O CONTEÚDO MORAL DA AÇÃO COMUNICATIVA Jovino Pizzi∗ Resumo: Esta comunicação se centra na questão moral da ação comunicativa. Através do “saber de mundo” e “saber de linguagem”, a teoria da ação comunicativa nos permite tomar pé desse plexo de saberes “sempre já” partilhado na práxis cotidiana. O problema, todavia, está em conciliar a validade das intuições cotidianas e as exigências de uma moral universal. Esta é a discussão que desejamos aprofundar. Introdução Não poucas vezes nos deparamos com afirmações que sustentam que as promessas do progresso e os ideais da ideologia liberal e de uma economia livre de qualquer barreira, faznos esquecer o lado humano da questão. De certo modo, o espírito belicista e a prepotência dos senhores da guerra dividiram o mundo em dois grupos: por um lado, os do bem e que são confiáveis e, por outro, aqueles que representam o signo do mal. Na verdade, a qualificação entre bons e maus não passa de uma provocação. Por isso, a luta por um outro mundo possível exige um afã demasiado grande e um trabalho por mais vida, um desafio que exige algo que se chama esperança. A esperança de outro mundo possível, onde a característica principal não seja o medo ou a intimidação, mas a ∗ Professor da Universidad Católica de Pelotas. 1 solidariedade, a justiça, o respeito e a tolerância. Por isso, a proposta que desejamos expor, tem em mente a pretensão de investigar como se pode, hoje dia, assegurar uma fundamentação filosófica que permita, ao mesmo tempo, encontrar soluções racionais aos problemas de um mundo cada vez mais plural. Neste sentido, o espírito não é de desolação ou de desesperança, mas, de esperança; não de otimismo, mas de uma esperança extraordinária. Isso por uma simples razão: porque encontramos, atualmente, muitos trabalhos que estão comprometidos com uma filosofia transformadora, que não anda ao sabor dos interesses privados, muito menos, uma filosofia reduzida à ciência natural; em outras palavras, não queremos uma filosofia que serve ao status quo ou aos interesses da ideologia neoliberal. Os esforços no sentido de um outro mundo possível são hoje um clamor que vai além não só do trabalho acadêmico, pois ultrapassa os limites de qualquer crença, ideologia e nacionalidade. Esta filosofia não pode esquecer-se de um aspecto imprescindível: do conteúdo moral inerente à vida das pessoas. Este conteúdo é identificado no pando de fundo da ação comunicativa. Tendo como referencial a ética discursiva, fazemos parte daqueles que procuram fundamentar uma filosofia comprometida com o “sentido” mais profundo e mais abrangente da ação. Com esta idéia, encontramos em Habermas um aspecto peculiar, que nos permite trazer à luz este saber, “sempre já” compartido entre sujeitos que pensam e agem. Este saber não pode ser negado, nem recusado, já que ele permite uma interação intersubjetivamente compartida e guarda, por esta mesma razão, um caráter filosófico. Para aprofundar essa questão, começamos com a distinção entre saber de mundo e saber de linguagem (2.0) para, em seguida, identificar o “conteúdo” moral da ação comunicativa (3.0). Para terminar, trataremos do duplo aspecto dessa proposta normativa (4.0). Saber de mundo e saber de linguagem Através do conceito de ação comunicativa, Habermas pretende certificar-se de um saber intuitivo inerente aos contextos do mundo da vida e de poder, assim, trazer à luz esse fundamento de “sentido” que orienta a ação. O conceito de ação comunicativa torna possível trazer presente esse saber, “sempre já” partilhado intersubjetivamente entre sujeitos que pensam e agem. A distinção entre a validade intuitiva e a resolução discursiva, entre ação e discurso, entre fins perlocucionários e fins ilocucionários, permite identificar dois tipos de saberes distintos: por uma parte, o saber relativo à linguagem (Sprachwissen) e, por outra, o saber relativo ao mundo (Weltwissen) (Habermas, 1990: 96-97). Essa questão certifica um 2 importante aporte das intuições morais às estruturas universais da ação, cujo saber subjaz na práxis comunicativa cotidiana. Dentro deste conjunto de saber atemático, distinguimos um saber relativo ao mundo, que nutre a ação comunicativa e se alimenta dos recursos do mundo da vida (Habermas, 1988: II, 217 e 1989a: 404). A necessidade de dar sentido ao conhecimento pré-teórico e ao domínio intuitivo, orienta para uma reconstrução racional desse saber inerente à práxis cotidiana. Ao explicitar as condições de validade das manifestações, as reconstruções racionais estabelecem uma diferença entre as fronteiras tradicionais e a validade deveras geral que subjaz ao julgamento de manifestações e produções simbólicas (Habermas, 1994: 45). Trata-se, pois, de um saber intuitivamente disponível e que constitui a base experiencial sobre que se apóiam os sujeitos na ação comunicativa. A práxis comunicativa pressupõe sempre um reconhecimento recíproco que se circunscreve dentro de uma determinada forma de vida. O interessante disto está no fato de insistir numa razão situada (Habermas, 1990: 50) e poder, então, identificar sua imbricação com as perspectivas de ação dos sujeitos-participantes que atuam comunicativamente. Por isso, a interação entre sujeitos pressupõe sempre um “conteúdo de evidências” culturais e lingüísticas muito forte. Recusar ou omitir esse stock de recursos significa negar qualquer possibilidade de interação, ainda que esse saber seja considerado como um saber de fundo inerente a cada cultura ou forma de vida particular. Através da reprodução cultural do mundo da vida, os participantes se asseguram de um mínimo de coesão diante das situações referentes às normas e fatos presentes desde já. Por isso, reconhecer este saber significa admitir, por assim dizer, esse “amálgama de suposições de fundo, de solidariedades e de habilidades adquiridas no processo de socialização” (Habermas, 1989: 385-386). Encontramos, aqui, um primeiro nível de participação, onde os sujeitos se apóiam e reforçam suas decisões. Por isso, reconhecer esse pano de fundo representa aceitar que todo modo de vida particular tem sua razão de ser – ainda que isto não seja compartido por todos. Além desse saber relativo ao mundo, Habermas indica, dentro do conjunto de saber que orienta a ação comunicativa, um saber próprio de linguagem ou relativo à linguagem (Habermas, 1990: 97). Com ele, fazemos referência ao saber de regra, gerador e universal, que define a competência comunicativa ou interativa e que habilita os sujeitos para realizar interações (García-Marzá, 1993: 248). Na verdade, essa competência não somente implica que falantes e ouvintes entendam os atos de fala, mas que também possam estabelecer acordos sobre fatos, normas e experiências. Por isso, a possibilidade de chegar a um acordo 3 consensuado entre todos depende de um processo intersubjetivo “entre sujeitos lingüística e interativamente competentes” (Habermas, 1988: I, 368). O fato de que a reconstrução pragmático-transcendental das condições de fala não signifique apenas estabelecer proposições que permitam aclarar o sentido da argumentação, em outra plabras, significa que é possível alcançar um acordo mediante a participação de todos os sujeitos e que este possa, realmente, realizar-se numa comunidade de sujeitos-atores. O saber de linguagem define-se, pois, como aquele “saber gerador universal” que capacita os falantes a cumprir os pressupostos pragmático-universais da ação comunicativa. Trata-se, portanto, de um saber que se orienta por pretensões de validade. Através desse, os sujeitos conseguem distinguir entre linguagem e mundo, entre linguagem e ação, entre mundo e mundo da vida, entre fins ilocucionários e perlocucionários. Enfim, esse saber define a competência comunicativa ou interativa concernente às regras geradoras e universais que habilitam os sujeitos para realizar interações. Esse saber está ligado às estruturas universais que subjazem “sempre já” nas experiências mesmas da ação comunicativa. Com tal distinção, podemos – ao mesmo tempo – identificar e diferençar entre um saber atemático e constitutivo de um determinado modo de vida daquele saber que se orienta por determinadas pretensões de validade, que confere aos agentes a capacidade de responder por seus atos; um saber que permite estabelecer o contato entre linguagem e mundo e de como distinguir entre fins ilocucionários e fins perlocucionários, ou seja, como separar o mundo subjetivo e o mundo social do mundo objetivo e, ainda, como passar da ação à argumentação etc. A distinção entre saber de linguagem e saber de mundo possibilita, portanto, identificar o mundo da vida, por um lado, como recurso do qual se explica o conteúdo pragmático-formal, que orienta a ação comunicativa e, por outro, como horizonte da práxis mediada lingüisticamente. O saber de fundo oferece os conteúdos, ou seja, “algo substancial” de uma moral que faz valer a “interna conexão” dos aspectos que representa esse pano fundo da moral da ação comunicativa. Vejamos isso mais detalhadamente. O conteúdo moral da ação comunicativa Como expressão desse conteúdo, identificamos, no pano de fundo da ação comunicativa, determinados vínculos relevantes entre os sujeitos, como é o caso da solidariedade, da justiça e da participação. Contudo, somente um conceito pós-convencional desse “conteúdo” é possível reconhecer os traços universais e, portanto, considerá-lo como um valor moral, sem 4 renunciar – deste modo – às estruturas do reconhecimento recíproco da ação comunicativa. Mesmo que a contingência represente a precariedade do consenso fático (Habermas, 1998: 83), graças a esse saber de linguagem que a práxis comunicativa tem como referência normas com caráter universal. Pois, se é possível admitir que na ação comunicativa temos a capacidade de agir racionalmente, é possível admitir também que a mesma requer uma competência para definir normas de ação com pretensões universais de validade. Isto quer dizer que, individualmente, cada ator carrega implícito um conhecimento compartido e compromissos normativos comuns, pertencentes a um núcleo, que podem ser descritas, explicadas e justificadas como racionais em seus próprios contextos de ação (McCarthy, 1993: 68). Esta idéia dá passo ao debate em torno à possibilidade de examinar até que ponto o pano de fundo da ação comunicativa apresenta um conteúdo moral que não separa, de modo radica, uma ética de mínimos universalmente exigível de uma ética de máximos desejável. Nesse sentido, as questões podem ser as seguintes: Como se articula esse pano de fundo moral inerente ao mundo da vida? Como as condições procedimentais e proposições comunicativas, tão carregadas de idealizações, poderiam conectar com a pluralidade de preferências e a diversidade de validades que se diferenciam dentro do mundo da vida? A resposta a essas questões remete a esse pano de fundo moral, que o mundo da vida representa para a ação comunicativa, desse conteúdo normativo que orienta a ação comunicativa e dos diversos aspectos de validade do saber circulante na comunicação lingüística cotidiana (Habermas, 1998: 440). Evidentemente, poderíamos estudar a questão desde o ponto de vista da fundamentação, mas, neste momento, o que buscamos é o lugar ou o status que esse pano de fundo moral ocupa na teoria da ação comunicativa. A tese de Habermas é que, se admitimos um saber relativo à ação cotidiana e, ao mesmo tempo, um saber relativo à competência do sujeito, se deveria também assentir obrigações normativas ou – em outras palavras – uma dimensão moral que gira em torno ao “trato igual, à solidariedade e ao bem comum” (Habermas, 1991: 110). Em outras palavras, a esses saberes caberia reconhecer uma “dimensão moral, em virtude de que na práxis cotidiana os participantes socializados geralmente sabem “intuitivamente o que é atrativo ou recusável, correto ou falso, o que é relevante e o que não o é.” Essa aptidão, considerada como um “patrimônio comum” de toda forma de vida, goza de um reconhecimento “com base em sua difusão e aceitação sociais” (Habermas, 1999: 55). Esse pano de fundo moral, ainda que seja concernente à preferência de determinados coletividades, serve tanto para a formação das vontades como para contrabalançar a vulnerabilidade e a debilidade dos próprios limites do “concreto mundo da vida” de uma 5 etnia, de uma cultura ou de uma forma de vida particular. Na realidade, trata-se de admitir a referência a uma prática que tem lugar nas interações sociais e que explicita precisamente o que subjaz a essa capacidade pré-teórica, ao saber tácito, inerente “naquelas intuições da vida cotidiana” (Habermas, 1994: 137). Tais valores conseguem, por isso mesmo, um reconhecimento intersubjetivo dentro de uma cultura ou de uma forma de vida particular, de tal modo que ninguém põe em dúvida sua materialidade e muito menos nem sua força motivadora (Habermas, 1991: 80). Com o objetivo de identificar esse pano de fundo moral ou das praticas comuns da consciência moral, Habermas leva a cabo uma análise genealógica do conteúdo cognitivo da moral (1999: 29 ss), como se fosse uma prática que tem lugar no contexto do mundo da vida. Seu propósito pretende identificar de que modo as normas morais dirigem a ação e estabelecem os vínculos sociais entre os sujeitos. De fato, esta dimensão moral da ação comunicativa só pode ser explicada desde esta complementação entre saber de linguagem e intuições morais. As formas de vida particulares e as histórias de vida de cada cultura se constituem num contexto que permanece como fundo e que experimentamos só como horizonte. Todavia, alguns aspectos desses pontos de vista são “tão gerais” como para poder separar-se dos padrões culturais de um mundo vital concreto. Trata-se, pois, de uma “situação de pré-entendimento mútuo existencial dos participantes nas estruturas mais universais, que sempre está previamente compartido intersubjetivamente” (Habermas, 2000: 77). Isto sucede, por exemplo, com as “capacidades de solucionar problemas de validade (verdade proposicional e a exatitude normativa) que podem desenvolver-se com o conhecimento teórico e nas etapas do juízo moral. Na realidade, qualquer norma, valor, ideal, critério etc. em geral abarcam uma indefinida variedade e pluralidade de situações particulares (McCarthy, 1993: 80). Nesse sentido, é evidente que “as questões práticas, que afetam a orientação da ação, surgem em situações concretas de ação, e estas estão sempre inseridas no contexto historicamente evidenciado de um particular mundo da vida” (Habermas, 1991: 70). De todos modos, a hermenêutica filosófica deve distinguir, por um lado, os enunciados morais ou práticas comuns atinentes a uma comunidade particular e, por outro, as normas que regulam as atitudes críticas que buscam resolver convincentemente os conflitos de ação correspondentes a um plano geral. Essa exigência supõe um duplo aspecto deste conteúdo moral, como veremos a seguir. O duplo aspecto da orientação normativa 6 O duplo aspecto deste conteúdo moral deve explicar como é possível um diálogo hermenêutico entre pontos de vista distintos ou inclusive “rivais” (Habermas, 2000: 177), preservando, ao mesmo tempo, a autonomia de cada uma delas, sem fazer, portanto, caso omisso à exigência de normas que ultrapassam os contextos particulares ou a própria idealização, que descansam sobre pressupostos pragmáticos que funcionam como idéias regulativas. À teoria da ação comunicativa compete, pois, admitir pressupostos universais através dos diálogos discursivos com os que concilia unidade e pluralidade, liberdade e normas, divergência e consenso (Gómez-Heras, 2000: 425). Para Habermas, o processo comunicativo está implícito a um sujeito participativo. Encontramos aqui um segundo aspecto muito importante no sentido de elucidar este conteúdo “substancial” que representa esse pano de fundo do mundo da vida. Para Habermas, a linguagem orientada ao entendimento se transforma num aspecto imprescindível no processo reconstrutivo desse saber de fundo que constitui a práxis cotidiana. Neste sentido, um trato racional a esse pano de fundo moral da ação comunicativa reivindica uma metodologia capaz de identificar normas de ação que possam encontrar o “consentimento de todos os interessados” (Habermas, 1999: 66). De fato, por paradoxal que isso possa parecer, as pessoas, em quanto sujeitos capazes de linguagem e de ação, se movem no âmbito de uma comunidade lingüística e nela se entendem com os demais como sujeitos-atores. Neste espaço, os participantes “fazem valer a intangibilidade dos indivíduos, exigindo igual respeito pela dignidade de cada um; ao mesmo tempo, protegem também as relações intersubjetivas de reconhecimento recíproco pelas que os indivíduos se mantêm como membros de uma comunidade” (Habermas, 1991: 108). Neste processo, a reciprocidade entre sujeitos, que se reconhecem como interlocutores válidos, se produz desde uma tradição cultural em toda sua extensão, ainda que os motivos evidentes permaneçam nesse pano de fundo do agir comunicativo, sem serem explicitados, porque a coordenação da ação segue as linhas das experiências e fatos culturais, lingüísticos, familiares e pessoais, de tradições e normas, que não podem ser considerados como meras fórmulas abstratas (Pensky: 1995: 71). Por isso, o suposto de que sempre há um contexto intersubjetivo pré-existente, independentemente do contexto particular ou das preferências individuais de cada um, indica que as expectativas, que falantes e ouvintes podem exigir uns dos outros, já guardam um potencial racional universal. De fato, o pressuposto de existência de interesses universalizáveis compartidos por todos os membros do mundo social da vida é a condição de possibilidade para uma discussão com sentido sobre a correção moral das normas sociais. Este 7 pressuposto é indispensável para o discurso prático, porque, se chegássemos à conclusão de que tal pressuposto carece de sentido, a discussão sobre a correção moral das normas sociais deixaria de ter sentido (Lafont, 1997: 53). Essa possibilidade pré-existente para questões morais relevantes, exigem – diante das situações que são problematizadas e que devem ser resolvidas intersubjetivamente – “condutas discursivas” (Pensky: 1995: 69). Pois a relação entre o pano de fundo moral e sua carga universalista deve ser capaz de enfrentar e, ao mesmo tempo, garantir uma alternativa saudável à questão da unidade e a multiplicidade. Neste sentido, o fato de arraigar a razão aos contextos do mundo da vida não representa uma limitação das definições temporais, locais e culturais a que os implicados pertencem, mas que se movem desde pressupostos de tipo contrafactual de um consenso universal. Ainda que delimitada a cada cultura, a práxis social obedece, de uma forma ou de outra, a uma justificação racional, aberta a reconsideração por meio da participação crítica de todos os implicados (McCarthy, 1993: 76). Assim, a reconstrução é um processo metodológico que se da intramundanamente, isto é, “dentro dos limites de nosso mundo intersubjetivamente compartido, sem arcar, por isso mesmo, com a possibilidade de um distanciamento do mundo como um todo – e com ela a universalidade do olhar que abarca o mundo” (Habermas, 1999: 33-34). O caráter geral desse pano de fundo, acima da perspectiva de qualquer “cultura específica, se apóia na prova pragmático-transcendental de pressupostos gerais e necessários de argumentação” (Habermas, 1994: 137). Neste caso, as normas ou valores que orientam a ação oferecem padrões acerca de como os membros de uma comunidade devem orientar sua vida, do que é melhor e mais oportuno (Habermas, 1999: 56). Daí que a tentativa de uma fundamentação do ponto de vista moral, tanto no que toca aos ordenamentos institucionais, como aos padrões de socialização exige “um modo reflexivo de tradição que ligue com força a renovação de tradições a disponibilidade crítica e a capacidade de inovação” (Habermas, 1991: 88). Neste sentido, a hermenêutica filosófica não pode dar-se por satisfeita com a simples descrição dos valores e normas morais. As normas são, ou bem válidas, ou bem não válidas (Habermas, 1998: 328). E este é, sem dúvida, um dos aspectos mais importantes a ser tomado em consideração ao nos toparmos com esse pano de fundo moral da Lebenswelt, pois, quando se trata de enunciados assertóricos, eles só podem ser admitidos como verdadeiros ou não. Entretanto, no caso da validade das normas, a questão se enfrenta com um processo de fundamentação, ou seja, às razões que justificam ou não tal ponto de vista. Deste modo, o discurso prático está concebido por Habermas para ocupar-se de situações nas quais há uma ausência de acordo sobre o que é justo, isto é, uma vez que haja necessidade 8 de regular conflitos, concepções rivais sobre o que é justo e o que é bom (McCarthy, 1992: 204). Essa idéia salienta que o “pressuposto de existência de interesses universalizáveis, compartilhados por todos os sujeitos, é a condição de possibilidade para uma discussão com sentido sobre a correção moral das normas sociais” (Lafont, 1997: 53). A metodologia reconstrutiva representa, pois, um procedimento que não exclui as contribuições significativas do saber intuitivo da práxis cotidiana e, muito menos, rejeita uma reconstrução das intuições morais que não se enquadram na proposta universalistas. Esta seria, ao meu modo de ver, uma das grandes contribuições da pragmática formal habermasiana, pois possiblita a aproximação de horizontes entre diferentes culturas, ao mesmo tempo que exige um compromisso comum de todos em torno a normas que promovem laços da solidariedade e de justiça (Habermas, 1991b: 175 ss). Trata-se, pois, de uma proposta capaz de admitir a multiplicidade dentro de uma unidade da razão, ainda que as normas de ação e os princípios que orientam a mesma transcendam os interesses particulares. Tal exigência representa também a garantia que permite superar a vulnerabilidade e a debilidade de um sujeito solitário e isolado, e que se julga suficientemente capaz para o exame das máximas de ação desde seu próprio foro interno (Habermas, 1991a: 110 e 114). Por isso, a interpretação e a compreensão da ação social exige uma “hermenêutica filosófica” capaz de estabelecer as bases de uma compreensão mediada lingüisticamente entre sujeitos comunicativos. Essa hermenêutica “leva em consideração o fato de que a razão, inclusive no seu uso cognitivo, se encontra imbricada em contextos sócio-culturais, mediados por linguagens naturais e intrinsecamente unidos à ação” (McCarthy, 1993: 53). Na medida em que os participantes se dão conta de que é factível identificar interesses comuns, percebem o sentido de busca de um acordo sobre “normas sociais que podem ser consideradas como moralmente corretas (inclusive se se aceitam as diferentes maneiras de articular estes interesses comuns em culturas distintas)” (Lafont, 1997: 55). Neste sentido, o consenso racional sobre normas e valores deve garantir um alcance muito mais abrangente do que a conduta referente aos procedimentos restritos a uma forma de vida local, temporal e culturalmente estruturada. Esta exigência normativa encarna um saber prático-moral, sob o qual os participantes podem questionar suas próprias proposições, bem como de submeter uma determinada ação ao exame desde um consenso argumentativo (Habermas, 1989b: 292). “Para tanto, é necessário uma cultura do reconhecimento cujos primeiros princípios se extraem do mundo secularizado” (Habermas, 2001: 182). Neste sentido, o referente universal é a comunidade ideal de fala, da qual os membros de cada comunidade, independente de sua cultura, credo ou ideologia, sentem-se solidários com toda a 9 humanidade. O nível pós-convencional das normas de ação exige um espaço para as “solidariedades transculturais que têm implicações universais num sentido mais profundo que qualquer suposto interesse universal” (Cohen e Arato, 2000: 433). De fato, essa base comum serve de apoio reflexivo para o reconhecimento da diversidade, pois o procedimento, capaz de fundamentar o verdadeiro e o justo, pode e deve também apresentar soluções racionais aos problemas da vida cotidiana. Neste sentido, as virtudes – propriedades pragmáticas da moral – podem garantir a “formação da vontade comum, transparente a si mesma, de modo que se dê satisfação aos interesses de cada sujeito sem que se rompa o laço social que une objetivamente cada sujeito com os demais” (Habermas, 1991a: 111). Acima de qualquer relativismo, estes “enunciados morais” orientam a coordenação das ações, o que pressupõe um reconhecimento intersubjetivo de normas ou práticas comuns que “definem para uma comunidade, de modo convincente, aquilo que os atores estão obrigados, assim como aquilo que hão de esperar uns dos outros” Habermas, 1999: 29). A partir do ponto de vista moral, tais questões não se julgam desde a perspectiva particular ou da preocupação com a biografia individual; muito menos, se julgam desde a perspectiva da manutenção ou defesa de uma única forma de vida particular. Por isso, por mais “rudimentar” que possa parecer, esse pano de fundo moral supõe sempre uma forma de vida racional. Na forma de linguagem, este acervo de conhecimento implícito (background) provê aos atores de convicções a-problemáticas de fundo sobre as que estribam as negociações sobre as definições comuns das situações concretas (McCarthy, 1987: 465). É exatamente por isso que podemos falar de “consciência moral” ou patrimônio comum de uma forma de vida que goza de “objetividade”, dentro de uma comunidade moral. Neste sentido, poder-se-ia dizer que qualquer referência normativa arranca da multiplicidade das concepções morais pré-existentes e da variação de conteúdos do juízo moral da práxis cotidiana (Habermas, 1994: 138). O caráter universal desse pano de fundo moral apenas pode se reconhecido como tal a partir “daquelas estruturas e regras verdadeiramente operativas naqueles domínios que são objeto de exame” (McCarthy, 1992: 147). A reivindicação que a ética do discurso presume como imprescindível, sinaliza, portanto, para a reconstrução racional das intuições morais inerentes à práxis cotidiana. A questão que deve ser respondida, gira em torno da necessária coexistência, em igualdade de direitos, de diferentes culturas dentro de um mesmo marco político e pode, por esse motivo, coincidir de alguma forma em questões prioritárias (Habermas, 1997: 269). Em resumo, o princípio moral reconstruído se apóia na estrutura argumentiva, uma 10 exigência metodológica que permite escapar ao contextualismo da Lebenswelt e ao etnocentrismo de uma determinada cultura ou forma de vida particular (García-Marzá, 1992: 108). Na verdade, os conteúdos com validade universal remetem a uma resolução discursiva, pois representam um outro nível, de modo que o entendimento “se estende a uma comunidade ideal de comunicação, que inclui todos os sujeitos capazes de linguagem e de ação” (Habermas, 1991a: 111). O ponto de vista moral, tal como o entende Habermas, estabelece, pois, uma distinção “entre o que é normativamente exigível a todos, em tanto questão de justiça, e o que é valorizado dentro de uma sub-cultura particular como parte da vida boa” (McCarthy, 1992: 196). Dentro desse amplo horizonte da Lebenswelt, os vínculos relevantes entre sujeitos que agem e falam giram ao redor do trato igual, a solidariedade e os compromissos de justiça. Este é um outro aspecto a destacar em torno ao pano de fundo moral da Lebenswelt. Trasladando essa idéia a idéia da “inclusão do outro” e de seu reconhecimento como pertencente a uma comunidade com ares cosmopolitas, poderíamos defini-la, segundo Habermas, da seguinte forma: Que se relativiza a própria forma de existência, atendendo às pretensões legítimas das demais formas de vida; que reconhecem iguais direitos uns em relação aos outros, aos estanhos, com todas as suas idiossincrasias e tudo o que neles nos resulta difícil de entender; que ninguém se agarra na universalização da própria identidade; que ninguém exclua e condene todo quanto se desvie dela; que os âmbitos de tolerância sejam infinitamente maiores dos que são hoje; tudo isto é o que significa universalismo moral (Habermas, 1994: 117). Nesse sentido, o universalismo pode manter – como igualmente originárias – a identidade dos indivíduos e a da comunidade a qual eles pertencem (Habermas, 1991b: 75). “Este é um ideal regulador, prático, no domínio de uma ética política.” (Cohen e Arato, 2000: 432). O conceito de razão comunicativa apresenta, portanto, uma dupla frente. Por um lado, permite reabilitar o próprio conceito de razão, agora encarnada no acontecer mediador de uma práxis social, e, por outro, pode afastar-se dos “traços totalitários de uma razão instrumental – que converte em objeto tudo quanto lhe rodeia, inclusive, a si mesma – e dos traços totalizantes de uma razão absoluta e que, ao final, acaba triunfando como unidade sobre toda diferença” (Habermas, 1989a: 402). O mais importante, todavia, está na mudança que o processo comunicativo assegura em relação ao sujeito, fazendo valer a relevância da primeira e da segunda pessoa. Neste caso, garantir o lugar “do outro e o papel do tu” supõe um reconhecimento recíproco – estruturado em termos de direitos humanos, cujo ordenamento democrático promove a relação pacífica entre os povos e as culturas deste mundo (Habermas, 2001: 157 e 181). Esta configuração 11 permite elucidar ainda mais a reflexão em torno a esse pano de fundo moral da ação comunicativa, na tentativa de superar as deformações ou “colonizações” de uma racionalidade mecanicista, instrumental e/ou etnocentrista. Daí, então, o significado profundo da metáfora de “razão inclusiva e razão excludente.” Dentro dos parâmetros de uma racionalidade comunicativa, ela não permite apenas identificar um logocentrismo excludente, mas também descobrir – nesse pano de fundo moral – o gérmen de uma racionalidade comunicativa. Na verdade, a ética do discurso, por causa de seu próprio caráter, aspira outorgar legitimidade à diferença e exigir solidariedade com ela (Cohen e Arato, 2001: 430). Diante do “faktum do pluralismo” (Habermas e Rawls, 1998: 52) das sociedades modernas, Habermas pretende erradicar – através do diálogo discursivo e o consenso – o decisionismo subjetivista e, desde um minimum de valores universalmente aceitados, afastá-los do formalismo da razão pura. Com essa idéia, a ação comunicativa permite identificar a validade de determinados valores que permitem definir qual é o melhor comportamento, e mais recomendável, dentro de uma forma delimitada de vida ou de uma cultura particular, sem perder de vista as normas morais que se apresentam com uma pretensão de validade igual para todos. A reivindicação pela diversidade não significa uma opção exclusiva pelo pluralismo, muito menos a reacusa de “mínimos morais partilhados.” Na verdade, trata-se de elucidar o papel da diversidade e do pluralismo e, assim, poder extrair – como procura Habermas – “um núcleo universalista” (1988: I, 192). Por isso, a resposta exige um marco categorial e determinadas bases normativas em forma de uma teoria geral da ação comunicativa, ou seja, de garantir um conceito multidimensional de mundo da vida, onde se conservam integrados os diferentes aspectos simbolicamente estruturados (McCarthy, 1987: 465). Assim, uma ponte entre o universalismo abstrato e as comunidades concretas parece ser o grande desafio de uma reflexão filosófica que tem como ponto de partida “a intersubjetividade, o reconhecimento recíproco dos participantes dotados de competência comunicativa, que mutuamente reconhecem sua capacidade para enlaçar pretensões de validade e para oferecer uma resposta argumentativa, no caso de que alguma delas fossem questionadas” (Cortina, 2001: 105). Conclusão Para concluir, parece-me que advogar por uma universalidade inclusiva significa encontrar os fundamentos e garantir determinadas exigências mínimas de justiça à diversidade de 12 saberes que conformam o grande mosaico do mundo da vida. Universalidade não significa homogeneização; muito menos, a submissão a um etnocentrismo unilateral. O fato de exigir pretensões com validade universal está involucrado a uma exigência moral, que atende ao conteúdo universalista de toda forma de vida, que reconhece iguais direitos a todos – estanhos ou não –, apesar de todas suas idiossincrasias e daquilo que nelas nos resulta difícil entender. A consciência local ou “provincial” provê aos participantes “um substrato cultural a partir do qual se solidifica a solidariedade cidadã” (Habermas, 2000b: 88). Isso põe em evidência o fato de que não é verdade que a ética do discurso pode fazer afirmações universais, sem assentir uma forma de vida particular (Cohen e Arato, 2000: 396). Desse modo, o pluralismo não significa uma barreira ao universalismo, muito menos o inverso pode ser representativo. Logo, qualquer tentativa de uma reflexão crítica, de uma justificação racional ou de qualquer teoria da sociedade ou da ação, deve ter, como horizonte, este “solo familiar”, partilhado por todos. Finalmente, o debate sobre como organizar uma convivência justa em sociedades plurais, não deve partir de um etnocentrismo, pois representaria configurar um universalismo que negue “a possibilidade de uma macroética da igualdade, reconhecida por todos, como é o caso dos direitos humanos e da co-responsabilidade na solução dos problemas humanos” que afetam a todos (Apel, 1996: 38). O etnocentrismo, insiste Habermas, “ao descrever o processo de entendimento como uma inclusão assimiladora do estranho no nosso horizonte de interpretação (ampliado), abrange a simetria de pretensões e de perspectivas de todos os implicados no diálogo” (Habermas, 1990: 178). Por isso, a proposta comunicativa requer uma racionalidade capaz de apontar para outro mundo possível. Não o da guerra ou do medo, mas da justiça, da solidariedade, da tolerância; em fim, um mundo de esperança. REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS BAÑON, S. R. (1996): Teoría filosófica de Europa, Valencia, Nau Llibres. COHEN, J. L. y ARATO, A. 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