AS PRÁTICAS DE ALFABETIZAÇÃO E A CONSTRUÇÃO DA LEITURA E DA ESCRITA
PELA CRIANÇA
Eliane Aparecida Galvão dos Santos1
Dóris Pires Vargas Bolzan2
Resumo
Este trabalho é um recorte da pesquisa de Mestrado que está sendo desenvolvida no Programa
de Pós-Graduação em Educação, na Universidade Federal de Santa Maria. O objetivo, neste
estudo, é compreender quais são os conhecimentos das professoras alfabetizadoras sobre a
construção da leitura e da escrita pela criança e como esses conhecimentos repercutem no seu
fazer pedagógico. Assim, utilizamos como aporte teórico para o desenvolvimento dessa
investigação os estudos de Ferreiro (1993, 1999, 2001,2005), Bolzan (2001, 2002) e
Vygotsky (2003). O campo em que a pesquisa esta sendo realizada é uma Instituição de
Ensino Estadual de Santa Maria. Os sujeitos desse estudo são cinco professoras que atuam em
classes de primeiras e segundas séries do Ensino Fundamental. A investigação está sendo
desenvolvida a partir de uma abordagem metodológica qualitativa inserida na perspectiva
sociocultural, na qual as falas/vozes das professoras são a base para a construção das
reflexões. A busca dos dados está sendo realizada por meio de observações das aulas e
entrevistas semi-estruturadas. Os achados iniciais evidenciam que o conhecimento das
professoras alfabetizadoras acerca de como a criança constrói a escrita são superficiais. Sendo
assim, evidenciamos que, nas ações docentes, esses pressupostos são pouco valorizados.
Todavia, as professoras mostram-se disponíveis a discutir e aprofundar estudos referentes à
leitura e à escrita nos Anos Iniciais. Para tanto, acreditamos que é necessário criar
espaços/tempo para a formação do professor na própria escola, sendo esta uma possibilidade
para o avanço do processo formativo das professoras.
Palavras Chaves: Formação de Professores – Lecto-Escrita – Práticas Pedagógicas
Apontamentos Iniciais
Estamos no século XXI, imersos numa sociedade que vive excesso de informações, mas
não conseguimos acompanhar os avanços presentes no cotidiano da vida. As transformações
acontecem muito rapidamente, em todos os campos - tecnológico, científico, ético e moral tornando difícil acompanhar esse emaranhado. A realidade atual desafia educadores a refletir
a respeito das concepções sobre o ensinar e o aprender. É fundamental pensar no ensino,
considerando que nossos alunos precisam ser preparados para conviver nessa sociedade em
constantes mudanças, assim devem ser os construtores do seu conhecimento e, portanto,
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Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação /CE/UFSM
Professora Doutora do Programa de Pós-Graduação em Educação /CE/UFSM
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sujeitos ativos desse processo em que a “ação” e a “descoberta” sejam os elementos
privilegiados.
Ler e escrever, há muitos séculos era privilégio da minoria da população. Os objetivos
da alfabetização eram outros; escrever era uma profissão e quem devia dedicar-se a esse
ofício passava por um treinamento rigoroso. Segundo Ferreiro (2005), “todos os problemas da
alfabetização começaram quando se decidiu que escrever não era uma profissão, mas uma
obrigação, e que ler não era marca de sabedoria, mas de cidadania” (p.12).
Entretanto, a democratização da leitura e da escrita e a criação de escolas públicas
gratuitas não foram suficientes para que a alfabetização se tornasse efetiva e acessível a todos.
Os sistemas de ensino, desde essa época, atuam em descompasso com a realidade presente, a
escola continua tentando ensinar a técnica da leitura e da escrita. Ferreiro (2005) confirma a
idéia ao escrever que:
Desde suas origens, o ensino desses saberes foi entendido como aquisição de uma
técnica: técnica do traçado das letras, por um lado, e técnica da correta oralização
do texto, por outro. Só depois de dominada a técnica é que surgiram, como num
passe de mágica, a leitura expressiva (resultado da compreensão) e a escrita eficaz
(resultado de uma técnica posta a serviço das intenções do produtor). (p.13)
O tempo da escolaridade obrigatória estende-se cada vez mais, mesmo assim, os
resultados, em termos de apropriação da leitura e da escrita pela criança, continuam muito
aquém das necessidades do mundo atual, principalmente, as crianças oriundas das camadas
mais pobres da população que, aparentemente, não aprendem porque têm “dificuldades de
aprendizagem”. O curioso é que muito dificilmente vemos crianças de camadas de classe
média e alta sendo apontadas como repetentes, como lentas para aprender, como possuidoras
de dificuldades para escrever. E por que isso ocorre?
Pensamos que uma das causas pode ser atribuída ao fato de que a maioria das práticas de
alfabetização não considera que a criança tem idéias próprias sobre leitura e a escrita muito
antes de chegar à escola. O pensamento de grande parte das professoras, seja da Educação
Infantil ou Anos Iniciais do Ensino Fundamental é que a alfabetização deve se dar na primeira
série. Isso é tão verdade que, quando nos deparamos com uma criança da Educação Infantil
lendo, a tendência é dizer que essa criança é mais esperta, inteligente e, por outro lado,
quando uma criança de segunda série não lê e não escreve, no sentido convencional, é um
problema que as professoras não sabem como lidar. É importante mencionar que, quando
referimos às professoras, não estamos pensando apenas na professora alfabetizadora da sala
de aula, mas em todas as educadoras que fazem parte desse contexto, pois, atuando
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isoladamente nos tornamos incapazes de interferir, de forma eficaz, nesse sistema
sedimentado que se constituiu quase em um senso comum - a idéia de que a leitura e a escrita
são atividades iniciadas na escola, ou seja, “as crianças aprendem a ler e a escrever só quando
são ensinadas, graças a seqüência do método utilizado.”(Carvajal e Ramos, 2001).
Sabemos que há problemas nas práticas pedagógicas de alfabetização, na formação dos
professores tanto inicial como continuada, pois estudos demonstram que os professores
carecem de apropriações teóricas que facilitariam a reflexão da ação e, conseqüentemente,
maior segurança e discernimento para enfrentar os desafios cotidianos.
Todavia, a disparidade das condições econômicas entre os cidadãos, reflete-se cada vez
mais na educação das crianças. As crianças com melhores condições financeiras, além de
iniciar sua vida escolar mais cedo, geralmente têm mais estímulos em casa, manuseiam lápis e
diversos portadores de textos: livro, jornal, lista telefônica, ouvem e contam histórias.
Conseqüentemente, estão mais adiantadas em relação às suas hipóteses sobre a leitura e a
escrita, já as crianças de classes populares, na maioria das vezes, pouco convivem com
pessoas leitoras, sendo que a interação e a exploração com o mundo letrado são restritas.
Nessas condições, o aprendizado se dá de forma desigual. O pensamento de Perez; Garcia
(2001, p. 16-17) corrobora com essas idéias, quando afirma que:
Nem todos os alunos iniciam a escolarização em condições similares, existem
diferenças de partida que dependem fundamentalmente do fato de terem ou não tido
possibilidades de interação com contextos letrados e com sujeitos alfabetizados
(mais do que a tão falada maturidade para leitura e a escrita). Portanto, uma das
funções primordiais das primeiras etapas do ensino será conhecer e compensar essas
diferenças (...).
Não queremos defender a idéia de que não há nada a ser feito porque o destino desigual
já está marcado. Pelo contrário, é preciso respeitar as hipóteses, a história de cada criança,
lembrando que as causas sociais de desigualdades é que as levam a apresentar tais diferenças.
Logo, essa diferença de partida é algo que precisa ser levado em consideração, sendo esse o
nosso grande desafio como professoras dos Anos Iniciais, o de compensar essas diferenças.
Para tanto, precisamos acreditar que todos os alunos podem aprender, e então, valorizar o
avanço de cada criança independente dos avanços da maioria da turma, daí a importância de
compreender que as crianças elaboram idéias próprias a respeito dos sinais escritos e vão
descobrindo as propriedades desses sinais, através de um prolongado processo de construção,
até se apropriarem da escrita convencional.
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Porém, quando o alfabetizador não compreende tal processo, geralmente não valoriza os
avanços das crianças, porque se prende apenas à escrita alfabética. Outros níveis de produções
escritas são desconsiderados e, assim, crianças que não escrevem “certo”, ou seja, seguindo o
código padrão, sentem-se desestimuladas à medida que percebem nas atitudes do professor
essa desconsideração, pois segundo Bolzan (2002), “há uma relação direta entre a ação do
professor, a conduta e o rendimento dos alunos.(p.21). Assim, muitas vezes, o professor em
vez de ,contribuir para o avanço da criança, inibe-a ou até mesmo bloqueia seu aprendizado.
Nessa mesma direção, Cadzen (apud FERREIRO; PALÁCIO, 1987, p. 179-180) coloca
que:
O problema de obter melhores resultados na leitura e na escrita não tem tanto a ver
com a motivação inicial das crianças, mas sim com nossos esforços para dirigir
energias sem destruí-las e para aumentar a confiança das crianças em sua própria
capacidade de aprender.
Assim sendo, é importante discutir as fases pelas quais a criança passa até construir a
escrita alfabética. Esse conhecimento proporcionará o embasamento para o professor
organizar atividades que mobilizem a criança a desestruturar com suas idéias prévias,
buscando novos conhecimentos sobre a leitura e a escrita.
As concepções das crianças a respeito do sistema de escrita
A escrita da criança não resulta de simples cópia de um modelo externo, mas é um
processo de construção pessoal. (Ferreiro, 2001). Antes de a criança começar sua vida escolar
ela já constrói hipóteses sobre a escrita. Segundo Ferreiro e Teberowsky (1999), a grande
maioria das crianças, com a idade de 6 anos, faz a distinção entre texto e desenho, sabendo
que o que se pode ler é aquilo que contém letras, embora algumas ainda persistam na hipótese
de que tanto se pode ler as letras quanto os desenhos, isso vai depender das interações que a
criança tem com o mundo letrado e com sujeitos alfabetizados.
Posteriormente, ela distingue o que pode ser interpretado ou lido a partir da hipótese de
quantidade de letras, isto é, para que uma palavra possa ser lida tem que ter uma quantidade
mínima de três letras, sendo elas variadas, pois se o escrito tem o tempo todo as mesmas letras
também não pode ser lido.
Nessa fase, a criança começa a usar somente sinais gráficos, aparentados com letras,
sendo que alguns alunos se recusam, de forma total ou parcial, a produzir algo escrito,
dizendo que não sabem escrever, afirmando que, com desenho, não se escreve, o que indica
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nitidamente a possibilidade de só se escrever com sinais gráficos, não-figurativos, o que será
um momento importantíssimo do nível pré-silábico.
Na próxima fase, surge a chamada hipótese silábica: a criança descobre que as letras
podem corresponder a sílabas, descobre que a quantidade de letras usadas para escrever uma
palavra pode ter correspondência com o número de sílabas e vai evoluindo até chegar a uma
letra por sílaba, sem omitir sílabas e repetir letras. Posteriormente, as letras podem começar a
adquirir valores sonoros e a criança escreve a letra que corresponde ao valor sonoro
convencional da sílaba.
Há, nesse momento, um conflito entre a hipótese silábica e a quantidade mínima de
letras exigida para que a escrita possa ser lida. A criança, nesse nível, trabalhando com a
hipótese silábica, precisa usar duas formas gráficas para escrever palavras com duas sílabas, o
que vai contra as suas idéias iniciais de que são necessários, pelo menos três letras para
escrever uma palavra. Esse conflito – a impossibilidade de ler silabicamente, o que os outros
escrevem porque sobram letras levará ao próximo nível. Então ocorre a transição da hipótese
silábica para a alfabética.
As crianças começam a identificar unidades menores que as sílabas, os fonemas.
Quando isso ocorre, elas passam a serem capazes de produzir escritas com correspondência
sonora, mas ainda não conseguirão realizar escritas totalmente alfabéticas. Assim, surgem
momentos intermediários. Por fim, as crianças estabilizam a correspondência de tipo
alfabético e sempre conseguem escrever de acordo com ela. No entanto, a construção de
escritas alfabéticas não significa que o processo de apropriação da escrita tenha terminado.
Até aqui, as crianças adquiriram o conhecimento da escrita e funcionamento do sistema
escrito, porém ainda há muitas perguntas e respostas a serem resolvidas (FERREIRO, 2001).
O que leva a criança à estabilidade da escrita é o seu enfrentamento com o espaço de
problemas referentes a ela, problemas esses que estejam à altura de sua capacidade de
compreendê-los e sejam sociais e afetivamente, ricos de sentido e significados.
Dessa forma, pensar a alfabetização hoje exige do professor percepções mais amplas e
redimensionadas a respeito do que seja aprender a ler e a escrever. É preciso entender essa
aprendizagem não como um processo de conhecimento e decodificação das letras, mas como
um processo de elaboração de hipóteses sobre a representação da língua, possibilitando a
quem aprende espaços, nos quais ele possa demonstrar suas representações sobre a escrita.
Essa dinâmica vai levar o aprendiz a ter motivos para aprender e produzir “escritas
verdadeiras”; termo usado por Leite 2001. Assim a mesma autora explica:
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Talvez a diretriz pedagógica mais importante no trabalho (dos professores), [...],
seja a utilização da escrita, em sala, correspondendo às formas pelas quais ela é
utilizada verdadeiramente nas praticas sociais. Nesta perspectiva, assume-se que o
ponto de partida de chegada do processo de alfabetização escolar é o texto falado
ou escrito, caracterizado pela unidade de sentido que se estabelece numa
determinada situação discursiva (Leite, p. 25).
Contudo, a artificialização da escrita nas práticas de alfabetização ainda é
preponderante. Reverter essa situação exige dos educadores envolvidos nesse processo a
organização de uma proposta pedagógica que proponha atividades reflexivas colocando o
aluno em ação, com provocação do desequilíbrio das suas hipóteses, com o desafiando de
pensar sobre a escrita. Para tanto, é fundamental trabalhar com os mais variados tipos de
materiais escritos, mesmo com a criança que não lê no sentido convencional, pois isso
estimulará o gosto da criança pela leitura e a confiança na sua capacidade de aprender.
Apontamentos finais
Compreender quais são os conhecimentos das professoras alfabetizadoras sobre a
construção da leitura e da escrita pela criança e como esses conhecimentos repercutem no seu
fazer pedagógico é o foco principal deste estudo. Os achados iniciais da pesquisa evidenciam
que as propostas de alfabetização e ações docentes consideram de forma muito periférica os
conhecimentos prévios das crianças sobre a leitura e a escrita. Sendo esse conhecimento
pouco valorizado, as propostas pedagógicas ressentem-se de maior embasamento teórico para
que os docentes possam superar as crenças e concepções implícitas a respeito do aprender e
do ensinar a ler e a escrever. Concepções essas que carregam desde as suas experiências como
alunas, bem como da formação e que se revelam na prática diária, em que grande parte das
atividades desenvolvidas com os alunos ainda valoriza a reprodução e a memorização como
meio de promover o ensino. Nesse sentido, acreditamos que esse estudo poderá colaborar para
o avanço do processo formativo de professores alfabetizadores em serviço, pois desafia o
professor a romper com conceitos e idéias até então sedimentadas. Assim, reconstruirá por
meio da sua própria experiência novos saberes pedagógicos, que poderão possibilitar a
transformação das práticas pedagógicas alfabetizadoras.
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Referências Bibliográficas
BOLZAN, D. P. V. Formação de professores: compartilhando e reconstruindo conhecimentos. Porto
Alegre: Mediação, 2002.
FERREIRO, Emília; PALÁCIO, Margarita Gomes. Os processos de leitura e escrita: novas
perspectivas Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.
FERREIRO, Emília; TEBEROSKY; Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1999.
FERREIRO, Emília. Reflexões sobre alfabetização. São Paulo: Cortez, 2001.
______. Passado e Presente dos verbos LER E ESCREVER. – 2.ed – São Paulo, Cortez, 2005
LEITE, S.A.S.(org). Alfabetização e Letramento. Contribuições para as práticas pedagógicas.
Campinas, Komedi / Arte Escrita, 2001.
PEREZ, Francisco Carvajal; GARCIA, Joaquim Ramos (orgs.). Ensinar ou aprender a ler e a
escrever? Porto Alegre: Artmed, 2001.
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