DIREITO DO COMÉRCIO INTERNACIONAL “LEX MERCATORIA” E USOS DO COMÉRCIO INTERNACIONAL: SUA RELEVÂNCIA NA ARBITRAGEM COMERCIAL INTERNACIONAL JOANA CAMEIRA (2324) ÍNDICE INTRODUÇÃO “LEX MERCATORIA” – DEFINIÇÃO, NATUREZA, DELIMITAÇÃO E APLICAÇÃO A RELEVÂNCIA DA “LEX MERCATORIA” NA ARBITRAGEM COMERCIAL INTERNACIONAL APLICAÇÃO DA “LEX MERCATORIA” EM DECISÕES ARBITRAIS – ANÁLISE DE CASOS CONCRETOS CONCLUSÃO INTRODUÇÃO «“Lex Mercatoria”, “Ius Mercatorum” ou “New Law Merchant”, com estas expressões, pretende-se designar um complexo normativo, de carácter material, que abrange os usos, práticas ou costumes do comércio internacional» Maria Helena Brito «Direito autónomo do comércio internacional, aquelas regras e princípios aplicáveis às relações do comércio internacional, que se formam independentemente da acção dos órgãos estaduais e supra estaduais.» L. Lima Pinheiro “LEX MERCATORIA” – NATUREZA, DELIMITAÇÃO, DEFINIÇÃO E APLICAÇÃO I. “Lex mercatoria” como um problema de concepção das fontes do direito comercial internacional II. Teses favoráveis à “Lex mercatoria” - Goldman, Schmitthoff, René David, Klaus Berger e au mais recentes III. Críticas à “Lex mercatoria” IV. Considerações sobre as diversas posições V. Conteúdo da “Lex mercatoria” I. “Lex mercatoria” como um problema de concepção das fontes do direito comercial internacional Processo da “Globalização” da economia Criação de normas uniformizadoras Inserção no capítulo das fontes II. Teses favoráveis à “Lex mercatoria” - Goldman, Schmitthoff, René David, Klaus Berger e autores mais recentes 1. GOLDMAN (tese mais polémica) A “Lex mercatoria” assentaria na origem e na natureza costumeira e espontânea dos elementos que a constituem; Definição: “conjunto de princípios gerais e de regras costumeiras, espontaneamente utilizadas ou elaboradas no contexto do comércio internacional, sem referência a um determinado sistema legal nacional”; II. Teses favoráveis à “Lex mercatoria” - Goldman, Schmitthoff, René David, Klaus Berger e autores mais recentes Aplicabilidade: resultaria, por um lado, das cláusulas incluídas em contratos internacionais e, por outro lado, das regras efectivamente aplicadas por sentenças de tribunais internacionais; O principal objectivo de Goldman era demonstrar que a “Lex Mercatoria” constitui uma ordem jurídica autónoma; Afirmava que aquela é composta por regras jurídicas, com as características de certeza, generalidade, publicidade, previsibilidade e efectividade necessárias para permitir tal qualificação. II. Teses favoráveis à “Lex mercatoria” - Goldman, Schmitthoff, René David, Klaus Berger e autores mais recentes 2. SCHMITTHOFF (tese mais ampla) A “Lex Mercatoria” seria definida a partir das fontes de que emerge; Definição: encarada como direito material especial do comércio internacional; Aplicabilidade: resultaria das convenções internacionais de direito uniforme sobre operações do comércio internacional, os usos comerciais internacionais e as próprias regras de fonte interna reguladoras de operações do comércio internacional; II. Teses favoráveis à “Lex mercatoria” - Goldman, Schmitthoff, René David, Klaus Berger e autores mais recentes Afirmava que a “Lex Mercatoria” adquire a sua autonomia por permissão e consentimento de todos os Estados e tem o seu fundamento nos direitos nacionais, desenvolvendo-se por iniciativa da actividade internacional numa área de “desinteresse” dos Estados; As vantagens seriam óbvias: a ideia de aplicar leis nacionais – direccionadas para transacções domésticas – a contratos transnacionais trouxe sempre alguns inconvenientes; Procurou demonstrar que a aplicação das regras de comércio internacional a transacções comerciais internacionais traria vantagens. II. Teses favoráveis à “Lex mercatoria” - Goldman, Schmitthoff, René David, Klaus Berger e autores mais recentes 3. RENÉ DAVID (seguidor de Schmitthoff) O comércio internacional deveria ser submetido a um direito verdadeiramente internacional; Definição: encarada autónomo; como um direito internacional II. Teses favoráveis à “Lex mercatoria” - Goldman, Schmitthoff, René David, Klaus Berger e autores mais recentes René David demarcou duas soluções para aplicação da “Lex Mercatoria”; Uma forma de o fazer seria através da concessão de competência, para a criação de regras de direito internacional, a autoridades supranacionais ou através da celebração de convenções entre Estados; Outra forma seria pelo recurso à arbitragem, visto as jurisdições arbitrais beneficiarem um direito internacional autónomo (em relação às regras dos direitos estaduais). II. Teses favoráveis à “Lex mercatoria” - Goldman, Schmitthoff, René David, Klaus Berger e autores mais recentes 4. KLAUS BERGER (seguidor do entendimento amplo) Criou uma técnica própria e apresentou uma lista de 78 princípios da “Lex Mercatoria”; A marca fundamental desta lista era a sua não estaticidade e a sua natureza aberta; Definição: a “Lex Mercatoria” como direito material especial do comércio internacional; II. Teses favoráveis à “Lex mercatoria” - Goldman, Schmitthoff, René David, Klaus Berger e autores mais recentes Aplicabilidade: a lista compilada por Klaus Berger provém de variadas fontes, desde os princípios gerais do direito, o “case law” dos tribunais arbitrais, as leis modelo referentes a contratos internacionais, à análise do direito comparado; Klaus Berger atribui particular relevância à investigação relacionada com a aplicação prática do comércio internacional, rejeitando a crítica de que a doutrina da “Lex Mercatoria” seria meramente teórica. II. Teses favoráveis à “Lex mercatoria” - Goldman, Schmitthoff, René David, Klaus Berger e autores mais recentes 5. OUTROS AUTORES (elaborações metodológicas) Surge uma perspectiva que define a “Lex Mercatoria”, não em função dos elementos nem das fontes, mas em função da metodologia adoptada na resolução de litígios; Gaillard, apesar de não rejeitar a utilização de listas de princípios como a de Berger, sustenta que a “Lex Mercatoria” consistiria num método para determinar regras ou princípios apropriados na formação da decisão; II. Teses favoráveis à “Lex mercatoria” - Goldman, Schmitthoff, René David, Klaus Berger e autores mais recentes Segundo Gaillard, este método consistiria em, perante um qualquer caso em concreto, encontrar a solução de direito substantivo para o problema legal em causa, não a partir de uma lei específica escolhida através do método tradicional conflitual, mas de uma análise comparativa, que permitiria aos árbitros a aplicar a regra ou regras mais amplamente aceites. III. Críticas à “Lex mercatoria” Autores como Lagarde, Christian Von Bar e Delaume, têm formulado observações críticas a propósito da “Lex Mercatoria”; Alguns destes autores afirmam que a “Lex Mercatoria” não apresenta as características de uma ordem jurídica completa; Outros referem o seu carácter impreciso ou incerto, expresso nos termos “mito” e “enigma”; Há quem coloque, ainda, em dúvida a sua própria existência. IV. Considerações sobre as diversas posições De facto, não se pode sustentar que a “Lex Mercatoria” constitui uma ordem jurídica autónoma, formada por um conjunto completo, preciso e exaustivo de regras e princípios (como defendia Goldman); No entanto, também os sistemas jurídicos nacionais são incompletos e contêm lacunas, assim como o direito internacional público; Deste modo, neste aspecto, a “Lex Mercatoria” não difere tanto dos sistemas jurídicos nacionais e do direito internacional público (contrariamente ao que afirmavam os críticos); IV. Considerações sobre as diversas posições Por outro lado, não se podem aceitar as concepções amplas da “Lex Mercatoria”, apenas se aceitando um entendimento mais restrito que reconhece o seu carácter costumeiro, espontâneo e não legislado (rejeição de teses como a de Schmitthoff); Por último, o reconhecimento da existência e da relevância das regras da “Lex Mercatoria” não depende da sua inserção numa ordem jurídica nem da sua recepção pelas ordens jurídicas nacionais, bastando a sua aceitação como regras de conduta vinculativas por parte dos operadores do comércio internacional. V. Conteúdo da “Lex mercatoria” As características inerentes à “Lex Mercatoria” tornam impossível apresentar um elenco completo do respectivo conteúdo; No entanto, parece haver um ponto comum a todas as teorias sobre o direito comercial transnacional; Quase todos os autores parecem partir da combinação do direito comparado e das suas perspectivas, dos usos, dos costumes e das práticas do comércio internacional, para determinar as regras aplicáveis às disputas emergentes do comércio internacional. V. Conteúdo da “Lex mercatoria” Os princípios e as regras que compõem a “Lex Mercatoria” provêm, nomeadamente, de: o “Práticas comerciais, usos ou cláusulas padronizadas”, formulados por organizações profissionais; o Trabalhos elaborados por peritos de diferentes países, reunidos no âmbito de certas organizações internacionais; o Guias profissionais, códigos de conduta ou códigos deontológicos; o Decisões jurisprudenciais, principalmente de árbitros internacionais, no âmbito da arbitragem comercial internacional. V. Conteúdo da “Lex mercatoria” “Práticas comerciais, usos ou cláusulas padronizadas”, formulados por organizações profissionais: o Os Incoterms; o As Regras e Usos Uniformes relativos aos Créditos Documentários da CCI; o As regras uniformes sobre garantias autónomas da CCI; o As regras uniformes sobre cobranças da CCI; o As cláusulas contratuais gerais adoptadas no âmbito de certos tipos contratuais, como os modelos contratuais elaborados pela CCI; o Os modelos de cláusulas a incluir nos contratos, como as cláusulas de força maior e hardship, preparadas pela CCI. V. Conteúdo da “Lex mercatoria” Trabalhos elaborados por peritos de diferentes países, reunidos no âmbito de certas organizações internacionais: o Os Princípios UNIDROIT relativos aos contratos comerciais internacionais; o Os Princípios do direito europeu dos contratos. V. Conteúdo da “Lex mercatoria” Guias profissionais, códigos de conduta ou códigos deontológicos – são instrumentos sem carácter vinculativo, mas dotados de poder de persuasão em relação aos seus destinatários: o Códigos de conduta da CNUDCI, sobre práticas restritivas da concorrência. A RELEVÂNCIA DA “LEX MERCATORIA” NA ARBITRAGEM COMERCIAL INTERNACIONAL I. Importância da arbitragem internacional no âmbito do comércio II. Disposições que permitem o recurso à “Lex mercatoria” III. “Lex mercatoria” como direito aplicável ao fundo da causa nas decisões arbitrais I. Importância da arbitragem no âmbito do comércio internacional A arbitragem internacional como jurisdição normal para resolução dos litígios emergentes do comércio internacional; L. Lima Pinheiro: o que se procura aferir é “se, e até que ponto, a Lex Mercatoria é fonte de direito directamente aplicável nesta jurisdição”; No âmbito da arbitragem internacional, a escolha de regras transnacionais para regular um contrato é amplamente aceite. II. Disposições que permitem o recurso à “Lex mercatoria” Em 1981, o Código Processual Civil Francês - artigo 1496.º; Em 1986, o Código de Processo Civil Holandês – artigo 1054.º; Em 1987, o Estatuto Suíço de Direito Internacional Privado – artigo 187.º; Outras legislações estaduais seguiram esta tendência: Itália, México, Egipto, entre outras. II. Disposições que permitem o recurso à “Lex mercatoria” A Convenção de Genebra de 1961 – artigo 7.º; Os Regulamentos de arbitragem da CNUDCI, da AAA, OMPI e da CCI ; No âmbito da CCI, o artigo 17.º do Regulamento de Arbitragem dispõe sobre o “direito aplicável”. III. “Lex mercatoria” como direito aplicável ao fundo da causa nas decisões arbitrais Artigo 17.º do Regulamento de Arbitragem da CCI: “Regras de direito aplicáveis ao mérito 1. As partes terão liberdade para escolher as regras jurídicas a serem aplicadas pelo Tribunal Arbitral ao mérito da causa. Na ausência de acordo entre as partes, o Tribunal Arbitral aplicará as regras que julgar apropriadas. 2. Em todos os casos, o Tribunal Arbitral levará em consideração os termos do contrato e os usos e costumes comerciais pertinentes.” III. “Lex mercatoria” como direito aplicável ao fundo da causa nas decisões arbitrais De acordo com este preceito, quer tenha havido escolha da lei aplicável ao fundo da causa, quer, na falta dessa escolha, tenha sido determinada a lei aplicável por ser a mais adequada, sempre o árbitro deverá ter em conta as cláusulas do contrato e os usos do comércio internacional, que sejam relevantes; Deste modo, “os usos do comércio internacional” constituem a denominada “Lex Mercatoria”; III. “Lex mercatoria” como direito aplicável ao fundo da causa nas decisões arbitrais No entanto, a escolha pelas partes da “Lex Mercatoria” não elimina a necessidade de determinar a ordem jurídica competente para reger o contrato internacional em causa, de acordo com os critérios gerais; Convenção de Roma e Regulamento Roma I; Maria Helena Brito: afirma que “seja qual for a natureza que se atribua às regras e princípios que integram a lex mercatoria, não é possível reconhecer-lhe uma posição de exclusividade; as operações do comércio internacional não podem ser por completo subtraídas à competência dos direitos estaduais.” III. “Lex mercatoria” como direito aplicável ao fundo da causa nas decisões arbitrais L. Lima Pinheiro faz uma distinção entre o direito que define o estatuto da arbitragem e o direito aplicável ao fundo da causa; Por estatuto da arbitragem entende-se o conjunto das normas e princípios primariamente aplicáveis pelo tribunal arbitral; O estatuto da arbitragem engloba inúmeros aspectos, quer processuais quer substantivos, do processo arbitral; III. “Lex mercatoria” como direito aplicável ao fundo da causa nas decisões arbitrais Para a doutrina maioritária, os tribunais de arbitragem transnacional não são criados pelo Direito de um Estado, que surja como exclusivamente competente para definir a sua “lex fori”; Deste modo, estes tribunais não têm uma “lex fori” comparável à dos tribunais estaduais e não estão submetidos a um particular sistema nacional de Direito Internacional Privado. APLICAÇÃO DA “LEX MERCATORIA” EM DECISÕES ARBITRAIS – ANÁLISE DE CASOS CONCRETOS I. Processo n.º 9797/CK/AER/ACS - Andersen Consulting Business Unit Member Firms vs. Arthur Andersen Business Unit Member Firms and Andersen Worldwide Society Cooperative I. Processo n.º 9797/CK/AER/ACS - ACBU vs. AABU and AWSC No âmbito da decisão arbitral em questão mostra-se relevante analisar: o A cláusula compromissória que vinculava o tribunal arbitral a dirimir o litígio; o A escolha, pelo tribunal, da lei aplicável. I. Processo n.º 9797/CK/AER/ACS - ACBU vs. AABU and AWSC Cláusula compromissória que vinculava o tribunal arbitral a dirimir o litígio: o “[...][A]ny and all disputes which cannot be settled amicably, including any ancillary claims of any party, arising out of or in connection with this Agreement (including the validity, scope and enforceability or this arbitration provision) shall be finally settled by arbitration conducted by a single arbitrator in Geneva, Switzerland.” I. Processo n.º 9797/CK/AER/ACS - ACBU vs. AABU and AWSC Cláusula compromissória (cont.): o “The proceedings shall be conducted pursuant to the then- existing Rules of Conciliation and Arbitration of the International Chamber of Commerce, except that the parties may select an arbitrator who is a national of the same country as one of the parties. [...].” I. Processo n.º 9797/CK/AER/ACS - ACBU vs. AABU and AWSC Cláusula compromissória (cont.): o “The arbitrator shall decide in accordance with the terms of this Agreement and of the Articles and Bylaws of Andersen, S.C. In interpreting the provisions of this Agreement, the arbitrator shall not be bound to apply the substantive law of any jurisdiction but shall be guided by the policies and considerations set forth in the Preamble of this Agreement and the Articles and Bylaws of Andersen, S.C., taking into account general principles of equity [...].” I. Processo n.º 9797/CK/AER/ACS - ACBU vs. AABU and AWSC A escolha, pelo tribunal, da lei aplicável: o “The Tribunal found that the Member Firm Interfirm Agreements (MFIFAs) entered into between AWSC and the Andersen Worldwide Organization member firms, together with the AWSC Articles and Bylaws are the relevant rules of law chosen by the parties to govern the present arbitration; o in interpreting the provisions of the MFIFAs the arbitrator is not bound to apply the substantive law of any jurisdiction but shall be guided by the policies and considerations set forth in the Preamble to the MFIFAs and the Articles and Bylaws of AWSC;” I. Processo n.º 9797/CK/AER/ACS - ACBU vs. AABU and AWSC A escolha da lei aplicável (cont.): o “if the MFIFAs and the AWSC Articles and Bylaws are silent or do not provide guidelines for a decision, the Tribunal shall, pursuant to Article 17.1 of the ICC Rules, apply the rules of law it deems appropriate; o those rules of law shall be the general principles of law and the general principles of equity commonly accepted by the legal systems of most countries.” I. Processo n.º 9797/CK/AER/ACS - ACBU vs. AABU and AWSC A escolha da lei aplicável (cont.): o “The Unidroit Principles of International Commercial Contracts are a reliable source of international commercial law in international arbitration for they contain in essence a restatement of those 'principes directeurs' that have enjoyed universal acceptance and, moreover, are at the heart of those most fundamental notions which have consistently been applied in arbitral practice.” CONCLUSÃO “A unificação do direito realizada através dos instrumentos jurídicos tradicionais (…) e a unificação inerente à auto-regulação apresentam vantagens e inconvenientes. Assentes em diferentes pressupostos, os dois métodos de uniformização são todavia inspirados num objectivo comum, que se traduz em regular o comércio internacional de um modo mais adequado e ágil (…) Podem e devem, por isso, considerar-se complementares.” Maria Helena Brito