O discurso acadêmico sobre
língua e linguagem na internet
Benedito Gomes Bezerra1 (UPE)
Resumo:
A disseminação crescente de novas TIC tem trazido como consequência a
instauração de novas práticas discursivas. A internet, particularmente, tem
sido vista como instauradora de uma linguagem própria que muitas vezes é
vista como uma ameaça à integridade da língua portuguesa. O objetivo do
trabalho é refletir sobre os sentidos construídos pelo discurso científico
acerca da linguagem na/da internet. Analisam-se 10 artigos científicos
publicados entre 2007-2011, colhidos em anais de eventos e periódicos de
letras e áreas afins. Os resultados revelam temores sobre a decadência da
língua e sobre uma possível interferência da “linguagem da internet” sobre
a escrita formal, além de equívocos na caracterização do “internetês”.
Palavras-chave: Língua/linguagem, internetês, discurso acadêmico.
Abstract:
The increasing spread of new ICT has brought as a consequence the
establishment of new discursive practices. The internet in particular has
been seen as creating a language of its own, which is often seen as a
threat to the integrity of the Portuguese language. The objective of this
work is to reflect on the meanings constructed by scientific discourses on
language in the internet. It analyzes 10 papers published from 2007 to
2011, collected in conference proceedings and journals on language and
related areas. Results reveal fears about the decline of the language and
of a possible interference of the "language of the internet" on formal
writing, as well as misconceptions in the characterization of "Netspeak".
Key-words: Language, Netspeak, academic discourse.
Introdução
A instauração de novas práticas discursivas constitui uma das implicações mais
óbvias e incontornáveis das novas tecnologias de informação e comunicação. No
1
Benedito Gomes BEZERRA, Prof. Dr.
Universidade de Pernambuco
Campus Garanhuns
[email protected]
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contexto
brasileiro,
a
internet, particularmente, muitas
vezes
tem
sido
considerada como geradora, detentora e disseminadora de uma linguagem própria,
exatamente por isso rotulada de modo genérico como “a linguagem da internet”,
inclusive em trabalhos científicos apresentados em eventos e periódicos
especializados.
A “linguagem da internet”, assim homogeneizada e naturalizada, não poucas
vezes é vista e descrita como uma ameaça à integridade da língua portuguesa e,
portanto, encarada como algo diferente e oposto a esta. Seria, pois, algo como
uma nova linguagem ou antes uma nova língua que, para se instaurar, ameaçaria
usurpar o locus social determinado para a existência e o funcionamento da língua
portuguesa. Independentemente da ausência de suporte científico para tal forma
de pensamento, não é de hoje que se defende a ideia de que o português brasileiro
estaria sendo “assassinado a tecladas” por usuários que vêm adotando um novo
“idioma” denominado internetês.2
Chama ainda a atenção o fato de que as frequentes alusões à existência de
uma “linguagem da internet”, ao lado da concepção de que essa linguagem
constitui uma ameaça para a língua portuguesa, são encontráveis não só em
diversas instâncias e formas de manifestação do senso comum, mas também em
trabalhos científicos no âmbito dos estudos da linguagem e áreas afins3.
Diante disso, meu objetivo neste trabalho é refletir sobre e discutir
criticamente algumas falácias recorrentes em parte do discurso acadêmico
manifesto sobre a “linguagem da internet”, salientando, nesse discurso, crenças
relacionadas a uma pretensa decadência da língua portuguesa, bem como
prognósticos acerca de uma possível interferência do internetês sobre a escrita em
situações formais, além de destacar equívocos comuns na descrição desse
2
Essa forma de encarar a escrita na internet era manifesta já em 2005 por Deonísio da Silva em artigo amplamente referido e
disseminado na Web, intitulado “Novilíngua: português assassinado a tecladas”, ao qual faremos ocasionais referências ao
longo deste trabalho. Referências a esse artigo foram feitas recentemente em discussão sobre o internetês realizada por Melo
& Bezerra (2011).
3
Para um estudo que se concentrou não só no discurso acadêmico, mas também em exemplos da mídia e das redes sociais,
consultar Bezerra (2013).
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fenômeno. O internetês será aqui tratado simplesmente como uma nova, mas não
absolutamente inédita, variedade escrita de uso da língua portuguesa 4, que se
constitui paralelamente à escrita e à ortografia oficial do português brasileiro. Na
tentativa de alcançar esse objetivo, selecionei sete falácias bastante recorrentes
sobre linguagem, língua e internetês, conforme refletidas em trabalhos acadêmicos
que tomam a linguagem na internet como objeto de estudo. A discussão de cada
falácia se apoia na análise do corpus caracterizado a seguir.
Aspectos metodológicos: constituição do corpus e procedimentos
Para ilustrar a discussão proposta neste trabalho, foram examinados 10 artigos
científicos publicados entre os anos de 2007 e 2011 em anais de eventos e
periódicos da área de letras e áreas afins. A autoria dos trabalhos deve-se tanto a
estudantes como a docentes vinculados a programas de pós-graduação sediados em
diversos estados brasileiros, representativos das regiões nordeste, sudeste e sul.
Entre os eventos nos quais os trabalhos foram apresentados antes da publicação,
destacam-se o Encontro Nacional sobre Hipertexto e o Simpósio Hipertexto em suas
várias edições no período em foco. Entre os periódicos científicos, destaque-se a
Revista Hipertextus (UFPE).
O corpus foi constituído a partir da busca, nos anais do Encontro/Simpósio
Hipertexto, nos diversos números da Revista Hipertextus e no Google Acadêmico,
por artigos científicos que contivessem termos como “linguagem da internet” e
“internetês”. Após um primeiro exame dos 18 artigos coletados por esses critérios,
foram selecionados os 10 trabalhos que efetivamente ofereciam uma discussão
específica sobre a questão da língua e linguagem na/da internet.
Para fins de exemplificação no corpo do trabalho, e para evitar confusão com
as obras efetivamente citadas a título de aporte teórico, os artigos científicos que
4
Nesse sentido, minha visão se alinha com a de Dieb & Avelino (2009, p. 265).
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compõem o corpus foram rotulados sequencialmente como AC1, AC2... AC10. Além
disso, cada exemplo é acompanhado da indicação da página no respectivo artigo.
Falácia 1: A internet criou um novo idioma, a “linguagem da
internet”
Em trabalho frequentemente comentado, Deonísio da Silva (2005) afirma que
os usuários da internet teriam criado um novo idioma, que de acordo com ele se
chama de “idioma cibernético” ou “linguagem cibernética”. Para esse autor, “os
pequenos burgueses tinham internet e celular, mas não dominavam a língua
escrita. E por isso criaram a deles” (p. 13). Portanto, na ótica desse autor, o novo
“idioma” ou “linguagem” seria uma língua escrita alternativa à língua portuguesa,
criada por pessoas que não dominavam esta última. Essa visão é partilhada em
nosso corpus em trechos como o exemplificado a seguir:
Exemplo 1 (AC8, p. 103):
A internet quebrou as barreiras geográficas e culturais, e acabou criando, também, uma
linguagem universal, um código5 que, muitas vezes, só os internautas conseguem
decifrar.
Alternativamente, esse “código” muitas vezes decifrável apenas pelos
internautas pode ser nomeado como “dialeto” ou “língua da internet”, domínio ao
qual deve permanecer circunscrito, preocupação que percebemos no exemplo 2 a
seguir. Como se vê, trata-se de um “dialeto” estigmatizado, que não deve ser
utilizado para escrever algo que seja “importante”.
Exemplo 2 (AC8, p. 108):
Assim, os usuários desse dialeto devem policiar-se para não usarem a língua da internet
em trabalhos e documentos importantes.
A referência genérica e simplista a uma “linguagem da internet”, muitas
vezes significando uma língua alternativa, é bastante frequente nos artigos
5
Destaque meu, aqui e nos demais exemplos.
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científicos examinados. Embora se possa inferir que parte desses trabalhos utiliza o
termo “linguagem da internet” para designar especificamente os registros
linguísticos em uso em redes sociais, blogs, e-mails pessoais e programas de batepapo, essa ressalva não costuma ser feita. As características da linguagem utilizada
nesses ambientes costuma ser generalizada como se abrangesse todos os usos
vigentes na internet, o que obviamente não procede. Veja-se no exemplo 3:
Exemplo 3 (AC3, p. 9):
A comunicação pela internet, como dissemos, cria novos gêneros. Eles caracterizam-se por
um estilo que é marcado, de um lado, pela informalidade; de outro, pela oralidade. Essas
são as duas características mais marcantes da linguagem na Internet.
De acordo com esse exemplo, a linguagem da internet apresentaria duas
características, a informalidade e a oralidade. Uma afirmação, além de
generalizadora, paradoxal: como um registro escrito pode ter como característica a
oralidade? Infere-se que, segundo o autor, todos os gêneros da internet seriam
marcados pela oralidade e pela informalidade. Porém, o que dizer, por exemplo,
da homepage, que é sem dúvida um gênero da internet, mas usualmente não
apresenta nenhuma das características mencionadas?6
Claramente, não existe uma linguagem, e sim linguagens da/na internet, se
com isso nos referimos à diversidade de registros ou às variedades linguísticas em
uso no ambiente digital. Tratando-se de um ambiente tão diversificado, aberto a
uma impressionante diversidade enunciativa, a internet não apresenta uma
variedade linguística monolítica. Mesmo nas redes sociais ou nos bate-papos, por
exemplo, é perfeitamente possível identificar usos da linguagem que não se
enquadram nas características do internetês. Igualmente, o internetês não é um
conjunto estanque de usos uniformizados, mas apresenta ele mesmo certa
diversidade, como o chamado miguxês, variedade estigmatizada inclusive por
usuários do internetês, pela sua relação com determinadas “tribos” urbanas.
6
Exemplos da análise da homepage como gênero encontram-se em Askehave & Nielsen (2004) e Bezerra (2007).
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Portanto, a internet não “criou” uma nova linguagem, mas provavelmente
contribuiu para o surgimento de algumas, além de conferir visibilidade a outras que
já existiam. A meu ver, nenhuma dessas linguagens pode ser identificada como uma
nova língua, nem mesmo com “uma língua ainda em construção”, como defende
Rajagopalan (2013, p. 45). Antes, concordo com o posicionamento de Ávila & Cox
(2008, p. 421), para quem “não se trata de uma nova língua, pois tanto a produção
quanto a compreensão dos enunciados têm por referência uma língua materna
compartilhada pelos internautas”. A “linguagem da internet” constitui, portanto,
um conjunto de variedades escritas do português brasileiro, conjuntos de usos que
evidenciam a heterogeneidade da língua.
Falácia 2: A linguagem da internet é uma língua escrita oralizada
Primeiramente, se admitirmos o internetês como “a” linguagem da internet,
conforme pressuposto pelos defensores da falácia anterior, ainda assim haverá
algumas considerações a fazer. Há dois motivos principais por que o internetês não
deve ser compreendido como uma língua escrita: o primeiro é que, como afirmado
anteriormente, o internetês em si não é uma língua, mas uma variedade de uso, no
nosso caso, da língua portuguesa7. O segundo motivo é que a escrita, mesmo a
escrita de acordo com a convenção ortográfica oficial para o português brasileiro,
também não é uma língua. A escrita, como ressalta com muita propriedade
Marcuschi (2001), é uma representação da língua, como a fala é uma representação
da língua. Quando nos referimos, a meu ver impropriamente, a uma “língua
escrita”, nos referimos mais exatamente à representação escrita da língua, pois
não existe uma língua escrita e uma língua oral ou falada, mas apenas
7
O fenômeno do internetês também atinge outros idiomas utilizados na internet. Assim, o internetês, chamado de Netspeak por
David Crystal, igualmente se configura como uma variedade escrita de uso do inglês na internet (ver entrevista com o autor em
Shepherd & Saliés, 2013). Adicionalmente, o internetês recebe denominações diversas em inglês, tais como weblish, netlingo,
e-talk, tech-speak, wired-style e geek-speak (RAJAGOPALAN, 2013, p. 50), que em parte evidenciam estigma também nesse
idioma.
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representações escritas e orais/faladas da mesma língua, neste caso o português
brasileiro.
Em segundo lugar, cumpre questionar a qualificação do internetês como uma
língua escrita “oralizada”, o que aliás se tornou um lugar comum. Veja-se, a
propósito disso, a seguinte passagem de um artigo de nosso corpus:
Exemplo 4 (AC4, p. 5):
No internetês [...] não há a distinção fala/escrita, uma vez que é uma escrita oralizada,
ou seja, se transcreve os fonemas tais quais são usados na fala: [bri’gadu] – obrigado.
Trata-se de uma escrita virtual, uma fala digitalizada e cifrada, ou seja, uma linguagem
repleta de caracteres codificados de âmbito alfanumérico.
Trata-se de uma grande confusão e de uma enorme imprecisão terminológica.
Como se configuraria uma variedade linguística em que não houvesse distinção
entre a fala, realizada através de recursos fônicos, e a escrita, realizada por meio
de recursos visuais, sejam eles recursos gráficos ou digitais/virtuais? A meu ver, o
que temos, como um dos traços do internetês, é a simulação, mais intensa do que
em outras formas de escrita, de recursos da oralidade, mas não temos aí a
oralidade em si. No internetês, como variedade escrita da língua, evidentemente
não temos sons da fala, característica necessária para a realização da oralidade. O
que temos, como de resto em qualquer modalidade de escrita, são as chamadas
marcas ou influências da oralidade, que levam à criação de recursos enunciativos
diversos no internetês. No entanto, o uso desses recursos pode ser mal
compreendido:
Exemplo 5 (AC7, p. 48):
A linguagem da Internet reflete o desejo de aproximar cada vez mais a linguagem escrita
da linguagem oral. Uma demonstração dessa redução das palavras são é o uso de palavras
como pq, vc, kd, tb, hj, fds, flw.
Como se observa, o autor do artigo interpreta como sintoma da suposta
“aproximação” entre linguagem escrita e linguagem oral o fenômeno da “redução
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de palavras”, embora não seja possível demonstrar que relação teriam as
abreviações elencadas com o domínio da oralidade.
Falácia 3: A linguagem da internet não obedece às regras
gramaticais
Ao contrário do que muitos parecem pensar, na maioria das vezes a linguagem
efetivamente utilizada na internet é formada principalmente por uma norma culta
que pensa (ou se esforça para) representar a norma padrão, e não por normas
desviantes que podem ser acusadas de “assassinar” a língua portuguesa. É o caso
da linguagem utilizada em sites empresariais diversos, sites de universidades e
grandes portais da internet, entre outras possibilidades da rede. São muitos os
exemplos de sites em que o “desrespeito” às normas da gramática tradicional e à
ortografia oficial não é tolerado, exatamente como nas instâncias convencionais de
uso da língua8.
Entretanto, excluída essa internet “séria”, em cujo espaço enunciativo existe
a expectativa de uso da norma padrão (obviamente uma utopia, já que esta não é
uma
variedade
real
da
língua
portuguesa,
mas
uma
abstração) 9,
pesa
frequentemente sobre o internetês a acusação de que não se preocupa com as
normas gramaticais.
Exemplo 6 (AC9, p. 4):
Em relação à linguagem utilizada, a primeira atitude do internauta é fugir tanto quanto
possível das rígidas normas da língua escrita [...] Pode-se dizer que a despreocupação
com as regras gramaticais e a informalidade fazem das mensagens que os internautas
trocam entre si uma simulação quase perfeita da língua falada.
Em um esforço para manter o pacto cooperativo de que falou H. P. Grice,
talvez possamos entender as “normas gramaticais” acima referidas como as regras
8
Talvez por isso mesmo, uma análise comparativa entre registros pré-internet e da internet leva Berber Sardinha (2013, p. 74)
a concluir que, ao contrário do que supõe o senso comum, “há semelhanças marcantes entre registros virtuais e não virtuais”.
9
Acerca disso, conferir, entre outras referências, Bagno (2007).
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da gramática tradicional, incapazes de fazer justiça às normas da gramática da
língua portuguesa, dado o seu caráter prescritivista. Nesse sentido, o internetês
realmente nem sempre se enquadra como uma escrita “regrada”. É necessário
recordar, conforme Rajagopalan (2013, p. 48), que “o internetês é, antes de tudo,
um linguajar que está evoluindo sem a supervisão ou o controle de nenhum órgão
fiscalizador”.
No entanto, o internetês, como qualquer outra variedade de uso (falado ou
escrito) da língua portuguesa, só poderia ocorrer se regido por normas. É um
contrassenso imaginar alguma possibilidade de comunicação sem a obediência à
gramática, aqui entendida como o conjunto de possibilidades e restrições
combinatórias próprias de uma determinada língua. O internetês, como as demais
variedades de uso da língua, se orienta por normas criadas, mantidas ou
modificadas pelos próprios usuários no curso da interação. A presença de regras no
internetês é evidente. Por exemplo, o usuário pode abreviar você como vc, mas
nunca como oê. Ou seja, a norma determina que as vogais podem ser omitidas, mas
não as consoantes.
Nesse aspecto, concordamos com Rajagopalan (2013, p. 51) quando defende
que “é preciso também rechaçar a alegação de que o internetês ameaça se tornar
uma terra de ninguém, onde tudo vale”, pois também no internetês “há regras
rigorosas que nos desafiam e, com frequência, nos enganam a ponto de acreditar
que tudo se passa a bel-prazer de quem dele participa”.
Falácia 4: A linguagem da internet revela uma capacidade cognitiva
limitada
Outra falácia amplamente disseminada sobre a língua e seus usuários é que a
utilização da linguagem da internet afetaria a inteligência das pessoas ou seria já
um sintoma de problemas cognitivos. Para ilustrar esse ponto, veja-se o exemplo
mais extenso reproduzido a seguir:
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Exemplo 7 (AC2, p. 2):
Acreditamos que esse público, ao utilizar cada vez mais a internet para se comunicar,
principalmente os chats, aos poucos vai ficando com seu raciocínio limitado, já que o
discurso utilizado nas salas de bate-papo caracteriza-se por frases curtas e abreviações,
sendo que a utilização frequente dessa linguagem pode interferir nas produções realizadas
pelos adolescentes na sala de aula.
Obviamente, os autores do trabalho acima não informam quais são as
pesquisas científicas que lhes fornecem as bases para essa convicção. Na verdade,
trata-se, como eles reconhecem implicitamente, de uma crença (“acreditamos”) e
não de evidência científica. Outros autores igualmente manifestam essa crença
sobre uma pretensa relação entre o uso da linguagem da internet (leia-se
internetês) e um “raciocínio limitado”. De acordo com Silva (2005, p. 14), “com o
glossário presente nas mensagens instantâneas do ICQ, do Messenger e dos
torpedos, não é possível pensar”.
Contrariamente a essa visão, me parece claro que o internetês, longe de
aceitar um “raciocínio limitado” por parte de seus usuários, representa antes uma
exigência cognitiva adicional em relação ao uso exclusivo da escrita formal. Nos
termos de Ávila & Cox (2008, p. 420), o internetês consiste em “um agenciamento
de sistemas gráficos que, pressupondo uma competência comunicativa altamente
sofisticada, vale a pena ser estudado e compreendido e não posto à parte
levianamente como português ruim”. A escrita em internetês é, ademais, uma
habilidade ou competência ao lado da escrita em conformidade com a ortografia
oficial, e não um substituto para esta última. Há bem mais versatilidade e
competência comunicativa em adolescentes, jovens e demais usuários que são
capazes de usar, de acordo com as distintas situações de interação, ou o internetês
ou a escrita formal do português, do que em usuários que somente aprenderem a
escrever “de acordo com as regras”. Esses últimos jamais poderão participar com
competência de um chat, situação em que a escrita convencional não atende às
expectativas de comunicação.
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Falácia 5: A linguagem da internet leva à deformação da língua
portuguesa
Aqui encontramos, subjacente a essa ideia sobre a linguagem da internet, a
persistente falácia alarmista da língua ameaçada e em decadência. Fiorin (2008)
menciona a matéria da revista Veja de 12 de setembro de 2007, em que o
jornalista Jerônimo Teixeira manifesta a crença de que “a internet leva a uma
deformação do idioma”. A concepção representada pelo jornalista defende que a
língua entra em decadência em virtude de agressões por parte dos seus usuários. A
propósito disso, recordemos Silva (2005), que fala em “português assassinado a
tecladas”. Esse “português assassinado” corresponderia a uma modalidade “pura”
da língua, ameaçada por usos deformados e deformadores instaurados pela/na
internet, de acordo com a seguinte pressuposição:
A imagem de degradação da escrita (e, por extensão, a da língua) pelo uso
da tecnologia digital advém do pressuposto de que há uma modalidade
escrita pura, associada seja à norma culta padrão, seja à gramática
prescritiva, seja à imagem de seu uso por autores literários consagrados
(KOMESU, 2006, p. 427).
A variação e a mudança linguísticas são vistas, nesse caso, como degeneração
da língua. Contrariamente a isso, a variação e a mudança linguísticas não refletem,
do ponto de vista científico, nem degeneração (mudança para pior) nem evolução
no sentido popular de mudança para melhor. Como lembra Fiorin (2008, p. 2), o
linguista brasileiro Mattoso Câmara mostra que o termo evolução, quando
empregado nos estudos da linguagem desde Ferdinand de Saussure, refere-se
apenas a mudanças coerentes e graduais, sem embutir qualquer juízo de valor
sobre uma eventual qualidade dessas mudanças.
Além disso, o principal problema dessa falácia é confundir aspectos bastante
superficiais com mudanças (ou decadência, ou deformação) no sistema linguístico.
Na ótica de Fiorin, entretanto, a internet não está promovendo nada de novo em
termos do sistema: “Nada na língua” (2008, p. 5). Para o autor, as mudanças
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ocasionadas pela internet dizem respeito apenas à ortografia e a fenômenos
enunciativos. Não há nenhuma mudança em curso na fonologia, na morfologia ou
na sintaxe do português, por exemplo, que permita falar-se em mudança em
termos de deformação da língua10.
O receio bastante difundido em relação a esse pretenso efeito deformador
que o internetês exerceria sobre os registros formais da língua manifesta-se mesmo
em trabalhos acadêmicos que se mostram “compreensivos” com a linguagem da
internet, como se vê abaixo:
Exemplo 8 (AC6, p. 4):
Essa nova modalidade da linguagem não deve ser condenada, é apenas mais uma
modalidade da língua que tem normas próprias [...] Contudo, os usuários dessa nova
modalidade precisam ter a consciência e que a linguagem utilizada para comunicação na
Internet deve permanecer exclusivamente na rede e não adentrar na língua escrita
propriamente dita.
Percebe-se que o autor cria uma radical disjunção entre o internetês como
“modalidade da linguagem” e a “língua escrita propriamente dita”, de modo que o
primeiro “não deve ser condenado”, contanto que permaneça em seu próprio
espaço (“exclusivamente na rede”) e não procure “adentrar na língua escrita”,
presumivelmente a fim de não influenciá-la negativamente. Nesse caso, a
expressão “língua escrita” parece aplicar-se unicamente à convenção ortográfica
oficial. Qualquer outra forma de escrita, a exemplo do próprio internetês, não
seria “língua escrita”, pois esta se entende apenas na acepção de “língua padrão”.
Falácia 6: A linguagem da internet é a origem de todos os erros de
português
Como se percebe pelas numerosas iniciativas de “plantões gramaticais” na
internet, inclusive em sites de redes sociais como o Facebook, o senso comum
10
Em um posicionamento parcialmente divergente, Rajagopalan (2013, p. 48) ressalta que “há incerteza quanto ao tipo de
mudança que o internetês é capaz de provocar na língua padrão”. Por seu turno, o que Fiorin (2008) enfatiza é que até o
momento não se verifica mudança linguística alguma que se possa atribuir ao internetês.
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atribui à internet a responsabilidade por todos os “males” que acometem a língua
portuguesa, quer dizer, por todas as infrações à gramática normativa e à grafia
oficial do português. Problemas formais de variada espécie são explicados como
“erros muito comuns nas redes sociais”, como se os mesmos fenômenos não
ocorressem também fora dessas redes e como se tivessem se originado nelas.
Paradoxalmente, variantes típicas e bem estabelecidas no português brasileiro vêm
sendo atribuídas ao internetês, embora este seja frequentemente descrito como
um “novo idioma cibernético”.
Assim, a internet e, particularmente, as redes sociais digitais, transformam-se
em bodes expiatórios para fenômenos linguísticos que lhes precedem no tempo e
no espaço, quando questões relativas à ortografia ou à sintaxe são atribuídas ao
internetês em vez de terem as suas causas buscadas na baixa qualidade da
educação nacional bem como nos fatores que levam a essa baixa qualidade. A
internet e o internetês, antes de serem a causa de problemas ortográficos ou
sintáticos, são apenas a vitrine que lhes confere maior visibilidade, uma vez que
hoje, no contexto das novas tecnologias de informação e comunicação, as pessoas
escrevem cada vez mais e assim os problemas com a aquisição da escrita formal se
tornam cada vez mais evidentes.
No discurso acadêmico, uma forma atenuada ou talvez mal disfarçada dessa
concepção do internetês como lugar do erro se reflete, por exemplo, em um artigo
que propõe a retextualização da linguagem da internet para a “língua padrão” ou
“norma padrão”:
Exemplo 9 (AC6, p. 5):
Foi solicitado a uma estudante da 1ª série do ensino médio a seguinte tarefa: escrever em
uma folha de papel um scrap, como se fosse um recado enviado pelo Orkut, e em seguida,
pediu‐se que os alunos trocassem seus scraps. Então, o professor orientou a turma sobre as
diferenças entre fala e escrita, ressaltando que a escrita usada na Internet deve
permanecer na Internet, pois a língua portuguesa possui um sistema de normas e regras
próprias na sua modalidade escrita e que é muito importante ter conhecimento da escrita
da norma padrão.
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Exercícios dessa natureza incorrem, a meu ver, no equívoco apontado por
Bagno (2007) para trabalhos com a variação linguística cuja preocupação central é
que os estudantes “passem” a linguagem de personagens como Chico Bento,
Adoniran Barbosa e Patativa do Assaré da sua forma real para a norma padrão:
esses exercícios sugerem que o internetês, assim como a linguagem dos referidos
personagens, é uma linguagem errada ou no mínimo inadequada.
Falácia 7: A linguagem da internet impede a aprendizagem da
escrita formal
Aqui está expresso o maior temor dos adversários do “idioma cibernético”:
por culpa da internet, por ficarem horas e horas lendo e escrevendo em internetês,
adolescentes e jovens em idade escolar não aprenderiam mais a ortografia oficial e
seriam incapazes de redigir um texto numa escrita formal. Pessoas tomadas por
essa preocupação desconsideram o que afirmam Carvalho & Kramer (2013, p. 79),
para quem “os possíveis erros de digitação não levam a concluir, como na escrita
convencional, que houve erro e desconhecimento de regras da ortografia”. Uma
expressão radical do temor de que usuários do internetês se tornem incapazes de
aprender a língua se encontra no seguinte exemplo:
Exemplo 10 (AC2, p. 3):
A comunicação através dos ambientes virtuais pode ser uma vilã para um aumento do
analfabetismo.
Os autores não explicam de que forma a comunicação nos ambientes virtuais
poderia contribuir para o aumento do analfabetismo (presumindo que seja este o
sentido da frase um tanto ambígua), se a comunicação escrita está vedada, por
motivos óbvios, a analfabetos. Ou seja, a condição de alfabetizado ou,
preferencialmente, de letrado é pré-requisito para a utilização do internetês.
Além de que me parece forçoso admitir com Fiorin (2008, p. 6) que a escola
não precisa da internet para apresentar péssimos resultados com a ortografia e a
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escrita, o fato é que uma variedade de pesquisas acadêmicas tem negado a
validade do temor de que o uso do internetês pelos estudantes os torne incapazes
de empregar a variedade escrita formal do português quando necessário. Exemplos
de pesquisas dessa natureza se encontram em Caiado (2007), Bisognin (2009) e
Melo & Bezerra (2011), entre outros.
Um caso curioso de resultados de pesquisa ou, mais especificamente, de sua
interpretação, encontra-se em AC2, em que os autores, embora informem ter
encontrado “características da linguagem virtual” em apenas 05 de um total de 50
produções textuais de alunos analisadas, ainda assim concluem o seguinte:
Exemplo 11 (AC2, p. 9):
Após as análises é possível afirmar que a linguagem virtual influencia de forma negativa a
linguagem formal do público-alvo pesquisado.
Entretanto, os resultados encontrados, por mínimos que sejam, ainda são
claramente questionáveis. Segundo os autores, as características da linguagem
virtual encontradas na escrita formal dos 05 alunos podem ser classificadas como:
“palavras substituídas por números (1); expressões em inglês (2); letras trocadas,
alterando o som da palavra (3); palavras abreviadas (4); palavras escritas com letra
maiúscula (5); a escrita representando expressões sonoras e entonações da voz (6)”
(AC2, p. 7). Exemplos da análise incluem o uso do algarismo 2 em vez de dois, o
uso da expressão OK, a grafia do pronome Ele como Eli e a abreviação de televisão
por TV. Todos esses fenômenos são tomados como “influência da internet”.
Percebe-se que, na tentativa de comprovar a hipótese da existência de uma
influência do internetês sobre a escrita dos alunos em situação formal, os
pesquisadores se colocam contra seus próprios dados, analisando usos amplamente
conhecidos e comuns na língua portuguesa em geral como se fossem uma
particularidade da linguagem da internet e, pior, como se caracterizassem, todos
eles, um problema. Dessa forma, diversos outros aspectos que influem sobre a
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aprendizagem da escrita formal são escamoteados ao se atribuir à internet o papel
de fonte inequívoca de todos os problemas de aprendizagem dos estudantes.
Considerações finais
Juízos apressados e destituídos de validade científica, quando se trata de
usos da linguagem, são frequentes, amplamente disseminados e, portanto, não
constituem propriamente uma novidade. No que diz respeito às variadas práticas
discursivas e aos usos linguísticos em curso no âmbito das novas tecnologias de
informação e comunicação, avaliações carregadas de preconceito, amparadas em
crenças e não em evidência empírica, são facilmente identificáveis em jornais
impressos e em programas de rádio e televisão, além de ganharem espaço
privilegiado em diversas instâncias de comunicação ambientadas na internet. Essas
avaliações não especializadas, próximas ou provenientes do senso comum, não
foram tomadas como foco deste trabalho.
Entretanto, surpreende constatar, com relação a essa linguagem, numerosos
equívocos perpetuados e disseminados por discursos que se pretendem científicos,
oriundos tanto do campo das ciências da linguagem como de áreas próximas como a
educação e o jornalismo. No processo de realização deste estudo, foi possível
observar em diversos trabalhos, além das falácias discutidas no corpo do ensaio,
uma série de inconsistências indesejáveis no fazer científico.
Entre essas inconsistências, cito a preferência de AC2 por exemplos bizarros,
que de forma alguma representam os usos mais correntes da linguagem na internet.
Por exemplo: Og
v6s
naum
tm
9da10? Por vezes, como vimos, a análise é
improcedente (TV, como abreviação de televisão, seria internetês!) e as
conclusões,
consequentemente,
insustentáveis
(um
resultado
de
10%
já
“comprova” a tese dos autores, contra 90% que a invalidam).
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De acordo com o estudo relatado em AC8, “nessa nova forma de
comunicação, os internautas utilizam uma gama enorme de recursos da própria
linguagem escrita” (p. 105). Mas como poderia ser diferente? A linguagem da
internet não é uma linguagem escrita? De onde mais os internautas poderiam
utilizar recursos? Continuando com sua estranha análise, os autores de AC8 afirmam
ainda que “o dialeto da internet é diferente da língua escrita e da língua oral. Não
temos ainda uma classificação específica, por ser muito recente, sendo que se
constitui de uma mistura de ambas. Trata-se de um gênero híbrido” (p. 105).
Então, temos uma escrita que não é nem língua escrita nem língua oral, mas sim
um “gênero híbrido”. Não admira que haja tanta confusão sobre a linguagem da
internet no senso comum, visto que até mesmo vozes da academia manifestam uma
visão confusa do fenômeno.
Apesar dos vários estudos já existentes, uma descrição sistemática das
variedades linguísticas em uso na internet e, particularmente, uma descrição
acurada do internetês ainda são tarefas por realizar. É preciso concordar com David
Crystal quando afirma, em entrevista a Shepherd & Saliés, que, no tocante a essa
temática, “todos podemos dar um ou outro exemplo e contar histórias. No entanto,
isso é muito diferente de fazer uma descrição sistemática” (SHEPHERD; SALIÉS,
2013, p. 32). Nesse mesma direção segue o pensamento de Ávila & Cox (2008, p.
419), segundo as quais, “apenas um trabalho consequente de descrição que revele
a natureza ordenada e sistemática do internetês [...] pode reabilitá-lo da pecha de
erro, caos, desordem e ameaça à integridade do bom português”.
Cabe ainda, portanto, um esforço deliberado para a compreensão detalhada
das características e peculiaridades das práticas discursivas e comunicativas
vigentes no ambiente virtual. Somente um empreendimento científico que lance
luzes mais completas sobre o fenômeno, amparado em dados empíricos objetivos e
confiáveis, será capaz de se contrapor às apreciações subjetivas e idiossincráticas
que ainda marcam os olhares para as atividades de escrita que se desenvolvem no
ciberespaço. Esse empreendimento científico continuado haverá de trazer
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consequências benéficas para a educação de adolescentes e jovens, usuários
privilegiados da linguagem da internet e, por isso mesmo, objeto principal do olhar
desconfiado dos autoproclamados defensores do idioma ameaçado.
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