UNIVERSIDADE DO VALE DO ITAJAÍ
LUCIANA PFEILSTICKER SOUSA SANTOS
INTERROGATÓRIO POR VIDEOCONFERÊNCIA
Florianópolis
2010
LUCIANA PFEILSTICKER SOUSA SANTOS
INTERROGATÓRIO POR VIDEOCONFERÊNCIA
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à
Universidade do Vale do Itajaí, como requisito
parcial à obtenção de título de pós-graduação latu
senso em Direito Penal e Processual Penal.
Orientador: Dr. Paulo de Tarso Brandão.
Florianópolis
2010
TERMO DE APORVAÇÃO
O presente Trabalho de Conclusão de Curso, intitulado Interrogatório por
Videoconferência, elaborado por Luciana Pfeilsticker Sousa Santos e submetido à
Universidade do Vale do Itajaí como requisito parcial à obtenção de título de pós-graduação
latu senso em Direito Penal e Processual Penal, obteve a aprovação de seu orientador, abaixo
assinado, com nota ___________ (_________________)
Florianópolis, 25 de fevereiro de 2010.
________________________________________
Dr. Paulo de Tarso Brandão
Dedico este trabalho aos colegas da 27ª e 26ª
Promotorias de Justiça da Capital, pelo constante
apoio com que fui agraciada e, em especial, a
Paulo de Tarso Brandão, orientador do presente
trabalho, e Marina Modesto Rebello, cujas
palavras de incentivo e compreensão me são tão
caras.
A aprovação da presente monografia não
significará o endosso do Professor Orientador,
da Escola do Ministério Público do Estado de
Santa Catarina ou da Universidade do Vale do
Itajaí à ideologia que a fundamenta ou que
nela é exposta.
RESUMO
O interrogatório consiste no ato processual em que se confere ao acusado a possibilidade de
dirigir-se diretamente ao magistrado, de forma a apresentar a sua versão dos fatos que lhe são
imputados. Pode, inclusive, optar por permanecer calado, cingindo-se a fornecer dados
referentes à sua qualificação e, ainda nesse caso, indicar as provas que entender pertinentes.
Consiste, portanto, em meio de defesa conferido ao réu; do contrário, não lhe seria facultado o
direito ao silêncio sem que desse se possa extrair qualquer elemento em prejuízo da defesa.
Inúmeros são os dispositivos legais que corroboram tal conclusão, a exemplo do artigo 5º, II e
LV, da Constituição Federal e algumas das alterações introduzidas no Código de Processo
Penal pelas Leis n. 10.792/2003 e 11.719/2008. Em razão de sua natureza jurídica, constitui
verdadeiro recurso a garantir a observância da ampla defesa. A videoconferência, por sua vez,
representa a conjugação de recursos tecnológicos que possibilitam, por meio da transmissão
simultânea de áudio e imagens, a comunicação em tempo real entre pessoas que se encontram
em diferentes locais. Sua aplicação ao interrogatório acarreta, contudo, a mitigação da
autodefesa, em razão do distanciamento físico e psicológico criado entre réu e magistrado,
razão pela qual o interrogatório on-line é admitido apenas em caráter excepcional pela
legislação pátria. Opção de política processual penal que buscou conciliar sua natureza
jurídica aos reclamos sociais, em especial àqueles relacionados à segurança pública.
Palavras-chave: Interrogatório. Natureza jurídica. Meio de defesa. Videoconferência. Ampla
defesa.
ABSTRACT
The interrogation consists in the procedural act in which the accused is given the
opportunity to go directly to the magistrate to present its version of the facts alleged
against him. The accused may even choose to remain silent, confining themselves to
providing data on their qualification and also, in this case, indicating the evidence he or
she deems relevant. It consists therefore in a means of defense given to the defendant;
otherwise, the defendant would not be offered the right to silence, nor the garantee that no
element may be extracted from this at the expense of the defense. There are various legal
mechanisms that support this conclusion, the example of Article 5, II and LV, of the
Federal Constitution and some of the changes to the Code of Criminal Procedure
introduced by the Laws n. 10792/2003 and 11719/2008. Because of its legal nature, it
constitutes a truthful resource to ensure compliance of legal defense. Videoconferencing,
in turn, represents the combination of technological resources that enable, through the
simultaneous transmission of audio and images, real-time communication between people
who are in different locations. Its application to the interrogation leads, however, to the
mitigation of self-defense, because of the physical and psychological distance created
between defendant and magistrate, reason why the online interrogation is permitted only
in exceptional cases by the Brazilian legislation. Policy option of criminal procedure that
sought to reconcile its legal nature to social claims, in particular those related to public
safety.
Keywords: Interrogation. Legal nature. Means of Defense. Videoconferencing. Defense.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 1
1
DO INTERROGATÓRIO COMO MEIO DE PROVA ........................................... 2
1.1
NOÇÕES SOBRE A TEORIA GERAL DAS PROVAS............................................... 2
1.1.1
Prova: conceito e ponderações ................................................................................... 2
1.1.2
Do sistema da livre convicção ou da persuasão racional............................................ 7
1.2
DA CONJUNTURA INTRODUZIDA, NO ANO DE 1941, PELO CÓDIGO DE
PROCESSO PENAL .................................................................................................................. 9
1.2.1
Liberdade do magistrado para formular os questionamentos que entender
pertinentes................................................................................................................................. 10
1.2.2
Impossibilidade do defensor do acusado intervir nas perguntas e respostas a este
formuladas ................................................................................................................................ 13
1.2.3
Dos artigos 186, 191, 198 e 260 do CPP .................................................................. 14
1.2.4
Significado e valor da confissão............................................................................... 15
2
DO INTERROGATÓRIO COMO MEIO DE DEFESA........................................ 17
2.1
DO DIREITO AO SILÊNCIO E NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO .............................. 18
2.2
DAS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
PELA LEI N. 10.792/2003 ....................................................................................................... 21
2.2.1
Da nova redação conferida ao artigo 186 do CPP .................................................... 21
2.2.2
Da indução ao exercício da autodefesa..................................................................... 24
2.2.3
Da necessária presença do defensor durante o interrogatório .................................. 26
2.3
DAS CONTRIBUIÇÕES EFETUADAS PELA LEI N. 11.719/2008......................... 26
2.4
DO CONCEITO DE INTERROGATÓRIO COMO MEIO DE DEFESA.................. 28
2.5
CONSIDERAÇÕES PESSOAIS.................................................................................. 28
3
DO INTERROGATÓRIO POR VIDEOCONFERÊNCIA.................................... 30
3.1
VIDEOCONFERÊNCIA.............................................................................................. 30
3.2
REGULAMENTAÇÃO INTRODUZIDA PELA LEI N. 11.900/2009 ...................... 31
3.2.1
Das hipóteses de admissibilidade do interrogatório por videoconferência .............. 34
3.2.2
Procedimento do interrogatório por videoconferência ............................................. 37
3.3
ARGUMENTOS FAVORÁVEIS ................................................................................ 39
3.3.1
Celeridade................................................................................................................. 40
3.3.2
Da economia de recursos públicos ........................................................................... 41
3.3.3
3.4
Segurança pública..................................................................................................... 42
QUESTÕES CONTROVERTIDAS ............................................................................ 43
3.4.1
Da publicidade.......................................................................................................... 43
3.4.2
Da necessidade de apresentação do réu à presença física do juiz para que seja
interrogado................................................................................................................................ 46
3.4.3
3.5
Da observância do contraditório e da ampla defesa ................................................. 50
DA ADEQUAÇÃO DOS PARÁGRAFOS 2º A 6º DO CÓDIGO DE PROCESSO
PENAL À NATUREZA JURÍDICA DO INTERROGATÓRIO............................................. 54
4
CONCLUSÃO............................................................................................................. 56
5
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 59
INTRODUÇÃO
O presente trabalho de conclusão de curso analisará a adequação do recurso de
videoconferência à natureza jurídica do interrogatório. Tema dos mais controvertidos na
doutrina e jurisprudência pátrias desde 27 de agosto de 1996, ocasião em que seu precursor, o
juiz Edison Aparecido Brandão, implementou tal técnica.
Sua complexidade deve-se, em especial, à plausibilidade dos argumentos favoráveis
e contrários à incorporação do interrogatório on-line ao ordenamento jurídico brasileiro.
Aqueles que se levantam em sua defesa sustentam, em síntese, a possibilidade de se conferir
significativa celeridade aos processos criminais, proporcionando maior segurança social e a
economia de somas vultosas, usualmente despendidas para a condução de réus presos à
presença do magistrado.
Ainda mais numerosos mostraram-se, contudo, os críticos desse método, por
entenderem que sua adoção representaria a mitigação de garantias constitucionais atribuídas
aos acusados em geral, a exemplo da ampla defesa e do contraditório pleno. Divergências que
ensejaram uma série de manifestações discrepantes por parte dos Tribunais Superiores.
Além de polêmico, o tema proposto mostra-se atual, pois a carência de uma
regulamentação adequada, no ordenamento jurídico brasileiro, a respeito do interrogatório por
videoconferência, foi suprida há pouco mais de um ano, por meio das alterações introduzidas
pela Lei n. 11.900, de 9 de janeiro de 2009, no artigo 185 do Código de Processo Penal (CPP).
Tão recente se mostra a sistemática adotada pelo legislador ordinário que poucas são
as obras publicadas a seu respeito, razão pela qual o presente trabalho embasar-se-á,
prioritariamente, em artigos científicos já divulgados.
A pretensão deste estudo consiste, portanto, em fornecer aos operadores do Direito
uma visão ampla do instituto previsto nos parágrafos 2º a 6º do artigo 185 do Código de
Processo Penal, partindo-se de uma análise aprofundada da natureza jurídica do
interrogatório, que respaldará a apreciação das divergências doutrinárias que permearam sua
regulamentação, conferindo-se especial relevância à análise das garantias constitucionais do
contraditório e da ampla defesa.
O método utilizado foi, preponderantemente, o indutivo, principiando-se pela análise
de argumentos específicos para se chegar a uma formulação geral. Por sua vez, as técnicas de
pesquisa adotadas foram a bibliográfica, legal e jurisprudencial, com recortes comparativos e
dialéticos.
1
DO INTERROGATÓRIO COMO MEIO DE PROVA
Há muito se discute, na doutrina e jurisprudência pátrias, a delimitação da natureza
jurídica do interrogatório, se meio de defesa do réu ou meio de prova. Tema cuja
compreensão é imprescindível para que se possa aferir a viabilidade e adequação da
incorporação do interrogatório por videoconferência à legislação processual penal brasileira.
Consoante ressalta Hélio Tornaghi (1967, p. 809), trata-se, em verdade, de uma
opção de política processual, uma vez que “o interrogatório do acusado tanto pode ser
aproveitado pela lei para servir como método de prova quanto como instrumento de defesa”.
Iniciar-se-á, então, pela apreciação das circunstâncias que o caracterizam, na visão de
muitos, primordialmente como meio de prova.
Antes, contudo, faz-se necessária a apresentação de conceitos e ponderações
específicas relacionados à teoria da prova, essenciais para que se possa perquirir a respeito do
enquadramento do interrogatório entre os meios de prova.
1.1
NOÇÕES SOBRE A TEORIA GERAL DAS PROVAS
Impõe, aqui, destacar que não se pretende esgotar o tema referente à teoria das
provas – matéria excessivamente vasta, que demandaria a elaboração de trabalho autônomo –,
mas tão-somente estabelecer as bases necessárias para a apreciação da natureza jurídica do
interrogatório, um dos objetivos a que se propõe o presente estudo.
1.1.1
Prova: conceito e ponderações
Consoante se verifica da análise dos diversos vocábulos que integram a língua
portuguesa, admitem, não raras vezes, múltiplos significados, a depender do contexto em que
se encontrem insertos.
Também a palavra prova pode ser tida como polissêmica, se considerados os
diferentes referenciais a partir dos quais venha a ser apreendida. Lição que se extrai da obra
3
de Carl Josef Anton Mittermaier, intitulada Tratado da Prova em Matéria Criminal:
A prova, essa base de argumentação que cada uma das partes emprega para
ganhar a convicção do juiz, pode ser encarada, conforme os casos, sob
diversos pontos de vista.
Consideramos: 1º, com relação àquele que a produz, ou, o que é o mesmo,
com relação àquele que fornece os motivos determinativos da convicção; 2º,
com relação àquele perante quem ela é dada.
No primeiro caso a palavra prova é tomada subjetivamente: designa os
esforços feitos pela parte para fundar a convicção no ânimo do juiz, e
habilitá-lo a decidir com toda a certeza a respeito dos fatos da causa;
neste sentido, prova e produção de prova são sinônimos. Assim é que no
civil as partes procuram demonstrar as suas pretensões; assim é que no crime
vê-se logo em esforços por demonstrar os fatos a um acusador [...]
Considerada em relação àquele para quem a prova é dada, torna-se esta
palavra sinônimo de certeza, toma-se então objetivamente, e compreende
esse complexo de poderosos motivos, que com toda a segurança dão em
conclusão a realidade dos fatos acusados. (1997, p. 57, grifou-se)
Igualmente relevantes, quanto à conceituação, são as ponderações efetuadas por
Nicola Framarino Dei Malatesta (2003, p. 15), para quem prova é “o meio objetivo pelo qual
o espírito humano se apodera da verdade”, que denomina de histórica, por visar,
impreterivelmente, à reconstrução de fatos passados:
A verdade histórica; eis o objeto de nossos estudos, e é esta que procuramos
alcançar, sempre que temos de nos certificar da realidade de certos
acontecimentos, e de certos atos passados no tempo e no espaço.
Percorrendo o tempo e o espaço, colhemos pelo caminho uma multidão de
circunstâncias isoladas, que ligamos entre si; estas nos guiam a seu turno, e
quando, com o seu auxílio, chegamos ao fim de nossas indagações, com
confiança julgamos se os acontecimentos passados, de que tratávamos, são
com efeito reais, e qual sua natureza; acreditamos possuir a verdade desde
o momento em que nossas idéias sobre o objeto da indagação nos
parecem em perfeita concordância com o mesmo. (2003, p. 60, grifou-se).
Entendimento corroborado por Mittermaier (1997, p. 59), em cujos dizeres a verdade
corresponderia à “concordância entre um fato real e a idéia que dele forma o espírito”.
Não se pode perder de vista, contudo, que, por maiores que devam ser os esforços
envidados para a reconstituição das situações fáticas que configurem eventos penalmente
relevantes, está-se, no processo penal, diante de uma verdade judicial – circunscrita ao que se
encontra nos autos –, a qual, nem sempre, seja por impossibilidades de ordem prática ou
íntima1, refletirá a realidade dos acontecimentos, embora deva ser esse o objetivo primordial a
1
Relacionadas, nesse contexto, a todos os sujeitos que atuam no processo e, portanto, influem na formação da
verdade judicial, a exemplo dos magistrados, testemunhas, peritos, dentre outros.
4
que se destina o processo.
De fato, prima-se, em matéria penal, pelo alcance da verdade material, e não
meramente formal, como admitido no processo civil, em razão da relevância dos bens
jurídicos tutelados.
A esse respeito, salienta Eugênio Pacelli de Oliveira:
O chamado princípio da verdade real rendeu (e ainda rende) inúmeros frutos
aos aplicadores do Código de Processo Penal, geralmente sob o argumento
da relevância dos interesses tratados no processo penal. A gravidade das
questões penais seria suficiente para permitir uma busca mais ampla e mais
intensa da verdade, ao contrário do que ocorreria, por exemplo, em relação
ao processo civil.
[...]
Enquanto o processo civil aceita uma certeza obtida pela simples ausência de
impugnação dos fatos articulados na inicial (art. 302, CPC), sem prejuízo da
iniciativa probatória que se confere ao julgador, no processo penal não se
admite tal modalidade de certeza (freqüentemente chamada de verdade
formal, porque decorrente de uma presunção legal), exigindo-se a
materialização da prova. Então, ainda que não impugnados os fatos
imputados ao réu, ou mesmo confessados, compete à acusação a produção de
provas da existência do fato e da respectiva autoria, falando-se, por isso, em
uma verdade material. (2009, p. 293-294)
Tal fato se justifica pelo efetivo interesse social de que venham a ser condenados
apenas os reais responsáveis pela conduta delituosa. À sociedade, em nada interessa a
condenação de um inocente, fato que contribuiria apenas para agravar os sentimentos de
insegurança e descrédito em relação ao sistema judicial.
Como salienta Giovinazzo, autor da introdução da obra A lógica das provas em
matéria criminal, de Nicola Framarino Dei Malatesta:
Ora, perante o direito, que tem a sociedade ofendida de punir o réu,
existe, em todo julgamento penal, o direito do acusado de não ser
punido, se não for réu [entenda-se, culpado]. O objetivo supremo, por
isso, de toda ordem processual que se inspire na defesa jurídica, deverá
ser o de conciliar e defender, ao mesmo tempo, estes dois direitos [...]
A pena que atingisse um inocente perturbaria a tranqüilidade social, mais
que teria abalado o delito particular que se pretendesse punir, por isso, todos
se sentiriam na possibilidade de ser, por sua vez, vítimas de um erro judicial.
Assim como o código das penas deve ser a espada infalível para golpear os
delinqüentes, assim o código de ritos, inspirado na teoria da lógica sã, sendo
o braço que guia com segurança aquela espada contra o peito dos réus, deve
também ser o escudo inviolável da inocência. É sob este aspecto que o
Código de Processo Penal, corolário legislativo da ciência e da arte de
julgar, é o índice seguro do respeito à personalidade humana, o
termômetro fiel da civilização de um povo. (2003, p. 10-11, grifou-se)
5
Daí a necessidade, como salienta Malatesta, de buscar-se sempre a obtenção da
melhor prova, seja em seu aspecto objetivo ou subjetivo:
Primeiramente, se, para servir de base a uma condenação penal não basta a
verdade formal, mas é preciso a verdade substancial, é necessário, pois,
procurar sempre as melhores provas em matéria penal, porque são elas que
melhor podem fazer chegar à conquista da verdade substancial [...]
Deste princípio, segundo o qual a prova, produzida para servir de apoio
à convicção, deve ser a melhor que possa haver em concreto, resulta daí a
conseqüência de que é necessário não nos contentarmos com as provas não
originais, quando podemos obter as originais; não se deve recorrer às
testemunhas de ouvir dizer, quando se pode obter a declaração original das
testemunhas de ciência própria; é necessário exigir as provas
subjetivamente melhores.
[...]
Sempre pelo mesmo princípio, é necessário não contentar-se com a
forma menos perfeita de prova, quando se pode ter a forma mais perfeita;
é preciso não se contentar com o depoimento escrito, quando se pode
logicamente ter o oral: devemos requerer as provas formalmente
melhores. (2003, p. 106-107, grifou-se)
Posição
sustentada
por
considerar
que,
em
última
análise,
configuram
substancialmente provas – melhor seria dizer elementos de prova, como se verá na seqüência
– apenas aqueles elementos capazes de influir positivamente na convicção do órgão julgador,
seja no que tange às teses defensivas, acusatórias ou às circunstâncias fáticas, consoante
salienta o mencionado autor:
[...] Ora, visando-se em juízo criminal a estabelecer a realidade dos fatos, só
são propriamente provas as que levam a nosso espírito uma preponderância
das razões afirmativas para crer em tais realidades; e, por isso, só são
propriamente provas as de probabilidade, a simples preponderância, maior
ou menor, das razões afirmativas sobre as negativas e as da certeza, o triunfo
das razões afirmativas para crer na realidade do fato. (2003, p. 84)
E conclui:
Ao determinar a noção de convencimento judicial, dissemos, antes de tudo,
que não pode ser graduado como a certeza. Disto deriva que as provas, sem
outra alternativa, ou geram o convencimento e têm a eficácia e a
verdadeira natureza de prova ou não chegam a gerar o convencimento e
não merecem o nome de prova, não tendo a eficácia, nem a verdadeira
natureza persuasiva. (2003, p. 88, grifou-se)
Critério idêntico – a efetiva influência na convicção do magistrado – é utilizado por
Fernando da Costa Tourinho Filho para distinguir as noções de meio de prova e elemento de
prova, que serão adotadas no presente trabalho, conferindo, assim, melhor sistematização à
6
noção apresentada, à época, por Malatesta. Para aquele autor:
Meio de prova
É tudo quanto possa servir, direita ou indiretamente, à comprovação da
verdade que se procura no processo: testemunha, documento, perícia,
informação da vítima, reconhecimento, tudo são meios de prova.
Elementos de prova
Como tais se entendem, na lição de Manzini, todos os fatos ou
circunstâncias em que repousa a convicção do Juiz. (2009, p. 524)
Igualmente relevante, para os fins do presente trabalho, é o conceito fornecido por
Tourinho Filho quanto às fontes de prova, que representariam:
[..] tudo quanto possa ministrar indicações úteis, cujas comprovações sejam
necessárias. Assim, a denúncia, embora não seja elemento ou meio de
prova, é uma fonte desta, uma vez que contém indicações úteis, exigindo
comprovação. (2009, p. 524)
Classificação que não invalida, contudo, a ressalva efetuada por Malatesta (2003, p.
99) no sentido de que “quaisquer que sejam as normas que a lei julgue dever impor em
matéria de prova, elas só podem tender à garantia da correta formação do convencimento [...]”
Anotação de todo relevante, considerando-se a mencionada noção de que prova “é o
meio objetivo pelo qual o espírito humano se apodera da verdade” (MALATESTA, 2003, p.
15), e, por via de conseqüência, embasa o julgamento da causa – embora sua percepção seja
intermediada, ainda que de forma inconsciente, por questões de ordem subjetiva, inerentes à
personalidade do magistrado.
Com efeito, tamanha é sua relevância e influência no deslinde da causa, que, no ano
de 1848, o então membro substituto do Ministério Público no Tribunal de Rheims e na Cour
d’Assises do Mane, responsável pela tradução da obra de Mittermaier e pela elaboração do
preâmbulo de fl. 5, já ressaltava:
Como dar-se a prova? Como fornecer à justiça os meios para uma apreciação
certa do fato e da intenção constitutivos de um crime? Como garantir, ao
mesmo tempo, à sociedade ofendida uma infalível repressão, ao cidadão
acusado o gozo, sem embaraço, das liberdades que a lei social garante, ao
homem, inocente talvez, sua segurança individual? Imensos problemas esses,
cuja solução entende com a organização inteira do processo penal.
Com razão tem-se dito que a lei, que fixa o modo e a taxa da pena, tem
talvez menos importância do que a do processo, que determina as
fórmulas necessárias para assegurar a aplicação daquela. Quando é
manifesta a prova, segue-se sempre a imposição da pena; e, por mais
imperfeita que esta seja, não é menos exato que se dá o castigo, a reparação,
e, pois, ganho de causa para a justiça. Quando, porém, ao contrário, a prova
é mal regulada, a sentença do juiz, em vez da verdade, pode decretar o erro;
condenar o inocente, em vez do culpado; lançar a desconfiança em todos os
7
espíritos e destruir, mesmo em seu princípio, o respeito à lei [...]. (1997,
grifou-se)
Opinião igualmente apresentada por Hélio Tornaghi:
Na denúnicia (ou na queixa) o autor levanta o véu que cobre um possível
crime. Para isso não se lhe exige uma demonstração cabal dos fatos, o que se
fará exatamente no processo. Esse é, antes de mais nada, uma atividade
probatória. Todo o processo está penetrado da prova, embebido nela,
saturado dela. Sem ela, ele não chega a seu objetivo: a sentença [leia-se,
condenatória2]. Por isso a prova foi chamada “alma do processo”
(Mascardo), “sombra que acompanha o corpo” (Romagnosi), “ponto
luminoso” (Carmognani), “pedra fundamental” (Brugnoli), centro de
gravidade (Brusa). (1987, p. 268)
Relevância das mais nítidas, a considerar o sistema de avaliação da prova
hodiernamente adotado, qual seja, o da livre convicção ou persuasão racional, a seguir
delineado.
1.1.2
Do sistema da livre convicção ou da persuasão racional
A teor do que dispõe o artigo 155 do Código de Processo Penal, a seguir transcrito, é
esse o sistema de avaliação das provas em vigor – admitidas, desde logo, algumas restrições,
como se pode observar do parágrafo único do aludido preceito:
Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova
produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua
decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na
investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.
Parágrafo único. Somente quanto ao estado das pessoas serão observadas as
restrições estabelecidas na lei civil. (BRASIL, 1941, grifou-se)
Opção que o legislador de 1941 deixou irrefutavelmente clara ao tratar do tema das
provas na Exposição de Motivos do Código de Processo Penal, conforme se depreende do
excerto a seguir:
As provas
VII – O projeto abandonou radicalmente o sistema chamado da certeza
legal. Atribui ao juiz a faculdade de iniciativa de provas complementares e
2
Embora se entenda, como ressaltado, que a condenação pura e simples não constitui o objetivo primordial do
processo penal, mas a retratação da verdade, o que pode implicar, não raras vezes, sentenças absolutórias ou
simplesmente terminativas.
8
supletivas, quer no curso da instrução criminal, quer a final, antes de proferir
a sentença3. Não serão atendíveis as restrições à prova estabelecidas pela lei
civil, salvo quanto ao estado das pessoas; nem é pré-fixada uma hierarquia
de provas: na livre apreciação destas, o juiz formará, honesta e lealmente, a
sua convicção. A própria confissão do acusado não constitui, fatalmente,
prova plena de sua culpabilidade. Todas as provas são relativas; nenhuma
delas terá, ex vi legis, valor decisivo ou necessariamente maior prestigio que
outra. Se é certo que o juiz fica adstrito às provas constantes dos autos, não é
menos certo que não fica subordinado a nenhum critério apriorístico no
apurar, através delas, a verdade material. O juiz criminal é, assim, restituído
à sua própria consciência. Nunca é demais, porém, advertir que livre
convencimento não quer dizer puro capricho de opinião ou mero arbítrio na
apreciação das provas. O juiz está livre de preconceitos legais na aferição
das provas, mas não pode abstrair-se ou alhear-se ao seu conteúdo. Não
estará ele dispensado de motivar a sua sentença. E precisamente nisto reside
a suficiente garantia do direito das partes e do interesse social. (REVISTA
DOS TRIBUNAIS, 2008, p. 587)
O que se extrai do trecho transcrito é justamente que, tendo sucedido os sistemas da
íntima convicção – também designado de prova livre ou da certeza moral do juiz – e o das
provas legais – a que Hélio Tornaghi intitula de certeza moral do legislador –, a livre
convicção buscou conciliar o que de melhor havia em ordens diametralmente opostas, de
forma a evitar toda sorte de abusos e arbitrariedades.
Do primeiro sistema, primordialmente caracterizado pela livre apreciação da prova
por parte do magistrado, a quem incumbia exclusivamente valorá-la, podendo valer-se, para
sua convicção, de elementos estranhos aos autos sem que lhe fosse imposto sequer o dever de
fundamentar suas decisões, permanece aplicável a livre avaliação da prova por parte do órgão
jurisdicional.
Do segundo, em que o legislador buscou tolher a excessiva liberdade conferida aos
magistrados a ponto de estabelecer a priori o valor a ser conferido a determinadas provas e,
em casos diversos, a exigir que certos fatos fossem provados por meio de tais ou quais
condições, igualmente pré-estabelecidas, manteve-se a obrigatoriedade de fundamentação das
sentenças, bem como a necessidade de permanecer adstrito ao conteúdo retratado nos autos.
Lições igualmente assimiladas da obra de Hélio Tornaghi, que, por sua precisão, não
se pode deixar de retratar:
Sistema da íntima convicção. Certeza moral do juiz. No sistema da íntima
3
Iniciativa posteriormente ampliada pela Lei n. 11.690/2008, por meio da alteração da redação dos artigos 155,
anteriormente transcrito, ao qual acrescentou o trecho que se segue à oração em destaque; e 156, que,
atualmente, faculta ao juiz, de ofício: “I – ordenar, mesmo antes de iniciada a ação penal, a produção antecipada
de provas consideradas urgentes e relevantes, observando a necessidade, adequação e proporcionalidade da
medida; II – determinar, no curso da instrução, ou antes de proferir sentença, a realização de diligências para
dirimir dúvida sobre ponto relevante”.
9
convicção o legislador nada diz sobre o valor das provas. A admissibilidade
delas, sua avaliação, seu carreamento para os autos, tudo isso é inteiramente
deixado à discrição do juiz. É ele quem vai julgar; é para ele e só para ele
que se faz a prova; ele decide ex informata conscientia e, por isso mesmo,
não precisa fundamentar a sentença. Pode valer-se de seu conhecimento
privado, das provas que tem e que não estão nos autos.
[...] Mas o que não há dúvida é de que o juiz não precisava motivar a
sentença. Assim, nada o impedia de valer-se de sua ciência paricular dos
fatos.
O mesmo sistema é usado, na maioria das ordenações, no julgamento pelo
júri.
[...]
Sistema das regras legais. Certeza moral do legislador. É indisfarçável o
perigo do sistema da íntima convicção que deixa as partes, especialmente o
réu, ao arbítrio do julgador. Para obviá-los, a leis foram, paulatinamente,
impondo ao juiz a observância de certos preceitos até o ponto de não lhe
deixar nenunha liberdade de apreciação. As provas que fossem, por lei,
reputadas sem qualquer valor não podiam ser admitidas e, das admissíveis,
era dito, de antemão, o que valiam. Formou-se um conjunto ordenado e
rígido de normas valorativas que o juiz devia seguir escrupulosamente.
[...]
O absurdo a que levou essa vinculação do juiz moveu os legisladores a
procurar um terceiro meio de avaliação da prova, que eliminasse as
imperfeições dos dois outros e lhes aproveitasse as vantagens: evitar a tirania
judicial, a prepotência, a irresponsabilidade e o arbítrio, assegurando, porém,
ao juiz, a possibilidade de formar a sua convicção como qualquer homem
normal, sem peias que o levassem a pronunciar uma decisão contrária a suas
conclusões. Assim nasceu o sistema da livre convicção [...] (1987, p. 274277)
O que impõe frisar, portanto, e que deverá ser considerado no desenrolar do presente
trabalho, é que, atualmente, por mais que ao juiz caiba a livre apreciação e valoração das
provas – excetuadas raríssimas restrições previstas em lei, a exemplo dos artigos 155,
parágrafo único, e 158, ambos do CPP –, sua produção não se dá exclusivamente em seu
interesse. Às partes, em especial, bem como aos órgãos jurisdicionais de instâncias
superiores, muito interessa a qualidade e conteúdo dos elementos probatórios, dada a
possibilidade dos primeiros de refutá-las e interporem recursos.
Conclusão que, ademais, decorre da simples ciência do princípio da comunhão da
prova, amplamente reconhecido pela doutrina e aplicado diuturnamente.
1.2
DA CONJUNTURA INTRODUZIDA, NO ANO DE 1941, PELO CÓDIGO DE
PROCESSO PENAL
10
Feitas essas considerações, cumpre analisar a figura em si do interrogatório. Não há,
contudo, como fornecer, de início, sua perfeita conceituação, uma vez que as características
que o definem não podem ser dissociadas da natureza jurídica que se lhe atribuir. Razão pela
qual se opta por iniciar justamente pela análise de tal natureza.
Quando da vigência dos códigos e leis das Unidades Federadas, prevalecia a feição
do interrogatório como meio de defesa conferido aos réus (TORNAGHI, 1967, p. 810). Opção
de política processual que o Decreto-Lei n. 3.689/1941 buscou afastar ao tratar expressamente
do interrogatório em seu título VII, destinado ao estudo dos meios de prova.
Fato corroborado pelas observações constantes da Exposição de Motivos do Diploma
Legal em questão:
Outra inovação, em matéria de prova, diz respeito ao interrogatório do
acusado. Embora mantido o princípio de que nemo tenetur se detegere (não
estando o acusado na estrita obrigação de responder o que se lhe pergunta),
já não será esse termo do processo, como atualmente, uma série de
perguntas pré-determinadas, sacramentais, a que o acusado dá as
respostas de antemão estudadas, para não comprometer-se, mas uma
franca oportunidade de obtenção de prova. É facultado ao juiz formular
ao acusado quaisquer perguntas que julgue necessárias à pesquisa da verdade
[...](REVISTA DOS TRIBUNAIS, 2008, p. 587, grifou-se)
Inúmeros foram os dispositivos do Código de Processo Penal Brasileiro a reforçar
esse entendimento, a exemplo da previsão de condução coercitiva do réu para que seja
interrogado (artigo 260); da liberdade conferida ao magistrado, pelo artigo 188, para formular
os questionamentos que entenda pertinentes em busca da prova; da impossibilidade de o
defensor do acusado intervir nas perguntas e respostas formuladas (artigo 187); da autorização
para que o silêncio do réu possa ser interpretado em prejuízo da própria defesa (artigo 186) e
da necessidade de serem consignadas as indagações não respondidas pelo acusado e as razões
que tenha invocado para silenciar (artigo 191), entre outras.
Conjuntura que se passará a analisar de forma pormenorizada.
1.2.1
Liberdade do magistrado para formular os questionamentos que entender pertinentes
Aqueles que defendem ser o interrogatório primordialmente meio de prova, a
exemplo de Hélio Tornaghi, sustentam, em favor de tal tese que, nos antigos códigos e leis
das Unidades Federadas, tal ato processual limitava-se a uma série de perguntas pré-
11
ordenadas, às quais se encontrava adstrito o magistrado (1967, p. 810-811).
Fato que facilitava sobremaneira a defesa do réu, por possibilitar, de antemão,
preparar sem maiores surpresas as declarações a serem prestadas. A título exemplificativo,
extrai-se da obra do mencionado doutrinador os questionamentos a que era submetido o réu
de acordo com o artigo 296 do então Código de Processo do Distrito Federal:
Art. 296. O juiz, mandando que lhe seja lida a queixa ou denúncia,
interrogará o réu pela maneira seguinte:
I – qual o seu nome, naturalidade, idade, estado, filiação, residência e tempo
dela no lugar designado;
II – quais os seus meios de vida ou profissão;
III – se sabe ler e escrever;
IV – onde estava, ao tempo em que se diz ter sido cometido o crime;
V – se conhece as testemunhas arroladas, desde que tempo, e se tem alguma
coisa a alegar contra elas;
VI – se tem algum motivo particular a que atribuir a queixa ou denúncia;
VII – se é verdade o que se alega na denúncia ou queixa;
VIII – se quer fazer alguma declaração. (1967, p. 810-811)
Não havia, de fato, qualquer liberdade para que o magistrado pudesse investigar, de
acordo com as suas dúvidas e indagações, questões específicas relacionadas ao caso concreto.
A par da qualificação pessoal do réu cabia exclusivamente a esse fornecer as informações que
lhe aprouvesse.
Situação alterada com a entrada em vigor do Código de Processo Penal de 1941,
cujo artigo 188 previu, no inciso VII, a possibilidade de o magistrado formular indagações
sobre “todos os demais fatos e pormenores, que conduzam à elucidação dos antecedentes e
circunstâncias da infração”.
Para fins de se estabelecer um paralelo, cumpre transcrever a redação original do
artigo 188 do CPP, em que o interrogatório se encontrava disciplinado da seguinte forma:
Art. 188. O réu será perguntado sobre seu nome, naturalidade, estado, idade,
filiação, residência, meios de vida ou profissão e lugar onde exerce sua
atividade e se sabe ler e escrever, e, depois de cientificado da acusação, será
interrogado sobre:
I – onde estava ao tempo em que foi cometida a infração e se teve notícia
desta;
II – as provas contra ele já apuradas;
III – se conhece a vítima e as testemunhas já inquiridas ou por inquirir, e
desde quando, e se tem o que alegar contra elas;
IV – se conhece o instrumento com que foi praticada a infração, ou qualquer
dos objetos que com esta se relacione e tenha sido apreendido;
V – se verdadeira a imputação que lhe é feita;
VI – se, não sendo verdadeira a acusação, tem algum motivo particular a
quem atribuí-la, se conhece a pessoa a que deva ser imputada a prática do
crime, e quais sejam, e se com elas esteve antes da prática da infração ou
depois dela;
12
VII - todos os demais fatos e pormenores, que conduzam à elucidação dos
antecedentes e circunstâncias da infração;
VIII – sua vida pregressa, notadamente se foi preso ou processado alguma
vez e, no caso afirmativo, qual o juizo do processo, qual a pena imposta e se
a cumpriu.
Parágrafo único. Se o acusado negar a imputação no todo ou em parte, será
convidado a indicar as provas da verdade de suas declarações. (BRASIL,
1941)
Como se pode observar, além da inclusão do inciso VII, inúmeros outros
questionamentos acerca da qualificação do réu e da verificação dos fatos foram introduzidos
no rito do interrogatório. Dentre eles, cumpre ressaltar, como o faz Hélio Tornaghi, que o juiz
não mais se limita a informar o réu sobre as provas obtidas em seu desfavor, passando a
interrogar-lhe sobre elas (1967, p. 811). Ambas as previsões, diga-se de passagem, continuam
presentes na atual redação do artigo 187 do CPP, mais especificamente nos incisos IV e VII,
como resquícios do interrogatório como meio de prova.
A respeito da inovação trazida pelo inciso II cumpre salientar as ponderações de
Eduardo Espínola Filho:
Na nossa prática de juiz criminal, e foi bastante longa, sempre consideramos
muito importante a verificação das reações, que as declarações das
informantes, vítimas e seus parentes, e das testemunhas, provocavam no réu,
ouvindo-as prestar. [...]
Mas o sistema antigo furtava ao julgador grande parte da eficácia dêsse
trabalho, útil quanto delicado, de aferição do valor da prova, pelas reações
do próprio acusado, porque sôbre tudo o que se executara apenas no
inquérito, nenhum poder tinha de provocar os sentimentos e a opinião do
indiciado.
Agora, as coisas se passam diferentemente.
Interrogando o réu, o magistrado, em cumprimento ao art. 188, II, do Código
de processo penal, lhe dá, com lealdade e franquesa, o conhecimento de tudo
quanto, no processo, até então, existe contra êle, e verifica a impressão,
sôbre o mesmo causada, pelo conhecimento de que a acusação tem amparo
de elementos mais ou menos capazes de convencer. (1960, p. 26-27)
Muito antes, contudo, da vigência do dispositivo legal em questão, Malatesta já
ressaltava a importância de se apreciar as reações do réu ao se interrogado:
Quem se encontra sob o peso de uma acusação, não pode ser indiferente,
nunca pode conservar completamente sua calma; está de ordinário em estado
de superexcitação interior; se inocente, porque se sente injustamente
acusado; se culpado, pela lembrança do crime cometido e pelo pensamento
da justa pena a sofrer. Em semelhantes condições, entende-se como o
espírito do acusado deva, mais facilmente que qualquer outra testemunha,
revelar-se no seu conteúdo, dando, muitas vezes, um importante acúmulo de
indícios, em favor ou contra a fé de sua afirmação. A postura do acusado é,
portanto, levada em consideração, para avaliar-lhe as respostas; bastará, por
vezes, uma exclamação imprevista, um imprevisto empalidecer ou corar,
13
bastará um gesto e até um olhar, para revelar a veracidade ou mentira da
palavra do acusado. (2003, p. 466)
Quanto à sistemática em si adotada pelo artigo 188, interessantes são as observações
efetuadas por Carlos Henrique Borlido Haddad, para quem a forma como estavam ordenados
os questionamentos favorecia a extração de elementos de prova:
O esquema do interrogatório era como uma espiral, começando por
perguntas sobre fatos acessórios, para, gradativamente, dirigir-se ao cerne da
questão. A primeira pergunta não dizia respeito à responsabilidade do
acusado; esta só era tocada na quinta indagação. Se perguntado de chofre
sobre sua responsabilidade, tendia a negar. O motivo desse método era não
sugerir ao acusado réplica que o pusesse a salvo da acusação ou, talvez,
porque parecia contrário à natureza que se acusasse, imediatamente, por si
só. (2005, p. 77)
Como se pode observar, à época, a conformação do interrogatório efetivamente se
aproximava mais de um meio de prova.
1.2.2
Impossibilidade do defensor do acusado intervir nas perguntas e respostas a este
formuladas
Naquela época, existia, ainda, previsão expressa impedindo que o defensor do
acusado interviesse, em quaisquer circunstâncias, nas perguntas e respostas apresentadas,
conforme se extrai da então redação do artigo 187 do CPP, em cujos termos “o defensor do
acusado não poderá intervir ou influir, de qualquer modo, nas perguntas e nas respostas”.
(BRASIL, 1941)
Restrição que não se estendia, ao menos de forma declarada, ao órgão de acusação.
Omissão cujas origens são elucidadas por Hélio Tornaghi:
A verdade é que a lei não cuidou da intervenção do acusador nem para
permitir, nem para proibir.
E assim fêz por motivos de ordem histórica: o acusador não interferia e não
havia necessidade da proibição. Ao passo que o defensor, por influência de
uma lei francesa de 8 de dezembro de 1897, foi tendo sua intervenção
assegurada em outras legislações e, por vêzes, mesmo sem lei autorizativa,
pelo costume.
Os maus efeitos dessa prática convenceram os legisladores da conveniência
de proibí-la expressamente. Esta a origem de dispositivos como o do art. 187
do Código de Processo Penal Brasileiro. (1967, p. 817-818)
14
De toda sorte, a impossibilidade referida no artigo 187 deixava exclusivamente a
cargo do magistrado a condução do interrogatório, de forma a propiciar a obtenção dos
elementos de prova almejados.
1.2.3
Dos artigos 186, 191, 198 e 260 do CPP
Argumento reforçado, segundo os defensores da tese em apreço – de que o
interrogatório consistiria, primordialmente, em meio de prova –, pela previsão inserta no
artigo 260 do CPP, ainda em vigor com idêntica redação, que estabelece a possibilidade de
condução coercitiva do réu para que seja interrogado.
A esse respeito, lecionava Eduardo Espínola Filho em sua obra Código de Processo
Penal Brasileiro Anotado:
[...] deixar correr o processo à revelia é uma faculadade do réu, mas não
impedirá a realização de ato tão importante, quando ao juiz se apresentar
realizável a condução. A rebeldia, ou o desinteresse de quem desatende às
intimações, não podem, ademais, deixar de ser considerados, em cada caso
concreto [...]
Vindo a juizo, quer no momento próprio, e em obediência à citação ou
conduzido, quer por movimento espontâneo, em época anterior ou posterior
à em que é chamado, quer requisitado do presídio onde se recolhe preso, o
réu não poderá evitar o interrogatório sobre o pretexto de não querer falar. A
lei assegura-lhe a faculdade de calar, mas não dando resposta às perguntas,
que lhe são feitas, por ocasião do interrogatório, não tem o direito de se
esquivas às mesmas. E, na realidade, ainda prevenido de não querer o
acusado responder ao que lhe é perguntado, o juiz poderá obter bons
elementos para a apreciação psicológica da situação, fazendo, ao réu, quando
insiste no mutismo, as indagações de utilidade ao esclarecimento da causa,
pois se orientará proveitosamente, examinado as reações, que cada questão
provoque no interogado.(1960, p. 16-17)
Muito embora não fosse obrigado a responder aos questionamentos formulados,
antes mesmo de iniciado o interrogatório, era o réu advertido de que o seu silêncio poderia ser
interpretado em prejuízo da própria defesa, a teor do que dispunha o artigo 186 do CPP4.
Conclusão reforçada pelo disposto no artigo 1985 do referido Diploma, o qual,
4
Art. 186. Antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que, embora não esteja obrigado a responder
às perguntas que lhe forem formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria defesa.
5
Art. 198. O silêncio do acusado não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do
convencimento do juiz.
15
apesar de ter afastado do ordenamento jurídico brasileiro qualquer possibilidade de se
interpretar o silêncio do acusado como uma confissão ficta, salienta a possibilidade de seu
silêncio vir a influir na formação do convencimento do magistrado.
Fato que se coadunava, igualmente, com a então redação do artigo 191 do referido
Diploma6, que previa a necessidade de consignação, em ata, das perguntas não respondidas
pelo réu e as razões invocadas para tanto.
Dispositivos esses (artigos 186, 191 e 198) cujo teor só veio a ser alterado no ano de
2003, por meio da Lei n. 10.792, o que será oportunamente apreciado no Capítulo
subseqüente.
Do exposto, verifica-se que, de fato, a sistematização inicialmente conferida ao
Código de Processo Penal condiz com as intenções retratadas na respectiva Exposição de
Motivos, qual seja, de enquadrar esse importantíssimo ato processual entre os meios de prova.
1.2.4
Significado e valor da confissão
O que impõe ressaltar, por ora, e que muito motivou a inclusão do presente tópico
neste trabalho, é que ambas as correntes doutrinárias sob análise, ou seja, tanto a que
considera o interrogatório primordialmente meio de prova como a que o tem por meio de
defesa, admitem o valor da confissão em termos probatórios. Para a primeira, constitui
verdadeiro elemento de prova, ao passo em que a segunda tende a considerá-lo mera fonte de
prova, cuja veracidade deve ser confirmada.
Dentre aqueles que a tomam por meio de prova, encontra-se Mittermaier, fato de
todo justificado pela época em que foi elaborada sua obra, nos idos de 1834, como se pode
observar:
Vê-se desde já que a confissão do acusado, isto é, a declaração pela qual
afirma a veracidade de um fato da imputação que se lhe faz, fato que por
conseguinte lhe é prejudicial, tem uma grande importância em matéria
criminal [...]. Seria negar a evidência, recusar que seja ela um meio de
prova [...] a confissão não é para o juiz mais do que um meio de formar a
sua convicção desde que admitir como verdadeiros os fatos confessados pelo
acusado. Há, pois, uma diferença enorme entre a confissão: meio de
convicção no processo criminal, e a confissão ou reconhecimento no
6
Art. 191. Consignar-se-ão as perguntas que o réu deixar de responder e as razões que invocar para não fazê-lo.
16
processo civil; este admite o princípio da renúncia e da desistência7; [...]
Porém tal desistência o processo criminal não comporta: seu fim é a
manifestação da verdade material absoluta, por conseguinte o inquiridor8 é
obrigado a investigar com igual escrúpulo todos os fatos confessados, e os
seus detalhes os mais acessórios, visto como é preciso que o juiz possa
decidir se o acusado foi sincero em sua confissão. (1997, p. 186-187, grifouse)
A respeito dos diferentes valores conferidos à confissão ao longo do tempo, leciona
Hélio Tornaghi:
O valor dado à confissão em diferentes épocas da história humana, fez variar
o próprio modo de proceder no juízo criminal. Evidentemente nada traz mais
certeza da autoria de um delito do que uma confissão livre, clara, sincera,
sem qualquer vício. É sumamente tranqüilizador para a consciência do juiz
ouvir dos lábios do réu uma narrativa convincente do fato criminoso com a
declaração de havê-lo praticado. (1967, p. 838)
Notória defensora do interrogatório como meio de prova, Ada Pellegrini Grinover
leciona que:
É certo que do interrogatório, voluntariamente prestado – rectius, das
informações espontâneas do acusado, assegurada sua liberdade de
consciência –, podem surgir elementos que constituam “fonte de prova”.
Assim, a correta conceituação do interrogatório – em face da doutrina,
primeiro; em face da Constituição, depois, e, mais tarde, pela incorporação
do Pacto São José da Costa Rica ao ordenamento brasileiro – é a de que
constitui ele meio de defesa, que – se e conforme o acusado falar – pode
eventualmente servir como fonte de prova. (2005, p. 187, grifou-se)
Em suma, hoje, por não se lidar com provas valoradas a priori pelo legislador, como
ocorria no sistema das provas legais, a confissão consiste, simplesmente, em mais uma fonte
de prova, cuja veracidade e valor deverão ser analisados no caso concreto, como
demonstrado.
Não há, contudo, como ignorar sua grande valia por retratar a opinião de quem teve,
inequivocamente – caso seja o responsável pela conduta criminosa –, contato sensorial direto
com todos os elementos do delito. Além de ser o único, nesse caso, a ter plena ciência dos
elementos subjetivos que o motivaram a agir.
Nesse contexto, esclarecidos os diferentes significados da confissão para as
correntes doutrinárias em apreço, cumpre passar a análise do interrogatório como meio de
prova, contexto em que a confissão possui contornos de fonte de prova, como se demonstrará
7
Raciocínio aplicável apenas em linhas gerais, pois, como é cediço, são inúmeros os direitos irrenunciáveis na
órbita do Direito Civil, a exemplo dos direitos da personalidade.
8
Figura que não mais existe, em tais moldes, no Direito Brasileiro atual.
17
de forma mais detalhada.
2
DO INTERROGATÓRIO COMO MEIO DE DEFESA
Como demonstrado anteriormente, quando da vigência dos códigos e leis das
Unidades Federadas, prevaleceu a concepção do interrogatório como meio de defesa
conferido ao réu. Opção de política processual propositalmente abandonada com a entrada em
vigor do Código de Processo Penal Brasileiro (Decreto-Lei n. 3.689/1941).
Todavia, apesar do teor dos dispositivos legais introduzidos por tal Diploma –
analisados nos itens 1.2.1, 1.2.2 e 1.2.3 –, não foram suficientes para silenciar as opiniões
divergentes de respeitáveis juristas que, respaldados no princípio da presunção de inocência,
continuaram a atribuir a conformação de meio de defesa ao interrogatório. Vozes
consideravelmente favorecidas pela promulgação da Constituição Federal de 1988, que
introduziu, entre outras garantias constitucionais, o direito ao silêncio.
A esse respeito leciona Ada Pellegrini Grinover:
Antes mesmo do advento da Constituição de 1988, que consagrou o direito
ao silêncio, tive oportunidade de escrever a respeito do interrogatório,
considerando o pleno exercício do direito de calar como decorrência do fato
de não existirem ônus para a defesa no processo penal, em que a única
presunção é a de inocência, daí decorrendo a impossibilidade de atribuir
sanções, mesmo que indiretas, ao silêncio do acusado. Já sustentava, então, a
ineficácia dos arts. 186 e 191 do CPP [...].
Logo se viu que a garantia, estipulada aparentemente apenas em benefício da
pessoa privada de liberdade, se estendia a todos os acusados, tendo o
legislador constituinte sido motivado a realçar a condição de preso tão só em
função de sua maior vulnerabilidade.
Do direito ao silêncio, consagrado em nível constitucional, decorre
logicamente a concepção do interrogatório como meio de defesa. Se o
acusado pode calar-se, se não mais é possível forçá-lo a falar, nem
mesmo por intermédio de pressões indiretas, é evidente que o
interrogatório não pode mais ser considerado “meio de prova”, não é
mais pré-ordenado à colheita da prova, não visa ad veritatem
quaerendam. Serve, sim, como meio de autodefesa. (2005, p. 186-187,
grifou-se)
Cumpre, portanto, analisar os fundamentos que conferem ao interrogatório a
natureza jurídica de meio de defesa.
18
2.1
DO DIREITO AO SILÊNCIO E NÃO AUTOINCRIMINAÇÃO
Nas palavras de Fernando da Costa Tourinho Filho:
“Não obrigado a declarar contra si mesmo”, “direito ao silêncio”, tudo não
passa do velho princípio do privilege against self-incrimination, isto é, do
nemo tenetur se detegere, do direito de calar-se sem que a autoridade possa
extrair desse silêncio qualquer indício de culpa. (2010, p. 185)
Princípio cuja relevância e significado são ressaltados por Eugênio Pacelli de
Oliveira nos seguintes termos:
Atingindo duramente um dos grandes pilares do processo penal antigo, qual
seja, o dogma da verdade real, o direito ao silêncio e a não auto-incriminação
não só permite que o acusado ou aprisionado permaneça em silêncio durante
toda a investigação, e mesmo em juízo, como impede que ele seja compelido
a produzir ou a contribuir com a formação da prova contrária ao seu
interesse. Nesta última hipótese, a participação do réu só poderá ocorrer em
casos excepcionalíssimos, em que, além da previsão expressa na lei, não haja
risco de afetação aos direitos fundamentais da pessoa. [...] (2009, p. 32)
E adverte:
O direito ao silêncio tem em mira não um suposto direito à mentira, como
ainda se nota em algumas doutrinas, mas a proteção contra as hostilidades e
as intimidações historicamente desfechadas contra o réu pelo Estado. [...]
[...] evita-se o estímulo à cultura do quem cala consente, que não oferece
padrões mínimos, seja de ordem psicanalítica, jurídica, espiritual, seja de
qualquer outra espécie, para a reprodução de verdade alguma. (2009, p. 341)
No âmbito constitucional, depreende-se o direito em questão da interpretação de dois
incisos do artigo 5º, quais sejam, o segundo e o sexagésimo terceiro, a seguir enunciados:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...]
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em
virtude de lei;
[...]
LXIII - o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de
permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de
advogado; (BRASIL, 1988)
O inciso segundo é relevante, como salienta Fernando da Costa Tourinho Filho
(2010, p. 590), pois, “como não existe no nosso ordenamento nenhuma lei que obrigue a
19
confessar a prática de crime (nemo tenetur se ipsum accusare), o indiciado ou réu não está
obrigado a declarar contra si mesmo”.
O dispositivo de maior relevo no que tange ao assunto em questão e em torno do
qual giram maiores controvérsias é, contudo, o inciso LXIII, em especial por ter o legislador
se utilizado do termo preso. A esse respeito, impõe salientar as lições de Carlos Henrique
Borlido Haddad:
O dispositivo constitucional, norma auto-aplicável, a teor do art. 5º, § 1º, da
Constituição Federal, faz menção ao interrogatório policial, porque
emprega o termo “preso”, sabendo-se que a palavra “acusado” reservase à fase processual. E no inciso subseqüente, ao lado do termo “preso”, é
feito menção explícita à expressão “interrogatório policial”, não deixando
dúvidas referir-se à fase extrajudicial. [...] O interrogatório policial, que é
disciplinado nos moldes do interrogatório judicial, passou a conter regra
aplicável à inquirição em juízo, em autêntica inversão de situações. A
aplicação da norma constitucional ao processo, se vedada, acarretaria a
incongruente situação de se conceder direitos e prerrogativas àquele de
quem se suspeita da autoria da infração penal e retirá-las, em seguida,
quando houvesse acusação formalizada na denúncia ou na queixa. Se
assim fosse, não apenas o direito ao silêncio, mas a assistência da família e
de advogado se restringiriam à fase extrajudicial. Da interpretação
extensiva, aliada à interpretação lógica, podia-se concluir que direitos e
garantias concedidos no primeiro momento da persecução penal, antes
de serem retirados com o término da fase extrajudicial, são mantidos em
juízo. (2005, p. 65-66, grifou-se)
Entendimento compartilhado por Ada Pellegrini Grinover, conforme se depreende
do trecho citado no item anterior, em especial da seguinte passagem:
Logo se viu que a garantia, estipulada aparentemente apenas em benefício da
pessoa privada de liberdade, se estendia a todos os acusados, tendo o
legislador constituinte sido motivado a realçar a condição de preso tão só em
função de sua maior vulnerabilidade. (2005, p. 187)
Carlos Henrique Borlido Haddad informa, outrossim, os motivos que respaldaram a
opção do Constituinte pelo termo preso, no caso, a análise de legislações estrangeiras em que
fora adotada a palavra “acusado” e as conseqüências daí advindas:
Polêmica maior haveria se o texto constitucional empregasse o temo
“acusado”, ao invés de “preso”, porque não seriam poucos os autores que
sustentariam a aplicação do direito ao silêncio exclusivamente em sede
judicial...Essa era a situação encontrada no direito alemão e norte-americano.
O direito ao silêncio era previsto para os acusados, em juízo, e havia muitos
questionamentos sobre a extensão ao âmbito policial. Atualmente, depois de
incontáveis discussões, a jurisprudência de ambos os Estados estabeleceu
não haver dúvidas quanto à aplicação do direito à fase extrajudicial. (2005,
p. 66)
20
Não há como negar que, desde 6.11.1992, data em que foi entrou em vigor o Decreto
n. 678, responsável pela incorporação, ao direito pátrio, do Pacto de São José da Costa Rica,
consta, inequivocamente, no ordenamento jurídico brasileiro, o direito a não autoincriminação
durante a fase judicial. Direito esse enunciado no artigo 8º, n. 2, do referido Tratado
Internacional, em cujos termos, “durante o processo toda pessoa acusada tem direito, em
plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: g) direito de não ser obrigada a depor contra
si mesma, nem a declarar-se culpada...” (BRASIL, 1992).
O direito ao silêncio – baseado não somente nos dispositivos mencionados,
conforme será demonstrado nos itens subsequentes – é, de fato, o principal argumento a
sustentar a natureza jurídica do interrogatório como meio de defesa do réu.
Fato retratado pela emblemática frase de Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance
Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho (2004, p. 96) de que “o direito ao silêncio é o
selo que garante o interrogatório como meio de defesa e que assegura a liberdade de
consciência do acusado”.
Ao tratar detalhadamente do tema, Fernando da Costa Tourinho Filho esclarece:
Interrogatório: meio de prova ou de defesa? Um dos atos processuais
mais importantes é, sem duvida, o interrogatório. A despeito de sua posição
topográfica, no capítulo das provas, é meio de defesa; pode “constituir fonte
de prova, mas não meio de prova: não está ordenado ad veritatem
quaerendam”. Embora o Juiz possa formular ao acusado as perguntas que
lhe parecerem apropriadas e úteis, transformando o ato em uma oportunidade
para a obtenção de prova, o certo é que a Constituição consagrou o direito ao
silêncio. Em face do texto constitucional (art. 5º, LXIII), o réu responderá às
perguntas a ele dirigidas se quiser. Não se pode dizer, pois, que o
interrogatório seja meio de prova. (2010, p. 589)
De fato não há como negar que é por meio do interrogatório que o réu exerce, de
forma efetiva, a sua autodefesa, podendo externar diretamente ao magistrado sua versão dos
fatos, sem depender, para tanto, da intermediação de seu defensor, constituído ou nomeado –
responsáveis pela defesa técnica.
Resta analisar os demais dispositivos legais que corroboram a conclusão, ora
apresentada, de ser o interrogatório primordialmente um instrumento de defesa do réu do qual
podem advir fontes de prova.
21
2.2
DAS ALTERAÇÕES INTRODUZIDAS NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL PELA
LEI N. 10.792/2003
Uma das mais importantes contribuições prestadas pela Lei em comento foi,
certamente, a de reforçar os contornos do interrogatório como meio de defesa, adequando,
dessa forma, dispositivos do Código de Processo Penal que já contavam com quarenta e sete
anos à ótica Constitucional, até então ressaltada apenas por aqueles operadores do direito que
dela sempre se valem para intermediar a interpretação dos demais diplomas legais.
2.2.1
Da nova redação conferida ao artigo 186 do CPP
Iniciou bem o legislador ordinário ao prever expressamente o direito do acusado de
permanecer silente durante o interrogatório, de forma a afastar quaisquer dúvidas quanto à
interpretação adequada a ser conferida ao artigo 5º, LXIII, da Constituição Federal.
A fim de enfatizar a real discrepância entre a redação original do dispositivo e a
alteração empreendida em 2003, cumpre transcrever ambas as suas versões:
Art. 186. Antes de iniciar o interrogatório, o juiz observará ao réu que,
embora não esteja obrigado a responder às perguntas que lhe forem
formuladas, o seu silêncio poderá ser interpretado em prejuízo da própria
defesa. (BRASIL, 1941)
Art. 186. Depois de devidamente qualificado e cientificado do inteiro
teor da acusação, o acusado será informado pelo juiz, antes de iniciar o
interrogatório, do seu direito de permanecer calado e de não responder
perguntas que lhe forem formuladas.
Parágrafo único. O silêncio, que não importará em confissão, não poderá ser
interpretado em prejuízo da defesa. (BRASIL, 2003)
Como se pode observar da atual redação, em destaque, não se preocupou o
legislador ordinário tão-somente em prever o direito ao silêncio, mas buscou adequar a
legislação processual penal ao entendimento doutrinário preponderante, no sentido de que a
faculdade de calar se aplicaria apenas aos fatos que são imputados ao réu, mas nunca a sua
qualificação, motivo pelo qual estabeleceu uma nítida distinção entre o momento de
qualificação do acusado e do interrogatório propriamente dito – a respeito dos fatos.
Fórmula igualmente adotada no caput dos artigos 185 e 187 do CPP. O primeiro
22
informa que “o acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo
penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado”,
ao passo que do segundo se extrai :“o interrogatório será constituído de duas partes: sobre
a pessoa do acusado e sobre os fatos”. (grifou-se)
Todavia, apesar da ênfase conferida pelo artigo 188 à ordem dos acontecimentos, de
forma que a informação quanto ao direito de permanecer calado suceda a qualificação do réu,
sendo anunciada apenas antes de dar-se início aos questionamentos quanto aos fatos, algumas
ponderações são necessárias a esse respeito, a exemplo daquela formulada por Carlos
Henrique Borlido Haddad:
Apesar de a norma processual não trazer nenhuma prescrição
estabelecendo a obrigação de falar ad personam com a correspondente
sanção pelo descumprimento da obrigação, a lei penal, que também
impõe regras de conduta, pune aquele que se recusa a fornecer dados ou
indicações sobre sua qualificação (art. 68 da Lei das Contravenções
Penais). Por conseguinte, há obrigação em revelar os dados pessoais.
Posto que, em regra, as declarações sobre a qualificação do acusado não
envolvam atividade defensiva, é possível que, em determinada hipótese, a
informação sobre um atributo pessoal gere a incriminação penal. O
esclarecimento sobre o estado civil pode propiciar o agravamento da sanção,
nos termos do art. 61, II, “e” do Código Penal. A divulgação da profissão é
capaz de ser prejudicial ao réu denunciado pela prática do crime de
usurpação de função pública (art. 328) ou de exercício ilegal da medicina,
arte dentária ou farmacêutica (art. 282). Informar qual é o local onde exerce
sua atividade pode infirmar um álibi. Conjecturar as possibilidades de autoincriminação em decorrência da divulgação da qualificação pessoal renderia
ensejo a múltiplas situações, não sendo improvável resultar na própria
increpação o fornecimento de informações pessoais pelo acusado. Em face
do princípio contra a auto-incriminação, não se pode exigir do réu forneça
esclarecimentos increpantes, embora a ele se imponha o dever de, caso
decida falar, revelar dados verídicos sob pena de incorrer no parágrafo único
do art. 68 da Lei das Contravenções Penais. [...] (2005, p. 75, grifou-se)
Mesmo após a edição da Lei em comento, em artigo intitulado O interrogatório
como meio de defesa (Lei n. 10.792/2003), Ada Pellegrini Grinover reconsiderou seu
posicionamento a respeito do tema, salientado a necessidade de se flexibilizar,
excepcionalmente, a impossibilidade de calar a respeito de questionamentos relacionados à
qualificação do réu, conforme se depreende da seguinte passagem:
Pensamos – e já escrevemos neste sentido – que o interrogatório que
constitui manifestação de autodefesa, acobertado por isto pelo direito ao
silêncio, é em princípio o interrogatório sobre os fatos (§ 2.º do art. 187).
Nenhum exercício de defesa parece conter-se na simples qualificação do
acusado.
Ocorre, porém, que o interrogatório sobre a pessoa do acusado, previsto
no § 1.º do artigo 187 do CPP, inclui a solicitação de informações sobre
23
residência, meio de vida ou profissão, oportunidades sociais, lugar onde
exerce atividades, vida pregressa, se foi preso ou processado (com a
indicação do juízo pro processo, a informação a respeito da condenação,
imposição e cumprimento da pena ou suspensão condicional da pena) e
outros dados familiares e sociais.
Essas informações podem ser auto-incriminantes ou, ao menos,
configurar lesão à dignidade do acusado. Elas também só podem ser
prestadas espontaneamente. Se houver recusa a falar, também aqui
estará o acusado exercendo seu legítimo direito ao silêncio.
Observe-se que esta não é apenas a interpretação teleológica do dispositivo,
mas também a sistemática, uma vez que o direito ao silêncio vem garantido
genericamente no art. 186, anterior ao 187.(2005, p. 188, grifou-se)
Feitas essas ponderações, por entendê-las absolutamente pertinentes e adequadas,
impõe ressaltar outra alteração significativa introduzida pelo parágrafo único do artigo 186 do
CPP, que vem reforçar a feição de meio de defesa do interrogatório, qual seja, a
impossibilidade de o silêncio do réu ser interpretado em seu prejuízo.
Deixou-se de lado – ao menos parcialmente, como se verá por ocasião da análise do
artigo 198 do CPP – a ameaça velada de que poderia, sim, o réu valer-se do direito de
permanecer calado, mas, caso assim procedesse, o silêncio poderia ser prejudicial à sua
defesa. Impõe transcrever, sobre o tema, mais uma vez, as palavras de Carlos Henrique
Borlido Haddad:
Para tornar inequívoca a melhor interpretação extraída do art. 5º, LXIII da
Constituição Federal, o Código de Processo Penal foi alterado. Estabeleceuse, no art. 186, parágrafo único, que “o silêncio, que não importará em
confissão, não poderá ser interpretado em prejuízo da defesa”. Passou-se do
direito ao silêncio mitigado ao pleno. A instituição do integral direito ao
silêncio [a não ser no que diz respeito exclusivamente à qualificação do réu,
respeitadas as exceções já mencionadas] afastou as presunções e indícios
desfavoráveis à defesa e acrescentou ao interrogatório maiores
características defensivas, porque não há mais o ônus, nem o dever de o
acusado fornecer elementos de prova que o prejudiquem. A presunção
se explicava enquanto o interrogatório era tido como meio de prova, a
qual era obstada a formar-se em virtude do uso do silêncio. (2005, p. 66,
grifou-se)
Medida acertadamente acompanhada pela revogação do então artigo 191 do Código
de Processo, que continha a previsão genérica da necessidade de consignação das perguntas a
que o acusado se recusasse a responder e os motivos invocados para tanto.
Ainda no que tange ao direito de o réu calar-se durante o interrogatório, cumpre
salientar não ter sido revogado o artigo 198 do CPP, em cujos termos “o silêncio do acusado
não importará confissão, mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento
do juiz.”
24
A simples previsão de que o silêncio do acusado pudesse ser levado em
consideração para a formação da convicção do magistrado, levou alguns doutrinadores, a
exemplo de Eugênio Pacelli de Oliveira, antes mesmo da edição da Lei n. 10.792/03, a
defenderem ter-se verificado a revogação implícita do dispositivo em comento:
O direito ao silêncio deflui da regra constitucional prevista no art. 5º, LXIII,
da CF, e implicou a imediata revogação (implícita, por incompatibilidade),
daquilo que dispunha o art. 186 (posteriormente revigorado pela Lei. nº
10.792/03) e o art. 198 do Código de Processo Penal, pela simples e bastante
de não se poder atribuir qualquer forma de sanção a quem esteja no exercício
de um direito a ele assegurado em lei. (2009, p. 32)
Entende-se, contudo, mais consentânea com o sistema da livre convicção racional e
com a opção legislativa de manter em vigor o disposto no artigo 198, a explicação fornecida
por Carlos Henrique Borlido Haddad, para quem o silêncio absoluto do acusado em nada
poderá contribuir para o convencimento do magistrado:
Mas em se tratando de silêncio relativo, isto é, em que o mutismo do
interrogando não marca todo o interrogatório, é possível que a ausência de
respostas influencie na formação do convencimento judicial. Malgrado a
redação do art. 186 tenha sido alterada para proibir a extração de inferências
prejudiciais do silêncio, permaneceu incólume o disposto no art. 198, de
acordo com o qual “o silêncio do acusado não importará confissão, mas
poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz.”
O interrogando, diante das perguntas que lhe são feitas, pode não encontrar a
adequada resposta, revelando flagrante contrariedade nas anteriores
declarações. Se o silêncio é intercalado entre uma conduta e outra, nascendo
uma omissão à resposta pela falta de argumentos, aliada à fragilidade das
declarações, é possível considerar tais circunstâncias na formação do
convencimento do juiz. [...] É o que se chama discurso lacunar. [...] O
silêncio, isoladamente, não poderá ser empregado em prejuízo do réu. Mas,
como qualquer outro elemento contido nos autos, associado a imperfeições
das declarações prestadas, poderá ser utilizado na formação do
convencimento judicial, como melhor forma de associar a interpretação do
art. 186, parágrafo único com a do art. 198, segunda parte, ambos do CPP.
(2005, p. 68-69)
Entendimento que se coaduna, conforme explicitado, com o sistema de valoração
das provas hoje empregado.
2.2.2
Da indução ao exercício da autodefesa
O item de que ora se trata, cujo título foi “emprestado” de artigo de Ada Pellegrini
25
Grinover, retrata a pertinência da observação tecida pela autora quanto ao teor do inciso VIII
do parágrafo 2º do artigo 187 do CPP, que encerra o interrogatório questionando ao réu “se
tem algo mais a alegar em sua defesa”.
Trata-se de nítida oportunidade, agora protocolar, para que o réu possa exercitar sua
autodefesa, ainda que tenha permanecido silente durante todo o interrogatório, como ressalta a
autora em questão:
O que é importante ressaltar, a respeito deste dispositivo, é que, ainda que o
acusado tenha exercido o direito ao silêncio, não respondendo a alguma ou
mesmo a todas as perguntas anteriores, esta última deve ser necessariamente
formulada pelo juiz, porquanto não é só pelo silêncio, mas também pelas
informações defensivas expressas, que o interrogatório se consagra como
meio de defesa. (2005, p. 189)
Faculdade que, em razão do disposto na também inovadora redação do artigo 189,
não se limita a simples declarações, podendo o acusado, caso negue total ou parcialmente a
acusação, indicar provas9.
Trata-se, contudo, de mera possibilidade, não se encontrando o réu obrigado a
fornecer quaisquer elementos de prova em razão de sua negativa, conclusão que decorre da
utilização do verbo poder, em destaque.
Tratamento diverso é conferido, contudo, ao réu que confessar a autoria, conforme
se depreende da atual redação do artigo 190 do CPP – que, excetuadas algumas alterações
terminológicas, já constava do mencionado Diploma em sua versão original –, segundo a qual
será diretamente “perguntado sobre os motivos e circunstâncias do fato e se outras pessoas
concorreram para a infração, e quais sejam”.
As razões para tanto constam do artigo O Novo Regime Legal do Interrogatório, de
Sérgio Demoro Hamilton10:
Justifica-se o cuidado do legislador, pois, em tal hipótese, há autoincriminação por parte do acusado. Como o juiz não está adstrito à confissão
do acusado, em razão do sistema do livre convencimento (art. 157 do CPP) e
do princípio da verdade real, informadores do processo penal em matéria de
prova, cabe ao magistrado perquirir até que ponto aquela confissão traduz a
verdade.
Demais disso, não se pode esquecer que a auto-acusação falsa é crime contra
a administração da justiça (art. 341 do CP), motivando, ainda mais, a
exigência legal constante no art. 190 do CPP. Reafirma-se, ainda mais uma
vez, ao Estado só interessa a condenação do verdadeiro culpado. (2005, p.
23)
9
Art. 189. Se o interrogando negar a acusação, no todo ou em parte, poderá prestar esclarecimentos e indicar
provas. (grifou-se)
10
Procurador de Justiça aposentado do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro e professor universitário.
26
Razões que se optou por delinear de forma a evitar eventuais especulações quanto à
mitigação do direito ao silêncio que poderiam advir de uma leitura apressada do disposto no
artigo 190 do CPP.
2.2.3
Da necessária presença do defensor durante o interrogatório
Aqui, não há muito que falar, a não ser que uma prática há muito adotada nos juízos
criminais passou a constar, agora, de forma expressa no Código de Processo Penal, mais
especificamente do caput do artigo 185 – por força da Lei n. 10.792/2003 – e de seus
parágrafos 1º (interrogatório no estabelecimento prisional) e 5º (por videoconferência) em
decorrência das inovações advindas da Lei n. 11.900/2009, que será detalhadamente analisada
no Capítulo 3 do presente trabalho.
O que antes era garantido de forma mais sutil por meio do artigo 5º, LXIII, da
Constituição Federal – com todas as polêmicas que se formaram em torno da utilização do
termo preso e, portanto, de sua aplicação ao interrogatório judicial, como demonstrado no
item 2.1 –, passa agora a constar como uma exigência no Código de Processo Penal.
2.3
DAS CONTRIBUIÇÕES EFETUADAS PELA LEI N. 11.719/2008
Também a Lei n. 11.719/2008, que conferiu nova formatação a procedimentos
processuais penais, notadamente aos comuns ordinário e sumário, contribuiu para reforçar o
caráter do interrogatório como meio de defesa. E o fez por meio da reestruturação dos atos
que integram a audiência de instrução e julgamento, que passou a ser una.
Diferentemente do que ocorria até então, quando o interrogatório consistia, via de
regra, no primeiro ato processual que se seguia ao recebimento da denúncia e à citação do réu
– conforme constava da revogada redação do artigo 394 do CPP –, efetuado em momento
distinto da oitiva das testemunhas; hoje, diferentemente, a inquirição do réu e os atos
instrutórios em geral são realizados em uma única ocasião. É o que se depreende da leitura do
artigo 400 do CPP:
27
Art. 400. Na audiência de instrução e julgamento, a ser realizada no prazo
máximo de 60 (sessenta) dias, proceder-se-á à tomada de declarações do
ofendido, à inquirição das testemunhas arroladas pela acusação e pela
defesa, nesta ordem, ressalvado o disposto no art. 222 deste Código, bem
como aos esclarecimentos dos peritos, às acareações e ao reconhecimento de
pessoas e coisas, interrogando-se, em seguida, o acusado. (BRASIL, 2008)
Deixou, assim, de representar o primeiro ato de que tomava parte o acusado11 para
tornar-se um dos últimos da audiência una de instrução e julgamento, sempre precedido pela
oitiva do ofendido – quando viável –, das testemunhas de acusação e defesa, pela eventual
manifestação de peritos e demais atos instrutórios. Ressalvada, sem dúvida, a necessidade de
proceder-se a diligências complementares após a inquirição do réu, o que há de ser admitido
em busca da verdade dos acontecimentos.
Nesse contexto, passou o réu a ocupar posição consideravelmente mais confortável e
benéfica ao desenvolvimento de sua defesa, aqui consideradas tanto a técnica quanto a
pessoal. Somente após ter tomado contato com toda a produção da prova é que exercitará,
querendo, sua autodefesa, ciente, de antemão, da totalidade dos fatos articulados, provas e
indícios obtidos em seu desfavor.
Por óbvio, essa significativa reordenação dos atos processuais buscou infirmar os
contornos de meio de defesa do interrogatório. Deixou-se de lado, em absoluto, o elemento
surpresa. O réu não mais representa aquela figura até certo ponto despreparada e vulnerável às
mais diversas empreitadas intelectuais em busca da prova, tendo se tornado um espectador do
desenrolar do processo penal, cuja manifestação pessoal sobre os fatos, caso a considere
oportuna, será apresentada ao final.
Entendimento compartilhado por Eugênio Pacelli de Oliveira:
Inicialmente concebido como um meio de prova, no qual o acusado era
unicamente mais um objeto da prova, o interrogatório, na ordem atual, há de
merecer nova leitura.
Que continue a ser considerado uma espécie de prova, não há maiores
problemas, até porque as demais espécies defensivas são também
consideradas provas. Mas o fundamental, em uma concepção de processo via
da qual o acusado seja um sujeito de direitos, e no contexto de um modelo
acusatório, tal como instaurado pelo sistema constitucional das garantias
individuais, o interrogatório do acusado encontra-se inserido
fundamentalmente no princípio da ampla defesa.
Trata-se, efetivamente, de mais uma oportunidade de defesa que se abre ao
acusado, de modo a permitir que ele apresente a sua versão dos fatos, sem se
11
Considerando-se aqui, para efeito de análise, os procedimentos comuns previstos no CPP, sobre os quais a Lei
n. 11.919/08 incidiu diretamente, embora, por via reflexa, possa ter influído em alguns procedimentos especiais,
a exemplo do rito referente ao julgamento dos crimes de responsabilidade dos funcionários públicos, cujo artigo
517 remete ao procedimento comum ordinário.
28
ver, porém, constrangido ou obrigado a fazê-lo.
E a conceituação do interrogatório como meio de defesa, e não de provas
(ainda que ostente valor probatório), é riquíssima de conseqüências. (2009,
p. 334-335)
Sistemática que, a partir da Lei n. 11.719/2008, passou a representar a regra geral do
processo penal, em razão da aplicação subsidiária do procedimento comum a quaisquer
outros, ressalvadas as exceções previstas no próprio CPP e em leis especiais, por força do
disposto no artigo 394, § 2º, em cujos termos: “aplica-se a todos os processos o procedimento
comum, salvo disposições em contrário deste Código ou de lei especial”.
Por fim, cumpre salientar que idêntica forma de proceder foi incorporada à fase
inicial do rito do tribunal do júri, por meio da Lei n. 11.689/2008, como se pode observar da
atual redação do artigo 411 do CPP.
2.4
DO CONCEITO DE INTERROGATÓRIO COMO MEIO DE DEFESA
Como mencionado no item 1.2, superada, enfim, a análise da natureza jurídica do
interrogatório, é possível e necessário fornecer sua correta conceituação, como meio de defesa
que é, noção irretocavelmente extraída da obra de Guilherme de Souza Nucci, em
consonância com o exposto no presente Capítulo, qual seja:
[...] ato processual que confere oportunidade ao acusado de se dirigir
diretamente ao juiz, apresentando a sua versão defensiva aos fatos que lhe
foram imputados pela acusação, podendo inclusive indicar meios de prova,
bem como confessar, se entender cabível, ou mesmo permanecer em
silêncio, fornecendo apenas dados de qualificação. (2008, p. 400)
De posse do referido conceito, cumpre tecer algumas considerações, com o escopo
de conciliar, de forma breve e sucinta, as questões tratadas no presente Capítulo.
2.5
CONSIDERAÇÕES PESSOAIS
Em conformidade com a ordem constitucional e legal vigentes, o interrogatório
representa um dos meios de defesa conferidos aos réus, verdadeiro instrumento para o
29
exercício da ampla defesa, prevista no artigo 5º, LV, da Constituição Federal. Garantia
sempre instituída em favor do acusado.
Faz-se sempre presente, contudo, a possibilidade de serem extraídas das declarações
do interrogando reais fontes de prova, ou seja, elementos a serem confrontados com as demais
provas e indícios coligidas, a teor do que dispõe o artigo 197 do CPP.
Partindo-se dessa compreensão, impõe abordar a adequação do recurso da
videoconferência ao instituto do interrogatório, estudo a que se destinará o Capítulo seguinte.
30
3
3.1
DO INTERROGATÓRIO POR VIDEOCONFERÊNCIA
VIDEOCONFERÊNCIA
O recurso da videoconferência foi introduzido no Código de Processo Penal apenas
em 9 de janeiro de 2009, pela Lei Federal n. 11.900. Trata-se de uma conjugação de recursos
tecnológicos que possibilita, por meio da transmissão simultânea de áudio e imagens, a
comunicação em tempo real entre pessoas que se encontrem em diferentes locais.
Sua adoção, na prática, foi implementada, pioneiramente, pelo juiz Edison
Aparecido Brandão em 27 de agosto de 1996, na cidade de Campinas, consoante informa
Ronaldo Batista Pinto, em seu artigo intitulado Interrogatório on-line ou virtual Constitucionalidade do ato e vantagens em sua aplicação (2008, p. 213).
Tão logo foram divulgadas as primeiras experiências nesse sentido, inúmeras
controvérsias surgiram a respeito de sua utilização, tanto na doutrina quanto na
jurisprudência, em especial no que tange ao interrogatório, como salientam Marco Antônio de
Barros e César Eduardo Lavoura Romão, em seu artigo Internet e videoconferência no
processo penal:
Embora bem aceita nas relações sociais comuns do indivíduo, a tecnologia
moderna ainda não sedimentou, com a velocidade que a caracteriza, suas
raízes simplificadoras e úteis no processo criminal.
[...]
Os anais da ciência jurídica nos ensinam que a adoção de novas tecnologias
sempre é marcada e precedida de períodos traumáticos, repletos de
acalorados debates, que num primeiro momento podem encontrar eco na
doutrina, mas logo se tornam superados pelo bom senso e pelo predomínio
de uma nova e irresistível realidade social.
[...]
O interrogatório do réu por meio da videoconferência é a forma de
produção eletrônica de ato processual mais combatida e criticada por
grande parte da doutrina. (1997, p. 117-120, grifou-se)
Controvérsias que se intensificaram após a edição de leis estaduais disciplinando a
adoção do interrogatório on-line em processos criminais, tais como as de número 7.177/2002,
da Paraíba; 11.819/2005, de São Paulo e 4.554/2005, do Rio de Janeiro, posteriormente
consideradas inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, sob o argumento de que a
competência para legislar sobre processo penal é exclusiva da União, nos termos do artigo 22,
31
I, da Constituição Federal, conforme se depreende da ementa do Habeas Corpus n. 90900,
abaixo transcrita:
Habeas corpus. Processual penal e constitucional. Interrogatório do réu.
Videoconferência. Lei nº 11.819/05 do Estado de São Paulo.
Inconstitucionalidade formal. Competência exclusiva da União para legislar
sobre matéria processual. Art. 22, I, da Constituição Federal. 1. A Lei nº
11.819/05 do Estado de São Paulo viola, flagrantemente, a disciplina do
art. 22, inciso I, da Constituição da República, que prevê a competência
exclusiva da União para legislar sobre matéria processual. 2. Habeas
corpus concedido. (BRASIL. STF. 2008, grifou-se)
Antes de passar à análise dos argumentos favoráveis e contrários à adoção do
interrogatório por videoconferência e, em especial, de sua constitucionalidade, é necessário
verificar em que termos essa prática foi introduzida no Código de Processo Penal. Só então,
apreendida a sistemática em vigor, é que se poderá investigar a adequação das previsões
legislativas à natureza jurídica do interrogatório, qual seja, de meio de defesa do réu.
3.2
REGULAMENTAÇÃO INTRODUZIDA PELA LEI N. 11.900/2009
Com a vigência do Diploma Legal em questão, passaram a existir, na legislação
processual penal brasileira, três modalidades distintas de interrogatório de réus presos. Aquele
realizado em sala própria no estabelecimento prisional em que se encontrar recolhido,
instituído como regra geral a ser observada, nos termos do artigo 185, § 1º; os efetuados na
sede do juízo mediante a escolta do detento, hipótese estipulada no § 7º do referido artigo e,
em caráter excepcional, observadas as situações descritas nos incisos do § 2º, o interrogatório
por videoconferência.
A fim de facilitar a análise do instituto em questão, cumpre transcrever o teor do
artigo 185 do CPP:
Art. 185. O acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no
curso do processo penal, será qualificado e interrogado na presença de seu
defensor, constituído ou nomeado.
§ 1º O interrogatório do réu preso será realizado, em sala própria, no
estabelecimento em que estiver recolhido, desde que estejam garantidas a
segurança do juiz, do membro do Ministério Público e dos auxiliares bem
como a presença do defensor e a publicidade do ato.
§ 2º Excepcionalmente, o juiz, por decisão fundamentada, de ofício ou a
requerimento das partes, poderá realizar o interrogatório do réu preso por
32
sistema de videoconferência ou outro recurso tecnológico de transmissão de
sons e imagens em tempo real, desde que a medida seja necessária para
atender a uma das seguintes finalidades:
I - prevenir risco à segurança pública, quando exista fundada suspeita de que
o preso integre organização criminosa ou de que, por outra razão, possa fugir
durante o deslocamento;
II - viabilizar a participação do réu no referido ato processual, quando haja
relevante dificuldade para seu comparecimento em juízo, por enfermidade
ou outra circunstância pessoal;
III - impedir a influência do réu no ânimo de testemunha ou da vítima, desde
que não seja possível colher o depoimento destas por videoconferência, nos
termos do art. 217 deste Código;
IV - responder à gravíssima questão de ordem pública.
§ 3º Da decisão que determinar a realização de interrogatório por
videoconferência, as partes serão intimadas com 10 (dez) dias de
antecedência.
§ 4º Antes do interrogatório por videoconferência, o preso poderá
acompanhar, pelo mesmo sistema tecnológico, a realização de todos os atos
da audiência única de instrução e julgamento de que tratam os arts. 400, 411
e 531 deste Código.
§ 5º Em qualquer modalidade de interrogatório, o juiz garantirá ao réu o
direito de entrevista prévia e reservada com o seu defensor; se realizado por
videoconferência, fica também garantido o acesso a canais telefônicos
reservados para comunicação entre o defensor que esteja no presídio e o
advogado presente na sala de audiência do Fórum, e entre este e o preso.
§ 6º A sala reservada no estabelecimento prisional para a realização de atos
processuais por sistema de videoconferência será fiscalizada pelos
corregedores e pelo juiz de cada causa, como também pelo Ministério
Público e pela Ordem dos Advogados do Brasil.
§ 7º Será requisitada a apresentação do réu preso em juízo nas hipóteses em
que o interrogatório não se realizar na forma prevista nos §§ 1º e 2º deste
artigo.
§ 8º Aplica-se o disposto nos §§ 2º, 3º, 4ªº e 5º deste artigo, no que couber, à
realização de outros atos processuais que dependam da participação de
pessoa que esteja presa, como acareação, reconhecimento de pessoas e
coisas, e inquirição de testemunha ou tomada de declarações do ofendido.
§ 9º Na hipótese do § 8º deste artigo, fica garantido o acompanhamento do
ato processual pelo acusado e seu defensor. (BRASIL, 2009)
Como se pode observar, a regra contida no ordenamento jurídico deveria ser o
interrogatório do preso nas dependências do estabelecimento em que se encontra encarcerado.
Ocorre, todavia, que tal disposição mostra-se incompatível, na prática, com a previsão de uma
audiência una de instrução e julgamento, em que devem ser condensados o interrogatório do
réu, os atos de instrução, a apresentação de alegações finais e prolação da sentença.
Sistemática introduzida meses antes pela Lei n. 11.719/2008.
33
Fato constatado por Eugênio Pacelli de Oliveira:
Ao que se vê em uma primeira abordagem, a regra geral do interrogatório do
réu preso seria a sua realização no estabelecimento em que estiver ele
recolhido (cadeia pública, delegacia ou penitenciária), em sala própria (§ 1º),
destinada a este fim.
Curiosidade: o dispositivo preocupa-se com a segurança do juiz, do
Ministério Público e dos auxiliares da justiça, além de garantir a presença do
advogado da defesa e a publicidade do ato, sem, entretanto, referir-se, nem
de longe, às testemunhas e peritos que eventualmente tenham que participar
do ato.
Explica-se: a nova lei, nesse ponto, se pautou no texto da Lei 10.792/03, que,
como se sabe, é anterior às modificações de rito impostas pela Lei
11.719/08. Assim, esqueceu-se que, agora, os atos instrutórios são
concentrados em uma única audiência, na qual se ouvem testemunhas e se
interroga o réu. Por isso, a lógica do art. 185, § 1º, segue a lógica do ato
isolado, sem a presença de testemunhas.
O que fazer?
Ora, a menos que o Estado possa garantir a segurança de todos quantos
devam participar do ato, além daqueles que eventualmente queiram (o ato
não é público?), não se poderá exigir que o juiz e seus auxiliares, além do
membro do MP, se desloquem para todo e qualquer estabelecimento
prisional, a fim de ali realizarem a instrução concentrada. Mais. Uma coisa é
exigir da testemunha o seu comparecimento às Delegacias para prestarem
depoimentos no curso da investigação criminal, locais em que o número de
policiais, em regra, costuma ser maior que o de presos. Quando nada, o risco
de rebeliões internas ali é bem menor. Outra, muito diferente, é exigir que
elas (testemunhas) se desloquem para penitenciárias apinhadas de presos,
nem sempre com garantias visíveis e com maiores ou menores riscos a sua
segurança pessoal. Iria até ai o dever de colaborar com a Justiça Pública?
Pensamos que não!
[...]
Caberá, então, ao prudente arbítrio do magistrado, avaliar as condições
físicas para a realização do ato em tais locais, atentando-se, sobretudo, para a
existência ou não de prova testemunhal, bem como para o número de
pessoas a serem protegidas no evento.
E não é só. Diante de semelhantes dificuldades, e, mais, diante da ausência
de referência legislativa expressa à proteção das testemunhas, acaso não
bastaria a fragmentação da instrução, com a realização apenas do
interrogatório no estabelecimento prisional?
Do ponto de vista procedimental, não veríamos problemas nessa solução.
Ocorre que o acusado tem direito subjetivo a acompanhar a produção da
prova contra si. Direito esse, por óbvio, extensivo ao réu preso. Assim, e
como ele tem direito a acompanhar a audiência de inquirição das
testemunhas, há que se concluir que: a) ou a audiência se realiza na sede com
juízo, com requisição do preso; ou b) realiza-se o ato integralmente na sala
própria do estabelecimento prisional, valendo relembrar, no particular, a
ausência de previsão legal acerca da preservação da segurança das
testemunhas (art. 185, § 1º ).
Mas, veja-se bem, se a regra fosse a instrução do feito (audiência de
34
instrução, incluindo interrogatório) no estabelecimento onde estiver
recolhido o acusado preso, porque razão prever-se o interrogatório por
videoconferência, quando houver risco decorrente do deslocamento do
preso? Bastaria seguir a regra geral: instrução no presídio ou delegacia! A
realização do ato por videoconferência pressupõe, então, impossibilidade da
audiência na sala própria do presídio ou estabelecimento prisional!
Mais que isso: a rigor, não existe a exigência de realização da audiência de
instrução naqueles locais, só a possibilidade do interrogatório, com
fracionamento do ato. Voltamos à indagação: também nessa situação o réu
não teria o direito ao acompanhamento pessoal da instrução? E se ele tiver
que ir ao Juízo para a instrução, ali se realizará também o interrogatório,
sendo desnecessária a designação de nova data para o citado ato
(interrogatório). (2009, p. 335-336)
Ademais, consoante pondera Thiago André Pierobom de Ávila:
[...] não nos parece razoável que todas as testemunhas sejam obrigadas a se
deslocarem ao estabelecimento prisional para que toda a audiência de
instrução seja ali realizada, apenas com a finalidade de se evitar a escolta do
réu. Ademais, essa situação seria improdutiva, pois se todos os juízes
criminais realizassem diariamente audiências de instrução de réu preso nas
dependências prisionais, essa situação na prática transformaria os presídios
em fóruns, com sérios riscos á segurança do estabelecimento prisional.
(2009)
Ante a notória incompatibilidade dos artigos 185, § 1º, e 400, ambos do CPP, o que
se tem verificado na prática é, via de regra, a condução dos réus presos a juízo para que sejam
interrogados, ou seja, verdadeira inversão na ordem de prevalência estabelecida por lei.
De todo modo, a videoconferência continua a ostentar a condição de medida
excepcional a ser adotada – embora alguns sustentem o contrário, como se verificará no
momento oportuno. Resta, portanto, adentrar a análise dos dispositivos legais correlatos, quais
sejam, os parágrafos 2º a 6º do artigo 185 do CPP.
3.2.1
Das hipóteses de admissibilidade do interrogatório por videoconferência
Após ressaltar a excepcionalidade da medida, assim como a necessidade de que sua
adoção seja precedida por decisão fundamentada, o parágrafo segundo passa a tratar das suas
hipóteses de admissibilidade.
São quatro os incisos que disciplinam as situações capazes de justificar a decretação
de ofício, ou mediante requisição de qualquer das partes, da realização do interrogatório on-
35
line. Não há aqui qualquer engano; apesar de extraordinária, a medida em questão pode ser
requerida por ambas as partes. É essa a redação da lei. Ao que se acrescenta mostrar-se
suficiente, para sua concessão, a verificação de hipótese prevista em qualquer dos quatro
incisos mencionados, ou seja, as situações discriminadas apresentam-se de forma alternativa,
e não cumulativa.
O primeiro dos incisos em questão almeja a preservação da segurança pública
quando houver fundada suspeita – ou, por óbvio, notório conhecimento – de que o réu integre
organização criminosa ou, por motivo diverso, possa fugir ou vir a ser “resgatado” durante o
seu deslocamento para fins de interrogatório.
São duas, portanto, as hipóteses concebidas pelo legislador como atentatórias à
segurança pública, integrar organização criminosa, fato que por si só justifica a aplicação da
medida, passando a constituir verdadeira presunção de risco, e a possibilidade de fuga, a
respeito da qual não adotou o legislador semelhante postura.
Conforme salienta Andrey Borges de Mendonça, ante a ausência de conceituação
expressa:
O conceito de organização criminosa aqui pode ser extraído da Convenção
de Palermo (Dec. 5.015/2004), cujo art. 2º define grupo criminoso
organizado como um grupo estruturado com três ou mais pessoas, existente
há algum tempo e atuando concertadamente com o propósito de cometer
uma ou mais infrações graves ou enunciadas na referida Convenção, com a
intenção de obter, direta ou indiretamente, um benefício econômico ou outro
benefício material. (2009, p. 307-308).
O inciso segundo, por sua vez, foi nitidamente pensado em benefício do réu, à
medida que busca propiciar sua participação no interrogatório quando haja relevante
dificuldade para seu comparecimento em juízo, por enfermidade ou outra circunstância
pessoal.
Da expressão em destaque, depreende-se ter o legislador se valido de uma
interpretação analógica, de forma a conferir maior amplitude ao preceito legal, como ressalta
Andrey Borges de Mendonça (2009, p. 308).
Quanto ao inciso terceiro, almeja obstar influências negativas advindas da presença
do réu no ânimo das testemunhas e do ofendido, desde que não seja possível realizar a oitiva
desses por videoconferência, na forma prevista no artigo 217 do CPP, cuja redação foi dada
pela Lei n. 11.690/2008, a seguir transcrito:
Art. 217. Se o juiz verificar que a presença do réu poderá causar
humilhação, temor, ou sério constrangimento à testemunha ou ao ofendido,
de modo que prejudique a verdade do depoimento, fará a inquirição por
36
videoconferência e, somente na impossibilidade dessa forma, determinará a
retirada do réu, prosseguindo na inquirição, com a presença do seu defensor.
Parágrafo único. A adoção de qualquer das medidas previstas no caput deste
artigo deverá constar do termo, assim como os motivos que a determinaram.
(BRASIL, 2008)
Há, contudo, que buscar conciliar a redação de ambos os artigos. Como se pode
perceber, são três as hipóteses previstas: a) a oitiva da testemunha e do ofendido por
videoconferência; b) a retirada do réu do ambiente em que se dá a audiência e c) a realização
de seu interrogatório por videoconferência.
Do disposto no artigo 185, § 2º, III, percebe-se nitidamente a preferência conferida à
permanência do réu nas dependências em que esteja sendo realizada a audiência de instrução
e julgamento. O que se indaga, contudo, é se o fato de continuar acompanhando o desenrolar
do ato processual por meio da videoconferência – seja esse recurso aplicado ao seu
interrogatório ou a obtenção das declarações de testemunhas e do ofendido, que estarão
plenamente cientes de tal fato –, seria suficiente para evitar a intimidação e humilhação a que
se refere o artigo 217.
Se for este o caso, entende-se plenamente aplicável a parte final do caput do artigo
217, devendo-se providenciar a retirada do réu do recinto. Hipótese mais radical em que não
manterá qualquer contato com a produção da prova em questão.
Logo, a ordem a ser impressa pelo magistrado parece ser a seguinte: privilegiar o
disposto no item “a” supra, em seguida o que consta do item “c” e, em último caso, adotar a
providência descrita no item “b”.
O inciso IV, por sua vez, é certamente o mais polêmico, por abrir uma brecha para a
aplicação do interrogatório por videoconferência a toda sorte de situações que se enquadrem
na genérica fórmula conhecida por “ordem pública”.
Como ressalta Edilson Mougenot Bonfim (2009, p. 417), “o significado da
expressão ‘garantia da ordem pública’ não é pacífico na doutrina e na jurisprudência”. Para
Denilson Feitosa (2009, p. 852), ordem pública “é o estado de paz e de ausência de crimes na
sociedade”. Andrey Borges de Mendonça (2009, p. 309) a conceitua como “tranqüilidade e
segurança coletivas ou, ainda, a proteção de bens jurídicos relevantes da sociedade”, conceitos
dos quais se extrai a excessiva abrangência que pode vir a ser conferida ao inciso IV, em
apreço.
37
3.2.2
Procedimento do interrogatório por videoconferência
Da decisão que determinar a realização do interrogatório por videoconferência as
partes deverão ser notificadas com antecedência de 10 dias. Tal prazo, instituído pelo
parágrafo 3º, destina-se a possibilitar que as partes se adequem às demais exigências impostas
pelo rito estabelecido em lei, em especial ao que dispõe o parágrafo 5º do artigo 185 do CPP,
que estabelece a necessária atuação de dois advogados em defesa dos interesses do réu, um a
permanecer na sede do juízo e outro para acompanhá-lo na sala reservada do estabelecimento
prisional em que se encontre.
Prazo de que devem se valer as partes para impugnar a realização do interrogatório
por videoconferência, se entenderem ser este o caso. A disciplina do artigo 185 nada dispõe,
contudo, sobre o recurso cabível à espécie, razão pela qual cumpre salientar as reflexões de
Thiago André Pierobom:
Considerando que não se trata de decisão com força de definitiva (portanto,
incabível apelação) e que não está prevista no rol taxativo do art. 581 (que
[sic] a admissibilidade do recurso em sentido estrito), contra a decisão que
determina o interrogatório por videoconferência será cabível o recurso de
reclamação (denominado, em alguns estados, de correição parcial) ou ainda
o habeas corpus pela defesa, sem prejuízo de posterior impugnação como
preliminar de apelação. (2009)
Entendimento corroborado por Andrey Borges de Mendonça, que acrescenta, ainda,
a possibilidade de impetração de mandado de segurança, caso se mostrem presentes os
requisitos para tanto:
Na sistemática do CPP, não há recurso cabível da decisão que determina a
utilização da videoconferência, podendo a parte, em caso de discordância,
fazer constar nos autos as razões pelas quais discorda da utilização da
videoconferência naquele caso, para posteriormente alegar a nulidade em
preliminar de apelação. Isto porque a referida decisão interlocutória não se
encontra no rol fechado do art. 581 do CPP. De qualquer sorte, a defesa
poderá utilizar a via do habeas corpus para impugnar a decisão que
determinou a utilização da videoconferência. A acusação, caso discorde do
indeferimento de sua utilização, poderá interpor correição parcial. Possível,
também, o manejo do mandado de segurança [...] (2009, p. 312)
Dando continuidade à análise do artigo 185, cumpre observar o disposto em seu
parágrafo 4º, cujo objetivo consiste apenas em harmonizar o instituto do interrogatório on-line
à audiência una de instrução e julgamento inserida no ordenamento jurídico pátrio pelas Leis
n. 11.689/2008 e n. 11.719/2008, tanto nos procedimentos comuns ordinário e sumário quanto
38
na primeira fase do rito do júri. Para tanto, estabelece a faculdade de o preso acompanhar por
meio do recurso tecnológico em questão, todos os demais atos da referida audiência.
Do parágrafo 5º, por sua vez, extraem-se três importantes formalidades relacionadas
ao direito de defesa do réu, a saber: a) a garantia de que ao menos dois advogados
acompanhem o ato, um a permanecer na sede do juízo e outro na dependência do
estabelecimento prisional em que o acusado se encontre, b) entrevista prévia e reservada com
seu defensor, e c) o acesso, a todo tempo, a canal telefônico reservado, para que possa se
comunicar com o advogado que representa seus interesses na sede do juízo, bem como
viabilizar a interação entre ambos os seus defensores.
Andrey Borges de Mendonça (2009, p. 314) ressalta o que se extrai do adjetivo
reservado, mencionado no item “c” supra, a saber, que “a esta conversa não poderá ter acesso
nem o Ministério Público e sequer o juiz, pois é decorrência do sigilo profissional existente
entre cliente e advogado”.
No que tange ao parágrafo 6º, institui a necessidade de que a sala reservada dentro
do estabelecimento prisional para a realização de atos processuais por meio do sistema de
videoconferência seja fiscalizada por corregedores, pelo juiz de cada causa, pelo Ministério
Público e pela Ordem dos Advogados do Brasil.
Formalidade que, assim como aquelas disciplinadas pelo parágrafo 5º – em especial
a descrita item “a”, anteriormente abordado –, almejam não somente afastar quaisquer
possíveis formas de coação ou violação a direitos e garantias do réu, como também assegurar
a segurança de todos aqueles que venham a participar do ato.
Quanto à necessidade de fiscalização da sala reservada à utilização da
videoconferência, há que reconhecer as dificuldades práticas de que tal exigência seja imposta
ao juiz da causa toda vez que um novo feito venha a ser julgado, razão pela qual se concorda
com a manifestação de Thiago André Pierobom de Ávila (2009) no sentido de que tal
previsão deve ser encarada como uma necessidade de fiscalização periódica, devendo o juiz
que decidir a causa tê-la vistoriado ao menos uma vez.
Situações excepcionais haverá em que nem isso poderá ser exigido do magistrado,
como nos casos em que ele e o interrogando encontrem-se em Estados distantes, por se tratar
de preso considerado perigoso, encarcerado em presídio de segurança máxima, hipóteses em
que se entende admissível o posicionamento defendido por Andrey Borges de Mendonça:
Como exigir que um juiz do interior do Rio Grande do Sul compareça a
Brasília para vistoriar se a sala está em condições para a realização da
videoconferência? Seria não só desarrazoado este entendimento, mas levaria
à inutilidade da alteração legal, em razão de ser, muitas vezes, impossível
39
este deslocamento. Ademais, a Corregedoria, o Magistrado e o membro do
Ministério Público responsáveis pelo presídio podem fazer esta fiscalização.
Assim, para evitar uma solução desarrazoada, pensamos que esta
fiscalização não precisa ser pessoal, podendo o magistrado, por exemplo,
valer-se de informações da Corregedoria ou de Magistrados responsáveis
pelo local. (2009, p. 316)
Entendimento esse que, frise-se, deve ser adotado em relação a situações
excepcionais.
Quanto aos demais parágrafos do artigo 185, não estão diretamente relacionados ao
estudo em questão, a não ser o parágrafo 7º, devidamente abordado no item 3.2.
Apreciada, portanto, a regulamentação introduzida pela Lei Federal n. 11.900/2009,
no que diz respeito ao interrogatório por videoconferência, cumpre abordar os argumentos
favoráveis e contrários à adoção desse recurso tecnológico em relação ao interrogatório.
Noções indispensáveis para que se possa aferir a pertinência da nova sistemática do CPP e sua
adequação à ordem constitucional vigente e à natureza jurídica do ato processual em questão,
qual seja, de meio de defesa do réu.
3.3
ARGUMENTOS FAVORÁVEIS
Inúmeros são os argumentos favoráveis à adoção da videoconferência nos
interrogatórios de feitos criminais, mas, antes de adentrar em sua efetiva análise, impõe
salientar a observação efetuada por Marco Antônio de Barros quanto às benesses que podem
advir do uso da tecnologia pelo Poder Judiciário e da real necessidade de sua adoção, com o
que, em termos gerais, não se pode discordar:
Comparando-se as duas realidades – a do setor privado e a do Judiciário – é
forçoso reconhecer que o último caminha vagarosamente neste período
histórico dominado pela sociedade da informação, sendo-lhe praticamente
impossível acompanhar o ritmo ditado por outros setores geradores de
decisões.
[...]
Houve tempo, não muito distante, em que a caligrafia dos servidores da
justiça e a sentença manuscrita pelo juiz foram substituídas pela introdução
da máquina de escrever. Temia-se a adulteração do texto original, ante a
possibilidade de inserir, modificar ou excluir palavras. Posteriormente, nova
oposição surgiu à introdução da estenotipia (“taquigrafia mecânica”), visto
que os termos seriam assinados com desconhecimento de seu teor, em
flagrante prejuízo para a defesa. Seguiu-se o ingresso do computador na
realização dos atos processuais, cuja novidade não sofreu as veementes
40
críticas que foram lançadas às anteriores (datilografia e estenotipia). Mas
todas as rejeições sucumbiram, e cada uma dessas medidas progressistas
firmou-se a seu tempo. Repete-se, então, algo que já conhecemos, pois, hoje,
estamos diante de uma nova celeuma, justamente porque a Justiça procura
ganhar terreno e integrar-se no mundo informatizado. (2003, p. 425-426)
Demonstrada a pertinência dos avanços tecnológicos genericamente considerados
para a celeridade da resposta jurisdicional, fato inegável e presente no dia-a-dia dos
operadores do Direito, seja por meio do protocolo eletrônico de petições ou da consulta via
internet dos mais variados precedentes jurisdicionais, cumpre transpor essa análise para o
interrogatório por videoconferência, o que se fará por meio da análise individualizada de cada
um dos argumentos favoráveis à adoção do recurso tecnológico em questão.
3.3.1
Celeridade
Uma das inegáveis vantagens do interrogatório on-line é a garantia da celeridade, ou
seja, da razoável duração do processo, que alcançou o status de norma constitucional em
2004, por meio da Emenda n. 45, responsável pelo acréscimo do inciso LXXVIII ao artigo 5º.
Objetivo que justificou, quatro anos mais tarde, a reunião de diversos atos
processuais em audiência una de instrução e julgamento, conforme consta da atual redação do
artigo 400 do CPP. Inovação a que se faz referência expressa a fim de assinalar que, muito
embora o interrogatório deva ser realizado na mesma ocasião em que são ouvidas as
testemunhas, o ofendido, os peritos e realizadas outras diligências instrutórias, tal fato não
exclui por completo a pertinência da videoconferência como um instrumento em favor da
agilidade do processo.
Ainda
que
considerada
a
possibilidade
da
oitiva
de
testemunhas
por
videoconferência, o que deverá prevalecer quando suficiente para obstar a realização do
interrogatório on-line, por expressa previsão do artigo 185, parágrafo 2º, II, do CPP, restam
situações, das mais corriqueiras, em que esse recurso tecnológico imprime celeridade. Uma
delas diz respeito às dificuldades para a condução do réu a juízo, o que acaba por postergar a
realização do interrogatório.
A esse respeito discorre Ronaldo Batista Pinto:
Outra inegável vantagem é a celeridade que essa espécie de interrogatório
propicia – saliente-se – tanto em favor da sociedade como em prol do
41
próprio réu. Afinal, são sobejamente conhecidas as inúmeras protelações
verificadas no processo pela não apresentação do acusado para o
interrogatório (por problemas de escolta, falta de combustível, dificuldades
no trânsito, etc.), a impor redesignação de audiências, tudo em prejuízo do
rápido andamento do feito. (2008, p. 216)
Em suma, como ressalta o referido autor (2008, p. 222), em trecho distinto, a
sociedade é beneficiada por contar com “uma resposta mais eficaz frente ao delito cometido”,
ao passo que o réu preso “vê sua situação mais rapidamente definida”. Contribuição bastante
relevante, tendo em vista que a legislação em vigor só admite o recurso da videoconferência
para o interrogatório de réus que estejam presos.
Dentre os defensores do interrogatório por videoconferência, em parte graças à
maior agilidade proporcionada aos atos processuais, encontra-se Damásio Evangelista de
Jesus, para quem:
A lei federal que autoriza esse sistema – Lei n. 11.900, de 8 de janeiro de
2009, em vigor desde o dia 9 daquele mês – representou, a meu ver, notável
avanço no sentido de modernizar e agilizar a prática da Justiça Criminal,
evitando gastos e riscos desnecessários, com deslocamentos de presos de alta
periculosidade.
Num sistema jurídico moroso e excessivamente coarctado por usos e
costumes imprescindíveis em outros tempos, mas perfeitamente supérfluos
nas condições de vida atuais, há que modernizar. Salvando-se os princípios e
garantindo-se todas as prerrogativas constitucionais de ampla defesa e
contraditório, em face da lei nova, adotem-se com coragem e espírito
inovador os recursos que a moderna tecnologia nos oferece.
É o único meio de termos aquela justiça ágil, vigilante, eficaz e confiável
com a qual todos sonhamos, bem diferente de uma velha deusa cega e
inoperante. (2009, p. 29)
Dúvidas não restam, portanto, quanto à contribuição desse recurso tecnológico para
a celeridade na realização dos interrogatórios de réus presos. Entendimento compartilhado,
ainda, por Thiago André Pierobom de Ávila (2009), Vladimir Aras (2008, p. 275), Marco
Antônio de Barros e César Eduardo Lavoura Romão (2006, p. 123).
3.3.2
Da economia de recursos públicos
Outra indiscutível vantagem do interrogatório por videoconferência está relacionada
à economia de verbas públicas usualmente despendidas na escolta de réus presos até a sede do
juízo processante, tanto em termos de combustível como da mobilização de equipamentos e
pessoal.
42
Realidade constatada pela absoluta maioria dos autores que abordam o interrogatório
on-line, a exemplo de Cláudia Ferreira Mac Dowell (2006, p. 237) e Thiago André Pierobom
de Ávila (2009), impondo, por ora, retratar os dizeres de Vladimir Aras sobre o tema:
O transporte de presos para a realização de audiências criminais é muito
oneroso para os Estados e para a União. Grandes contingentes de policiais e
agentes de segurança têm de ser desviados de suas funções ordinárias para a
realização do que se vem chamando de “turismo judiciário”. Presos detidos
em presídios de segurança máxima nos Estados do Paraná e do Mato Grosso
têm de ser deslocados, às vezes por via aérea, para seus interrogatórios em
juízo ou para presenciar o depoimento de testemunhas em suas ações penais.
São dezenas de milhares de escoltas todos os anos, em todo o Brasil, a um
altíssimo custo. (2008, p. 273)
Para ter uma noção dos valores e recursos envolvidos, cumpre salientar alguns dados
extraídos do artigo de Marco Antônio de Barros e César Eduardo Lavoura, referentes ao
Estado de São Paulo no ano de 2003:
Segundo informou o Secretário de Segurança Pública do Estado, Saulo de
Castro Abreu Filho, no ano de 2003 a média semanal de gastos envolvia
valores necessários para cobrir aproximadamente 7.500 escoltas policiais,
executadas por um efetivo de 4.800 agentes, sendo utilizados 1.700 veículos
no transporte, os quais rodaram 267.000 quilômetros. (2006, p. 121)
Logo, quando adotada, a videoconferência permite que os policiais, agentes
penitenciários e recursos materiais envolvidos nas escoltas sejam destinados à consecução de
outras missões relacionadas à segurança pública. Constatação que torna inegável, a longo
prazo, o reflexo de sua adoção na economia de recursos públicos, ainda que considerados os
gastos necessários para a implementação da tecnologia, que, segundo os mesmos autores
(2006, p. 121), também no ano de 2003, girava em torno de R$ 40.000,00 (quarenta mil reais)
por sala de videoconferência a ser instalada.
3.3.3
Segurança pública
Notável é, ainda, a contribuição dessa modalidade de transmissão em tempo real de
sons e imagens para a preservação da segurança pública, não só no que tange à possibilidade
de remanejamento de recursos essenciais à sua garantia.
Apresenta-se, ainda, como verdadeira solução para afastar o risco de fuga dos
presos durante seu deslocamento às sedes dos juízos, em especial no que tange àqueles de alta
43
periculosidade envolvidos com organizações criminosas.
Fato tão notório que, em 2009, passou a integrar o rol excepcional de situações em
que o Código de Processo Penal admite a utilização da videoconferência para fins de
interrogatório, conforme consta do artigo 185, parágrafo 2º, inciso I.
3.4
QUESTÕES CONTROVERTIDAS
Além dos inquestionáveis benefícios citados, outras questões, mais polêmicas, são
suscitadas a respeito do interrogatório por videoconferência, como se passará a demonstrar.
3.4.1
Da publicidade
Para obter plena compreensão das celeumas existentes quanto à garantia da
publicidade nos interrogatórios on-line, cumpre tecer algumas considerações iniciais quanto à
forma de realização dos atos processuais e ao princípio em si.
Ao tratar da teoria das provas, Malatesta desvenda os fundamentos que embasam a
publicidade dos atos processuais, sua real razão de ser, qual seja, garantir o que denomina de
sociabilidade da decisão, consubstanciada na possibilidade de controle concomitante das
decisões judiciais por parte da sociedade:
Falando da convicção judicial, determinamos uma outra sua condição natural
na sociabilidade. Isto é, a convicção não deve ser a expressão de uma
convicção subjetiva do juiz; há de ser tal que os fatos e as provas submetidas
a seu julgamento, se se submetessem ao juízo desinteressado de qualquer
outro homem de razão, deveriam produzir também neste aquela mesma
certeza produzida no juiz. É isto que chamamos sociabilidade da convicção.
Mas esta sociabilidade, que encontra sua origem unificadora na razão
humana, na qual se assenta a harmonia espiritual dos homens, se resolveria
em mera aspiração de um pensador solitário, se não tivesse uma
concretização exterior judicial.
Para que a conformidade entre a convicção do juiz e o hipotético juízo social
não se reduza a um estéril desejo, é necessário que as provas se apresentem à
apreciação do juiz numa forma que torne possível a apreciação
contemporânea do público. Eis a outra regra das provas, sua publicidade.
(2003, p. 104)
44
Princípio a ser observado como regra, ressalvadas situações específicas, conforme
consta dos artigos 5º, inciso LX, e 93, IX, da Constituição Federal:
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
[...]
LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais
quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem; (grifouse)
Art. 93. Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal,
disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios:
IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos,
e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei
limitar a presença, em determinados atos, às próprias partes e a seus
advogados, ou somente a estes, em casos nos quais a preservação do direito à
intimidade do interessado no sigilo não prejudique o interesse público à
informação; (BRASIL, 1988, grifou-se)
No que tange à legislação infraconstitucional relevante para o presente estudo, tal
garantia está igualmente prevista no artigo 792 do CPP, em cujos termos, os atos processuais,
além de serem públicos, devem ser realizados na sede do Juízo:
Art. 792. As audiências, sessões e os atos processuais serão, em regra,
públicos e se realizarão nas sedes dos juízos e tribunais, com assistência dos
escrivães, do secretário, do oficial de justiça que servir de porteiro, em dia e
hora certos, ou previamente designados.
§ 1º Se da publicidade da audiência, da sessão ou do ato processual, puder
resultar escândalo, inconveniente grave ou perigo de perturbação da ordem,
o juiz, ou o tribunal, câmara, ou turma, poderá, de ofício ou a requerimento
da parte ou do Ministério Público, determinar que o ato seja realizado a
portas fechadas, limitando o número de pessoas que possam estar presentes.
§ 2º As audiências, as sessões e os atos processuais, em caso de necessidade,
poderão realizar-se na residência do juiz, ou em outra casa por ele
especialmente designada. (BRASIL, 1941)
No que diz respeito ao interrogatório de réus presos, contudo, hipóteses em que se
pode adotar, embora excepcionalmente, o recurso da videoconferência, a disciplina é distinta;
consistindo a regra estabelecida em lei, conforme demonstrado no item 3.2 deste trabalho, em
sua realização nas dependências do estabelecimento prisional, a teor do artigo 185, parágrafo
1º, do CPP, cuja redação foi introduzida pela Lei n. 11.900/2009.
Regra que, na prática, não tem sido amplamente adotada, em razão de sua
incompatibilidade com o disposto no artigo 400 do CPP, conforme entendimento defendido
por Eugênio Pacelli, igualmente transcrito no item 3.2, o que levou o referido autor a sugerir,
45
como possível solução, a utilização indiscriminada da videoconferência para o interrogatório
de réus presos, como se pode observar do seguinte trecho, que sucede aquele apresentado nas
páginas 41 e 42:
Portanto, nessas situações, melhor que a regra do art. 185, § 1º, seria a
aplicação de outra, do § 4º do mesmo dispositivo, que permite ao acusado
preso acompanhar a audiência, quando tiver que realizar seu interrogatório
por videoconferência. (2009, p. 355-356)
A isso se acrescente que, na concepção de Ronaldo Batista Pinto, a adoção da
videoconferência representa uma excelente possibilidade para ampliar a observância do
princípio da publicidade, nos seguintes termos:
Reclama-se, ainda, que a forma de realização do interrogatório [por
videoconferência] afrontaria o princípio constitucional que garante a
publicidade dos atos processuais, previsto no artigo 5º, inc. LX e 93, IX
(com a nova redação que lhe emprestou a Emenda Constitucional nº
45/2004), da Constituição. O argumento parece totalmente equivocado. A
garantia à publicidade, aqui, é observada em sua plenitude, já que o acesso à
sala de audiências, onde são captadas as imagens do acusado, é irrestrito,
incidindo apenas, à evidência, a exceção prevista no § 1º do art. 792, do
código. Nada impede – insiste-se – que qualquer pessoa se dirija ao fórum e
assista, através de um televisor (para citarmos a experiência paulista), o
interrogatório do réu.
Já dissemos que a alternativa encontrada pelo legislador para expurgar o
interrogatório on line traduziu-se na possibilidade prevista no § 1º do art.
185 do CPP, segundo a qual faculta-se [sic] ao juiz se dirigir ao
estabelecimento prisional onde se encontra o réu a fim de interrogá-lo. Pois
bem, aqui sim se malfere o princípio constitucional da publicidade, ante a
obvia dificuldade de alguém se deslocar ao estabelecimento penitenciário,
somada a questões de segurança que chegam mesmo a impedir o ingresso de
qualquer pessoa no local. (2008, p. 221).
Sobre o tema, concorda-se, em parte, com a conclusão apresentada por Renata
Gomes Nunes (2008, p. 13), segundo a qual, observadas a publicidade que denomina de
“interna”, para fazer referência à presença das partes – e, acrescenta-se aqui, de seus
procuradores e dos serventuários da justiça na dependência do estabelecimento prisional a que
se refere o parágrafo 6º do artigo 185 do CPP –, bem como a “externa”, que se referiria, nessa
acepção, ao acesso do público em geral às imagens captadas em juízo, não haveria como
macular o ato por vício de publicidade.
Diz-se em parte em razão da nítida impossibilidade de acesso livre e irrestrito ao
local físico em que se encontra o interrogando. A esse respeito, todavia, vale ressaltar que a
própria legislação prevê ocasiões em que se mostra possível e até mesmo recomendável a
mitigação do princípio da publicidade, para fins de preservação da intimidade e interesse
46
social (art. 5º, LX, CF), caso este em que se incluem as situações em que a lei autoriza a
realização do interrogatório por videoconferência. Logo, não se visualiza afronta ao princípio
em questão.
3.4.2
Da necessidade de apresentação do réu à presença física do juiz para que seja
interrogado
Como é cediço, o interrogatório é a única oportunidade conferida ao réu durante o
processo para dirigir-se diretamente ao Magistrado, com ele dialogar e interagir.
Oportunidade singular em que retrata sua visão dos fatos, livre de quaisquer intermediários. É
a ocasião reservada para o exercício da defesa pessoal. Logo, é natural que anseie o réu por
estar fisicamente presente diante do magistrado.
Por outro lado, esta é, também, uma oportunidade única para que o juiz possa
conhecer sua personalidade, não apenas por meio do que lhe for dito, mas pela direta
percepção de todos os dados assessórios que emanam do comportamento, postura e estado de
ânimo do interrogando.
Noção compartilhada por Hélio Tornaghi:
E isso se explica muito facilmente: o interrogatório é a grande oportunidade
que tem o juiz para, num contato direto com o acusado, formar juízo a
respeito de sua personalidade, da sinceridade de suas desculpas ou de sua
confissão, do estado d’alma em que se encontra, da malícia ou da
negligência com que agiu, da sua frieza e perversidade ou de sua elevação e
nobreza; é o ensejo para estudar-lhe as reações, para ver, numa primeira
observação, se ele entende o caráter criminoso do fato e para verificar tudo
mais que lhe está ligado ao psiquismo e à formação moral. (1987, p. 359)
No mesmo sentido leciona Luiz Flávio Borges D’Urso:
O interrogatório é um momento importantíssimo para a defesa no
processo penal, pois estabelece a única oportunidade do acusado de
falar de viva voz ao juiz da causa. Um magistrado, ao interrogar um
preso, não está apenas captando suas respostas verbais, mas
analisando toda a sua linguagem corporal e suas reações para formar a
convicção do magistrado para aquele momento processual. O réu pode
até silenciar, mas este momento é muito importante porque é o único
no qual fala ao juiz. Em nenhum outro momento lhe será conferida a
palavra. (2008, p. 06)
47
A opção pela videoconferência, por sua vez, pressupõe que o magistrado e o
interrogando estejam em locais físicos distintos, do contrário, tornar-se-ia absolutamente
desnecessária. Substitui o contato direto pela interação, em tempo real, por meio da projeção
de sons e imagens em aparelhos audiovisuais; a presença do indivíduo por sua representação
visual e sonora.
Justamente esse aspecto, a necessidade ou não de comparecimento do réu perante a
pessoa do magistrado, em um mesmo ambiente físico, e o próprio conceito do que venha a ser
comparecimento, caracteriza um dos principais pólos de divergência quanto à adoção da
videoconferência.
Fato que se deve, em parte, à redação do caput do artigo 185 do CPP, em cujos
termos: “o acusado que comparecer perante a autoridade judiciária, no curso do processo
penal, será qualificado e interrogado na presença de seu defensor, constituído ou nomeado.”
(grifou-se).
São, de fato, diversos os argumentos a respeito. Os partidários da videoconferência
alegam que, dada a evolução tecnológica, ao magistrado é possível captar todas as impressões
sensoriais a que teria acesso se estivesse fisicamente presente junto ao réu, até o mais leve
rubor, conforme se depreende do relato de Renata Gomes Nunes:
Aqueles que ainda não se dispuseram a assistir uma audiência virtual tendem
a compará-la com o que se vê por meio de uma webcam, donde as críticas
desarrazoadas.
A qualidade da transmissão de uma audiência on-line, com a utilização de
equipamentos apropriados, permite ao juiz uma nítida visão do réu e das
demais pessoas presentes no local, podendo ainda controlar o volume do
som, cores, foco e amplitude da imagem, por meio de comandos de
aproximação e afastamento, de modo a perceber qualquer movimento, por
menor que seja, ou reação da pessoa com quem conversa. Com a mesma
nitidez, o réu visualiza o juiz. (2008, p. 13)
A questão não pode, contudo, ser resumida à simples análise objetiva da qualidade
dos meios de transmissão envolvidos – que, diga-se de passagem, por melhores que sejam,
não substituem por completo, em seu atual estágio de evolução, a presença física de quem
quer que seja. Há que perquirir, também, acerca dos elementos subjetivos envolvidos nessa
equação. Qual o real impacto do distanciamento no ânimo daquele que pretende efetivamente
desenvolver sua autodefesa?
Difícil é aceitar o argumento de que a necessidade de dirigir-se a uma câmera, e não
diretamente a uma pessoa, deixe de atuar como um fator de desestímulo, nervosismo ou,
ainda, que não produza reações psíquicas de natureza diversa daquelas a que estaria sujeito o
48
réu caso se encontrasse perante o juiz.
Consoante enfatiza Ana Sofia Schmidt de Oliveira (2006, p. 21), “o direito do réu de
ser conduzido à presença do juiz [...] não pode sofrer interpretação que venha a equiparar a
condução da pessoa à condução da imagem por cabos de fibra ótica”.
Entendimento corroborado por Guilherme de Souza Nucci:
[...] não vemos como aceitar o chamado interrogatório on line ou
interrogatório por videoconferência, sinônimo de tecnologia, mas
significativo atraso no direito de defesa dos réus. Uma tela de aparelho de
TV ou de computador jamais irá suprir o contato direto que o magistrado
deve ter com o réu, até mesmo para constatar se ele se encontra em perfeitas
condições físicas e mentais. Que réu, detido numa penitenciária a
quilômetros de distancia, sentir-se-á à vontade para denuncia os maus-tratos
que vem sofrendo a um juiz encontrado atrás da lente de uma câmara? Que
acusado terá oportunidade de se soltar diante do magistrado, confessando
detalhes de um crime complexo, voltado a um aparelho e não a um ser
humano? Por outro lado, que julgador terá a oportunidade de sentir as
menores reações daquele que mente ou ter a percepção de que o réu conta a
verdade visualizando-o por uma tela? Enfim, o ato processual do
interrogatório é importante demais para ser banalizado e relegado ao singelo
contato dos maquinários da tecnologia. [...] (2008, p. 406-407)
Daí se concordar com a opinião de Aury Lopes Júnior, no sentido de que:
É elementar que a distância da virtualidade contribui para uma absurda
desumanização do processo penal. É inegável que os níveis de indiferença (e
até crueldade) em relação ao outro, aumentam muito quando existe uma
distância física (virtualidade) entre os atores do rito judiciário.
[...]
Se uma das maiores preocupações que temos hoje é com o resgate da
subjetividade
e
do
próprio
sentimento
no
julgar
(sentenciar=sententiando=sentire), combatendo o refúgio na generalidade da
função e o completo afastamento do eu, o interrogatório on-line é um imenso
retrocesso civilizatório [...] (2005, p. 82-83)
Com efeito, pode-se observar que, de uma forma geral, os argumentos que resistem à
adoção indiscriminada da videoconferência em interrogatórios coadunam-se com uma visão
humanista do processo penal, em que o réu é tido como verdadeiro sujeito de direitos.
Não se pode, de fato, perder de vista que o processo penal foi instituído como um
sistema de garantias contra o arbítrio do Estado, em favor do cidadão, frente à natural
discrepância de forças característica dessa relação. Do que se extrai a pertinência das
colocações de Ana Sofia Schmidt de Oliveira:
A análise profunda da questão [interrogatório on-line] revela, porém, que a
oposição a tal inovação não é fruto de um romantismo bucólico nem de
infundada turrice.
[...] as formas tem sua razão de ser. Não se pode pretender arrancar delas o
49
significado que carregam. Confundir formalismos despidos de significado
com significados revestidos de forma é um risco que se deve evitar. (2006, p.
20 e 22)
Na tentativa de afastar a realidade até aqui retratada, valem-se os defensores do
interrogatório por videoconferência de argumentos significativamente mais frágeis.
Ronaldo Batista Pinto ressalta a possibilidade de os tribunais alterarem as sentenças,
em grau de recurso, valendo-se tão-somente da letra fria da transcrição dos interrogatórios,
sem que os desembargadores tenham mantido qualquer contato visual com o réu (2008, p.
218).
Em que pese a opinião do respeitável autor, tal argumento não resiste a uma análise
mais acurada. Não há como olvidar que, na situação narrada, proporcionou-se ao réu, no
primeiro grau de jurisdição, o exercício de sua ampla defesa, tanto técnica quanto pessoal,
mediante a regular realização de interrogatório com a presença do magistrado competente.
O simples fato de o tribunal não precisar, ao reformar uma decisão de instância
inferior, repetir o interrogatório do réu, não afasta a necessidade de que este seja efetivado
perante o juiz natural da causa, com a observância de todas as garantias a que faz jus o
acusado. Mais: o grifo em questão deve-se ao fato de que, ao menos no que tange aos recursos
de apelação, por expressa dicção do artigo 616 do CPP, caso entenda necessário, “poderá o
tribunal, câmara ou turma proceder a novo interrogatório do acusado, reinquirir
testemunhas ou determinar outras diligências.”
Em idêntica empreitada, no sentido de mitigar a necessidade da presença física do
réu ante o magistrado, argumenta Vladimir Aras:
No sistema do CPP, “comparecer” nem sempre significa ir à presença física
do juiz, ou estar, ou estar no mesmo ambiente que este. Comparece aos autos
ou aos atos do processo quem se dá por ciente da intercorrência processual,
ainda que por escrito, ou quem se faz presente por meio de procurador, até
mesmo com a oferta de alegações escritas [...]
Se é assim, pode-se muito bem ler o “comparecer” do art. 185 do CPP,
referente ao interrogatório, como um comparecimento remoto, mas direto,
atual e real, perante o magistrado. (2008, p. 289)
Embora se entenda aceitável o argumento apresentado, não parece ser a melhor
interpretação a ser conferida ao termo “comparecer” previsto no artigo 185. Ao menos não
como regra, embora seja admissível, como de fato foi considerada, ao serem previstas em lei
hipóteses em que o interrogatório por videoconferência é aceito. O que não se entende
prudente é que a exceção se torne a regra, por todos os argumentos já expostos, que
demonstram a grande valia da interação presencial entre réu e juiz.
50
3.4.3
Da observância do contraditório e da ampla defesa
Como esclarecem Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio
Magalhães Gomes Filho:
Ao estabelecer o princípio da proteção judiciária, dispondo que “a lei não
excluirá da apreciação do poder judiciário lesão ou ameaça a direito” (art.
5.º, XXXV, da CF), a Constituição eleva a nível constitucional os direitos
de ação e de defesa, face e verso da mesma medalha. E mais: dá conteúdo
a esses direitos, pois não se limita a permitir o acesso aos tribunais, mas
assegura também, ao longo de todo o iter procedimental, aquele conjunto de
garantias constitucionais que, de um lado, tutelam as partes quanto ao
exercício de suas faculdades e poderes processuais e, de outro, são
indispensáveis ao correto exercício da jurisdição: trata-se das garantias do
“devido processo legal” (art. 5.º, LIV, da CF)
Passando a especificar analiticamente tais garantias, a Constituição assegura
aos litigantes e aos acusados em geral o contraditório e a ampla defesa, com
os meios e recursos a ela inerentes (art. 5.º, LV, da CF). Defesa e
contraditório estão indissoluvelmente ligados, porquanto é do contraditório
(visto em seu primeiro momento, da informação) que brota o exercício da
defesa; mas é essa – como poder correlato ao de ação – que garante o
contraditório. (2004, p. 89-90, grifou-se)
Embora seja absolutamente estreita a ligação entre contraditório e ampla defesa,
ambos não se confundem, como explicita Eugênio Pacelli de Oliveira:
Embora ainda haja defensores da idéia de que a ampla defesa vem a ser
apenas o outro lado ou a outra medida do contraditório, é bem de ver que
semelhante argumentação peca até mesmo pela base.
É que, da perspectiva da teoria do processo, o contraditório não pode ir
além da garantia de participação, isto é, da garantia de a parte poder
impugnar – no processo penal, sobretudo a defesa – toda e qualquer
alegação contrária ao seu interesse, sem, todavia, maiores indagações
acerca da concreta efetividade com que se exerce aludida impugnação.
Enquanto o contraditório exige a garantia de participação, o princípio
da ampla defesa vai além, impondo a realização efetiva desta
participação, sob pena de nulidade, se e quando prejudicial ao acusado.
(2009, p. 34-35, grifou-se)
Observação relevantíssima, pois o interrogatório por videoconferência permite, de
fato, que o réu tome contato com todos os atos e termos da audiência de instrução e
julgamento, de forma a poder contraditá-los, razão pela qual se entende absolutamente
preservada tal garantia.
51
É, portanto, no que tange à ampla defesa, ou melhor, à sua efetiva implementação,
que se concentra grande parte das discussões quanto à constitucionalidade do interrogatório
on-line. Em especial sob o enfoque, absolutamente acertado, de que incumbe ao Estado “o
dever de proporcionar a todo acusado a mais completa defesa, seja pessoal, seja técnica”
(FEITOZA, 2009, p. 143).
Na opinião de Pacelli (2009, p. 36), “a ampla defesa realiza-se por meio da defesa
técnica, da autodefesa, da defesa efetiva e, finalmente, por qualquer meio de prova hábil a
demonstrar a inocência do acusado.”
A defesa técnica é aquela desenvolvida por profissional devidamente inscrito nos
quadros da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que, em favor do acusado, manifesta-se
nas diversas oportunidades que integram o iter processual, via de regra por escrito, mas
também, de viva voz.
A autodefesa, por sua vez, como se infere da própria designação, consiste na
desenvolvida pelo próprio réu, por ocasião do interrogatório, que, como visto, consiste na
única oportunidade que lhe é conferida para dialogar diretamente com o magistrado. Logo, é o
centro das ponderações acerca da viabilidade de utilização da videoconferência.
Ao fazer menção à defesa efetiva, quis o doutrinador, por sua vez, salientar a
importância de que ambas fossem substancialmente realizadas, podendo o réu, para tanto,
segundo entendimento doutrinário a que adere, valer-se inclusive de prova maculada por
alguma espécie de vício, desde que seja a única capaz de demonstrar a sua inocência.
Ainda no que tange à autodefesa, cumpre salientar a observação retirada da obra As
nulidades no Processo Penal, no sentido de que compreende dois aspectos:
[...] o direito de audiência e o direito de presença. O primeiro traduz-se na
possibilidade de o acusado influir sobre a formação do convencimento do
juiz mediante o interrogatório. O segundo manifesta-se pela oportunidade de
tomar ele posição, a todo momento, perante as alegações e provas
produzidas, pela imediação com o juiz, as razões e as provas.
(FERNANDES; GOMES FILHO; GRINOVER, 2004, p. 93)
Esclarecidos tais conceitos, vale ressaltar que as reformas implementadas no Código
de Processo Penal nos últimos anos, por meio das Leis n. 10.792/2003 e 11.719/2008,
conforme analisado anteriormente, acabaram por fortalecer o princípio da ampla defesa.
Cabe, aqui, efetuar uma breve recapitulação dos principais dispositivos envolvidos, a
saber, as novas redações dos artigos: 185, caput e parágrafos 1º e 5º (que exigem a presença
do advogado durante o interrogatório); do parágrafo único do artigo 186 (que veda a
interpretação do silêncio do interrogando em prejuízo da defesa); 187, parágrafo 2º, inciso
52
VIII (que prevê a necessidade de perguntar-se ao interrogando se tem algo mais a alegar em
sua defesa; 189 (que faculta ao réu a apresentação de provas a respeito de elementos da
acusação cuja veracidade tenha negado); além, é claro, da revogação do teor original do artigo
191 (que previa a necessidade de consignação em ata dos questionamentos não respondidos
pelo réu) e da nova sistemática introduzida pelo artigo 400 (audiência una de instrução e
julgamento).
Quanto ao interrogatório por videoconferência propriamente dito, nas hipóteses em
que é admitido, o legislador, ao elaborar o artigo 185, certamente buscou garantir a
observância da ampla defesa ao prever: (i) a necessidade de que as partes sejam cientificadas
da adoção desse método com dez dias de antecedência (§ 3º); (ii) a possibilidade de o réu
acompanhar os demais atos da audiência una de instrução e julgamento por meio de
videoconferência (§ 4º) e (iii) de entrevistar-se prévia e reservadamente com seu defensor,
além de garantir-lhe acesso a canal telefônico isolado para contatar o advogado que esteja
representando seus interesses na sede do juízo (§ 5º).
Há, inclusive, aqueles que argumentam ter sido a ampla defesa favorecida pela
possibilidade de os réus virem a ser ouvidos nas dependências do estabelecimento prisional,
sem que tenham que se sujeitar às precárias condições com que em geral são escoltados até o
fórum. Assertiva que se extrai da obra de Denílson Feitoza:
Pelo contrário, a ampla defesa pode sair fortalecida, no caso concreto. Muita
coisa pode afetar a segurança e o ânimo do réu preso, durante o transporte do
estabelecimento prisional ao juízo, e o juiz pode estar inviabilizado de ir ao
estabelecimento prisional. Há estabelecimentos prisionais (como algumas
modernas penitenciárias já em funcionamento) em que o réu se encontra
mais tranqüilo e seguro para dizer o que desejar, do que se sujeitando a um
transporte inseguro. (2009, p. 747)
Quanto às condições do translado dos réus aos fóruns, asseveram Marco Antônio de
Barros e César Eduardo Lavoura Romão:
Todos sabem que, durante sua condução física ao fórum, o réu sofre vários
constrangimentos. Essa triste realidade, que atinge a quase totalidade dos
réus presos, pode ser narrada da seguinte maneira. De início destaca-se que
seu deslocamento é feito logo que o dia amanhece e antes do desjejum dos
presos, ou seja, o réu é levado para a audiência só com o alimento do dia
anterior. Em seguida, durante o trajeto, segundo reclamam a maioria dos
conduzidos, as humilhações são constantes, e os condutores fazem questão
de ver o preso “sacudindo” na “gaiola” do veículo, já que não faltam
lombadas, buracos e curvas percorridas em alta velocidade. Depois de ser
transportado em veículo fechado e sem ventilação, balançando de um lado
para o outro, o réu chega ao fórum e aguarda muitas horas para ser visto pelo
juiz que o interrogará. Frise-se, sem alimentação, pois também não lhe é
servido qualquer tipo de alimento.
53
Se tal será o único momento em que o juiz analisará a personalidade do réu,
este indivíduo não deveria ser submetido a esse estresse. [...] (2006, p. 122)
Embora a rotina paulista, acima retratada, não possa ser adotada como parâmetro
para todo o País, dadas as significativas discrepâncias entre as realidades das diversas regiões
de nosso território, tais argumentos devem ser levados em consideração, no caso concreto,
ante a possibilidade de afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana, como na hipótese
relatada.
A contrário senso, inúmeros são os doutrinadores que vislumbram afrontas ao
princípio da dignidade da pessoa humana e da ampla defesa pelo fato do réu ter que
permanecer dentro do estabelecimento prisional ao prestar o interrogatório por
videoconferência, a teor do que dispõe o parágrafo 6º do artigo 185.
Acerca do tema, cumpre salientar a visão de Guilherme de Souza Nucci:
[...] Ele [o réu] pode querer fazer alguma denúncia de maus-tratos ou de
tortura (fará essa acusação estando dentro da cadeia, sob a fiscalização das
autoridades penitenciárias?); pode desejar sentir a posição do Juiz para saber
se vale a pena confessar ou não (algo que somente o contato humano pode
avaliar); pode ter a opção de contar ao interrogante alguma pressão que
sofreu ou que esteja sofrendo para dizer algo que não deseja (de outro preso,
por exemplo, pleiteando inclusive a mudança de sela ou de presídio), entre
outras tantas hipóteses possíveis. Subtrair do réu essa possibilidade,
colocando-o de um lado da linha telefônica, enquanto o juiz fica do outro, é
ferir de morte os princípios do devido processo legal [hoje, há previsão legal
do interrogatório por videoconferência] e da ampla defesa. (1997, p. 229)
Confrontando as duas realidades, verifica-se que, quanto à adoção do interrogatório
por videoconferência, hoje expressamente previsto em lei, cabe ao magistrado, ao advogado
do réu e ao representante do Ministério Público ponderarem, de acordo com o caso concreto, a
respeito da efetiva necessidade e plausibilidade de adoção da medida. Opção fornecida pelo
legislador, ao prever, no caput do artigo 185, a possibilidade de que a adoção da
videoconferência seja solicitada por qualquer das partes.
De todo modo, ressalvadas situações excepcionais, consoante salientado, entende-se
indispensável a presença física do interrogando perante o magistrado. Partindo-se de uma
visão humanista do processo, em que o réu é considerado sujeito de direitos, e da noção de
interrogatório como meio de defesa, não há como conceber a mitigação da autodefesa
decorrente da separação física entre o magistrado e o réu.
54
3.5
DA ADEQUAÇÃO DOS PARÁGRAFOS 2º A 6º DO CÓDIGO DE PROCESSO
PENAL À NATUREZA JURÍDICA DO INTERROGATÓRIO
Consoante demonstrado, muito embora o interrogatório encontre-se disciplinado no
Capítulo III do Título VII do Código de Processo Penal, que versa sobre os meios de prova, a
medida que o direito ao silêncio foi alçado ao status de garantia constitucional do réu e, em
especial, após as inúmeras alterações introduzidas pelas leis n. 10.792/2003 e 11.719/2008,
pormenorizadamente analisadas, há que atribuir a natureza jurídica de meio de defesa ao ato
processual em questão.
Representa, portanto, verdadeiro recurso para a observância da garantia da ampla
defesa, prevista no artigo 5º, LV, da Constituição Federal, da qual sua análise não pode ser
dissociada.
Considerando-se, portanto, consistir o interrogatório na única oportunidade
conferida ao réu para dialogar diretamente com o magistrado, ocasião singular em que pode
optar por exercer a autodefesa; a despeito de todas as garantias introduzidas pela Lei n.
11.900/2009 no artigo 185 do CPP, entende-se imprescindível que a interação entre ambos se
dê da forma mais direta e irrestrita possível, sob pena de mitigar-se a garantia da ampla
defesa. Mitigação que pode ser apreciada tanto em termos materiais (contato não presencial,
efetuado por meio da simples projeção de sons e imagens) quanto psicológicos (eventual
desestímulo a prestar suas declarações com a mesma veemência em virtude do maior
distanciamento e frieza característicos dessa modalidade de interrogatório).
Fato reconhecido implicitamente pela Lei n. 11.900/2009 ao circunscrever o
interrogatório por videoconferência a situações excepcionais, de forma a conciliar questões de
política criminal, como a necessária garantia da segurança social com os direitos e garantias
do próprio réu.
Atento ao fato de constituir o direito penal em verdadeiro instrumento de garantia
das liberdades e bens jurídicos dos cidadãos frente à atuação do Estado, e não de opressão, o
legislador buscou resguardar, mesmo nas situações excepcionais em que o interrogatório online é admitido, a mais ampla defesa possível ao réu. Conclusão que decorre da análise dos
parágrafos 2º ao 6º do artigo 185 do CPP.
Cabe agora aos operadores do Direito não descurarem de tais parâmetros ao
conferirem os contornos exigidos, no caso concreto, à expressão “ordem pública”, prevista no
parágrafo 2º, inciso IV, do artigo em apreço. Medida essencial para evitar que, de situação
55
excepcional, transforme-se o interrogatório por videoconferência em verdadeira regra.
Entende-se,
portanto,
adequada
à
natureza
jurídica
do
interrogatório
a
regulamentação introduzida aos parágrafos 2º a 6º do Código de Processo Penal pela Lei n.
11.900/2009.
56
4
CONCLUSÃO
O presente trabalho abordou a compatibilidade existente entre a natureza jurídica do
interrogatório e o recurso de videoconferência nos moldes em que foi introduzido nos
parágrafos 2º a 6º do artigo 185 do Código de Processo Penal por meio da Lei n. 11.900/2009.
Tratou-se, inicialmente, de aspectos relacionados à teoria da prova, com o escopo de
demonstrar a relevância que as provas conferem ao direito processual penal, por
representarem o substrato que embasa a convicção judicial.
Na ocasião, foram estabelecidas, ainda, distinções conceituais indispensáveis para a
plena compreensão das divergências existentes quanto à natureza jurídica do interrogatório, a
exemplo das noções de fonte, meio e elemento de prova.
Apreendidos tais conceitos, essenciais para a investigação do acerto da corrente
doutrinária que atribui ao interrogatório a feição de meio de prova, passou-se ao estudo dos
argumentos que lhe são favoráveis. De fato, demonstrou-se ter sido essa a conformação
atribuída ao interrogatório pela redação original do Decreto-Lei n. 3.689, de 3 de outubro de
1941. Opção que, além de constar expressamente da exposição de motivos do CPP, podia ser
facilmente apreendida da redação original de diversos dos seus dispositivos.
Entendimento doutrinário que se demonstrou ter sido significativamente abalado pela
entrada em vigor da Constituição Federal, ao instituir como garantia do réu o direito ao
silêncio, e, posteriormente, por sucessivas alterações legislativas.
No ano de 2003, como verificado, a Lei n. 10.792 não só transpôs para a legislação
infraconstitucional, de forma inequívoca, o direito do acusado de permanecer calado durante
o interrogatório, como obstou que do seu silêncio pudesse advir qualquer prejuízo à defesa.
Foi também responsável pela revogação do artigo 191, além de ter induzido o exercício da
autodefesa, ao determinar que o réu fosse questionado sobre informações adicionais de que
pudesse dispor em benefício próprio. Estabeleceu, por fim, a necessidade de que estivesse
acompanhado por seu defensor durante o interrogatório.
Não menos importante para corroborar a feição de meio de defesa do ato processual
em questão foi a Lei n. 11.719/2008, ao reestruturar os atos que integram a audiência de
instrução e julgamento, que passou a ser una.
Diferentemente do que ocorria até então, deixou o interrogatório de representar, de
ordinário, o primeiro ato processual que se seguia ao recebimento da denúncia e à citação,
para figurar como um dos últimos da audiência una de instrução e julgamento. O réu passou,
57
assim, a ocupar situação mais confortável, de verdadeiro espectador do desenrolar do
processo. Eliminou-se o elemento surpresa. Somente após ter tomado contato com toda a
produção da prova e, portanto, desde logo ciente da totalidade dos fatos apurados é que
exercitará, querendo, sua autodefesa.
Argumentos com base nos quais se chegou à primeira conclusão deste trabalho, que a
natureza jurídica do interrogatório é de meio de defesa, embora das declarações
eventualmente prestadas possam advir fontes de prova, cuja corroboração se faz necessária
por seu confronto com os demais elementos coligidos.
Esclarecida sua natureza jurídica, foi pormenorizadamente analisado o teor do artigo
185 do CPP, ocasião em que se demonstrou o caráter excepcional com que o interrogatório
por videoconferência foi admitido pelo diploma processual penal.
A par da regulamentação em vigor, foram então apreciados os argumentos
favoráveis e contrários à adoção do interrogatório por videoconferência.
Muitos são, como demonstrado, os argumentos favoráveis à sua adoção, a exemplo
da celeridade conferida à prestação jurisdicional, da economia de recursos públicos e da
contribuição para a manutenção da segurança social por meio do remanejamento de recursos
materiais e pessoais envolvidos nas escoltas dos presos a juízo. Não se tendo sequer
verificado significativa afronta ao princípio da publicidade.
Argumentos de ordem prática que não prevaleceram, contudo, quando confrontados
com as garantias constitucionais de que dispõe o réu, em especial a da ampla defesa,
integrada, em parte, pela autodefesa facultada ao interrogando. Faculdade substancialmente
mitigada pela adoção da videoconferência que, como constatado, estabelece maior
distanciamento físico e psicológico entre réu e magistrado.
Privilegiou-se, portanto, uma visão humanista do processo penal, por ter sido
instituído justamente como um sistema de garantias do cidadão contra o arbítrio do Estado, e
não mero mecanismo de repressão.
Contexto em razão do qual se entendeu necessária a presença física do réu perante o
magistrado ao ser interrogado. Oportunidade única de que dispõe para dirigir-se diretamente
ao juiz, com ele dialogar e retratar sua visão dos fatos, independentemente de quaisquer
intermediários.
Por fim, concluiu-se serem compatíveis a sistemática adotada pelo Código de
Processo Penal em relação ao interrogatório por videoconferência e a natureza jurídica do ato
em questão, qual seja, de meio de defesa, tão-somente em razão da excepcionalidade que lhe
foi atribuída. Nítida tentativa do legislador de conciliar os direitos do réu à necessidade de
58
segurança social.
Impõe frisar, contudo, que não se é de qualquer forma avesso aos avanços
tecnológicos incorporados ao sistema judiciário, em especial no que diz respeito à
videoconferência, recurso tecnológico absolutamente proveitoso no que tange aos meios de
prova.
Embora não integre diretamente o objeto do presente trabalho, há que salientar
entender-se de todo elogiável sua aplicação às acareações, reconhecimento de pessoas e coisas
e demais hipóteses previstas no parágrafo 8º do artigo 185 do CPP. O que se pondera, no
presente trabalho, é sua aplicação em relação a um meio de defesa, do qual, embora possam
resultar fontes de prova, não possui como finalidade precípua a obtenção dessa, mas sim a
defesa do acusado.
De fato foi o considerável interesse que se tem quanto aos avanços proporcionados
pelo recurso da videoconferência que motivou a escolha do presente tema, pois de tão
conflituoso, dadas as significativas benesses que lhe acompanham, anteriormente
mencionadas, foi necessário o desenvolvimento de um estudo aprofundado para formular-se
uma concreta opinião quanto à viabilidade de sua utilização no que tange ao interrogatório. O
que, frisa-se, entende-se cabível em caráter de exceção, como um instrumento para conciliar
os reclamos da sociedade aos interesses do réu.
59
5
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