A Teoria da Ação Comunicativa e o Trabalhador do Século XXI: um olhar sobre a comunicação no ambiente organizacional Giovanna Migotto da Fonseca Galleli Universidade Estadual de Londrina [email protected] Este ensaio convida para uma reflexão crítica e pragmática sobre a Teoria da Ação Comunicativa (TAC) de Habermas no ambiente organizacional, especialmente no que tange ao relacionamento entre a organização e o trabalhador do século XXI, reconhecido na sua subjetividade. Neste sentido, lança-se um olhar sobre o sujeito e sua necessidade de interação com o outro, de falar e ser ouvido, diante do predomínio de uma comunicação estratégica, onde ele é visto apenas como coisa ou meio para o alcance dos resultados organizacionais. No século XIX, os trabalhadores eram explorados até a morte e, ainda hoje, muitos industriais descuidam da saúde e da segurança do trabalhador em um modo de gestão inadequado ou negligente (MORGAN, 2010), considerando apenas seu potencial produtivo. A exploração do trabalhador do século XXI acontece sob a dimensão do trabalho imaterial, definido pela produção de afetos, comunicação e relações sociais, enfim, do que não é palpável e que exige um exercício de habilidades subjetivas, redundando na produção de conhecimento (NEGRI; HARDT, 2001 apud MANSANO, 2009; ROSA; MANSANO, 2012). É possível afirmar que, mesmo com programas de responsabilidade social e a sustentabilidade, há muitas organizações nas quais a humanização não passa de um discurso (KUNSCH, 2010). Neste contexto, o grande desafio das organizações contemporâneas, segundo Fagundes, Jotz e Seminotti (2008), está em equilibrar a dimensão objetiva, como as políticas e práticas de organização do trabalho e de gestão de pessoas, com a dimensão própria dos processos relacionais dos sujeitos, que inclui os processos de interação e comunicação. É preciso que os trabalhadores sejam “reconhecidos como personalidades autônomas, sujeitos de direitos e sujeitos psíquicos que têm palavras a dizer tanto sobre a evolução da organização como da sociedade” (ENRIQUEZ, 1997, p. 11). Notável é a demanda dos sujeitos por uma comunicação mais aberta ao diálogo e ao compartilhamento de valores, e, também, por “uma forma aberta e igualitária de organização que espelha o tipo de comunicação em torno da qual se configuram e ao qual emprestam continuidade e permanência” (HABERMAS, 1996, p. 367 apud SPINK, 2001, p. 24). Na TAC, a ação acontece nas relações sociais em uma interação, sendo a comunicação elemento essencial da ação e para a interação (REPA, 2008). Os sujeitos reconhecem-se na reflexividade, sendo esta produzida enquanto ação comunicativa, “na intersecção das ações diferentes, no processo de juntar e separar, de criar similaridades e dissimilaridades, nas opções de posicionamento e nas conversas sobre possibilidades e impossibilidades” (SPINK, 2001, p. 25). Neste sentido, a construção do sujeito só é possível na interação com o outro. Além disto, comunicação e sujeito constroem organizações, segundo Spink (2001), no relato e na produção de saberes, nos diferentes encontros dos sujeitos. O autor destaca, citando Pagès et al., (1987, p. 31), que “nenhuma parte da organização, nem a organização ela mesma, podem ser considerados dados, mas produtos, o produto da contradição”. Apesar disto, muitos são os sujeitos impedidos de participar da construção da organização “pelo fato de não serem ouvidos e serem sufocados pela voz dominante do poder” (KUNSCH, 2010, p. 51). Neste momento, a comunicação deixa de ser princípio ordenador da vida humana associada e condição de convivência e aliança, implicando situações de violência, de mentira e de injustiça, que podem redundar, por exemplo, no sofrimento no trabalho (VIZEU, 2005). 1 Sendo assim, a comunicação dentro da visão da TAC difere-se da comunicação instrumental e da comunicação estratégica. Na primeira, o sujeito lida com uma coisa como meio de obter outra coisa. Vizeu (2005, p. 11-12) descreve, a partir de Enriqez (1997), este tipo de ação como a que “condiciona o sentido de comunidade à perspectiva da vantagem econômica, sendo todas as dimensões humanas suplantadas pela esfera econômica” e, conforme Adorno e Horkheimer (1985), como a que “promove o progresso e o bem-estar de todos, mas impede a consciência da dominação que o ethos do capitalismo inflige sobre os homens”. Há, aqui, uma forma de domínio muito mais sutil e profunda do que a ‘luta de classes’ do marxismo. Na comunicação estratégica, a linguagem natural é usada apenas como meio de transmissão de informações, já na ação comunicativa, a linguagem é fonte de integração social (HABERMAS, 1990; LIMA; 2011). Para Repa (2008, p. 167), na ação estratégica “o sujeito busca influenciar o outro sujeito para que este realize atos necessários para a obtenção do seu fim, ou seja, o outro é visto tão somente como meio para alcançar um fim”. Esta ação é imediatamente orientada para o sucesso (HABERMAS, 1989 apud LIMA; CARVALHO, 2009) e, nela, a “coordenação das ações de sujeitos que se relacionam depende do modo como se dão os cálculos de ganhos egocêntricos” (LIMA, 2011, p. 73). Nas versões instrumental e estratégica, portanto, a comunicação é distorcida em alguma de suas dimensões, na veracidade, sinceridade, retidão ou inteligibilidade, bem como, no sentido de manipulação, ou seja, a distorção deliberada, ou, ainda, na dimensão contingencial, pela distorção ocasionada por fatores estruturais (VIZEU, 2005). Observandose a comunicação no centro da condição humana, nenhuma das duas versões possibilita novos pensamentos, sentimentos e ideias. “Na perspectiva dos participantes, os dois mecanismos, o do entendimento motivador da convicção e o da influenciação que induz o comportamento, excluem-se mutuamente” (HABERMAS, 1990, p. 71). Nota-se que hoje, em relações mais sutis que antes, o poder permanece na liderança que se desenrola cada vez mais no âmbito do relacionamento frequente e face a face, em interações que envolvem conhecimento e sentimento (DAVEL; MACHADO, 2001). Há a possibilidade de o trabalhador ser transformado por afetos diversos, de modo a reverter as relações de poder e inventar estratégias de resistência no seu local de trabalho, ao implicar-se emocional e intelectualmente no processo produtivo (ROSA; MANSANO, 2012). A mudança necessária para isto apoia-se na teoria de Habermas, onde a comunicação deve ser isenta de relações de poder, em busca de um consenso não coagido, livremente produzido. Segundo Repa (2008), esta é a condição constituinte da dimensão emancipatória da ação comunicativa. Para o autor, o cerne da racionalidade comunicativa está nas condições e nas regras que todos precisam supor para que seja possível obter um consenso, na sociedade e nas organizações. Na interação os sujeitos tratam de harmonizar seus planos de ação e de perseguir suas metas sob a condição de um acordo existente ou a ser negociado sobre a situação e as consequências esperadas, sendo a motivação racional (LIMA; CARVALHO, 2009; LIMA, 2011). Para Habermas (1990), o consenso mede-se pelo reconhecimento intersubjetivo de um proferimento aberto à crítica, onde a motivação racional está em poder dizer não. Assim, para o autor, embora haja o risco do dissenso, a cada experiência e quebra de rotina têm-se coisas novas agregadas à consciência. Para Lima e Carvalho (2009), neste contexto, tem-se a necessidade de um esforço de cooperação para a resolução de problemas que não podem ser superados de modo monológico. Citando Habermas (1989), os autores destacam que, ao entrarem numa argumentação, os sujeitos prosseguem a interação em uma atitude reflexiva, visando dirimir os conflitos. Assim, a comunicação passa a ser um processo na interpretação e na experiência humana do mundo significativa e intersubjetivamente construído (MARCHIORI, 2008). Neste contexto, há a predisposição ao consenso quanto às 2 significações que permite a Habermas propor a reconstrução racional do ato de fala, buscando o compartilhamento pleno de significados entre os participantes da interação. Contrário a isto, tradicionalmente, o ambiente organizacional não tem o entendimento para solução de conflitos como modo dominante, pois não há lugar de fala espontânea e nem para a criatividade no ambiente de negócios. Neste contexto, podem ser observados mecanismos de coordenação, controle e comunicação, ditados por padrões e normas, demandas, expectativas, critérios de avaliação, recompensas e punições, visando atender os interesses dos empregadores (MORGAN, 2010; MOSCOVICI, 2003), implicando na qualidade das interações. É possível afirmar que, ainda hoje, prevalece a estrutura organizacional clássica vista, por Vizeu (2005, p. 16), como “uma forma de constrangimento pré-lingüístico, mais especificamente graças à assimetria das posições de poder hierarquizadas”. Então, vê-se que o poder é exercido nas organizações por meio das interações sociais, ora na construção de significado das atividades, ora no consentimento respaldado no reconhecimento e identificação com o líder, no âmbito dos processos cognitivos, emocionais e políticos vivenciados e praticados regularmente entre as pessoas envolvidas (DAVEL; MACHADO, 2001). O contraponto estaria em organizações, com estruturas e modos de gestão mais democráticos, onde são comuns os discursos unicistas, que buscam trabalho em equipe e esforços compartilhados para resultados (MORGAN, 2010), onde “o trabalhador é convidado a conhecer todo o processo de produção e a colaborar para aperfeiçoá-lo, expondo suas percepções e opiniões” (MANSANO, 2009, p. 514). Neste sentido, observa-se que a construção de laços afetivos e sociais nas organizações está para o processo da reprodução social, que, segundo Habermas (1984 apud VERGARA, 2006), diz respeito às expressões das organizações, como seus símbolos, seus valores, sua cultura, sua história, suas fraturas e conquistas, retratadas nos atos comunicativos. Estes “mecanismos e símbolos, revestindo formas materiais ou imateriais, mais sutis ou menos sutis, possuem em comum o fato de estarem impregnados de significado valorativos direcionados, essencialmente, para o nível emocional da comunicação” (MOSCOVICI, 2003, p. 72). Este aspecto cultural é destacado por Marchiori (2008, p. 193), que afirma que “se as organizações são entidades sociais constituídas por meio da interação, está sedimentado o papel da comunicação em construir, manter e transformar culturas”. Reconhece-se, desta maneira, que “é por meio da comunicação que uma organização pode democratizar a informação, abrir canais de conversa com seus funcionários e líderes, assim recebendo, oferecendo e canalizando informação para a tomada de decisões mais acertadas” (MARCHIORI, 2008, p. 227). Neste sentido, tem-se um olhar especial sobre a comunicação que privilegia a relação sujeito-sujeito, saindo da concepção estratégicoinstrumental, do sujeito como coisa ou meio, onde a organização reconhece que o indivíduo é capaz de reflexão, de expressão e confronto com outros (ENRIQUEZ, 1997). Para Habermas, porém, ao apaziguar os conflitos do mundo do trabalho, as sociedades modernas capitalistas, promovem efeitos violentos reificadores no mundo da vida, nas relações sociais familiares e afetivas, na vida cultural e no exercício da cidadania (REPA, 2008). Vê-se, portanto uma importante limitação do modelo burocrático vigente, no que diz respeito ao não reconhecimento da subjetividade do trabalhador e a manipulação do significado em interações comunicativas quando se tem por objetivo o cálculo utilitário. Neste contexto, as práticas discursivas criam mecanismos de controle, revelando quão contraditório é o modelo organizacional tradicional. Vê-se o sistema burocrático como “um sistema autosustentado, capaz de coordenar e controlar a vida social tendo por base os critérios de utilidade” (Habermas, 1987b apud VIZEU, 2005, p. 14). A comunicação organizacional enfrenta, então, o problema da distorção comunicativa, o que “reflete a dificuldade de reconhecimento do outro enquanto sujeito competente, 3 enquanto membro integrante de uma mesma comunidade cultural” (VIZEU, 2005, p. 15). Sendo assim, conclui-se que a aplicabilidade da TAC no ambiente organizacional, pode ser vista como um caminho legítimo para vencer distorções e a estratégia de controle. Pela TAC a organização é lugar para o trabalhador do século XXI expressar-se, oferecer sua criatividade e sentimentos para a geração de valor; abre-se espaço para a participação dos sujeitos, de maneira mais ampla e mais complexa, da construção das realidades organizacionais, indo além da visão do observador não-participante ou do participante não critico. Palavras-chaves: Comunicação Estratégica, Ação Comunicativa, Subjetividade Referências DAVEL, Eduardo; MACHADO, Hilka Vier. A dinâmica entre liderança e identificação: sobre a influência consentida nas organizações contemporâneas. Rev. Adm. Contemp. [online]. 2001, vol. 5, n.3, p. 107-126. ENRIQUEZ, Eugène. Os desafios éticos nas organizações modernas. RAE, São Paulo, v. 37, n. 2, p. 6-17. abr./jun.1997 FAGUNDES, P. M.; JOTZ, C.B.; SEMINOTTI, C.B. 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