www.brasil-economia-governo.org.br
O Poder Público deve punir os “crimes de bagatela”?
Hugo Souto Kalil *
Há quem sustente que quando os delitos são praticados sem violência nem ameaça
grave à vítima (o exemplo mais comum são os crimes contra o patrimônio, como furtos) e
o valor da coisa usurpada for baixo, falta à conduta do agente a materialidade do crime
(tipicidade material), razão pela qual seria necessária a absolvição 1.
Dados coletados no Supremo Tribunal Federal demonstram que o reconhecimento
do princípio da insignificância aumentou substancialmente de 2004 a 2009. Em 64,7% dos
Habeas Corpus acerca desta matéria no período analisado foi concedida a ordem,
reconhecendo-se a insignificância do bem (em regra, fala-se aqui em crimes relacionados a
valores de até R$ 700,00, quando contra o patrimônio privado, e até R$ 5.000,00, quando
contra a Administração Pública) 2.
Ocorre que, sem expressa previsão legal, tais casos continuam a ser submetidos a
todo o longo rito processual da justiça criminal. Em tais casos, apenas as despesas do
Tribunal já são, na maioria dos casos, suficientes para tornar o processo deficitário em
relação ao bem protegido.
A título de exemplo, o valor anual de um processo judicial, para o Tribunal de
Justiça do DF e Territórios, fica em torno de R$ 1.613,52, em média, segundo os relatórios
estatísticos do CNJ para o ano de 2011/2012 3. Acrescentados os custos com o Ministério
Público (acusação), polícia judiciária e com advogado ou defensoria pública (que, segundo
os dados analisados pela pesquisa no STF, chega a atuar em 82,7% desses casos), o valor
deve ser substancialmente maior – especialmente quando se leva em consideração que um
processo criminal leva, em média, 1.430 dias ou 3 anos e 11 meses, desde os fatos até o
Mestrando em Direito Constitucional no Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Advogado do
Senado Federal.
*
www.brasil-economia-governo.org.br
trânsito em julgado da sentença – o que facilmente já superaria a marca superior da
insignificância 4.
E, finalmente, quando se alcança o trânsito em julgado, o resultado final tem
chances muito relevantes de ser a impunidade – porque, como já visto, o reconhecimento
da insignificância é maior que a sua rejeição. Ainda quando há punição, em virtude da
quantidade de pena, dificilmente esta se dará no campo próprio do direito penal (a privação
de liberdade), mas provavelmente atingirá a restrição de direitos ou prestação de serviços 5.
Assim, há uma situação de dupla ineficiência – na alocação dos recursos e na
alocação de responsabilidades.
O custo esperado para o delinquente – obtido como o produto entre a
probabilidade de ser pego e a severidade da punição 6, nestas situações, é muito baixo,
próximo de zero. Isso porque a expectativa de uma condenação efetiva é mínima,
justamente devido à aplicação da insignificância, a despeito da pena prevista em abstrato
para o delito ser elevada 7 . Assim, toda a responsabilidade para evitar o delito acaba
repousando sobre aquele que, frequentemente, tem menores condições de evitá-lo: a
vítima.
Por outro lado, o custo estatal para a prevenção do delito está muito distante do
ponto ótimo, já que o sistema penal gasta muito e pune pouco, resultando em prevenção
ineficiente a custos altos.
Em outro ponto de vista, vislumbra-se que, estando todos os agentes devidamente
informados, a estratégia dominante tanto do delinquente como da polícia serão
convergentes.
O potencial criminoso, de fato, tem incentivos para a prática do delito, visto que
sua expectativa de punição se aproxima do zero, ainda que seja descoberto. A polícia, por
outro lado, sabe que a investigação, nesse caso, não é recompensadora, porque ao fim a
2
www.brasil-economia-governo.org.br
Justiça deverá absolver o agente pela insignificância. Dessa forma, sua estratégia
dominante é não investigar. Tem-se, assim, um cenário criminal absolutamente
desfavorável à punição do delito.
O que fazer, então, com essa espécie de criminalidade? Três cenários, no mínimo,
se descortinam.
A primeira possibilidade, e a menos racional, é manter-se o estado de coisas. Há
uma pequena contenção da criminalidade, que se supõe dever-se mais à adesão voluntária
à legislação, bem como ao custo simbólico do processo penal e da pecha de desonesto que
recai sobre o agente, do que propriamente do receio do aprisionamento.
Nessa hipótese, as vítimas que podem organizam-se para prevenir os delitos
(como o comércio, que instala alarmes, contrata vigilantes, instala câmeras de CFTV, etc.),
repassando os custos do crime para terceiros ou assumindo-os, enquanto as demais apenas
contam com a sorte. O Poder Público investiga pouco e, quando investiga, gasta demasiado
para, ao final, atingir uma sentença de absolvição, ou, quando muito, de prestação de
serviços.
A segunda possibilidade é tornar efetiva a punição dos agentes, abandonando o
princípio da insignificância. Tal medida, embora possa ser eficaz para reduzir a ocorrência
dos delitos, resultando no aumento da prevenção, tende a tornar-se ainda mais dispendiosa
que o processo penal – já que os custos de aprisionamento são elevadíssimos no Brasil 8, e
a eficácia do sistema (em termos de prevenção especial) é muito baixa.
Finalmente, pode-se cogitar da descriminalização do delito em determinados
patamares de valor, aplicando-se sanções como multas, prestação de serviços ou
indenizações. As vantagens dessa opção são a provável redução dos custos para apuração
da infração e da menor necessidade de lastro probatório (já que não se exigem nestes
ramos de direito o mesmo grau de certeza do direito penal), o que resultaria em prevenção
mais eficaz e a menor custo – logo, mais eficiente.
3
www.brasil-economia-governo.org.br
A sanção resultaria diminuída, mas essa redução seria compensada pelo aumento
da expectativa de ser pego, aumentando o custo esperado para o delinquente.
1
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal, Parte Geral. Vol. I. Niterói: Impetus, 2009. pp. 63-69.
BOTTINI, Pierpaolo Cruz (coord.) et al. O Princípio da Insignificância nos crimes contra o patrimônio e
contra a ordem econômica: análise das decisões do Supremo Tribunal Federal. USP, FAPESP, MJ, 2011.
Disponível em http://blogdovladimir.files.wordpress.com/2011/08/pesquisa-sobre-o-princc3adpio-dainsignificc3a2ncia.pdf. Acesso em 13/9/2013.
3
Cálculo aproximado, dividindo-se a despesa total anual do TJDFT pelo número total de processos no
período. In: BRASIL, CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Justiça em Números, 2011. Disponível em
http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/rel_completo_estadual.pdf. Acesso em
13/9/2013.
4
BOLLMANN, Vilian. Medindo o tempo no processo penal. Monografia. Disponível em
http://www2.trf4.jus.br/trf4/upload/editor/apg_VilianBollmann.pdf. Acesso em 13/9/2013.
5
De acordo com o artigo 44 do Código Penal Brasileiro, desde que a pena não seja superior a quarto anos,
entre outras condições, pode-se substituí-la por pena restritiva de direito.
6
BECKER, Gary S. Crime and punishment: an economic approach. Essays in the Economics of Crime
and Punishment. UMI, 1974. Disponível em http://papers.nber.org/books/beck74-1. Acesso em 13/9/2013.
7
Pena de um a quatro anos na modalidade simples, e de dois a oito anos na modalidade qualificada do delito.
8
Informações divulgadas recentemente na imprensa dão conta da cifra de R$ 40.000,00 anuais por preso no
Brasil. Fonte: http://veja.abril.com.br/blog/ricardo-setti/politica-cia/numeros-espantosos-revelam-que-alemde-pessimo-nosso-sistema-carcerario-nao-recupera-ninguem-e-custa-muito-caro-governo-gasta-mais-comdetento-do-que-com-estudante-de-universidade/ Acesso em 13/9/2013.
2
Este texto está disponível em: http://www.brasil-economia-governo.org.br/?p=2057
4
Download

O Poder Público deve punir os “crimes de bagatela”