2',5(,72,17(51$&,21$/&2167,78&,21$/12%5$6,/D LQFRUSRUDomRGRVWUDWDGRVHDLQFRQVWLWXFLRQDOLGDGHGD(& &\QWKLD6RDUHV&DUQHLUR 2FRQWH[WRHRWHPD±'LUHLWRLQWHUQDFLRQDOH(VWDGRGH'LUHLWR±2GpILFLW FRQVWLWXFLRQDOEUDVLOHLUR±$MXULVSUXGrQFLDLQFRQVWLWXFLRQDOGR67)$ LQFRQVWLWXFLRQDOLGDGHQD(PHQGD&RQVWLWXFLRQDOQ ,2FRQWH[WRHRWHPD A década de 1990, encerrando o trágico século XX, foi marcada por sucessivos eventos que promoveram mudanças significativas nas relações internacionais, fatos que repercutiram no Direito Internacional. Assistimos ao fim da Guerra Fria e da bipolarização ideológica mundial, com a desintegração do bloco soviético, a reunificação da Alemanha e, concomitantemente, a fragmentação da Iugoslávia. Evidenciou-se o declínio econômico da Rússia enquanto o Tratado de Maastricht institucionalizava a União Européia. Houve a invasão do Kuwait pelo Iraque, inaugurando, com a Guerra do Golfo, a intervenção das Nações Unidas em conflitos locais. Testemunhamos, ainda, o crescimento dos Tigres Asiáticos, seguindo-se a crise de 1995 e a sua conseqüente desaceleração econômica, já sob os acordos desses países com o FMI. Em 1995, em meio à euforia liberal, entrou em vigor o Tratado de Marraqueche, que instituiu a OMC, efetivando, após cinqüenta anos, o tripé econômico idealizado nas Conferências de Bretton Woods. 1 Professora de Direito Internacional Público na Faculdade Mineira de Direito da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, bacharel em História pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e em Direito pela Faculdade de Direito de Franca, mestre em Direito Empresarial pela Universidade de Franca, doutoranda em Direito Internacional pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Minas Gerais. 1 Finalizando a década o mundo foi colhido pelo assombro dos atentados de 2001 às Torres Gêmeas, fazendo arrefecer a certeza sobre o fim da História, em face do terrorismo, igualmente internacionalizado. No entanto, e ao mesmo tempo, a revolução eletrônica e o despertar de consciências para o problema da devastação ambiental, para o flagelo da pobreza e da violência, aproximaram os povos, possibilitando novas formas de mobilização da sociedade civil contra as regulamentações econômicas dos organismos internacionais e contra as incursões territoriais das potências militares. Esse cenário mundial refletia-se, como não poderia deixar de ser na América e, em 1991, houve a institucionalização do Mercosul, em 1994 a formação do NAFTA, acompanhados da adesão dos países do continente ao comércio multilateral regulamentado pela OMC. Além disso, após o Consenso de Washington, ainda no início da década, iniciaram-se as negociações entre o FMI e alguns países da América do Sul, incluindo o México, o que implicou na reestruturação administrativa e econômica desses Estados, dependentes do capital externo, determinando as privatizações das empresas estatais e o abandono da política de substituição das importações. O Brasil foi marcado por todas essas significativas mudanças, que, no entanto, atropelaram a Constituição de 1988, recentemente promulgada. Os Constituintes, absorvidos com as prementes questões internas, não puderam alcançar a dimensão das transformações em curso. Instalada a Assembléia Constituinte em 1986, até 1988, quando promulgado o texto constitucional, o país estava concentrado no esforço de efetivar o processo de democratização. 2 Isso pode explicar o fato dos constituintes não terem se voltado, com mais atenção, para a conjuntura internacional, descurando-se dos efeitos que, brevemente, repercutiriam na ordem jurídica interna. O fato é que não previam a dimensão das transformações políticas e econômicas no âmbito internacional e não se ocuparam do Direito Internacional Constitucional com o rigor que o tema merecia, pois no decorrer da década de 1990, em decorrência da repentina abertura do comércio para bens, serviços e capitais, o Brasil abriria também as suas fronteiras jurídicas. Apenas em relação à sistemática de proteção dos Direitos Humanos o texto constitucional era contemporâneo: expressou as conquistas efetivadas após a Segunda Guerra e refletiu a tendência internacional de ampla proteção aos direitos individuais que, finalmente, foram incorporadas ao texto, reconhecendo-se aos cidadãos brasileiros, de fato e de direito, as conquistas que, até então, não lhe eram garantidas, em face da sucessão de governos autoritários. Mesmo em face às incontestáveis conquistas humanistas, e para que se tenha a dimensão da importância da disciplina constitucional em relação às normas gerais de Direito Internacional, faz-se necessário tecer alguns esclarecimentos prévios sobre a origem desse ramo jurídico, demarcando o perigo de sua tendência colonialista. ,,±'LUHLWR,QWHUQDFLRQDOHR(VWDGRGH'LUHLWR A doutrina do Direito Internacional Moderno inicia-se com os estudos dos teólogos do século XVII, quando o sistema de Estados consolidava-se na Europa. Instituiu-se, nessa época, a tese da Soberania Estatal, do Leviatã e de seu Príncipe. O princípio da soberania, passou, desde então, a regulamentar a relação dos Estados europeus entre si, e com os outros povos da Terra. 3 Do conceito moderno de estatalidade elaborou-se os fundamentos do Direito Internacional, ramo jurídico que se encarregaria de disciplinar as obrigações que surgem das relações entre os Estados metropolitanos. Este Direito, inclusive, incluía o reconhecimento de direitos territoriais, de domínio, desses Estados sobre as outras nações organizadas. Dessas relações internacionais resultariam acordos que são chamados, genericamente, de tratados internacionais. Essa incipiente doutrina pré-moderna – ainda vigente em muitos de seus princípios – emprestou do Direito Privado os institutos que fundamentam, até nossos dias, os tratados internacionais. Nesse sentido, as espécies corriqueiras de tratados assemelhavam-se aos contratos de natureza privada e eram regidos, portanto, pela mais ampla autonomia da vontade, justamente porque, no caso desses acordos, as partes são os Estados imbuídos do atributo da soberania. Os Estados, ao se reconhecerem, juridicamente, como iguais entre si, excluíam a possibilidade de uma ordem ou de um Direito supranacional – a menos que se tratesse de um Direito de origem divina. Assim, pelo menos, era no início. Até o século XIX, dessas relações internacionais surgiram, basicamente, tratados de paz, acordos de fronteiras, acordos militares, compromissos bilaterais em reconhecer direitos aos estrangeiros oriundos dos Estados-partes, bem como o reconhecimento da validade dos atos jurídicos produzidos pelo intercâmbio de pessoas físicas e jurídicas desses países, além de acordos comerciais pontuais. Já à partir do século XIX, com o aumento progressivo do número de Estados instituídos segundo o paradigma europeu, as relações internacionais diversificam-se e tornam-se mais complexas. 4 Tratados passam a instituir zonas de livre comércio e uniões aduaneiras e são firmados acordos que transcendem, por seu objeto, a mera natureza contratual. Esses últimos tem a função de harmonizar as leis dos Estados que tos ratificam e são suscetíveis de serem aplicados pelos tribunais internos. Essa nova demanda jurídica evidenciou-se, também, no campo dos Direitos Sociais. As organizações de trabalhadores da Inglaterra, e depois de outros países industriais europeus, levaram a pauta dos movimentos operários para as conferências internacionais multilaterais, que passam a ser realizadas no curso do século XIX. Nessas instâncias discutia-se o interesse em se harmonizar normas trabalhistas, com a declaração de princípios e de direitos uniformes que os Estados obrigar-se-iam a reconhecer, incorporando-os ao seu ordenamento jurídico. Igualava-se, dessa forma, os encargos incidentes na produção, interesse em comum das economias concorrentes no comércio internacional. A prática das grandes Conferências Internacionais resultará, portanto, na criação de novas instâncias de formulação do Direito. As Convenções que resultam dessa diplomacia multilateral instituem normas que se assemelham, pelo seu caráter geral e abstrato, às leis internas. Tais acordos, embora tenham como destinatários diretos os Estados signatários - que obrigavam-se a incorporar e dar efetividade à essas normas – também atingem, em seus efeitos, pessoas físicas e jurídicas. Hans Kelsen, professor de Direito Internacional na Áustria, ao refletir sobre a natureza jurídica dessas normas, afirma que os tratados internacionais, por refletiriam a vontade de diversas soberanias, deveriam ser o fundamento para as Constituições locais. Kelsen não admitia a dualidade de sistemas jurídicos, ou seja, as normas internacionais e as internas estariam inseridas em uma mesma ordem, manifesta por meio da 5 mesma vontade estatal, atributo da soberania. As duas espécies normativas – interna e internacional - vinculam os poderes do Estado e os atos de seus cidadãos. Nesse esquema jurídico as normas internacionais estariam, portanto, na base da estrutura piramidal, e seriam o fundamento para a ordem política interna, local, o que significa que as Constituições deveriam se conformar às normas internacionais. A resistência a essa tese respaldou-se, por sua vez, na própria história do Direito Internacional, eurocêntrico em suas origens, e fundamenta-se no princípio da autodeterminação dos povos, no princípio da não intervenção, ambos concebidos pela doutrina americana, bem como no princípio republicano, do qual decorre o Estado Democrático de Direito, baseado na transparência dos órgãos de Estado e na participação popular. A tese dualista, contraposta ao monismo kelseniano, visava resguardar a soberania do Estado em face a uma ordem internacional que é desigual de fato, pois consubstanciada em países hegemônicos, seja militar ou economicamente, em detrimento de Estados que, a todo tempo, são instados a declarar sua independência. Além disso, não se pode descurar que, em face da diversidade dos temas acordados em tratados, a maior parte das normas editadas em instâncias internacionais não possuem, como pretendia Kelsen, a natureza jurídica de normas PDWHULDOPHQWHFRQVWLWXFLRQDLV, capazes, portanto, de nortear as Constituições locais. Assim, torna-se imprescindível que os Estados estabeleçam, em suas Constituições, uma clara atribuição de competências para celebrar tratados internacionais, bem como o procedimento formal para a incorporação dos tratados ao sistema normativo interno e a relação hierárquica dos tratados com as demais normas do ordenamento jurídico. 6 Essas questões são elementares para definir a relação do Direito Internacional com o Direito Interno e ao mesmo tempo preservar os interesses locais confrontados com a tendência imperial do modelo capitalismo internacional. Em que pese a relevância da matéria a Constituição brasileira não cuidou de aspectos importantes da relação jurídica entre o Direito Internacional e o Direito Interno. E a essa lacuna veio somar-se a falta de disciplina constitucional sobre a atuação das Organizações Internacionais na elaboração, cada vez mais freqüente, de normas que vinculam os Estados-membros. Ora, a ordem internacional resultante das transformações operadas na década de 1990 determinou a formação dos blocos de integração econômica e, em conseqüência, ao surgimento do denominado Direito Comunitário. Esse fenômeno têm feito com que os tratados, até então a principal fonte de Direito Internacional, sejam substituídos pela edição de Resoluções editadas no âmbito das Organizações Internacionais. Tais normas podem se sobrepor ao Direito interno dos Estados-membros desses organismos, adquirindo, de fato e de direito, natureza supranacional. Em suma, a teoria constitucional brasileira não foi, até o momento, sequer capaz de pacificar as questões relativas aos tratados internacionais e já foi pega no contra-pé, em face da proliferação de normas decorrentes da atuação dos órgãos das Organizações multilaterais ou do Direito editado pelos blocos de integração. ,,,±2GpILFLWFRQVWLWXFLRQDOEUDVLOHLUR O desconhecimento, pelos legisladores e operadores do Direito, da sistemática do Direito Internacional, somado às lacunas no texto da Constituição brasileira, têm contribuído 7 para as interpretações equivocadas e arbitrárias dos órgãos judiciais, os responsáveis pela adequada aplicação do direito, e promovem, igualmente, equívocos perpetrados pelo Parlamento, como o trazido pela Emenda Constitucional n.° 45, que acrescentou o § 3º do art. 5º da Constituição Federal. Para fundamentar tais afirmações, façamos uma breve análise do Direito Constitucional Internacional vigente. A Constituição brasileira estabelece, por tradição, que a competência para celebrar tratados internacionais é, precipuamente, do Poder Executivo. O art. 84, inciso VIII, da CF2, determina que compete privativamente ao Presidente da República celebrar acordos internacionais. De fato, o Poder Executivo, desde as origens do Estado, é o poder tradicionalmente competente para tanto. No entanto, o mesmo dispositivo, repetindo as Constituições anteriores, impõe a manifestação do Congresso Nacional para que o tratado seja incorporado ao ordenamento jurídico interno. Este comando procura contemplar o princípio da transparência dos órgãos republicanos. Assim, a análise e a aprovação do Parlamento, consubstanciada em um Decreto Legislativo, trata-se de condição imprescindível para a ratificação de um tratado, conforme expresso no inciso I do art. 49, CF.3 Se no âmbito internacional um tratado obriga o Estado signatário, uma vez incorporado ao sistema jurídico interno a norma destina-se, conforme o seu objeto, às pessoas físicas e jurídicas de direito público ou privado, e devem ser aplicados pelos tribunais do país. 2 Art. 84. Compete privativamente ao Presidente da República: (...) VIII – celebrar tratados, convenções e atos internacionais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional; 3 Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional: I – resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio internacional. 8 Dessa aplicação resultam demandas práticas que devem ser regulamentadas pelo ordenamento jurídico: a relação dos tratados com as normas internas, as questões relativas à hierarquia normativa, e que podem estar relacionadas, por sua vez, com o conteúdo dessas normas; questões decorrentes da sucessão de leis no tempo, definindo se o tratado posterior tem o condão de revogar uma lei anterior, o que leva a admitir, igualmente, que um tratado seja revogado por lei que lhe sucede; e é imprescindível a determinação do procedimento para a internalização dos tratados. Nenhuma dessas questões foi tratada pelo constituinte brasileiro - a não ser nos parágrafos do art. 5º, CF - ou mesmo por leis infraconstitucionais, com exceção do art. 98, CTN.4 Tais lacunas foram preenchidas pela jurisprudência. No entanto, as interpretações do texto constitucional estão longe de apaziguar as controvérsias. Vejamos, o art. 59, CF, que relaciona as normas provenientes do procedimento legislativo, não inclui o tratado internacional. No entanto, o dispositivo refere-se ao Decreto Legislativo - instrumento pelo qual se manifesta a aprovação do Parlamento, condição para a posterior ratificação e incorporação dos tratados à ordem jurídica interna. Se considerarmos que existe uma relação hierárquica no rol estabelecido no art. 59, CF5, o tratado – aprovado mediante Decreto Legislativo e incorporando pela edição de Decreto do Presidente da República - seria insuscetível de revogar qualquer Lei Ordinária, tratando-se, portanto, de norma ineficaz no ordenamento jurídico brasileiro, quando o seu objeto tratar de matéria já legislada no Brasil. 4 Art. 98. Os tratados e convenções internacionais revogam ou modificam a legislação tributária interna, e serão observados pela que lhes sobrevenha. 5 Art. 59. O processo legislativo compreende a elaboração de: I – emendas à Constituição; II – leis complementares; III – leis ordinárias; IV – leis delegadas; V – medidas provisórias; VI – decretos legislativos; VII – resoluções. 9 Por exemplo, se o Brasil ratifica um tratado internacional multilateral acordando com vários países novas regras sobre os títulos de crédito, ou se o Brasil ratifica tratado sobre a responsabilidade das companhias aéreas em relação aos consumidores, ou ainda, se os países da América Latina estabelecem normas de proteção mais abrangente aos trabalhadores, bastaria a existência de uma lei anterior sobre a mesma matéria para que essa lei prevalecesse sobre o tratado, se cotejarmos o Decreto Legislativo com a lei em questão. Como a solução é evidentemente ilógica, o Decreto Legislativo deve ser entendido apenas como uma fase do procedimento de internalização do tratado, sem que se possa determinar, segundo o rol do art. 59, a sua posição em relação às demais normas do ordenamento jurídico brasileiro. Assim, e em face do silêncio constitucional ou mesmo infra-constitucional, o STF firmou, por meio de precedentes, o entendimento de que os tratados tem hierarquia de lei ordinária, independentemente da matéria, podendo revogar leis anteriores e serem revogados por leis que lhes sucederem. Essa sistemática, no entanto, cria uma situação de insegurança jurídica para o Estado, no âmbito internacional, pois o tratado pode perder a vigência no plano interno e permanecer vigorando no âmbito internacional, determinando a responsabilidade do Estado. Ou seja, mantêm-se as obrigações do Brasil perante os demais Estados signatários, ou em relação às Organizações Internacionais, mas extinguem-se essas mesmas obrigações em relação à sua comunidade interna. Admite-se, enfim, a coexistência de dois sistemas jurídicos independentes e estanques, evidenciando a adoção da tese dualista, justificada, em tese, pelo controle popular sobre a edição de normas internacionais. 10 Dessa forma, os efeitos internos de um tratado internacional não correspondem, necessariamente, às obrigações do Estado no plano internacional. Ressalta-se que esse entendimento trata-se de construção jurisprudencial, e funda-se em uma interpretação extensiva do art. 102, III, alínea “b”, e art. 105, III, “a”, ambos da CF.6 Esses dispositivos constitucionais, no entanto, é importante destacar, tratam-se de regras de atribuição de competência aos Tribunais superiores e não de relação entre normas do ordenamento jurídico. Ou seja, em nenhum momento ficou expresso, no texto constitucional, que os tratados têm a mesma hierarquia que as leis ordinárias. Cumpre ainda salientar que a sistemática constitucional brasileira, em se tratando de normas internas, indica que a matéria normativa é que determina a espécie normativa e, em conseqüência, o seu procedimento legislativo.Exemplificando: se a matéria é de natureza constitucional deverá ser objeto de uma Emenda Constitucional (CF, art. 59, I), aprovada por maioria qualificada do Congresso Nacional (CF. art. 60, § 2º); se a matéria normativa trata-se de normas gerais de Direito Tributário, será objeto de uma Lei Complementar (CF, art. 59, II c/c art. 146, III) editada por votação da maioria absoluta em ambas as Casas (CF, art. 69). No entanto, no que se refere às normas internacionais, a Constituição brasileira não se desincumbiu dessas definições imprescindíveis e a lacuna preenchida pela jurisprudência tem evidenciado interpretações divergentes entre os tribunais, nas suas diversas instâncias, em que pese as decisões firmadas pelo STF. 6 Art. 102. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe: (...) III – julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou ultima instância, quando a decisão recorrida: (...) b) declarar a inconstitucionalidade de tratado ou lei federal. Art. 105. Compete ao Superior Tribunal de Justiça: (...) III – julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos Tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida: a) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência. 11 ,9±$MXULVSUXGrQFLDLQFRQVWLWXFLRQDOGR67) Em face da diversidade das relações internacionais são firmados tratados sobre as mais diferentes matérias, desde rotas de avião, até direito consumerista, tirbutário ou licitatório. No entanto, pela interpretação dada pelo STF, independentemente da matéria, todos os tratados tem força de lei ordinária, o que pode suscitar, na prática jurisdicional, problemas acerca de sua legitimação. A interpretação do STF, condicionando a dos outros tribunais, vai frontalmente de encontro ao texto constitucional, posto que, embora não determinada a posição geral dos tratados no ordenamento jurídico interno - aspecto que restou lacunoso - em se tratando de direitos fundamentais do indivíduo, e, por extensão, os seus direitos coletivos, sociais e difusos, a matéria foi especificamente e claramente disciplinada pelo Poder Constituinte originário, na esteira da tendência mundial. A hierarquia dos tratados de Direitos Humanos em relação às demais normas do ordenamento jurídico brasileiro obteve tratamento específico e criterioso nos parágrafos 1º e 2º do art. 5º da Constituição Federal.7 O parágrafo primeiro expressa o princípio da aplicabilidade automática e imediatamente vinculante das normas de proteção e defesa dos Direitos Humanos, e o parágrafo segundo determina, especificamente, a equivalência dos tratados de Direitos Humanos às Emendas Constitucionais, conferindo-lhes superioridade sobre todas as normas do ordenamento jurídico infraconstitucional e incorporando tais disposições ao texto da Constituição brasileira. 7 Art. 5º . Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) Parágrafo 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação automática. Parágrafo 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. 12 Antes das alterações que foram incluídas pela Emenda Constitucional n.° 45/2004 somente duas interpretações seriam possíveis para os dois primeiros parágrafos do art. 5º, CF, e nenhuma das interpretações admitiria a conclusão de que as disposições sobre os direitos fundamentais do indivíduo, consubstanciadas em tratados internacionais, equivaleriam a Lei Ordinária. Em uma linha interpretativa considerar-se-ia que esses tratados incorporar-se-iam ao ordenamento jurídico brasileiro como Emenda Constitucional, independentemente do TXRUXP de aprovação do Decreto Legislativo incorporador, mero instrumento de internalização da norma internacional. A resistência a essa linha interpretativa, em que pese a explicitação do texto constitucional, explica-se pela tradição dualista, cara aos tribunais brasileiros, e pelo desconhecimento de nossos juristas sobre a sistemática do Direito Internacional, o que faz com se confunda VLVWHPDGXDOLVWDGHLQFRUSRUDomRHGHHIHLWRVGDVQRUPDVLQWHUQDFLRQDLV com VLVWHPD GHHGLomRGHQRUPDVLQWHUQDV A outra via de interpretação sugerida romperia com o dualismo para acompanhar a tendência do Direito Internacional contemporâneo, principalmente no que se refere à proteção dos direitos da pessoa. Nesse sentido valeríamos da tese monista para considerar, com respaldo no § 1º do art. 5º, CF, que os tratados de direitos humanos tratam-se de normas de aplicabilidade automática, dispensando-se, inclusive, o procedimento de aprovação pelo Congresso Nacional como condicionante à ratificação. Ora, essa interpretação vinha corroborada pela própria sistemática constitucional: por se tratar de declarações de direitos esses tratados não acarretam encargos ou compromissos gravosos ao Estado – nos termos do inciso I do art. 49, CF - já que os destinatários das normas 13 que estabelecem direitos fundamentais são os indivíduos, ora reconhecidos como sujeitos de Direito Internacional. Além disso, cumpre destacar que a Constituição, ao estabelecer os princípios que deverão nortear o Estado em suas relações internacionais, expressa, no seu art. 4º, inciso II, a prevalência dos Direitos Humanos.8 Se os direitos fundamentais da pessoa devem sempre prevalecer, e se esse rol de direitos não importam em encargos, mas em benefícios, a sua incorporação deveria ser, de fato, automática, ou seja, feita mediante simples ratificação do Executivo, dispensando-se o referendo do Congresso Nacional. Acrescenta-se que a teoria do Direito Constitucional destaca que tais espécies de normas – proteção dos direitos da pessoa – são classificadas como normas PDWHULDOPHQWH constitucionais. Ou seja, sempre possuirão natureza de direitos fundamentais, em condição de superioridade frente às demais normas do ordenamento jurídico, que delas deverão retirar a sua legitimidade, independentemente da espécie normativa que os consagram. Enfim, o que já vinha disposto nos parágrafos 1º e 2º do art. 5º da Constituição Federal estava em perfeita harmonia tanto com a doutrina como com a sistemática da Constituição brasileira: o art. 84, VIII, determina que a competência para celebrar tratados é do Poder Executivo, que, por meio de seus representantes legitimados, exerce, no âmbito internacional, a denominada diplomacia parlamentar, negociando, assinando e ratificando convenções internacionais; por sua vez, a redação do art. 49, I, CF, admite que os tratados de Direitos Humanos prescindiriam, inclusive, de serem aprovados pelo Congresso Nacional, posto 8 Art. 4º. A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: (...) II – prevalência dos direitos humanos. 14 que tais normas não acarretam encargos ao Estado ou mesmo compromissos gravosos para o patrimônio público. Nestes termos, a segunda linha de interpretação, acima mencionada, é a que possuía maior densidade jurídica tanto em face da teoria da Constituição como do próprio ordenamento constitucional positivado. 9±$LQFRQVWLWXFLRQDOLGDGHQD(PHQGD&RQVWLWXFLRQDOQ No entanto, em flagrante retrocesso, veio a Emenda Constitucional n. 45/ 2004, que acrescentou o § 3º ao art. 5º9. A incorporação desse dispositivo, além de consagrar e radicalizar a tese dualista – nesse caso deletéria, pois compromete a efetivação de direitos fundamentais – e explicitar a existência de duas ordens paralelas e em potencial conflito – a interna e a internacional acarretou, pelos seus termos, na inexistência de quaisquer tratados de Direitos Humanos ratificados pelo país, pois expressou, com todas as letras, a sua inconstitucionalidade formal. Ao restringir o rol dos direitos individuais houve flagrante violação de uma cláusula pétrea, nos termos do art. 60, § 4º , inciso IV da Constituição Federal10. Além disso, com a intrusão do § 3º ao art. 5º, CF, a Emenda Constitucional n. 45 extrapolou o seu propósito, que era a reforma do Poder Judiciário, pois o acréscimo destina-se exclusivamente ao Poder Legislativo, aquele que tem a competência para aprovar os tratados internacionais firmados pelo Executivo, nos termos do supracitado inciso I do art. 49. 9 Art. 5º (...) Parágrafo 3º. Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. 10 Art. 60. A Constituição poderá ser emendada mediante proposta: (...) § 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) IV – os direitos e garantias individuais. 15 Vejamos, o referido § 3º expressa que as convenções de Direitos Humanos devem ser aprovadas pela maioria qualificada, em dois turnos, pelas duas Casas Parlamentares. Ora, o parágrafo segundo do dispositivo já determinava que esses tratados deveriam ser considerados emendas constitucionais, o que torna o acréscimo absolutamente desnecessário. Ao explicitar o texto do § 2º do art. 5º neste § 3º, o Poder Constituinte derivado, visando constitucionalizar os precedentes da nossa Suprema Corte, maculou com a inconstitucionalidade formal todas as convenções de Direitos Humanos até então ratificadas pelo país, à exceção do Estatuto de Roma que foi expressamente incorporado ao ordenamento nacional pelo parágrafo 4º - dispositivo também acrescido ao art. 5º, CF, pela EC-45. Nesse sentido, a Convenção para a Prevenção e a Repressão do Crime de Genocídio, a Convenção Relativa ao Estatuto dos Refugiados, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, bem como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, a Convenção Internacional sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação Racial, a Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra a Mulher, a Convenção contra a Tortura e outros tratamentos ou penas Cruéis, Desumanas e Degradantes, a Convenção sobre os Direitos das Crianças, apenas para citar alguns exemplos, foram expurgados do ordenamento jurídico brasileiro. Ou seja, a Emenda ficou muito pior que o soneto! Quando a matéria estava a caminho de uma pacificação jurisprudencial, os tribunais foram colhidos pela barafunda gerada pela Emenda 45. Mais uma vez duas opções estão lançadas: ou se decide pela recepção de todos os tratados de Direitos Humanos já ratificados, nos estritos termos da redação dos parágrafos 1º e 2º do art. 5º, CF, admitindo que se tratam de Emendas Constitucionais – mesmo que a aprovação 16 dessas convenções, por Decretos Legislativos, tenha sido feita pelo TXRUXP de lei ordinária, o que é irrelevante - ou, então, não temos mais tratados de Direitos Humanos incorporados ao ordenamento jurídico interno, já que agora pesa sobre estes a inarredável inconstitucionalidade formal. O que está definitivamente descartada é a posição de se considerar que os tratados já ratificados possuem hierarquia de lei ordinária, pois seria interpretar o que não vem escrito em detrimento de um comando constitucional expresso. Em face aos precedentes firmados pelo STF, lamentavelmente, é a segunda alternativa que poderá encontrar respaldo nos tribunais brasileiros. Assim, em relação às instâncias jurídicas internacionais as ratificações já firmadas pelo governo brasileiro são mantidas e, portanto, continuam obrigando o Estado perante as Nações Unidas e a Organização dos Estados Americanos e sua Comissão e Corte de Direitos Humanos – posto que não houve a denúncia desses acordos, o que, de resto, era inadmissível, pela dicção do art. 5º, § 2º, CF c/c art. 60, § 4º, IV, CF, até a edição da Emenda 45, que, com o seu inconstitucional § 3ºacrescido ao art. 5º abriu essa possibilidade – em contrapartida, no plano interno, essas normas são insuscetíveis de aplicação! E, para finalizar, apenas mais uma observação desalentadora: enquanto persiste toda essa balbúrdia em relação aos tratados que deveriam garantir dignidade ao povo brasileiro, nenhuma indignação parece incomodar nossos juristas ou legisladores em relação às normas editadas pelas Organizações Internacionais econômicas como a OMC, o FMI ou o BIRD – o denominado tripé da Governança Mundial, projetado desde Bretton Woods. Essas normas, diferentemente dos tratados, não são suscetíveis de aprovação pelos Parlamentos locais, e, portanto, sequer são enviadas para a sua apreciação. 17 No entanto, tais Resoluções Internacionais podem determinar profundas reformas legislativas nos Estados membros dessas Organizações, impondo-lhes a reformulação no seu regime comercial, fiscal, previdenciário e administrativo, de forma a adequá-los às demandas do comércio multilateral. Essas alterações, evidentemente, acarretam encargos e compromissos extremamente gravosos ao patrimônio nacional, diferentemente dos tratados de Direitos Humanos. Sobre essas normas internacionais o Constituinte Originário reservou sepulcral silencio, enquanto que o Poder Constituinte Derivado apressou-se, passando ao largo de qualquer debate democrático, em conformar a Constituição aos interesses do capital transnacional. Para constatar o fato basta atentar para a quantidade de Emendas Constitucionais que foram aprovadas após 1994, ano em que foi assinada a Carta de Marraqueche que instituiu a Organização Mundial do Comércio. O mesmo ano de 1994 também foi o marco das negociações entre o Governo brasileiro e o Fundo Monetário Internacional, o que levou à implantação do Programa de Ajuste Estrutural que determinou, por exemplo, a reforma monetária, administrativa, fiscal e previdenciária, todas elas aprovadas pelo Congresso Nacional sem que os cidadãos brasileiros pudessem conhecer sua fonte original de formulação. %LEOLRJUDILDUHFRPHQGDGD LOSANO, Mario G. 'LUHLWR LQWHUQDFLRQDO H HVWDGR VREHUDQR: Hans Kelsen e Umberto Campagnolo, São Paulo: Martins Fontes, 2002. MAGALHÃES, José Carlos 2 6XSUHPR 7ULEXQDO )HGHUDO H R GLUHLWR LQWHUQDFLRQDO: uma análise crítica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2000. 18 MAZZUOLI, Valério de Oliveira 'LUHLWR LQWHUQDFLRQDO: tratados e direitos humanos fundamentais na ordem jurídica brasileiro. Rio de Janeiro: América Jurídica, 2001. MELLO, Celso D. de Allbuquerque Mello. 'LUHLWRFRQVWLWXFLRQDOLQWHUQDFLRQDO. 2ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. PIOVESAN, Flávia. 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