CAPÍTULO I FONTES DO DIREITO DO COMÉRCIO INTERNACIONAL E O DIREITO BRASILEIRO AGOSTINHO TOFFOLI TAVOLARO IVES GANDRA DA SILVA MARTINS 1 – INTRODUÇÃO Dinâmico desde seus primórdios, o comércio internacional, por pressão mesma das circunstancias em que se desenvolve, trouxe sempre um sopro renovador ao direito, que se traduziu no passado na criação das cambiais, no surgimento dos bancos e das bolsas de valores e do mercado de capitais, na concepção das sociedades, em especial das limitadoras da responsabilidade dos sócios (anônimas e por quotas), na disciplinação da quebra das empresas, na criação da pessoa jurídica autônoma e desvinculada das pessoas físicas que lhe deram vida , do seguro, do credito documentário, enfim de um sem número de institutos jurídicos que vieram à luz , constituindo-se em arcabouço do direito hodierno. O extraordinário incremento que a tecnologia permitiu às comunicações no século que se passou e a sua influência na internacionalização do conhecimento humano e do intercâmbio de bens e serviços vieram e vem vindo, neste início de século, tornar mais premente o conhecimento das regras que regem o comércio internacional e que tornam indispensável verificar suas tendências e procurar mesmo antecipar problemas e alvitrar soluções. 2 – FONTES DO DIREITO INTERNACIONAL Regido o comércio internacional pelo direito internacional, necessário é assim, em breve menção, recordar que esse direito tem suas fontes referidas no art. 38 do Estatuto da Corte Internacional de Justiça, principal organismo judiciário da ONU, que as enumera como sendo os tratados, o costume internacional, os princípios gerais de direito, as decisões judiciárias e a doutrina dos juristas mais qualificados das diferentes nações, vendo nele IRINEU STRENGER (p.795, no.26.3) ramo do direito internacional privado que tem como fonte mais idônea os tratados , adicionando os costumes que o direito comercial internacional por sua própria natureza acolhe, quando consagrados. 2.1 – TRATADOS INTERNACIONAIS Principais fontes do direito internacional, desempenham os tratados internacionais papel relevante quanto ao comércio internacional, regulando seus aspectos particulares. 1 2.1.1 - NOMENCLATURA A nomenclatura que se lhes dá é a mais variada, através da utilização de vocábulos ou expressões em que REZEK vê sinonimia ( tratado, convenção, acordo, protocolo, ajuste, convênio, carta, constituição, etc.) e dos quais identificou nada menos que duas dezenas na língua portuguesa, todos tendo o mesmo significado. 2.1.2 – CELEBRAÇÃO, RATIFICAÇÃO E RECEPÇÃO Celebrados pelo Presidente da República, dentro de sua competência privativa (CF art.84, VIII) , devendo ser ratificados pelo Congresso Nacional (CF art. 49,I), passam os tratados internacionais a fazer parte da legislação interna do Brasil, como leis ordinárias, podendo assim ter sua eficácia retirada por lei posterior que disponha sobre a matéria seu objeto. Adota-se assim, no Brasil , a doutrina dualista, pois sem a ratificação congressual não ingressam as normas do tratado na ordem jurídica interna, mesma linha de pensamento que adotam ROQUE ANTONIO CARRAZZA, BETINA TREIGER GRUPENMACHER, HELENO TORRES e MARCOS AURELIO PEREIRA VALADÃO , embora REZEK (p. 6) veja aí monismo nacionalista. Anote-se, contudo, que autores há, como FLÁVIA PIOVESAN , para quem a norma convencional internacional tem plena e imediata aplicação, independentemente de recepção formal no direito interno, em especial quanto aos direitos humanos , em função do disposto no art. 5o, § 1º e § 2º da Constituição Federal , afirmando ALBERTO XAVIER que o direito brasileiro consagra uma cláusula geral de recepção automática plena do direito internacional convencional (p. 123). 2.1.3 – SUPREMACIA DOS TRATADOS A referência que acima se fez à categorização das normas dos tratados como lei ordinária interna leva ainda a uma posição conflitante dentro da doutrina , qual seja a de se estabelecer se os tratados detêm supremacia sobre as leis internas ou se ao contrário, podem por elas ser objeto de revogação. Dividem-se os autores na apreciação do conflito, situando-se em campos opostos. Desde logo cabe deixar de lado a questão quanto aos tratados que tenham por objeto matéria tributária, pois o art. 98 do CTN é expresso em determinar essa supremacia, embora autores haja que a neguem ao fundamento de não ser a matéria passível de regulação por lei complementar. 2.1.4 – CLASSIFICAÇÃO DOS TRATADOS QUANTO ÀS PARTES Classificam-se os tratados, em bilaterais ou multilaterais conforme sejam dois ou mais os Estados que os celebram . No direito do comércio internacional têm extrema importância os tratados multilaterais como o GATT (Acordo Geral de Tarifas e Comércio), dele existindo, como lembra MAROTTA RANGEL duas versões, a primeira e original conhecida como GATT1947 e o GATT-1994, que se constitui no Anexo I do Acordo de Marraqueche de 1994, acordo este que é o documento básico da OMC (Organização Mundial do Comércio), o MERCOSUL (instituído pelo Tratado de Assunção , de 1991 e dotado de personalidade jurídica de direito internacional pelo Protocolo de Ouro Preto de 1994), a União Européia, etc. Também os tratados bilaterais são de relevância para o comércio internacional, cabendo apontar que tem o Brasil celebrados 25 tratados bilaterais para prevenir a dupla tributação sobre a renda além de inúmeros outros, podendo os tratados em geral ser objeto de pesquisa no site do Ministério das Relações Exteriores indicado ao fim deste capítulo. 2 2.2 - A OMC De conhecimento fundamental para o estudo do comércio internacional, as Negociações Comerciais Multilaterais (Rodadas) do GATT inicialmente tratavam apenas dos problemas tarifários, caso das Rodadas de Genebra (1974) , Annecy (1949), Torquay (1950/1951) , Genebra (1956/1956) e Dillon (1960/1961), passando a abranger também o campo não tarifário, como refere LIGIA MAURA COSTA , a partir da Rodada Kennedy (1963/1967), seguindo-se-lhe a Rodada de Tóquio ( 1973/1979) e culminando com a Rodada Uruguai, iniciada em Punta Del Leste em 1987, cuja ata final foi assinada por 125 países em Marraqueche em 15/04/1994, com a finalidade de incorporar os resultados finais da Rodada Uruguai do GATT, bem como então se estabeleceu a Organização Mundial do Comércio (OMC) ou World Trade Organization (WTO), cujo Acordo Constitutivo lhe dá, no art. II.1 o escopo de constituir-se no quadro institucional comum para a condução das relações entre seus membros nos acordos a ele anexos. Aprovada a Ata Final, no Brasil, pelo Decreto Legislativo n.30, de 15/12/1994 e promulgada pelo decreto 1355 de 30/12/1994, constitui-se o documento desse Acordo Constitutivo e dos anexos e entendimentos sobre interpretação de vários artigos do GATT-1994, tendo o Anexo 1A por objeto os acordos multilaterais sobre o comércio de bens , o Anexo1B o acordo geral sobre o comércio de serviços, o Anexo 1C o acordo sobre aspectos dos direitos de propriedade intelectual relacionados ao comércio (TRIPS – Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights) , o Anexo 2 sobre entendimentos relativos às normas e procedimentos sobre solução de controvérsias , Anexo 3 sobre mecanismo de exame de políticas comerciais, Anexo 4 sobre acordos comerciais plurilaterais e anexo 4d. sobre o acordo internacional sobre carne bovina. 2.3 – OS BLOCOS ECONÔMICOS REGIONAIS Caracterizada a conjuntura mundial pela regionalização, através da formação de blocos econômicos regionais, que atingem já o número de 32, segundo ENRIQUE RICARDO LEWANDOWSKI, necessário é referir que esses blocos apresentam-se em estágios diversos, que se pode identificar como Zona de Livre Comércio – quando existe entre seus membros a livre circulação de mercadorias, sem barreiras ou restrições quantitativas ou aduaneiras, conservando os Estados-membros total liberdade nas relações com terceiros países, não integrantes da ZLC, em matéria de comércio exterior. União Aduaneira – quando além da livre circulação de mercadorias adotam os países que a integram também uma tarifa aduaneira externa comum. Mercado comum – quando, além da união aduaneira, permitem os Estados que o integram a livre circulação entre si dos demais fatores de produção : capital e trabalho, permitindo o livre estabelecimento e o livre exercício de serviços profissionais sem restrições aos nacionais ou residentes dos outros Estados que integram esse mercado. União econômica e monetária – quando a política monetária dos Estados que a compõem seguem as diretrizes monetárias de um Banco Central da União, adotando ainda uma moeda única. Este é o estágio que está alcançando a União Européia, embora nem todos os seus estados-membros hajam ainda adotado a moeda única – o euro -, como, por exemplo, a Inglaterra. 3 Como anota TESAURO, busca-se atingir o exercício das quatro liberdades fundamentais: liberdade de circulação de bens, liberdade de circulação de pessoas, liberdade de prestação de serviços e liberdade de capitais, adicionando LUIZ OLAVO BAPTISTA a essas ainda a liberdade de concorrência. Não se olvide que blocos regionais vem se formando ao longo dos anos, no afã de assegurar aos Estados que os integram a manutenção de seus mercados e a conquista de outros. Eis a razão principal pela qual temos , dentre outros , o NAFTA, formado pelos EUA, Canadá e México, a APEC, integrada por Austrália, Brunei, Canadá, Indonésia, Japão, Malásia, Nova Zelândia, Filipinas, Singapura (onde tem sua sede) , Coréia do sul, Tailândia, e Estados Unidos, desde 1989, China, Hong Kong ,e Taiwan (1991), México, Papua e Nova Guiné, (1993), Chile (1994), Peru, Federação Russa e Vietnã , desde 1998. 2.3.1 – MERCOSUL Analisado o contexto do MERCOSUL, vemos que o mesmo se apresenta como um mercado comum imperfeito, dado o grande número de exceções que tarifariamente foram acordadas entre os seus membros – Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, aos quais há que se agregar os estados associados Chile e Bolívia. De extrema relevância para o Brasil, pois o comércio com nossos vizinhos reveste-se de características extremamente favoráveis pela proximidade geográfica e a facilidade de transportes, inclusive por vias terrestres e fluviais, além de termos uma base cultural comum, vem o MERCOSUL progredindo com vagar , embora seja de se lembrar que mesmo a União Européia também vagarosamente se desenvolveu, de tal modo que, ao completar a CEE, em 1982, seus 25 anos, via-se JEAN MONET, seu grande paladino, lamentar-se em entrevista na revista Time pois colocava em questão o próprio futuro da entidade. Ponto focal das discussões do MERCOSUL na atualidade é o da harmonização fiscal , principalmente no campo dos impostos indiretos, em que coexistem competências tributárias e legislativas de 5.531 entidades, quais os 4 países integrantes do MERCOSUL, os 26 estados e o Distrito Federal do Brasil e o 5.000 municípios brasileiros ( número aproximado), nota especial ao trabalho que vem sido desenvolvido pelo BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento. 2.3.2 – UNIÃO EUROPÉIA Sem dúvida alguma o exemplo mais marcante de regionalização é o da União Européia, que baseada em 4 tratados fundadores, a saber: o Tratado da Comunidade Européia do Carvão e do Aço (CECA), de 1951, o Tratado da Comunidade Econômica Européia (CEE), e o da Comunidade Européia da Energia Atômica (EURATOM) , ambos de 1957 e finalmente o Tratado de Maastrich (Tratado da União Européia ) de 1992 aos quais há de se adicionar o Tratado de Amsterdam (1997), modificador do Tratado da União Européia, congrega a partir de maio deste ano de 2004 25 países, com 455 milhões de habitantes representando a terceira maior população do globo (atrás da China e da Índia) .com um PIB previsto para 2004 de US$ 12,5 trilhões, enquanto a previsão do PIB americano para o mesmo período é de US$ 11,5 trilhões (Folha de São Paulo, 1º de maio de 2004, p. A12). A soberania dos Estados que integram a União Européia apresenta-se, em função desses tratados, comprometida segundo alguns autores, fixando-se no entanto a maioria deles , segundo De La ROCHÈRE , citada por LEWANDOSWSKI (p. 288) em uma distinção entre dois tipos de soberania, a jurídica, que consistiria no monopólio de dizer o direito, e a política, que seria o 4 poder de executar e coagir ao cumprimento das normas, entregue a soberania jurídica à União Européia e mantida a soberania política nas mãos dos Estados. Do ponto de vista do comércio internacional é inegável que a condição de única superpotência econômica de que desfrutaram os EUA deixa de existir, como já havia acentuado por McLURE. 2.3.4 - ALCA Não se deixe de mencionar, dentre os blocos regionais, a ALCA – Área de Livre Comércio das Américas, que visa reunir 34 países das 3 Américas, ainda em discussão, mas que deverá, realmente chegar a uma efetivação, superando barreiras políticas e ideológicas, como resposta à real necessidade de se dar maior integração e força ao bloco das nações americanas, embora do lado do Brasil se levantem argumentos contrários, fortemente influenciados por ideologia. Ao que tudo indica, deverá prevalecer um consenso pragmático, orientado no sentido de se negociar os pontos de maior importância , de molde a não ficar o Brasil excluído de um acordo dessa magnitude. 3 – LEX MERCATORIA Relações dinâmicas que se desenvolvem entre pessoas físicas ou jurídicas de diversos países, tornou-se necessário, desde que principiou o comércio internacional a tomar forma, utilizar-se de regras e normas específicas, distantes muitas vezes daquelas adotadas nos países de origem dos atores partícipes das operações mercantis. 3.1 – ANTECEDENTES HISTÓRICOS Assim é que IRINEU STRENGER (Direito, p. 826 , nº 27.1) recorda a Lex Rodhia de jactu dos fenícios e o nauticum foenus dos romanos , para em seguida afirmar que deveu-se a formação dos princípios fundamentais do direito comercial aos juristas italianos dos séculos XVI e XVII, nascendo assim a lex mercatoria que define como “um conjunto de procedimentos que possibilita adequadas soluções para as expectativas do comércio nacional sem conexões necessárias com os sistemas nacionais e de forma juridicamente eficaz” (DIREITO, p. 846, no.27.8), direito anacional ou metanacional que CARLOS NEHRING entende como supercodificação comercial de cunho internacional que estaria em posição hierarquicamente superior aos códigos nacionais. GESA BARON, tendo em vista que o uso do termo “nova lex mercatoria”, sugere alguma coisa como a velha e a nova lex mercatoria, traça a trajetória da lex mercatoria distinguindo seu período medieval, sua absorção e desintegração e posterior retorno, 3.1.1 – PERÍODO MEDIEVAL A lex mercatoria medieval foi desenvolvida com o crescimento do comércio na Europa, iniciando-se nas cidades italianas e espalhando-se pela França, Espanha e pelo resto da Europa, inclusive a Inglaterra. Tendo como pontos geográficos as grandes feiras, os grandes mercados e os portos principiais, para eles deslocavam-se os mercadores, levando consigo, além de suas mercadorias, seus usos e costumes , que foram incorporados às regras das diferentes cidades e portos, adquirindo , em virtude do comércio oceânico, principalmente em Veneza, Gênova, Marselha, Barcelona, Amsterdam e as cidades da Liga Hanseática, um verdadeiro caráter cosmopolita. 5 Essas regras eram muito diferentes daquelas locais, feudais reais ou eclesiásticas que se constituíam no direito dessas localidades, apresentando um caráter distinto onde se poderiam distinguir cinco aspectos fundamentais: primeiro: eram regras transnacionais; segundo, tinham como base uma origem comum e fidelidade aos costumes mercantis; terceiro, eram aplicadas não por juizes profissionais, mas pelos próprios mercadores, através de suas corporações ou das cortes que constituíam nos grandes mercados ou feiras; em quarto lugar, seu processo era rápido e informal e, em quinto e último lugar, enfatizava a liberdade contratual e a decisão dos casos “ex aequo et bono”. 3.1.2 – ABSORÇÃO E DESINTEGRAÇÃO 3.1.2.1 – LEX MERCATORIA E COMMON LAW Na Inglaterra, a partir do século XVII , a lei autônoma dos mercadores foi restringida e regrediu com o desenvolvimento da common law , especialmente sob o Lord Chief of Justice Sir Edward Coke, quando a Corte do Almirantado e outras cortes especializadas foram abolidas ou tiveram sua jurisdição limitada, passando as disputas comerciais a serem resolvidas pela common law, enquanto as regras dos mercadores , embora não oficialmente abolidas, foram consideradas como costumes e práticas comerciais a serem provados em cada caso, “to the satisfaction of twelve reasonable and ignorant jurors. Não foi senão no famoso caso Pillans v. Microp onde Lord Mansfield (1705 – 1793), decidiu que as regras da lei dos mercadores eram matéria jurídica a ser decididas pelos tribunais, não se tratando de usos e costumes, que se tornaram elas parte integrantes da common law, havendo no século XIX sido incorporadas a vários dispositivos legais. 3.1.2.2 – LEX MERCATORIA E AS CODIFICAÇÕES NA EUROPA No continente, as legislações nacionais que surgiram na era do mercantilismo, de um lado promoveram a efetivação do direito comercial, de outro lado porém marcaram o fim da velha lex mercatoria , com a emergência dos códigos no século XIX. Incorporados muitos de seus preceitos a tais códigos e leis. No entanto, perderam assim essas disposições seu caráter de cosmopolitismo, tornando-se distantes da realidade e enfrentando muitas vezes hostilidade quando consideradas costumes mercantis. 3.2 – A MODERNA LEX MERCATORIA A lei dos mercadores não estava morta, no entanto: a vontade e a prática do comércio internacional foram mais fortes que as restrições e limitações das leis nacionais, que se viram obrigadas a reconhecer instrumentos e estruturas legais que nele eram utilizadas, desempenhando a Câmara Internacional de Comércio de Paris , a partir de 1920, papel de importância na sua revitalização. Os homens de negócio estavam e ainda estão insatisfeitos com a inadequação das leis nacionais quanto ao comércio internacional e os resultados das decisões dos tribunais estatais muitas vezes arbitrários e nada práticos, decorrentes muitas vezes de tecnicismo processual , enquanto que um volume crescente de práticas comerciais internacionais, flexível e adaptado às necessidades comerciais oferece melhores condições de atendimento às necessidades do comércio internacional. 6 Nos anos 60 BERTHOLD GOLDMAN, CLIVE SCHMITTHOFF e ALEXANDER GOLDSTAJNS foram os primeiros a apontar a tendência para uma nova lex mercatoria, cujas fontes formais, como enumera PHILIPPE KAHN . citado por ESTHER ENGELBERG, são : os contratos-tipo, as condições gerais de compra e venda , as condições gerais do COMECON , os Incoterms e a leis uniformes. Objeto específico cada uma dessas fontes de capítulos desta obra, conforme seu plano geral, neste passo cabe apenas nominá-las, cabendo ainda advertir com IRINEU STRENGER (Direito, p. 849, no. 27.10) que outras causas determinantes da formação da lex mercatoria são reconhecíveis, quais aquelas situações que ainda não sujeitas a uma taxinomia, dão ensejo a novas regras do comércio internacional, não sendo de se estranhar que o atentado terrorista do 11 de setembro de 2001 venha dando já origem a práticas de prevenção do bio-terrorismo e à inspeção mais detalhada de containeres, por exemplo. Lembre-se, também , com o mesmo consagrado mestre (Contratos, p. 93, no.46), que “não se pode, entretanto, ir ao exagero de admitir a desvinculação dos contratos internacionais de qualquer direito estatal”. 3.3 – O DEBATE SOBRE A LEX MERCATORIA Não se dê, no entanto, por pacífica a aceitação da lex mercatoria, pois contra ela se alinham argumentos que GESA BARON alinha como sendo: a) A lex mercatoria não é uma lei, faltando-lhe base metodológica e um sistema legal que a suporte, não possuindo nenhuma autoridade estatal da qual possa derivar seu efeito obrigatório: b) A lex mercatoria é incompleta, vaga e incoerente, pois, considerando os vários sistemas legais nacionais existentes no mundo (sistema românico, common law, lei islâmica, etc.), poucos são os princípios gerais comuns, e aqueles identificados como tal são geralmente muito amplos e gerais; c) A decantada flexibilidade da lex mercatoria pode levar a decisões arbitrárias e a uma decisão diferente para cada caso, ainda que semelhantes. O autor citado alinha, em defesa da lex mercatoria que: a) A recusa de se aceitar a lex mercatoria tem origem em uma jurisprudência positivista que é baseada em que a lei deriva da vontade de um estado soberano e que o direito internacional nasce da coincidência da vontade de vários estados soberanos. Para os adeptos da lei dos mercadores, no entanto, a lex mercatoria emerge independentemente da vontade das autoridades estatais, mas sim do seu reconhecimento comum tal pela comunidade de negócios. Desse modo, é diferente que o direito encontrável nos códigos ou nas leis, sendo parte do direito vivo que é o produto da criatividade dos operadores do comércio. b) Nenhum dos “mercadoristas” alega que a lex mercatoria seja um conjunto de normas completo, preciso e exaustivo. Contudo, tampouco o são os sistemas legais nacionais. c) Sim, a lex mercatoria , embora não seja tão vaga e rudimentar como pretendem seus adversários, podendo levar a decisões conflitantes e contraditórias, em nada se difere das leis dos estados. Além disso, em muitos casos , um grande número de contratos internacionais em áreas especializadas tem regras altamente sofisticadas, que os laudos arbitrais aplicam. No caso de lacunas, o que os impede de utilizar os mesmos recursos hermenêuticos de que se utilizam os juizes que julgam no sistema legal estatal? 7 Vê-se, do exposto, que o embate de idéias longe está de se compor, impondo no entanto a extraordinária globalização do comércio que maior e mais detalhada atenção se dê à lex mercatoria. 3.4 – O TRABALHO DAS INSTITUIÇÕES INTERNACIONAIS Encareça-se, ainda , o trabalho de síntese a que vem se dedicando várias instituições internacionais, como a Câmara Internacional de Comércio de Paris (CIC ou ICC, sua sigla do inglês International Camber of Commerce), o UNIDROIT – INSTITUT INTERNATIONAL POUR L’UNIFICATION DU DROIT PRIVÉ, ILA – INTERNATIONAL LAW ASSOCIATION, UNCITRAL – UNITED NATIONS COMMISSION ON INTERNATIONAL TRADE LAW, OEA – ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS editando leis uniformes, leis-modelos, conjuntos de regras e princípios que regem o comércio internacional, de que são exemplos as leis uniformes sobre letras de câmbio e notas promissórias (Genebra, 1930) a lei uniforme sobre cheques (Genebra, 1931) os Incoterms, as Regras e Usos Uniformes de Créditos Documentário, e as Regras Uniformes para Garantia de Contratos (CIC), a lei modelo de arbitragem (UNCITRAL) , a Convenção Internacional sobre Compra e Venda Internacional (Viena, 1980), Princípios dos Contratos Internacionais (Unidroit) , Convenção Interamericana sobre o Direito Aplicável aos Contratos Internacionais (CIDIP V - Cidade do México, 1994). 4- A AUTONOMIA DA VONTADE E A LEX MERCATORIA Sendo embora matéria objeto de capítulo posterior dentro do plano da presente obra a lei aplicável aos contratos internacionais de comércio, cabe aqui uma breve referência ao posicionamento da aplicação da lex mercatoria no Brasil. Em nosso direito positivo rege a matéria da lei aplicável aos contratos o art. 9º da Lei de Introdução ao Código Civil , que determina reger o contrato a lei do país onde for constituída a obrigação. Dessa norma resulta, segundo PONTES DE MIRANDA, não existir no Brasil , no que se refere ao Direito Internacional Privado como um todo, a autonomia da vontade, especificando JOSÉ INÁCIO GONZAGA FRANCESCHINI , NÁDIA ARAUJO E JOÃO GRANDINO RODAS, que em matéria contratual privada internacional a única vontade autônoma que prevalece é a de determinar o lugar de celebração (constituição da obrigação) do contrato, citado AMILCAR DE CASTRO para quem , no Brasil, as partes não podem fazer direito por sua vontade, nem podem escolher direito à vontade, podendo-se dizer que em matéria de obrigações convencionais, “a vontade das partes tem a liberdade de pássaro na gaiola: pode mover-se em certos limites, mas em qualquer direção encontra barreira intransponível”. Destarte, a inclusão de cláusula em contrato celebrado no Brasil de sujeição à lex mercatoria incidiria na vedação da lei introdutória do ordenamento civil, não alterada com o advento com do novo Código de 2002 . No entanto, a lei disciplinadora da arbitragem (lei 9307/1996), expressamente faculta às partes autorizar ao árbitro julgar por equidade (art.11,I), sendo requisito obrigatório da sentença arbitral a indicação dos fundamentos da decisão, “mencionando-se expressamente” se o julgamento foi por equidade. Queda assim, a pergunta : se podem os árbitros ser autorizados a decidir por equidade, podem também ser autorizados a decidir com base na lex mercatoria ? Afinal, representa ela um “minus” em relação ao “plus” que é a equidade e o velho anexim já enuncia, “quem pode o mais pode o menos”. 8 4 – CONCLUSÃO A adoção da “lex mercatoria” apresenta-se, na atual fase de globalização da economia como um grande facilitador da contratação no comércio internacional, afastando a incerteza dos julgamentos nacionalistas que podem prosperar em qualquer parte do mundo, seja por ideologia, seja por xenofobia, ou pelo prosaico comodismo de decidirem os juizes sem maiores indagações sobre o direito alienígena. Adicione-se a isto a tendência que se revela de maior incremento da utilização da arbitragem no campo internacional, afastando-se, além dos fatores acima, e principalmente no caso do Brasil, a morosidade da justiça, demora essa na prestação jurisidicional que não é apanágio somente do sistema judiciário brasileiro, mas que aflige também inúmeros países. O profissional do direito que opere, deseje ou veja-se forçado a operar no campo das contratações internacionais – e esse é o caminho a ser percorrido hoje e mais ainda no futuro próximo – tem por obrigação debruçar-se sobre a matéria e verificar, se o direito dito espontâneo da lex mercatoria será o que melhor atenderá as circunstâncias de cada contrato em que tiver de intervir. É de ARNOLDO WALD a recomendação de que a atitude dos juristas brasileiros em relação a “lex mercatoria” não deve ser de simples espectadores, mas sim de verdadeiros participantes de sua construção “tendo um papel ativo no plano profissional e doutrinário”. 9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALCA - www.alca-ftaa.org ARAUJO, Nádia de. Contratos Internacionais – Autonomia da Vontade, Mercosul e Convenções Internacionais. Rio : Renovar, 1997. ARAUJO, Nádia de. “Contratos Internacionais e a Jurisprudência Brasileira: Lei Aplicável, Ordem Pública e Cláusula de Eleição de Foro”. In Contratos Internacionais . Coord. 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