Prescrição intercorrente na execução fiscal
Kiyoshi Harada*
Cumpre, antes de tudo, conceituar o que seja prescrição intercorrente.
Consoante escrevemos ela é ‘resultante de construção doutrinária e jurisprudencial
para punir a negligência do titular de direito e também para prestigiar o princípio da
segurança jurídica, que não se coaduna com a eternização de pendências
administrativas ou judiciais. Assim, quando determinado processo administrativo ou
judicial fica paralisado por um tempo longo, por desídia da Fazenda Pública, embora
interrompido ou suspenso o prazo prescricional, este começa a fluir novamente’1.
Portanto, a prescrição intercorrente pressupõe a preexistência de processo
administrativo ou judicial, cujo prazo prescricional havia sido interrompido pela citação
ou pelo despacho que ordenar a citação, conforme inciso I, do parágrafo único, do art.
174 do CTN, com a redação que lhe foi dada pela Lei Complementar nº 118, de 9-22005.
A Lei de nº 11.051, de 29-12-2004, que cuida de contribuições sociais, pelo seu
artigo 6º veio, sorrateiramente, introduzir matéria estranha à ementa da lei,
acrescentando o § 4º ao art. 40 da Lei de Execução Fiscal, Lei nº 6.830/80, nos
seguintes termos:
§ 4º. Se da decisão, que ordenar o arquivamento tiver decorrido o prazo
prescricional, o juiz, depois de ouvida a Fazenda Pública, poderá, de
ofício, reconhecer a prescrição intercorrente e decretá-la de imediato.
Transcrevamos o art. 40 e parágrafos da LEF para melhor exame:
Art. 40. O juiz suspenderá o curso da execução, enquanto não for
localizado o devedor ou encontrados bens sobre os quais possa recair a
penhora, e, nesses casos, não correrá o prazo de prescrição.
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§ 1º Suspenso o curso da execução, será aberta vista dos autos ao
representante judicial da Fazenda Pública.
§ 2º Decorrido o prazo máximo de 1 (um) ano, sem que seja localizado o
devedor ou encontrados bens penhoráveis, o juiz ordenará o
arquivamento dos autos.
§ 3º Encontrados que sejam, a qualquer tempo, o devedor ou os bens,
serão desarquivados os autos para prosseguimento da execução.
Uma leitura apressada e isolada do § 4º indevidamente enxertado pode parecer
uma virtude legislativa. Porém, no fundo, esse parágrafo encerra uma manobra
legislativa para tentar sepultar a jurisprudência favorável ao contribuinte, que se formou
em torno da prescrição intercorrente.
Na verdade, o esperto legislador, para driblar a jurisprudência que não admite a
suspensão da prescrição, nem sua interrupção fora das hipóteses elencadas no
parágrafo único do art. 174 do CTN, acrescentou, sorrateiramente, ao art. 40 supra
transcrito um parágrafo aparentemente favorável ao contribuinte. Acontece que esse
artigo, bem como seus parágrafos preexistentes padecem do insanável vício da
inconstitucionalidade.
De fato, tanto o caput, como seus parágrafos não foram recepcionados pela
Carta Política de 1988, que submeteu a disciplina da prescrição à lei complementar,
nos expressos termos do art. 146, II, b, in verbis:
Art. 146 – Cabe à lei complementar:
III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária,
especialmente sobre:
b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários.
E o Código Tributário Nacional, lei materialmente complementar, dispõe em seu
art. 174:
1 Dicionário
de direito público. São Paulo: MP Editora, 2ª ed., 2005, p. 297.
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Art. 174 – A ação para cobrança do crédito tributário prescreve em cinco
anos, contados da data da sua constituição definitiva.
Parágrafo único. A prescrição se interrompe:
I – pelo despacho do juiz que ordenar a citação em execução fiscal2;
II – pelo protesto judicial;
III – por qualquer ato judicial que constitua em mora o devedor;
IV – por qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importe em
reconhecimento do débito pelo devedor.
Como se depreende dos dispositivos transcritos, o CTN não reconhece a figura
da suspensão da prescrição motivada pela não localização do devedor ou de seus
bens. Nem sua interrupção ante a não localização do réu ou de seus bens. Muito ao
contrário, na hipótese de não ser encontrado o devedor, o Código Tributário Nacional, à
época do advento da Lei nº 11.054/04, previa apenas o protesto judicial para
interromper a prescrição, se assim desejar a Fazenda credora. Realmente, se o
devedor for localizado, não cabe protestar, mas cobrar o crédito tributário. A
interrupção da prescrição pelo despacho judicial que ordenar a prescrição somente
surgiu com a alteração introduzida pela LC nº 118/05. E essa alteração em nada
prejudica a matéria sob exame, que é a prescrição intercorrente, isto é, aquela que diz
respeito ao reinício da contagem do prazo extintivo após ter sido interrompido.
Pela disciplina do Código Tributário Nacional, não passível de alteração por lei
ordinária, a prescrição sucede a decadência imediatamente no tempo. Constituído
definitivamente o crédito tributário, pelo lançamento, inicia-se a fluência do prazo
prescricional de cinco anos, para cobrança do crédito tributário.
E a constituição definitiva do crédito tributário dá-se com a notificação do
lançamento ao sujeito passivo (art. 142 c/c art. 145 do CTN).
2 Esse
inciso I, à época do advento da Lei nº 11.051/04, tinha seguinte redação: pela citação pessoal feita ao
devedor.
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Pela lei de regência da matéria em vigor, decorrido cinco anos, a contar da data
da notificação do lançamento, sem obtenção do despacho citatório do devedor no
processo executivo fiscal, tem-se por consumada a prescrição. Igualmente tem-se por
consumada a prescrição se, após interrupção da prescrição pelo despacho que ordenar
a citação do executado, o processo ficar paralisado por cinco anos. É a chamada
prescrição intercorrente, reconhecida pela doutrina e jurisprudência remansosa.
Pela jurisprudência do STJ prevalece sempre a aplicação do art. 174 do CTN:
Processual Civil e Tributário. Execução Fiscal. Suspensão. Curador
Especial. Nomeação. Súmula 196-STJ. Lei nº 6.830/80. Prescrição.
Aplicação. Art. 174 do CTN. Prevalência.
I - É legítima a nomeação de curador especial para opor embargos de
devedor se o réu, citado por edital, permanece revel. Inteligência da
Súmula 196 do STJ.
II - As hipóteses contidas no art. 40 da Lei nº 6.830/80 não são passíveis,
por si só, de interromper o prazo prescricional, estando sua aplicação
sujeita aos limites impostos pelo artigo 174 do CTN, norma
hierarquicamente superior.
III - Inadmissível estender-se o prazo prescricional por prazo
indeterminado, devido à suspensão do processo por período superior a
cinco anos. Orientação consagrada pela E. 1ª seção corroborando o
entendimento das Turmas que integram.
IV - Agravo regimental improvido (Resp nº 194.296-SC).
A jurisprudência do STJ determina, também, a aplicação da prescrição
intercorrente, que se considera abrangida pela norma do art. 174 do CTN, tornando
inaplicável a parte final do art. 40 da LEF: Resp nº 67.254-PR, Resp nº 208.345-PR,
Resp nº 255.118-RS, AGResp nº 440.181-RO, Resp nº 239.535-MG, Resp nº 257.694RS, AGResp nº 418.162-RO, AGEDAG nº 446.994-PR.
Dessa forma, o astuto legislador, aparentemente, a pretexto de espancar
dúvidas, introduziu um parágrafo no seio de uma norma inconstitucional, repelida
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pela jurisprudência, com o fito de procrastinar a contagem do prazo de prescrição
intercorrente, que, agora, teria como termo inicial a data da decisão que ordenar o
arquivamento dos autos, por ter decorrido prazo máximo de um ano sem citação do
executado ou localização de seus bens. Assim mesmo, ficou em termos de faculdade
do juiz e depois de ouvida a Fazenda.
Essa norma, por óbvio, veio à luz para tentar manter os créditos tributários
ajuizados aos milhares e aleatoriamente, nos últimos momentos e que por isso mesmo
seriam fatalmente alcançados pela prescrição acarretando sua extinção (art. 156, V do
CTN). Na realidade, equivale ressuscitar o crédito tributário extinto pela prescrição, por
via de artifício legislativo.
Ocorre que, essa forma de conceder sobrevida às execuções fiscais natimortas
implica inovação do art. 174 do CTN, o que só seria possível mediante edição de lei
complementar. Disso resulta que o art. 6º da lei sob comento, que introduziu o § 4º ao
art. 40 da LERF, é inconstitucional por inobservância do quorum qualificado previsto no
art. 69 da CF.
SP, 31-01-07.
* Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças. Professor de Direito
Tributário, Administrativo e Financeiro. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São
Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Membro do Conselho
Superior de Estudos Jurídicos da Fiesp. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica
do Município de São Paulo.
Site: www.haradaadvogados.com.br - E-mail: [email protected]
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25/06/2007