifestos por meio da solução encontrada a partir de uma situação-problema envolvendo tal conceito na escrita numérica. Nas ações da atividade matemática dos sujeitos estão presentes os conceitos de regularidade, contagem, sistema posicional, numeral, algarismo, correspondência, sequência numérica, generalização, função, ordenação e cardinalidade. Os aspectos principais da análise referem-se à dialética da matemática a ensinar e à matemática aprendida pelos sujeitos. Com isso, busca-se contribuir com a formação inicial do futuro professor de matemática considerando o processo de humanização e a criação e desenvolvimento das funções psíquicas superiores. Palavras-chave: Atividade matemática; Base numérica; Atividade orientadora de ensino; Prática de ensino; Didática da matemática. 1. Introdução Este texto refere-se aos primeiros resultados de uma pesquisa em desenvolvimento interligada ao projeto do grupo de pesquisa GEPAPe – Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Atividade Pedagógica. A problemática de investigação do grupo está em pensar os limites e as possibilidades de realização da atividade pedagógica, na escola e em outros espaços formativos, que efetivamente promova o desenvolvimento humano dos sujeitos que dela fazem parte. Tal problemática é reflexo Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002358 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 3 de estudos e experiências dos membros do grupo que, como educadores, trabalham para qualidade do ensino, uma vez que ter acesso à escola não garante a apropriação da cultura herdada. Um dos objetivos do projeto do grupo é a investigação dos processos de apropriação realizados por professores, relacionados aos modos de ação docente para a organização do ensino. Insere-se, nesse objetivo mais amplo, a pesquisa a que se refere este texto, com a especificidade na formação inicial de professores de matemática. No desenvolvimento da pesquisa, considerou-se que a articulação das disciplinas Prática de Ensino e Estágio Curricular Supervisionado é um ambiente didáticopedagógico favorável para esta investigação, uma vez que, os objetivos das disciplinas contemplam discussões e reflexões sobre a ação docente na dialética teoria e prática. Além disso, possibilita o planejamento e a execução de intervenções para o ensino de matemática. É nesse ambiente que professor e licenciandos desenvolvem ações que subsidiam elementos para organização do ensino. Assim, o objetivo da pesquisa é investigar a atividade matemática do licenciando, quando este está envolvido em uma atividade orientadora de ensino. Os sujeitos são professor e estudantes do terceiro ano do curso de licenciatura em Matemática de uma universidade pública de São Paulo (Brasil). Os primeiros resultados referem-se a uma proposta desenvolvida para abordagem do conceito de base numérica em aulas da disciplina Prática de Ensino. A pesquisa é qualitativa com princípio colaborativo (MOURA, 2004), o pesquisador é sujeito no processo de investigação, uma vez que é docente da disciplina e, como tal, desenvolve uma atividade orientadora de ensino, que organiza, intencionalmente, o espaço de aprendizagem. Essa abordagem metodológica tem como objeto o movimento de formação do professor na coletividade e tem por princípio que O método de apreensão dos fenômenos da formação não pode ser aquele que congela o objeto-formação ou que o toma como uma fotografia. Devemos apreendê-lo em movimento, pois o sujeito muda de qualidade a cada troca de significados nas ações educativas (MOURA, 2004, p. 265). Moura (2004) também resignifica alguns conceitos abordados por Caraça (1998) para o estudo da formação, são eles o de isolado, o de interdependência, o de fluência e a dialética qualidade-quantidade. O isolado caracteriza o recorte da realidade que Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002359 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 4 possibilita o estudo de um fenômeno. A delimitação do isolado prevê a análise das interdependências que direcionam o fenômeno, que são responsáveis pelo seu movimento, sua fluência. A análise das interdependências é dada pela qualidade na relação, por exemplo, [...] a aula é para o professor a intenção de educar o aluno. Já para este, a aula tem a qualidade de ser um conteúdo de aprendizagem na direção da intenção do professor. A aula para o dono da escola pode significar despesa porque para o professor significa receita (MOURA, 2004, p. 268). Esses princípios organizam a coleta de dados, uma vez que ao longo do desenvolvimento da pesquisa poder-se-á analisar vários isolados. O isolado aqui é delimitado por uma atividade matemática que se insere em uma atividade orientadora de ensino com enfoque no conceito de base numérica sintetizado no numeral. Além disso, há uma subdivisão metodológica na coleta de dados descrita ao longo do texto que esclarece o recorte necessário considerando a delimitação exigida para este texto. 2. Perspectiva histórico-cultural A prática no senso comum muitas vezes está relacionada a ações e até ao utilitarismo. No âmbito dos cursos de licenciatura, sobretudo nas disciplinas de Prática de Ensino, há vertentes que consideram práticas educativas, muito próximas a um ativismo, um saber como se faz, um “saber fazer”, predominantemente com a busca de exploração de materiais, supervalorizando a manipulação, o lúdico. Essa concepção aparece nos cursos de licenciatura, pois os licenciandos, sujeitos da pesquisa, ao iniciarem em tais disciplinas, expressam de alguma forma essa expectativa, aliada a busca de um modelo de aula que os permitam alcançar o sucesso na relação ensinoaprendizagem escolar. Esse é o primeiro desafio do professor de Prática de Ensino quando trabalha na perspectiva histórico-cultural, buscar não somente verbalizar o que compreende essa perspectiva, mas atuar na prática de sala de aula de forma a experenciar a relação teórico-prática. Tal posicionamento teórico compreende o outro e a si mesmo como seres humanos inacabados, em processo constante de apropriação e objetivação. Em particular, na aula, professores a estudantes desenvolvem processos específicos. As categorias de humano e atividade referidas aqui não são as do senso comum, Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002360 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 5 ser humano não significa nascer homem ou mulher, ser humano requer um processo de humanização. Embora haja várias explicações e significados para esse processo, considerando as diversas áreas que estudam o ser humano, filosofia, sociologia, biologia, antropologia, psicologia; neste trabalho toma-se o posicionamento que tem por base o materialismo histórico e dialético e a psicologia histórico-cultural, cujos expoentes são Marx e Vigotsky respectivamente. Vale lembrar que a teoria históricocultural tem sua formulação fundamentada na epistemologia do materialismo histórico e dialético. Nessa perspectiva, o homem vai se humanizando a partir das apropriações culturais desenvolvidas pelos seus antecedentes. Não iremos transcrever os primórdios do processo de humanização já desenvolvido pelos seus autores, porém destaca-se o fato desse processo ser histórico e mediado. Por esse motivo, o ser que nasce hoje não necessita inventar a faca, ou outros instrumentos, materiais ou teóricos, criados pelos seus antecedentes, porém necessita apropriar-se deles, para que possa objetivá-los. A apropriação não é simplesmente aprender a fazer, nem a objetivação é reprodução no sentido de cópia de procedimentos. Apropriação e objetivação são conceitos que expressam a dinâmica dialética na qual o ser humano se constrói. Apropriação é um processo ativo do homem com o objeto ou fenômeno, capaz de reproduzir os traços essenciais da atividade humana acumulada no objeto ou fenômeno LEONTIEV, 1964?). Considera-se reprodução uma formação, uma atividade mental e, por isso, não é passiva, é uma produção. Na reprodução está o pensar, este que capta o conteúdo, generaliza-o, sistematiza-o, aperfeiçoa-o e reconstrói-o. Por isso a reprodução é o resultado de sua própria elaboração do reproduzido, cuja essência é ideológica (RUBINSTEIN, 1976, p. 47). Isso quer dizer que não basta saber copiar procedimentos perceptíveis de um fenômeno, ou contemplar um objeto para apropriar-se dele, é necessário desenvolver uma atividade. Da mesma forma que o homem se humaniza apropriando-se do produto da história social de gerações precedentes, ele se objetiva no interior da mesma. A objetivação é um processo no qual o homem se (re)produz e produz cultura. O conceito de atividade neste trabalho fundamenta-se, sobretudo, na Teoria da Atividade de Leontiev (1964?, 1983, 1988). Leontiev ao estudar a origem, o funcionamento e a estrutura do reflexo psíquico da realidade, para sistematizar a psicologia como área de conhecimento, buscou compreender quais categorias seriam essenciais, tomando como base o materialismo histórico e dialético. Para esse fim, Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002361 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 6 definiu como principais categorias a atividade, a consciência e a personalidade, as quais não são independentes, porém nesse trabalho enfoca-se somente a categoria da atividade. Na atividade se articulam necessidade, motivo, objeto, ação e operação do indivíduo. A necessidade é o princípio da atividade, é ela que movimenta o ser humano em busca da obtenção do objeto dessa necessidade. Esta não se refere somente às condições básicas para sobrevivência, mas como salientou Marx, o ser humano cria necessidades para si, e, por sua vez, as necessidades criadas e reproduzidas pela cultura tornam-se primordiais para o homem humanizado. As ações da atividade podem ser externas ou internas (psíquicas), e estão dirigidas a obtenção do objeto que irá satisfazer a necessidade. As ações desenvolvemse nas e dependem das condições objetivas, ou seja, estas definem operações possíveis. O motivo existe por que há uma ligação entre a necessidade e a existência do objeto que a satisfaz, pois na ausência deste não há atividade e não há motivos para executar ações. Desse modo a atividade é a própria condição de o homem humanizar-se. Tomar a psicologia histórico-cultural por base no ensino escolar, não significa tratar-se de uma perspectiva psicolonizante, mas sim a compreensão de que o ensino não existe sem a aprendizagem compreendida como o desenvolvimento das funções psíquicas superiores (VYGOTSKI, 1995). 3. Atividade matemática A noção de atividade matemática (DIAS, 2010) fundamenta-se na Teoria da Atividade, bem como nos princípios da psicologia histórico-cultural como já descritos. É uma atividade particular da atividade humana e se caracteriza neste trabalho na confluência de duas outras, a do professor, a atividade orientadora de ensino (MOURA, 1996, 2001, 2010) e a do estudante, atividade de estudo (DAVÍDOV, 1988). A atividade orientadora de ensino tem como objeto a organização do ensino, a fim de atender a necessidade de ensinar, e como ação (ou conjunto de ações), o modo de colocar os conhecimentos a ensinar no espaço educativo. Ao longo da atividade estão os processos de análise e síntese os quais permitem, tanto ao professor quanto aos estudantes, avaliarem o ensino e a aprendizagem. A intencionalidade desta atividade é mobilizar o estudante, na orientação de suas ações, para que ele se aproprie do conhecimento novo e objetive seus conhecimentos, ou seja, que ele entre em atividade de estudo. É por meio do estudo que o estudante propicia as relações inter e Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002362 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 7 intrapsíquicas capazes de gerar e desenvolver funções psíquicas superiores relacionadas ao conhecimento científico, propósitos da educação escolar. Neste texto, o enfoque é analisar as ações dos estudantes de licenciatura em matemática, a partir dos conceitos teórico-metodológicos do professor-pesquisador, capazes de identificar a atividade matemática que possibilite a apropriação da matemática a ensinar. Supõe-se muitas vezes que a matemática a ensinar é a mesma que o licenciando sabe, que aprendeu no decorrer da escolarização e que, por isso, as disciplinas de Prática de Ensino não precisam discutir conceitos matemáticos. Porém, o conhecimento matemático de estudantes universitários, e mesmo concluintes, tem revelado (DIAS, 2007) não ser suficiente para proporcionar o desenvolvimento conceitual de estudantes da Educação Básica, considerando propósitos que ultrapassam somente o saber fazer. Para compreender um conceito matemático como atividade humana não basta conhecer uma definição e operacionalizá-la na resolução de problemas, mas sim compreender os traços principais que originaram tal conceito, sua essência, bem como àqueles que determinaram seu desenvolvimento. É nesse sentido que se caracteriza a aproximação da atividade matemática desenvolvida pela humanidade à sua apropriação pelo sistema educacional. (DIAS, 2010, p. 6) No processo de criação de um conceito matemático há uma necessidade humana, um motivo e condições determinadas que o constituiu. A matemática a ensinar não segue passos idênticos à história da matemática, porém é uma síntese dessa, que está objetivada na nossa cultura. Nesse sentido, a atividade matemática escolar busca compreender os aspectos essenciais da história da matemática com a finalidade de apropriação do conhecimento nela constituído. Dias (2007, 2010, 2011) tem indicado o movimento lógico-histórico como contributo para organização do ensino da matemática, com essa finalidade. Este texto não se dirige à análise da elaboração de propostas didáticas e sim uma fase posterior, à dos resultados de uma proposta específica. 3.1 Atividade matemática: conceito de base numérica Sabe-se pela história do número (IFRAH, 1998) que sua escrita, os numerais, tiveram sua diversidade e também sofreram muitas transformações. A proposta a que se refere este trabalho não se direciona ao conhecimento das escritas desenvolvidas pelas Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002363 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 8 civilizações ao longo da história, e sim, a compreensão de como o numeral sintetiza o conceito de base num sistema numérico posicional. As operações numéricas fundamentam-se no conceito de base, por isso a defesa da apropriação desse conceito pelo professor. Assim, este poderá desenvolver situações didáticas a fim de que seu futuro aluno da Educação Básica também se aproprie desse conceito. Considerando os sujeitos, a intencionalidade foi envolvê-los em uma situação didática na qual teriam que pensar em uma base diferente da utilizada no nosso sistema numérico, ou seja, diferente da base dez. A base dez, ou decimal, está sintetizada no pensamento deles de tal forma que uma proposta com essa abordagem dificultaria a percepção de aspectos essenciais que a formam. Aspectos também essenciais para a apropriação das crianças da Educação Básica, e, por isso pertencentes à matemática a ser ensinada. As ações foram planejadas para dois momentos, primeiro a apresentação de um problema desencadeador denominado “carta Caitité” (MOURA, 1992) com a devida carta-resposta. A opção de usar uma carta teve a intenção de colocar em prática o uso de recurso didático capaz de permitir ao estudante, futuro professor, uma análise para sua própria prática. A forma em que foi organizada a proposta da carta foi pensada considerando tanto o conteúdo matemático quanto o gênero discursivo. O segundo momento foi a discussão das produções do ponto de vista didático e matemático com a reescrita da carta-resposta. A carta é uma simulação do professor dirigida aos seus estudantes universitários. Nela o professor conta que ao participar de um seminário, dois outros professores apresentaram um trabalho sobre o sistema de numeração da comunidade Caitité (fictícia). Nesta apresentação, eles disseram que a comunidade representava as quantidades de um a doze, nessa ordem, com a seguinte escrita: , +, N, I, , +, N, +I, + , ++, +N, NI. Descobriram também que já tinha um símbolo para o zero: I. O professor na carta desafia os estudantes a descobrir a lógica do sistema de numeração daquela comunidade como também duas outras questões. A primeira solicita aos estudantes que traduzam para o nosso sistema o preço de um animal que na escrita Caitité era +N e, a segunda, que transformem 23 e 203 para escrita Caitité. As respostas deveriam ser escritas considerando o gênero discursivo de uma carta. A intencionalidade didática do uso da escrita para a resposta, por um lado, foi de favorecer o desenvolvimento da organização de idéias e produção de sistematizações na explicação de conceitos matemáticos, procedimento necessário para a formação do Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002364 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 9 professor. Por outro lado, foi trabalhar com a própria escrita numérica de um sistema que não é conhecido, mas que possui a mesma lógica do nosso sistema de numeração. Com isso, é possível ao futuro professor compreender e discutir algumas produções de escrita numérica dos estudantes da Educação Básica, bem como de dificuldades na aprendizagem das operações. Os sujeitos se organizaram em cinco grupos de, em média, cinco integrantes, totalizando vinte e cinco. Cada grupo recebeu uma cópia da carta, eles leram, discutiram e escreveram sua resposta. As cartas produzidas foram analisadas e discutidas (segundo momento), em seguida os grupos refizeram a carta. Dos cinco grupos formados inicialmente, três deles participaram dos dois momentos; um teve alteração dos seus membros sendo que somente um estudante compareceu nos dois momentos e, os integrantes do outro grupo não compareceram mais na disciplina. Das cinco respostas produzidas no primeiro momento, duas iniciaram pela busca da generalização do sistema de numeração da comunidade Caitité e três pelas transformações dos numerais 23, 203 e +N de um sistema a outro. Este texto mostra as análises de duas respostas, uma, denominada K, que iniciou por uma generalização e outra, denominada W, que iniciou pela transformação de numerais. Essas são representativas das principais idéias desses dois grupos de respostas. A resposta W inicia com a afirmação de que a comunidade Caitité “trabalha em função da base 4” e essa conclusão foi obtida pela análise das representações de um a doze do sistema da comunidade. Em seguida há as transformações de base dos números 23, +N e 203, nessa ordem. No fim, há uma tabela com os cabeçalhos: sistema decimal, símbolos e sistema Caitité. Na primeira coluna estão dispostos em sequência os numerais de 0 a 23, na segunda os numerais de I a N e na terceira os numerais 0, 1, 2, 3, 10, 11, 12, 13, 20, 21, ..., 113, ou seja, os numerais indo-arábicos considerando base quadro. No topo da tabela há a indicação de ser essa uma generalização da mudança de base “segue abaixo a linha de raciocínio de como fazer a mudança de base” (W). Observou-se que a tabela, embora apresentada no final da carta, serviu para responder como seria o numeral Caitité correspondente ao nosso 23, última linha da tabela. Na organização da resposta, primeiro há a afirmação “23 na base 4 corresponde ao número 113”, em seguida aparece a correspondência dos algarismos indo-arábicos 1, 1 e 3 com os respectivos no sistema Caitité: da tabela: 23, , e N. Isso confere com a última linha N, 113. Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002365 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 10 O raciocino da correspondência de algarismos de um sistema a outro é mediado pela transformação de base utilizando os algarismos do nosso sistema. Da mesma forma segue a transformação de +N em 231, “correspondendo na base 10 ao número 45”. Não há maiores informações em W de como o grupo fez essa transformação, porém, quando lhe foi questionado (segundo momento) afirmou ter sido da mesma forma que consta na tabela. Quanto ao 203, aparece somente a afirmação “203 na base 4 corresponde a 3023” (W), e com a correspondência de algarismos finaliza com a escrita NI+N. O grupo afirmou (segundo momento) que para esse item também utilizou a lógica da tabela, porém fazendo alguns saltos na sequência numérica ao perceber a regularidade. Tanto na resposta W quanto na K a escrita do número é tratada como símbolo ou representação, ou simplesmente número, a palavra numeral não aparece. Neste texto, quando se trata da interpretação da escrita numérica utiliza-se a palavra numeral. Embora o numeral contenha a síntese do conceito de número, este é mais amplo. Utiliza-se também o termo posição para mostrar que no numeral 12, 2 está na primeira posição e 1 na segunda. A resposta K inicia com a análise da regularidade em que os algarismos aparecem nos numerais na sequência apresentada na carta, “A partir do quarto número N=3, consiste em utilizar o número um com o zero ( I) = 4...” (K). O raciocínio segue na busca de encontrar a quantidade de numerais com dois algarismos, ao afirmar que essa sequência termina em NN. Para isso, deduz que a regularidade chega “a fórmula função f(x) = 4x”. Não há explicação do significado das variáveis nem o domínio da função. Porém, a expressão “como temos três números então temos: f(x) = 4.3 =12” (K) indica que x varia de 1 a 3, correspondendo a quantidade de numerais da sequência numérica , + e N. Embora tenha utilizado o registro algébrico de função, a não explicitação dos outros elementos necessários para defini-la indica que a idéia principal está relacionada à Análise Combinatória, pois o objetivo do grupo foi encontrar a quantidade de associações dos algarismos com duas posições no numeral. Isso acarreta em três possibilidades para segunda posição (excluindo-se o zero) e quatro para a primeira. A conclusão apresentada em K é que esses doze numerais, resultantes da combinação, somados aos três, de um algarismo, resulta na identidade NN = 15. Continuando com esse raciocínio, afirma que há dezesseis numerais com três algarismos cuja terceira posição é . Para saber o número correspondente na base dez, Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002366 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 11 K apresenta a soma quinze obtida na sequência anterior com dezesseis, resultando trinta e um. Como trinta e um é maior que vinte e três, está escrito em K: “então fazemos manualmente a partir do número 15”. Compreende-se por manual que o grupo fez a contagem um a um. A lógica se manteve para as transformações de sistema de numeração dos numerais +N e 203, ou seja, utilizar a análise combinatória para avançar na sequência numérica mais rapidamente e a contagem um a um para avanços ou retrocessos mais próximos. Para isso, além de registros aritméticos, mais duas vezes são utilizados os registros algébricos, “f(a) = 48” e “f(x) = 4.16 = 64”, também para a contagem da quantidade de numerais na sequência numérica. Ambas as respostas enfocaram a regularidade da sequência numérica, ou seja, o conceito de ordenação. Nenhuma das respostas apresentou uma generalização para o sistema numérico da comunidade considerando a síntese teórica do conhecimento científico. Inicialmente, foram considerados dois grupos de respostas decorrentes da forma inicial de apresentação do texto. Porém, observou-se que, conceitualmente, a generalização da resposta K não se trata do sistema de numeração e sim uma generalização da regularidade, que permitiu associar a ordenação e a cardinalidade. Esse fato também foi percebido por W, porém não foi sintetizado em uma fórmula e somente pôde ser verificado no segundo momento. Embora a regularidade tenha sido percebida pelos dois grupos, é provável que não tenha ocorrido da mesma forma, tampouco considerada com a mesma relevância entre eles. O nosso sistema de numeração foi mediador para o entendimento do sistema Caitité. Em outras palavras, o conhecimento que os sujeitos possuíam (o que foi apropriado) foi objetivado a fim de se apropriarem do outro sistema (sistema Caitité). Desta relação destacou-se dois aspectos, um relacionado a matemática a ensinar e outro a matemática aprendida. No segundo momento, discutimos que eles utilizaram o nosso sistema numérico como mediador, porém, no sistema de ensino, os alunos da Educação Básica não possuem qualquer referência da estrutura do sistema numérico posicional, tampouco a objetivação da base no numeral. Foi-lhes perguntado também o que é base numérica devido a ausência de apresentação de sua generalização na escrita dos números que pertencem a um sistema posicional. Essa discussão mobilizou os sujeitos a perceberem que a matemática que conhecem não é suficiente para ensinar, no sentido de propiciar a Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002367 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 12 apropriação. Para o segundo momento a proposta foi que eles redigissem a explicação do sistema Caitité como se fossem ensinar a seu aluno da Educação Básica. 4. Considerações Quanto à matemática apropriada, notou-se que representação geral de um número em uma base qualquer dada pela potenciação e a técnica (algoritmo) de mudança de base não estiveram presentes nas respostas. Na discussão percebeu-se que, de alguma forma, os sujeitos já haviam realizado mudança de base, principalmente da base dez para a base dois, como também conheciam a representação genérica de um número em uma base. A questão é por que esses conhecimentos não foram mobilizados? A hipótese inicial é que os sujeitos não se apropriaram nem do conteúdo sistematizado na técnica, nem realizaram a reflexão dos aspectos principais do sistema de numeração posicional. Os sujeitos durante e após a discussão coletiva puderam novamente entrar no movimento de análise-síntese. Embora neste texto não seja possível apresentar e discutir a nova síntese dos grupos, salienta-se que esse procedimento deu oportunidade de reflexão sobre a matemática a ensinar. Quanto à matemática objetivada, foi possível o professor-pesquisador estar em constante avaliação e identificar, por meio da análise das respostas e discussões, problemas do campo da didática da matemática. Além dos já citados, considerou-se também o uso incorreto de termos matemáticos no desenvolvimento de uma explicação. Este pode gerar dúvidas de interpretação, ou mesmo interpretações não coerentes com o conteúdo que se buscou comunicar, o que acarretará reflexos na educação básica. Outro ainda, trata da organização do pensamento em uma explicação considerando o interlocutor e o objetivo. As respostas analisadas não apresentaram com clareza o que os grupos consideraram, se consideraram, como generalização do sistema numérico. Por esse motivo, no decorrer das discussões coletivas houve intervenção do professorpesquisador explorando esses aspectos. Por meio da atividade orientadora de ensino no processo formativo do futuro professor de matemática buscou-se contribuir na formação de uma concepção de ensino que prioriza o desenvolvimento humano. Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002368 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 13 5. Referências CARAÇA, B. J. Conceitos fundamentais da Matemática. Lisboa: Tipografia Matemática Ltda,1998. DAVÍDOV, V. La enseñanza escolar y el desarrollo psiquico. Havana: Editorial Progresso, 1988. DIAS, M. S.; MORETTI, V. D. Números e operações: elementos lógico-históricos para a atividade de ensino. Curitiba: IBPEX, 2011. DIAS, M. S. A atividade matemática no processo educativo: aspectos teóricos e metodológicos na formação de conceito do sistema de numeração posicional. In ENCONTRO NACIONAL DE DIDÁTICA E PRÁTICA DE ENSINO, 15. 2010, Belo Horizonte. Anais... Belo Horizonte: UFMG, 2010, p. 2-12. 1 CD-ROM. DIAS, M. S. Formação da imagem conceitual da reta real: um estudo do desenvolvimento do conceito na perspectiva lógico-histórica. 2007. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo. IFRAH, G. Os números: a história de uma grande invenção. São Paulo/SP, 9a. Edição, Editora Globo, 1998. KOPNIN, P. V. A dialética como lógica e teoria do conhecimento. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978. LEONTIEV, A. N. Uma contribuição à teoria do desenvolvimento da psique infantil. In: VIGOTSKII, L.S; LURIA, A. R. e LEONTIEV, A. N. Linguagem, desenvolvimento e aprendizagem. São Paulo: Ícone/Editora da Universidade de São Paulo, 1988. LEONTIEV, A. Atividad, conciencia, personalidad. Habana: Editorial Pueblo y Educación, 1983. LEONTIEV, A. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Horizonte universitário, [1964?]. MOURA, M. O. de. et al. A atividade pedagógica na teoria histórico-cultural. Brasília: Liber Livro, 2010. MOURA, M. O. Pesquisa colaborativa: um foco na ação formadora. In: BARBOSA, Raquel Lazzari Leite (org.). Trajetórias e perspectivas da formação de educadores. São Paulo: Editora UNESP, 2004. MOURA, M. A atividade de ensino como ação formadora. In: CASTRO, Amélia Domingues e CARVALHO, Ana Maria Pessoa de (org.) Ensinar a ensinar. São Paulo: Pioneira Thomson Learning Ltda, 2001. p. 143-162. MOURA, M. A atividade de ensino como unidade formadora. Bolema, Rio Claro, n. 12, 1996. p. 29-43. MOURA, M. O. A construção do signo numérico em situação de ensino. 1992. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade de São Paulo, São Paulo. RUBINSTEIN, S. L. Princípios de psicologia geral. Lisboa: Estampa Ltda, 1976. VYGOTSKI, L. S. Obras escogidas. v. 3. Madrid: Machado Libros, 1995. Junqueira&Marin Editores Livro 3 - p.002369