1 THIAGO CHOHFI A HIERARQUIA DAS NORMAS COLETIVAS DE TRABALHO CAMPINAS – 2003 2 THIAGO CHOHFI A HIERARQUIA DAS NORMAS COLETIVAS DE TRABALHO Monografia apresentada para o curso de Especialização em Direito e Processo do Trabalho, como exigência parcial para obtenção do título de especialista, sob a orientação dos professores Renan Severo Teixeira da Cunha e Mestre Henrique Macedo Hinz, do programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas - PUCCAMP CAMPINAS – 2003 3 À Banca Examinadora Monografia apresentada para o curso de Especialização em Direito Material e Processual do Trabalho Título: A hierarquia das normas coletivas de trabalho Autor: Thiago Chohfi Orientadores: Professor Renan Severo Teixeira da Cunha Professor Mestre Henrique Macedo Hinz Comissão Julgadora: _____________________________ _____________________________ _____________________________ A Banca, após avaliar o candidato, considerou-o ___________, com a nota ____ . 4 DEDICATÓRIA Dedico o presente trabalho aos meus irmãos Adriano e Marcelo, cada qual com suas características próprias e marcantes, que lhes permitem navegar pelo mundo jurídico com grande ousadia e sucesso, bem como ao Astor, pela paciência que sempre teve com minhas indignações mundanas. AGRADECIMENTOS Agradeço ao ilustre Professor Renan Severo Teixeira da Cunha, pela sinceridade atenção dada ao presente trabalho, bem como ao incentivo pela pesquisa e dissertação acerca de um tema de profundas discussões, independente se oficial ou oficiosamente. Agradeço, ainda, ao Professor e Mestre Henrique Macedo Hinz, pela paciência com o autor do presente trabalho. 5 RESUMO Procuramos, neste trabalho, situar as normas coletivas de trabalho dentro da hierarquia jurídica das normas, ditada pelo ilustre jurista Hans Kelsen, em suas obras acerca da teoria pura do direito. O objetivo principal é apontar a citada norma no mesmo escalão hierárquico da Consolidação das Leis do Trabalho, logo abaixo da Constituição Federal, que traz validade formal e material àquelas. Após o desenvolvimento das lições dos juristas citados e do problema principal proposto, foram colacionadas alguns julgados, que indicam claramente a tendência do Poder Judiciário Brasileiro em considerar a hierarquia ora proposta. Palavras-chave: Normas Coletivas de Trabalho. CLT. Constituição Federal de 1988. Hierarquia. Kelsen. 6 ABSTRACT In this paper we try to place the collective labor norms within the hierarchy of norms proposed by Hans Kelsen in his work about the pure theory of law. Our main objective is to place the aforementioned norm at the same hierarchical rank as the Brazilian Labor Code. Right above it should come the Brazilian Federal Constitution, that gives the collective labor norms formal and material validity. After the discussion of the literature and of the proposed question, we have collected some decisions that show a clear tendency of Brazilian courts to adopt the hierarchy that we propose in this paper. Keywords: colective Labor norms. Brazilian Labor Code. CLT. Brazilian Federal Constitution. Constituição Federal de 1988. Hierarchy. Kelsen. 7 ABRIβ In diese Arbeit haben wir versucht, die kolektive Arbeitsrechtnormen in die von Hans Kelsen in seine Werke über die Reine Rechtstheorie gelehrte Rechtsnormenhierarchie einzusetzen. Der Ziel ist, die obengenannte Normen so zu klassifizieren, dass sie in der gleichen Stuffe sich befindet als die Brasilianische Arbeitsgesetzbuch (Consolidação das Leis do Trabalho), d.h., gleich unter die Brasilianische Verfassung (Constituição Federal), die den kolektiven Arbeitsrechtsnormen formell und materiell Gultigkeit bringt. Nach der Diskussion der Literatur über das vorliegende Hauptthema, haben wir einige Entscheidungen von Brasilianischen Gerichten gesammelt, den eine deutliche Tendenz zeigen, die hier vorgeschlagene Hierarchie aufzunehmen. Schlüsselwörter: Kolektiverechtsnormen, Brasilianisches Arbeitsgesetzbuch. CLT. Brasilianische Verfassung. Constituição Federal de 1988. Hierarchie. Kelsen. 8 SUMÁRIO 1.0) Introdução......................................................................................................09 2.0) Estrutura lógica do ordenamento jurídico..................................................12 a) A norma Jurídica..............................................................................................12 b) O princípio da dinâmica jurídica.....................................................................13 c) A norma fundamental.......................................................................................15 d) O princípio estático..........................................................................................17 e) Hierarquização das normas jurídicas.............................................................21 f) A unidade lógica da ordem jurídica (conflito de normas).............................23 3.0) O ordenamento Jurídico Brasileiro na esfera trabalhista..........................30 a) introdução ao tópico 3.0..................................................................................30 b) A hierarquia das normas trabalhistas............................................................31 c) Vigência no tempo............................................................................................36 d) conseqüências práticas da hierarquização acima exposta.........................37 e) Limitações das normas coletivas de trabalho...............................................38 4.0) Casos interessantes e jurisprudenciais......................................................43 5.0) Conclusão......................................................................................................48 6.0) Bibliografia.....................................................................................................50 9 1.0) INTRODUÇÃO O presente trabalho tem como objeto o estudo da hierarquia das normas coletivas de trabalho em face das demais normas trabalhistas e a própria Constituição Federal, utilizando-se como base os ensinamentos de Hans Kelsen, ditados principalmente em seu livro sobre a Teoria Pura do Direito e Teoria Geral das Normas Jurídicas. As normas coletivas, pois, serão confrontadas com a Consolidação das Leis do Trabalho, que é a principal fonte normativa trabalhista após a Carta Magna. Como poderá ser constatado, ambas as normas acima citadas podem ser apontadas no mesmo escalão em nosso sistema escalonado de normas jurídicas, estando limitadas somente pelas regras ditadas pela Constituição Federal – que, no caso, é a norma que fundamenta a validade, tanto da CLT como das normas coletivas de trabalho. O princípio dinâmico do sistema normativo dita, pois, a limitação do conteúdo e a validade lógica das normas imediatamente inferiores à Norma Fundamental. Os requisitos de hierarquização, a norma fundamental, o próprio fundamento lógico das normas estudadas, bem como as limitações impostas demonstrarão, ao final, a enorme capacidade de flexibilização do direito do trabalho, dispensando a criação de quaisquer outras letras de lei com o mesmo objetivo, que, 10 certamente, cairão na ineficácia e serão rapidamente ultrapassadas pela dinâmica e constante evolução das relações do mercado do trabalho. É preciso lembrar que, ao contrário do que os juristas da área trabalhista mais conservadores - podem dizer, de forma crítica e totalmente contrária à equiparação hierárquica ora pretendida, que tal reconhecimento na pirâmide sistemática de kelsen produz efeitos de grande valia ao direito laboral, uma vez que permite às partes se auto-organizarem, da melhor forma possível, em benefício próprio, e de forma específica, respeitando as diferenças inerentes e específicas de cada classe de trabalhadores, e sempre nos limites da sua norma imediatamente superior. É preciso, por outro lado, que nos concentremos em uma visão um pouco mais fria deste ponto no direito laboral, excluindo do tema as discussões acerca da vida sindical moderna, da forma de pactuação que atualmente vem ocorrendo, centrando o ponto na teoria pura do direito e da norma jurídica dentro do nosso sistema normativo, bem como nos princípios que regem o direito laboral. Não se pode aniquilar uma possibilidade constatada em nosso ordenamento em face de uma possível e eventual proteção ao direito dos trabalhadores, via engessamento das normas trabalhistas já existentes e estreitamento das possibilidades de negociação coletiva. É preciso aceitar, como se verá fundamentado adiante, que as negociações coletivas possuem a capacidade de substituir de forma temporária às normas postas pela CLT, no prazo de sua vigência, e sempre nos limites impostos pela Norma Maior em nosso ordenamento – a Constituição Federal. 11 2.0) ESTRUTURA LÓGICA DO ORDENAMENTO JURÍDICO a) A norma jurídica Norma! O que é norma jurídica? Esta é a primeira questão que deve ser respondida ao se estudar a estrutura lógica de qualquer ordenamento. O 1Direito Brasileiro possui um ordenamento próprio e único, formado por um complexo de normas jurídicas, hierarquicamente dispostas de forma vertical. Estas normas são, na maioria dos casos, mandamentos, ordens ou prescrições. Também podem assumir o caráter, como ensina 2Kelsen, “de conferir poderes, permitir, derrogar suas funções de normas”. As normas, portanto, prescrevem algo que deve ser ou acontecer. São consideradas, pois, proposições de “dever-ser”, prescrições de um comportamento que se entende como devido. Este comportamento, por sua vez, representa uma conduta humana definida, um sentido de querer – de um ato de vontade. Logo, a norma jurídica é o resultado de uma conduta humana querida por alguém, uma 1 Norberto Bobbio afirma em seu trabalho, Teoria do Ordenamento Jurídico, à página 19, que “esse contexto de normas costuma ser chamado de ‘ordenamento’. E será bom observarmos, desde já, que a palavra ‘direito’, entre seus vários sentidos, tem também o de ‘ordenamento jurídico’, por exemplo, nas expressões ‘Direito Romano’, ‘Direito Italiano’,[‘Direito Brasileiro’], etc.” 2 Hans Kelsen, Teoria Geral da Norma, p. 01. 12 representação de um ato de vontade querido. Nesse sentido, é imperioso que a norma jurídica tenha validade para que esta conquiste seu espaço na estrutura jurídica. Validade, pois, pode ser tido, neste caso, como a existência da norma jurídica, seu nascimento. O nascimento se dá pela criação da norma através de um preceito lógico formal ditado por outra norma jurídica, que por sua vez também foi criada através das determinações emitidas por outra determinada norma, de caráter superior, e assim por diante. Além do respeito à forma prescrita, para que haja validade deve existir uma correspondência de conteúdos, quando a norma superior assim determina sua limitação. Estando presente, pois, os dois requisitos, a norma será válida, passará a existir no mundo jurídico. Essa forma de criação, por sua vez, é originada do que se chama de princípio dinâmico do sistema jurídico. O princípio dinâmico, pois, regula a validade da norma jurídica. É este que diz se uma norma existe ou não no mundo jurídico. b) O princípio da dinâmica jurídica A natureza do fundamento de validade da norma jurídica pode ser dividida em dois princípios, que formam sistemas de normas completamente diferentes – o dinâmico e o estático. No princípio dinâmico, uma norma inferior é considerada como válida não pelo seu conteúdo em si, mas tão somente pela capacidade de que a norma 13 imediatamente superior tem de fomentar a produção de outra determinada norma, que será havida como inferior. Aquela somente fornece o fundamento de validade, e não o conteúdo de validade das normas sobre ela fundadas. Este é o princípio dinâmico, que é bem diferente do estático, como se verá mais adiante. O princípio estático é simplesmente uma forma de controle das normas via os seus próprios conteúdos, sem se falar em normas hierarquicamente superiores ou inferiores. Existem, em sob tal princípio, normas gerais e outras mais específicas, que determinam o “dever ser” de forma ampla e restrita, conforme o caso. Podemos citar, utilizando os exemplos do próprio Kelsen, por mais didáticos, um pai que ordena ao filho que vá à escola. Se o filho pergunta por qual razão ele deve ir à escola, o pai logo lhe responde que por obediência às ordens do pai. Daí vem uma nova pergunta: por que o filho deve obedecer às ordens do pai? O que leva a seguinte resposta, que alcança uma norma imediatamente superior, que a valida – “porque devemos obedecer às normas de Deus, que determinou obediência às ordens do pai”. Esta última, por estar no cume da linha vertical de normas do sistema apontado, pode ser denominada de norma fundamental. A primeira ordem do pai tem como norma pressuposta a ordem de obediência às ordens do pai, que por sua vez tem como norma pressuposta a ordem de obedecermos às determinações de Deus. Esta, por sua vez, está figurando como uma norma que produz validade à norma que está no fim da pirâmide hierárquica, e não possui validade lógica em nenhuma outra norma. Não se pergunta sobre sua 14 validade, apenas a pressupõe. Assim ensina 3Kelsen: O tipo dinâmico é caracterizado pelo facto de a norma fundamental pressuposta não ter por conteúdo senão a instituição de um facto produtor de normas, a atribuição de poder a uma autoridade legisladora ou – o que significa o mesmo – uma regra que determina como devem ser criadas as normas gerais e individuais do ordenamento fundado sobre esta norma fundamental. (...). Se o filho pergunta por que devemos obedecer às ordens de Deus, quer dizer, se ele pôr em questão tal norma, a resposta é que não podemos sequer pôr em questão tal norma, quer dizer, que não podemos procurar o fundamento de sua validade, que apenas a podemos pressupor. Portanto, uma norma é colocada em um sistema de normas através do princípio dinâmico, que lhe acaba por atribuir uma tal hierarquia, numa linha lógica de pensamento, com início em uma norma fundamental, da qual as demais têm um também um início, seja este imediato ou remoto. Abaixo desta norma, formamos nossa cadeia de proposições, cujo fundamento de validade pode ser localizado na norma que a pressupõe, que determina a forma de sua criação e o seu conteúdo, eventualmente, e assim por diante. c) A norma fundamental A norma fundamental, como já narrado, é a norma que se situa no topo da hierarquia das leis. Consideramos nosso sistema como uma pirâmide, na qual existem várias normas jurídicas. Na base, existem aquelas que se validam pelas normas imediatamente superiores, e assim por diante, até alcançarmos a norma fundamental, que é a norma que traz validade à Constituição Federal, que se situa no cume. Esta, como dito, tem que ser válida, e para tanto, deve haver alguma explicação ou validação lógica para sua existência – que é a norma fundamental. 3 Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, p. 270. 15 Temos dois caminhos a seguir, partindo da premissa acima: uma, a validade da norma constituinte pelo sentido do conteúdo da norma fundamental, e duas – sua validade pelo aspecto lógico formal e limitação negativa de conteúdo. Seguindo a mesma linha de exemplo já usada, extraída do próprio Kelsen, se o filho pergunta a razão pela qual devemos obedecer às ordens de Deus, respondemos que não se faz esta pergunta, pois, acreditando em Deus, pressupõe-se que devemos obediência. Ora, mas e para quem não acredita em Deus? E se o filho não acredita em Deus? Então, teoricamente, ele tem o direito de não cumprir as ordens de Deus, e, conseqüentemente, as ordens de seu pai, uma vez que a norma que se situa no cume da hierarquia legal sequer é válida – não é existente para tal pessoal – o que criaria um caos social. Logo, tendo-se em vista a enorme variedade de conteúdo que existe no mundo jurídico-social, não há a mínima condição de se apontar a validade de uma norma fundamental em princípios ou regras de moral, uma vez que estas são consideradas como conteúdos queridos – desejados. Não se pergunta se a Constituição é justa ou injusta, ela simplesmente é, e é porque nós aceitamos que ela seja assim, nós a pressupomos. É uma aceitação tácita de que aquelas pessoas que se reuniram, seja em 1988 ou na primeira Constituição formalmente criada em nosso ordenamento, quando se formou um poder constituinte originário, que ultrapassou as barreiras do tempo, e fez nascer a Constituição ora em vigor, possuem poder legitimado pelo povo para confeccionar leis que devem se situar no cume do nosso sistema jurídico, das quais as demais normas poderão ser criadas. forma clara essa situação: 4 Norberto Bobbio explica de 16 O fato de essa norma não ser expressa não significa que não exista: a ela nos referimos como o fundamento subtendido da legitimidade de todo o sistema. Quando apelamos à Constituição parta requerer sua aplicação, algumas vezes nos perguntamos o que significa juridicamente essa nossa apelação? Significa que consideramos legítima a Constituição porque foi legitimamente estabelecida. Se depois nos perguntamos o que significa o ter sido legitimamente estabelecida, ou remontarmos ao decreto do governo provisório que se instalou na Itália em 25 de junho de 1944, e que atribuía a uma futura assembléia constituinte a tarefa de deliberar uma nova Constituição do Estado italiano, ou então aceitarmos as teses da ruptura entre o velho e o novo ordenamento, não poderemos fazer outra coisa senão pressupor uma norma que impõe obediência àquilo que o poder constituinte estabelecer; essa norma fundamental, mesmo não-expressa, é o pressuposto da nossa obediência às leis que derivam da Constituição, e à própria Constituição. A norma fundamental, pois, não pode ser querida, mas tão somente pensada, sendo, ainda, irredutível, a fim de se evitar uma derivação ao infinito. Imagine se a Norma Fundamental fosse querida e não simplesmente pensada: teríamos, então, uma outra norma, em escalão superior, que traria sua validade, e assim por diante. Portanto, esta é o final, ou até o começo, da linha hierárquica posta à prova, até sua norma fundamental, que não pode ser colocada em questão, pois não é uma norma posta, mas tão somente pressuposta. d) O princípio estático Conforme já narrado, quando se está diante de um sistema de normas, podemos questionar como esse sistema, que é único, se sustenta em face da pluralidade de normas nela existente. O que fundamente a validade de uma norma, afinal? E já respondemos acima que a validade das normas pode ser fundamentada segundo dois princípios, um dinâmico e outro estático, sendo este último inaplicável, conforme se verá mais adiante. O princípio estático pressupõe que uma conduta 4 Norberto Bobbio, op. cit., p. 60. 17 descrita na ordem legal deve ser válida pelo próprio conteúdo nela contido, ou seja, a validade do conteúdo de uma determinada ordem mais específica é limitada ao conteúdo de outra norma mais geral. Por exemplo, podemos citar uma determinada norma geral: “não devemos mentir”. Dessa norma, podemos retirar outras mais específicas, como “não enganar” ou “não fraudar”. Não há uma ligação lógica entre as proposições apresentadas, apenas um “cordão umbilical” ditado pelo seu conteúdo, que não pode contrariar outra norma, cujo conteúdo é mais amplo – praticamente alcançado o estado de princípio. Uma norma como “devemos amar uns aos outros”, não suportaria uma norma mais específica como “devemos odiar nosso inimigo”. Uma não se torna fundamento de validade para outra. Agora, se disséssemos “devemos amar nossos pais”, essa sim tem um respaldo de conteúdo naquela norma mais geral. Portanto, tais normas são válidas pelo próprio conteúdo que elas pregam, uma vez que estes são colocados à prova diante da norma mais ampla – imediatamente superior. 5Kelsen explica tal sistema da seguinte forma: Segundo a natureza do fundamento de validade, podemos distinguir dois tipos diferentes de sistemas de normas: um tipo estático e um tipo dinâmico. As normas de um ordenamento do primeiro tipo, quer dizer, a conduta dos indivíduos por ela determinada, é considerada devida (devendo ser) por força do seu conteúdo: porque a sua validade pode ser reconduzida a uma norma cujo conteúdo pode ser subsumido o conteúdo das normas que formam o ordenamento, como o particular ao geral. Portanto, como todas as demais normas de um ordenamento deste tipo já estão contidas nas determinações da norma superior, estas empregam àquelas o fundamento e o conteúdo de validade. Ou seja, tanto a forma quanto o conteúdo das normas inferiores são deduzidos da norma fundamental que as pressupõe. Este 18 é o princípio estático da norma jurídica – discute-se, nesse sistema, não a validade lógica da norma e correspondência de conteúdo, de forma simultânea, mas sim e somente a especificação de um determinado “dever ser” mais restrito que o sentido do conteúdo de outra norma, imediatamente evidente ao sujeito atingido pelas referidas determinações legais. No entanto, segundo o próprio doutrinador acima, este princípio se mostra insustentável, uma vez que uma norma apenas pode ser considerada como fundamento de validade de outra quando seu conteúdo seja imediatamente evidente – que é dado na razão. A razão, por sua vez, é relativa, uma vez que cada pessoa tem a sua própria idéia, o seus próprios sentimentos. Então, como se poderia aceitar uma razão que fosse válida para todos os homens ao mesmo tempo? Não há como se considerar, pois, uma norma imediatamente evidente, pois nem todos pensam ou possuem os mesmos princípios e conceitos da mesma forma. Logo, não existe uma norma fundamental que possua conteúdo, senão esta não seria fundamental, sob pena de não alcançarmos nunca o fim da linha de validação da norma jurídica, que seria, então, eterna, ao infinito. 6 Kelsen explica tal impossibilidade da seguinte forma: O conceito de uma norma imediatamente evidente pressupõe o conceito de uma razão prática, quer dizer, de uma razão legisladora; e este conceito é – como se mostrará – insustentável, pis a função da razão é conhecer e não querer, e o estabelecimento de normas é um acto de vontade. Por isso, não pode haver qualquer norma imediatamente evidente. 5 6 Hans kelsen, Teoria Pura do Direito, p. 269-270. Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, p. 270-271. 19 Portanto, diante da constatação lógica de que o princípio estático das normas não prevalece, nos resta o princípio dinâmico, como princípio que fornece o escopo de validade num sistema de normas logicamente fundamentadas umas nas outras. Devemos obedecer às normas de Deus, que diz que devemos obedecer à regras do pai, que por sua vez diz que devemos ir à escola para estudar. A primeira relação havida é simplesmente lógica: devemos obedecer à Deus porque assim acreditamos e pressupomos, aceitando, portanto, às proposições emanadas do pai. A segunda relação é válida porque as ordens do pai trazem fundamento à ordem de ir à escola para estudar. Mas, se houver uma norma abaixo, que diz que o filho pode ir à escola para namorar, esta será ineficaz. O conteúdo geral posto pela norma ditada pelo pai não corresponde ao específico, ditado pela norma imediatamente inferior. Logo, o princípio estático não traz um fundamento, em princípio, de validade formal para a norma jurídica. Mas tão somente uma validade de conteúdos. Já o princípio dinâmico tem como requisito de validade a obediência à forma de criação e, eventualmente, ao conteúdo determinado pela norma superior. Um exemplo dessa regra, já que a presente monografia trata do direito laboral, pode ser descrito da seguinte forma: a Constituição Federal de 1988 prevê, em seu artigo 7o, no capítulo dos Direitos Sociais, 7que todo trabalhador 7 o “CF/88 - Art. 7. São direitos dos trabalhadores urbanos ou rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: I – (...); IV – salário mínimo, fixado em lei, nacionalmente unificado, capaz de atender a suas necessidades vitais básicas e às de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, com reajustes periódicos que lhe preservem o poder aquisitivo, sendo vedada sua vinculação para qualquer fim; (...).” 20 terá direito ao salário mínimo, ou seja, ninguém poderá perceber menos que àquele limite legalmente imposto. Assim, uma norma que se considere válida, criada pelas regras ditadas pela própria Carta Magna, se estipular um salário mínimo inferior ao piso legal, não corresponderá ao conteúdo ditado pela Lei Maior, devendo ser considerada, pois, inválida, por não haver correspondência específica nesse ponto. No mesmo sentido, e como será mais minuciosamente discutido abaixo, uma norma coletiva pode seguir a forma de criação prescrita na Constituição Federal, mas não poderá ter como objeto qualquer lei processual, uma vez que há limitação negativa de conteúdo em sua norma superior, que veda tal ato. Neste caso, sequer a validade seria alcançada, por falta de correspondência quanto ao conteúdo. e) Hierarquização das normas jurídicas Conforme já relatado, segundo o princípio dinâmico do sistema de normas, no qual há imposição de uma de uma norma logicamente pressuposta para validação de uma norma imediatamente inferior, que valida as demais normas, existe uma única maneira de se apontar o escalão das normas jurídicas em um sistema hierárquico de leis, qual seja, a sua disposição pela norma que dita sua produção / seu nascimento – ou seja, a hierarquização de um sistema pode ser calculada através da norma que torna válida cada norma jurídica imediatamente inferior. Pela norma apontada no alto da hierarquia de um ordenamento, que segue logo após a norma fundamental, pode-se verificar as normas hierarquicamente inferiores, calculando-se, assim, qual o grau de 21 escalonamento da norma jurídica em face de um sistema único de normas. Logo, sempre restará uma pergunta básica para saber se uma norma é superior ou inferior à outra: qual a norma que lhe confere validade? Seguindo os mesmos exemplos anteriores: duas normas, uma originada pelo pai, e outra pelo irmão mais velho, as duas direcionadas ao filho pequeno, iniciam sua vigência em um ordenamento. A primeira, do pai ao filho menor – “respeite seu irmão mais velho”. A segunda, originada do irmão mais velho diz – “vá estudar”. Como se pode notar, existe uma norma fundamental, cujo questionamento (conforme já visto anteriormente) é sequer imaginado – “obedeça às ordens do pai”. Esta é uma norma pensada, que confere validade àquela norma. Esta última, por sua vez, confere validade à ordem do filho maior, direcionada ao filho pequeno. Essas normas, pois, formam um sistema único e escalonado, formado por proposições que se tornam válidas mutuamente. Observem o que 8Kelsen dita em seu livro sobre o tema: Para todas as hipóteses, um ordenamento da Moral ou do Direito positivo não representa um sistema de normas de igual ordem, senão de sobre-esob normas, isto significa uma estrutura de normas, cujo escalão superior é a Constituição fundamentada pela pressuposta norma fundamental e cujo escalão inferior são as normas individuais que fixam como devida uma conduta determinada, concreta. (...). Que a validade da norma inferior é fundamentada pela validade da norma superior significa que a norma inferior corresponde à superior. Portanto, o ponto mais importante para se descobrir o escalão de uma norma, é perguntar pela sua norma imediatamente superior, que lhe traz fundamento de validade. Discussão interessante, por exemplo, diz respeito à própria CLT e às 8 Hans Kelsen, Teoria Geral das Normas, p. 331-332. 22 normas coletivas de trabalho, ambas em face da Constituição Federal. E na eventualidade de uma nova Constituição Federal, como já ocorreu no país? E mais: e se revogarmos a CLT, as normas coletivas de trabalho continuam existindo? No caso de uma Constituição nova, quais normas seriam imediatamente afetadas? A questão será resolvida mais adiante, quando da comparação das citadas normas num mesmo ordenamento jurídico. f) A unidade lógica da ordem jurídica (conflito de normas) Como pode um sistema único formado por uma pluralidade de normas diversas, apontas em variados escalões, com conteúdos variados? Conforme já narrado, nosso ordenamento se compõe num sistema único, escalonado de normas jurídicas hierarquicamente apontadas. No entanto, apesar da unidade lógica existente, não podem ocorrer conflitos de normas. Isto acontece quanto duas normas tendem a se excluir mutuamente, o que, como se verá, não é permitido em nosso ordenamento. É preciso parar neste ponto um momento: por várias vezes dissemos anteriormente que a validade é dividida e consubstanciada, segundo o princípio dinâmico, em duas frentes diferentes, que regem a aplicação da norma jurídica no mundo fático. Sempre se pergunta, antes de qualquer outra indagação, se a norma posta no mundo jurídico existe, se ela é válida. Kelsen costuma interpretar a vigência / validade como a existência da norma jurídica, ao contrário de alguns outros juristas, que separam tais conceitos. Vamos considerar, pois, as razões de Kelsen, a fim de facilitar didaticamente os princípios que tornam uma norma 23 aplicável no mundo real. Uma norma somente pode existir se sua criação obedeceu validamente aos ritos e determinações de outra norma imediatamente superior. Não quer dizer que não existam outras normas inferiores que lhe conferem alguns procedimentos e parâmetros, mas interessa sim, é verificar quem confere validade à norma, quem proporciona sua existência. É uma pergunta simples: qual norma que, se revogada ou substituída, afetaria a existência de outra norma? Daí, pode-se verificar, sem maiores problemas, a validade formal da norma e sua proposição imediatamente superior, dentro de um sistema jurídico. Após observada tal validade formal, podemos verificar a correspondência de conteúdos, ainda no mesmo plano. Os conteúdos das normas também não podem se contradizer, ou seja, uma determinação não pode excluir a possibilidade lógica da outra. 9 Kelsen assim ensina: Para valer, uma norma precisa ser estabelecida. Se ela não é estabelecida, não vale; e somente se ela é estabelecida, é que vale; se ela não vale, o estabelecido não é norma. Pois a validade de uma norma é – como já observado – sua específica existência. Não a existência de um fato do ser, mas a existência, i.e., a existência de um sentido (ou do conteúdo do sentido), do sentido de um fato, do real ato de estabelecimento. Conforme pode ser percebido, Kelsen nos coloca em um contexto onde existe uma validade ampla e geral, que pode ser dividida entre uma validade que alcança a existência da norma e outra validade que se assemelha à sua correspondência material (põe o conteúdo à prova). Por exemplo, uma constituição que confere existência a uma norma, já que criada pelas formas e preceitos nela contidos, pode não ser aplicável ao mundo real por falta de correspondência material, vez que a norma inferior pode estabelecer 9 Hans Kelsen, Teoria Geral das Normas, p. 215-216. 24 conteúdo de forma excludente daquele posto imediatamente acima. São duas faces da validade colocadas à prova: a primeira a existência formal da norma e a segunda a existência material (comparação de conteúdos). Portanto, apesar das inúmeras leis e atos jurídicos que formam nosso ordenamento e da eventual contradição que possa existir, este perfaz uma unidade lógica da ordem jurídica, se constituindo em uma pluralidade de normas que integram uma unidade, na qual as proposições jurídicas não se podem auto-excluir. É uma pirâmide escalonada formada por normas, das quais, as hierarquicamente superiores, validam e tornam possível a existência de outras normas, de caráter inferior. Pois, surge nova questão: como que um sistema que se constitui em uma unidade pode aceitar a existência de normas que se contradizem? Não é uma unidade, apesar da pluralidade? A resposta é que, apesar de ser uma unidade, o sistema coexiste com ferramentas que o isentam de contradição, que não permitem a validade de uma norma colocada imediatamente abaixo de outra norma, que não seja compatível com o restante do sistema. Portanto, em um primeiro momento, pode-se até se questionar sobre a existência de contradição em um sistema, mas, objetivamente, esta é incompatível com nosso ordenamento jurídico, vez que mantida a unidade lógica e material, através da interpretação normativa. 25 10 Kelsen ensina que “o que é nulo não pode ser anulado (destruído) pela via do Direito. Anular uma norma não pode significar anular um acto de que a norma é o sentido. Algo que de facto não aconteceu não pode ser transformado em nãoacontecido.” As possíveis contradições podem ser localizadas em duas formas: via comparação em graus de hierarquia diferentes e aquelas colocadas em um mesmo patamar – lado a lado, o que deve ser imediatamente corrigido em um sistema, para se evitar a quebra da harmonia existente. Então não pode uma norma inferior negar outra norma superior? Resposta: não! Uma norma inferior que contradiz a sua norma superior sequer é válida. Vejamos: um conflito de normas dentro de um determinado ordenamento jurídico existe quando uma ordem jurídica determina certa conduta, e outra norma determina uma conduta diversa, inconciliável com a primeira. Por exemplo, quando uma norma diz que é proibido fumar (norma superior), enquanto outra norma diz que é permitido fumar (norma inferior), existe um conflito de normas, uma contradição lógica em sentido amplo – e apenas uma das afirmações pode ser verdadeira. Nesse sentido, de início, podemos dizer que as normas apontadas em escalões diferentes nunca poderão se contradizer – uma vez que, se existente uma norma superior e outra inferior, esta terá fundamento de validade naquela – a não poderá contrariá-la. O mesmo acontece acima: a norma que permite fumar sequer 10 Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, p. 363. 26 é existente, e não produz efeitos no mundo jurídico, pois a sua proposição imediatamente superior não permite tal resultado, tal como ensina 11Kelsen: Entre uma norma de escalão superior e uma norma de escalão inferior, quer dizer, entre uma norma que determina a criação de uma outra e essa outra, não pode existir qualquer conflito, pois a norma do escalão inferior tem o seu fundamento de validade na norma de escalão superior. Se uma norma de escalão inferior é considerada como válida, tem de se considerar como estando de harmonia com uma norma de escalão superior. Logo, concluímos que o referido conflito de normas não pode existir, vez que o próprio sistema não permite. E quanto às normas de mesmo escalão? Quando as proposições conflitantes encontram-se escalonadas no mesmo grau de hierarquia, na construção escalonada de uma ordem jurídica, estas continuam com a obrigação de harmonia com o restante do ordenamento. Isto porque não se pode conferir uma validade quando existe o fator de exclusão mútua. No caso anterior, a norma inferior pode até ter sido criada corretamente, mas o seu conteúdo não corresponde àquele ditado pela norma imediatamente superior, não produz uma harmonia suficiente dentro de um sistema jurídico único. Mas e se a norma “é proibido fumar” está no mesmo grau de hierarquia da norma “é permitido fumar”? Isto, logicamente, em um 12 mesmo tempo, espaço, sujeito e material. Então a resposta é novamente a seguinte: uma das normas não é válida em nosso sistema, vez que em desarmonia. Para normas de escalão diferentes, usamos o método hierárquico para resolver a questão. Estando ambas 11 Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, p. 289. Norberto Bobbio, op. cit., p. 87-88 – “As duas normas devem ter o mesmo âmbito de validade. Distinguem-se quatro âmbitos de validade de uma norma: temporal, espacial, pessoal e material. Não constituem antinomia duas normas que não coincidem com respeito a: a) validade temporal: ‘é proibido fumar das cinco às sete’ não é compatível com: ‘é permitido fumar das sete às nove’. b) validade espacial: ‘é proibido fumar na sala de cinema’ não é compatível com:”é permitido fumar na sala de espera’; c) validade pessoal: ‘é proibido, aos menores de 18 anos, fumar’ não é incompatível com: ‘é permitido aos adultos fumar’; d) validade material: ‘é proibido fumar charutos’ não é incompatível com ‘é permitido fumar cigarros’.” 12 27 as normas em um mesmo escalão, resta-nos apenas dois critérios: o da especialidade e o cronológico, considerando que ambas as normas correspondem em existência formal e material à norma imediatamente superior. Em se tratando de normas apontadas em um mesmo escalão, a ocasião de cada criação é que dita a norma que deverá prevalecer em face daquela que contradiz. Tal fato denomina-se está contido no princípio denominado lex posterior derogat priori. Ou seja, a norma criada posteriormente àquela já existente deverá prevalecer, uma vez que esta reflete uma colocação mais atual do sentido querido pelo órgão legiferante. Nesse 13sentido: Se se trata de normas gerais que foram estabelecidas por um e mesmo órgão mas em diferentes ocasiões, a validade da norma estabelecida em último lugar sobreleva à da norma fixada em primeiro lugar e que a contradiz, segundo o princípio lex posterior derogat priori. (...). Este princípio também encontra aplicação quando as normas que estão em conflito são estabelecidas por dois órgãos diferentes, quando, por exemplo, a Constituição atribui ao monarca e ao parlamento poder (competência) para regular o mesmo objecto através de normas gerais, (...). Tal determinação está no §1o do artigo 2o do Decreto Lei n. 4.657, de 04 de setembro de 1942 – a Lei de Introdução ao Código Civil – que determina que “a lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior.” No entanto, quando as duas normas forem criadas ao mesmo tempo, conforme já relatado, a mais específica deve prevalecer, com base no princípio da especificidade. Logo, novamente não haverá contradição. 13 Hans Kelsen, Teoria Pura do Direito, p. 286. 28 Portanto, nunca um sistema poderá conter normas que se contradizem, havendo soluções e ferramentas que podem solucionar a questão de conflitos normativos, de forma a manter uma harmonia necessária à segurança jurídica dos sujeitos afetados pelas proposições postas em validade. 29 3.0) O ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO NA ESFERA TRABALHISTA a) Introdução ao tópico 3.0 Para facilitarmos a questão, vamos nos limitar a estudar apenas a três normas mais importantes na esfera trabalhista do Direito Brasileiro: a Constituição Federal, a CLT e o grupo das normas coletivas de trabalho. Desde já podemos dizer que a CLT e as normas coletivas de trabalho podem ser apontadas em um mesmo escalão , em nosso ordenamento, e as conseqüências lógicas desta linha de pensamento são a possibilidade imediata de flexibilização do direito laboral, tema de muita discussão atualmente. Ou seja, a capacidade que a norma coletiva de trabalho tem distribuir direitos e deveres distintos ou até contraditórios à própria CLT, nos limites da Carta Magna, o que é veementemente criticado pelos juristas mais conservadores. Qualquer tema que seja especificado pela Consolidação das Leis do Trabalho, que não alcance a matéria processual e as normas cogentes (de ordem pública), como será mais adiante estudado, tal como jornada de trabalho, salários, 30 adicionais, férias, entre outros, podem ser objeto de discussão entre as classes patronais e trabalhadora, o que torna o direito laboral mais dinâmico, adequando-se rapidamente às relações atuais de trabalho, ao mercado e às exigências modernas. As críticas a tal abertura podem ser facilmente levadas ao chão, pelas simples disposições acima expostas e pelo próprio sentido teleológico das normas coletivas. Teoricamente, não é para existir abusos por parte da classe patronal, uma vez que os órgãos representativos dos trabalhadores estão em mesmo grau de poder com os empregadores, e negociam direitos já postos anteriormente de alguma forma (CLT) e limitados constitucionalmente. b) A hierarquia das normas trabalhistas Como pode ser facilmente observado, nossa Constituição Federal é uma norma superior que contém inúmeras normas de ordem trabalhista, principalmente em seu artigo 7o, que institui várias limitações de conteúdo às normas laborais postas em um plano inferior aos ditames constitucionais. Tal norma, pois, por estar em grau de hierarquia absolutamente superior a quaisquer outras normas jurídicas expostas em nosso sistema, tem o condão de atribuir validade, tanto no aspecto da existência formal (validade lógica), como no aspecto de conteúdo – uma validade material. O referido artigo, por exemplo, implanta uma limitação baseada segundo o conteúdo. Não se pode contrariar as proposições expostas constitucionalmente, em sua matéria. Uma norma inferior não pode estatuir a supressão do descanso 31 semanal remunerado, vez que se ocorrido, existiria uma exclusão lógica dos conteúdos de uma norma superior com os de uma imediatamente inferior. Isso é o princípio dinâmico, que confere subsistência à validade, tanto na forma de criação da norma, quanto no conteúdo respectivo. A Constituição Federal vigente à época do nascimento da CLT é quem confere validade lógica à sua existência, e, uma vez recepcionada pela Constituição de 1988, continua válida por corresponder em conteúdo com sua norma imediatamente superior. A CLT passou a ter vigência em novembro de 1943, sob o governo de Getúlio Vargas, e, desde àquela época, sobreviveu até o presente momento, vez que nenhuma outra norma com o mesmo objeto, que a substituísse, foi criada ou passou a existir no mundo jurídico. Nesse mesmo sentido, o 14 inciso XXVI do artigo 7o e o 15 inciso VI do artigo 8o, ambos da Constituição Federal, prevêem o reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho e a obrigatoriedade da participação sindical nas negociações coletivas. Portanto, eis aí o fundamente lógico de validade, em sentido de existência, das normas coletivas trabalhistas. Por outro lado, assim como a Consolidação das Leis do Trabalho, as normas coletivas também são limitadas pelo princípio dinâmico, no que diz respeito à negativa de conteúdo jurídico daquilo que já foi regido pela Constituição Federal. No livro acerca da Teoria Geral das Normas de Kelsen, 14 o 16 quando da CF/88 - Art. 7 – São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: I – (...); XXVI – reconhecimento das convenções e acordos coletivos de trabalho; (...). 15 CF/88 – Art. 8o - É livre a associação profissional ou sindical, observando o seguinte: I – (...); VI – é obrigatória a participação dos sindicatos nas negociações coletivas de trabalho; (...). 16 Hans Kelsen, Teoria Geral das Normas, p. 329/333. 32 discussão da norma inferior e superior, há uma passagem muito interessante, que ajuda em muito a esclarecer os argumentos acima narrados: Que a validade de uma norma fundamenta a validade de uma outra norma, de um modo ou de outro, constitui revelação entre uma norma superior e uma norma inferior. Uma norma está em relação com uma outra norma; a superior em relação com uma inferior, se a validade desta é fundamentada pela validade daquela. A validade da norma inferior é fundamentada pela validade da norma superior pela circunstância de que a norma inferior foi produzida como prescreve a norma superior, pois a norma superior, em relação com a inferior, tem o carácter de Constituição, pois que a natureza da Constituição existe na regulação da produção de normas. Então, a lei, a qual regula o processo, em que o órgão aplicador do Direito, especialmente os tribunais, produzem normas individuais, é a “Constituição” na relação com o processo desses órgãos, como a “Constituição” no sentido específico mais restrito da palavra, isto é, na relação com o processo legislativo de produção de leis, e a Constituição no sentido lógico-transcedental na relação com a historicamente primeira Constituição, com a Constituição no sentido jurídico-positivo. E mais adiante, no mesmo livro, continua dissertando da seguinte forma: Se o órgão autorizado apenas está determinado no geral da norma autorizante, quer dizer: se o órgão autorizado é determinado pelo conceito de um certo órgão, a validade da norma inferior fundamenta-se na validade da norma superior, ou seja, a norma inferior corresponde à norma superior se o indivíduo que estatuiu a norma inferior é exatamente aquele determinado no conceito que está contido na norma autorizante. Quer dizer: se a idéia concreta desse indivíduo pode ser subsumida sob aquele conceito. Portanto, como já vimos, a CLT somente foi recepcionada pela Constituição Federal vez que o seu órgão criador correspondeu àquele definido pela norma superior à época de sua criação, e, da mesma forma, tendo em vista a relação dinâmica de validade existencial, seu conteúdo continuou limitado às proposições da atual Constituição Federal, lei imediatamente superior. Dessa mesma forma, apesar de conter regras procedimentais na própria CLT acerca da criação das normas coletivas de trabalho, quem realmente descreve o órgão autorizado a criar as normas coletivas trabalhistas é a Constituição Federal, o que 33 implica necessariamente e imediatamente na visão de em dois escalões hierarquicamente postos em nosso ordenamento, um formado pela Constituição Federal de 1988, e outro, logo abaixo, formado tanto pela Consolidação das Leis do Trabalho como pelas Normas Coletivas de Trabalho, ambas existentes pela própria existência da Carta Magna e limitadas em conteúdo por aquilo já fixado na norma superior. Talvez a proposta acima seja repudiada de forma veemente pelos juristas como um todo, pois, desde os princípios, aprendemos uma linha de hierarquização completamente diferente daquela ora exposta, na qual se apontava a Constituição Federal em grau máximo, a CLT logo abaixo e, por último, as normas coletivas de trabalho. Nesse sentido, o próprio jurista Pedro Paulo Teixeira Manaus, em seu 17 estudo acerca da matéria, diz o seguinte: Isso quer dizer que as normas jurídicas vinculam-se entre si por um fundamento único, de tal modo que, para configurarem um sistema harmônico, as normas legais devem harmonizar-se, seguindo uma escala de importância, de tal maneira que as normas inferiores devem submeter-se aos mandamentos das normas superiores, sob pena de, não o fazendo, tornarem-se inválidas, como já dissemos. Há, portanto, entre as várias fontes, uma hierarquia, que garante a coerência do sistema jurídico. No campo do direito do trabalho, as normas legais são de aplicação obrigatória, fundadas nos princípios e normas constitucionais, estabelecendo um patamar mínimo de garantia aos trabalhadores. Reserva-se às demais fontes formais espaço para disposições que melhorem as condições de trabalho, ou adaptem situações práticas às determinações da lei, sendo-lhes vedado dispor de forma desfavorável aos trabalhadores, comparativamente ao que estabelece a fonte hierarquicamente superior. Tanto assim é, que a sentença normativa proferida pela Justiça do Trabalho, por força do art. 114, §2o, da Constituição Federal, pode estabelecer normas e condições de trabalho, desde que respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho, exemplificativamente. (...). 17 Pedro Paulo Teixeira Manaus, Negociação Coletiva e Contrato Individual de Trabalho, p. 73-74. 34 Desse modo, a lei não pode dispor de forma menos benéfica do que determina a norma constitucional, do mesmo modo que a sentença normativa e a norma coletiva não podem dispor de forma menos favorável do que dispõe a lei. O regulamento de empresa não pode dispor de forma menos benéfica do que estabelece o acordo coletivo de trabalho. Por fim, o contrato individual de trabalho não pode ser menos favorável do que o mínimo estabelecido na norma coletiva. Do exposto, pode-se observar alguns equívocos graves em termos de conceito. O primeiro, quanto à importância das normas. Não é correto dizer que uma norma, por ser apenas inferior à outra, em uma escala, é menos importante. Muito pelo contrário – imagine-se o caso de uma norma superior que depende de regulação por norma inferior, como acontece em vários artigos da Constituição. Será que a norma reguladora seria mais ou menos importante que a norma que lhe dá validade? Logicamente que não. Portanto, não importa o grau de hierarquia para sua verificação de sua importância, aliás, sequer devemos levar em consideração a importância da norma, mas sim sua validade. Não existe uma escala de importância, como disse o ilustre jurista, mas tão somente uma escala hierárquica, na qual a norma inferior tem sua validade fundamentada na norma imediatamente superior. Em segundo lugar, temos que a forma de hierarquização das normas trabalhistas está completamente equivocada, pois leva em consideração o princípio estático de sistematização das normas jurídicas, o que, conforme já explanado anteriormente, é teoricamente impossível. O próprio autor 18 diz ser possível a revogação da lei posta pela norma coletiva, mas que tal fato “apresenta como limite o estabelecimento contratual de condições mais favoráveis ao reclamante”, o que é logicamente impossível, pois se a norma é inferior, esta nunca poderia excluir o 18 Pedro Paulo Teixeira Manaus, op. cit., p. 77. 35 conteúdo daquela que lhe traz validade, como ocorre no caso. Portanto, ao contrário do que ensina o ilustre juiz do Tribunal Regional do Trabalho da 2a Região, a norma coletiva possui a mesma hierarquia da lei posta (no caso a CLT), até porque, além das duas espécies de normas estarem validadas pela própria Constituição Federal, como ressalvado em seu próprio texto, acima colacionado, “a sentença normativa proferida pela Justiça do Trabalho, por força do art. 114, §2o, da Constituição Federal, pode estabelecer normas e condições de trabalho, desde que respeitadas as disposições convencionais e legais mínimas de proteção ao trabalho”. Portanto, sendo a “força” que traz validade à sentença normativa o próprio artigo constitucional, nada mais correto que dizer que a sua norma imediatamente superior é a Carta Magna. c) Vigência no tempo Muitos devem perguntar como pode ocorrer a vigência de duas leis em conflito, num mesmo escalão hierárquico, sem que uma delas perca sua validade – ou até como uma lei que entre em vigor e depois se perde no tempo, devido à sua especificidade de viver por um período já programado, voltando a antiga norma à ativa. A questão, no entanto, nos parece bem mais simples, e não recai na hipótese de repristinação, o que é vedado em nosso ordenamento. Novamente a resposta se encontra com a nossa Lei de Introdução ao Código Civil, já citada anteriormente, em seu 19artigo 2o, que permite a suspensão da eficácia de uma norma quando outra, de caráter temporário, cujo conteúdo entre em conflito, esteja em vigor. Assim ensina a 19 o Lei de Introdução ao Código Civil - “Art. 2 . Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue.” 36 20 ilustre jurista Maria Helena Diniz,. acerca da matéria: Em suma a norma poderá ter, portanto: a) vigência temporária, pelo simples fato de já ter fixado o tempo de sua duração, contendo um limite para a sua eficácia; e b) vigência permanente, ou seja, para o futuro sem prazo determinado, durando até que seja modificada ou revogada por outra da mesma hierarquia ou de hierarquia superior. Logo, como se pode facilmente concluir, das normas já citadas, a Constituição Federal e a CLT possuem vigência permanente, enquanto as normas coletivas de trabalho, tanto pelas suas características próprias de um contrato – em sentido amplo, como pela sua essência, são de vigência temporária, tendo sido colocadas no mundo jurídico com um termo certo, no qual a norma permanente sempre volta a ter eficácia, caso nenhuma outra lhe tire essa circunstância. Também não se fala em hipótese do §3o do mesmo artigo acima citado – casos de repristinação – pois sendo as normas coletivas de caráter temporário, não há que se falar em restauração da vigência da lei revogada, já que não existe lei revogada nos casos de conflito de normas coletivas com as normas Consolidadas, tendo em vista que a norma permanente apenas perde provisoriamente sua validade, naquilo que contraria em conteúdo a norma coletiva. d) conseqüências práticas da hierarquização acima exposta Como conseqüência prática do apontamento da CLT no mesmo grau de hierarquia das normas coletivas de trabalho, podemos citar a própria flexibilização da legislação laboral, antes engessada pela Consolidação, que foi produzida há 20 Maria Helena Diniz, Lei de Introdução ao Código Civil Brasileiro Interpretada, p. 62/63. 37 tempos, e que até a presente data, sua atualização e adequação ao mercado e às novas relações trabalhistas são praticamente nulas. Tudo o que dispõe nossa Constituição Federal deve seu utilizado como parâmetros para o conteúdo das normas inferiores, vez que a norma no escalão abaixo não pode contradizer a norma contida imediatamente acima. Logo, o leque é enorme, e abre discussão para normatização de pontos antes intocáveis pela negociação coletiva, que pertenciam exclusivamente à Consolidação das Leis Trabalhistas, como, por exemplo, os períodos de descanso intrajornada e interjornada, concessão de férias, duração, normas de segurança e medicina do trabalho, normas relativas ao trabalho feminino, e assim por diante. Todos os casos e matérias, com exceção daquelas processuais e dos direitos indisponíveis, ditados pela CLT, são passíveis de serem inseridas nas normas coletivas de trabalho, vez que sua limitação corresponde apenas à Constituição Federal, que representa a norma imediatamente superior. e) Limitações das normas coletivas de trabalho A primeira limitação, conforme já exposto anteriormente, diz respeito ao próprio conteúdo. As matérias contidas nas normas coletivas de trabalho não podem contradizer àquilo disposto na Carta Magna, que são os limites mínimos de proteção ao trabalhador. A questão sobre a limitação, pois, parece simples e não necessita de 38 maiores indagações ou teorias para solução das questões práticas, como faz a maioria dos juristas sobre o assunto. 21 Sérgio Pinto Martins, Juiz Titular de São Paulo, muito pertinente em seu livro sobre a matéria, diz o seguinte: Os principais limites à flexibilização são dois: (a) normas de ordem pública, que não podem ser modificadas pelas partes, sendo um mínimo assegurado ao trabalhador. É o caso da observância da norma mínima contida na Constituição ou nas leis. Não seria possível, por exemplo, estabelecer aviso prévio inferior a 30 dias (art. 7o, XXI), quando a disposição seria inválida. Nada impede, portanto, que a norma estipule direitos superiores aos indicados, como aviso prévio de 45 dias; (b) quando for contrariada a política econômica do governo. A norma coletiva encontra, portanto, limite na proibição do Estado. Ë expresso o art. 623 da CLT de que será nula disposição de convenção ou acordo coletivo que, direta ou indiretamente, contrarie proibição ou norma disciplinadora de política econômico-financeira do governo ou concernente à política salarial vigente, não produzindo quaisquer efeitos. No item “a” acima, os limites de negociação coletiva, via instituição sindical, estão amparados pela hierarquia das normas trabalhistas, ou seja, na própria Constituição Federal, bem como nas normas de ordem pública, conforme já colocado anteriormente. No entanto, com o devido respeito, o item “b” não pode ser considerado, pois extrapola os limites da própria legislação específica ao caso. Duas normas de um mesmo escalão, com mesmo grau de abstração e nascimento temporal, não podem se limitar uma à outra, sendo certo que eventuais limites à negociação se limitam à própria lei de constituição, conforme já exposto. Seguindo-se em diante, pois, temos outro ponto no qual não há permissão para se legiferar, em se tratando de normas coletivas de trabalho, que são as questões processuais. A própria 22 Constituição Federal diz ser competente para legislar acerca de matéria processual, apenas a União Federal, através de seus 21 Sérgio Pinto Martins, Flexibilização das Condições de Trabalho, p. 105-113. CF/88 – “Art. 22. Compete privativamente à União legislar sobre: I – direito civil, comercial, penal, processual, eleitoral, agrário, marítimo, aeronáutico, espacial e do trabalho. II – (...)” 22 39 órgãos. Portanto, os Sindicatos de classe nunca poderão negociar qualquer matéria relativa ao procedimento processual das reclamações trabalhistas. Estas, por sua vez, estão devidamente reguladas junto à CLT e ao próprio Código de Processo Civil, utilizado de forma subsidiária na Justiça Especializado do Trabalho. Os prazos recursais, os procedimentos probatórios e tudo o mais contido na CLT jamais poderá ser objeto de deliberação em negociação coletiva, que, caso contrário, não será sequer válida, pois, apesar de formalmente correta sua criação, o conteúdo não corresponde àquele determinado na CLT, e de forma negativa pela Constituição, que veda a inserção de tal matéria em discussão nas negociações coletivas. Voltando um pouco ao ponto relativo aos direitos indisponíveis, ensina a ilustre jurista 23 Maria Helena Diniz, em seu Dicionário Jurídico, que direito indisponível é “aquele que é insuscetível de ser objeto de atos de disposição por parte de seu titular”. 24 Orlando Gomes foi mais além nas restrições ao “direito de contratar”, em seu livro sobre contratos: Em larga generalização, pode-se dizer que as limitações à liberdade de contratar inspiram-se em razões de utilidade social. Certos interêsses são considerados infensos às bases da ordem social ou se chocam com os princípios cuja observância por todos se tem como indispensável à normalidade dessa ordem. Diz-se, então, que ferem as leis de ordem pública e os bons costumes. Nesse contexto, pois, podemos citar os direitos dos menores, os direitos trabalhistas como o seguro desemprego, a previdência social e aposentadoria, entre outros, nos quais o Estado tenha participação direta ou indireta, e haja um interesse 23 Maria Helena Diniz, Dicionários Jurídico, Volume 2, p. 166. 40 público, no sentido de manter a ordem social e sua normalidade. As normas protegidas da negociação coletiva, por serem de ordem pública, são encontradas na própria CLT, como no caso daquelas proposições que cumprem o papel de proteger o trabalhador em sua mínima dignidade humana, que é o motor do labor em qualquer parte do mundo. Não há trabalho sem que haja gente trabalhando, e gente só trabalha com vida. Porém, por outro lado, temos o valor do dinheiro, que ultrapassa a barreira da importância do ser humano para o próprio trabalho, visando apenas um valor pecuniário, esquecendo-se da visão mais humanística do labor como um todo. Esta já é uma visão econômica e é neste momento que entra a discussão do que é ou não é protegido pelo princípio das normas de ordem pública. O primeiro direito fundamental do homem é a vida, e esta é um direito de ordem pública, que nunca poderá ser negociado por ordem coletiva. O respeito à vida é um mínimo legal que se exige em um local de trabalho. A sua proteção sempre será limitada àquilo que a CLT reza, podendo a norma coletiva, pois, somente priorizar tal proteção, e não deteriorá-la. Da vida, pode-se extrair o direito à saúde do trabalhador e o direito deste viver através de uma justa remuneração ao seu labor, comprando os bens colocados ao consumo, na medida do possível e do mínimo moral. Por exemplo, nunca uma norma coletiva poderia determinar o trabalho em condições completamente insalubres, sem as devidas proteções, pois uma norma nesse sentido, apesar de hierarquicamente na mesma posição da CLT e produzida 24 Orlando Gomes, Contratos, p. 28. 41 em momento posterior, não poderia de forma alguma alterar o mínimo legal de proteção à saúde do trabalhador, à sua vida. Nesse mesmo sentido, nunca se poderia negociar um trabalho com remuneração em espécie, sem o pagamento do valor em pecúnia, no mínimo determinado pela CLT, pois estaria se limitando o direito do trabalhador ao consumo, à opção que este tem de tocar a sua vida, comprando os bens que bem entender, necessários ao seu viver, à sua vida. Estas são, pois, normas cogentes, que não podem ser modificadas por outras normas de mesmo escalão. Abaixo, quando da discussão e exposição de alguns julgados, poderá ser facilmente notado que, por exemplo, o intervalo de jornada pode ser considerado como norma cogente, dependendo, logicamente, da interpretação judicial acerca da matéria. Tal entendimento veda a negociação coletiva diminuindo o tempo entre um ato de trabalho e outro, sob a argumentação de que tal norma afetaria à saúde do trabalhador, que é tutelada pelo princípio de proteção à vida. 42 4.0) CASOS INTERESSANTES E JURISPRUDENCIAIS Diz o artigo 71 da Consolidação das Leis do Trabalho o seguinte: Art. 71. Em qualquer trabalho contínuo, cuja duração exceda a 6 (seis) horas, é obrigatória a concessão de um intervalo para repouso ou alimentação, o qual será, no mínimo, de 1 (uma) hora e, salvo acordo ou convenção coletiva em contrário, não poderá exceder de 2 (duas) horas. o §1 – (...); o §2 – (...); §3o – O limite mínimo de 1 (uma) hora para repouso ou refeição poderá ser reduzido por ato do Ministro do Trabalho e Emprego quando, ouvida a Secretaria de Segurança e Saúde no Trabalho, se verificar que o estabelecimento atende integralmente às exigências concernentes à organização dos refeitórios e quando os respectivos empregados não estiverem sob regime de trabalho prorrogado a horas suplementares. Por outro lado, diz a decisão abaixo, acerca da mesma questão – intervalo intrajornada: 25 EMENTA - INTERVALO. REDUÇÃO POR NORMA COLETIVA. O intervalo para refeição e descanso é, sem dúvida, norma que visa a proteger a saúde do trabalhador e, portanto, só poderá ser reduzido – ainda que por norma coletiva – se obedecidos os mesmos requisitos legais fixados para a mesma redução por ato do Ministério do Trabalho, quais sejam: que o estabelecimento onde o trabalhador preste serviços atenda integralmente às exigências concernentes à organização dos refeitórios; e que o trabalhador não esteja sob o regime de trabalho prorrogado a horas suplementares (parág. 3o., do art. 71, da CLT). 25 a Tribunal Regional do Trabalho da 15 região - Decisão 031965/2001-SPAJ do processo 01325-2000-084-1500-0 RO – Juiz Relator Jorge Luiz Souto Maior. 43 Como se pode perceber, existe uma norma posta – mais especificamente o artigo 71 da CLT - que prevê a obrigatoriedade do intervalo intrajornada para os trabalhadores, de no mínimo uma hora, enquanto a decisão acima colacionada faz referência à redução do mesmo intervalo, via negociação coletiva. As duas proposições são logicamente excludentes – “faça intervalo de no mínimo uma hora” e “faça intervalo de até trinta minutos”, por exemplo, são típicas normas relatadas no caso acima, que se excluem mutuamente, por não poderem ambas ter validade no mesmo período de tempo. Mais interessante ainda são os julgados abaixo. O primeiro trata o intervalo intrajornada como norma de ordem pública, que se sobrepõe aos interesses das partes e fixa-se como um direito fundamental do obreiro, que visa proteger sua saúde, sua vida, impondo-se, pois, a autorização do Ministério do Trabalho para que seja válida tal negociação. 26 NORMA COLETIVA (EM GERAL) Convenção ou acordo coletivo REDUÇÃO DO INTERVALO INTRAJORNADA - Por tratar-se de direito fundamental do trabalhador, os limites mínimo e máximo, para a duração do intervalo entre dois turnos, são estabelecidos por normas de ordem pública, cogentes, restringindo a manifestação volitiva das partes envolvidas no contrato de trabalho, não podendo ser derrogadas sequer pela via simplista noticiada no caso presente, porquanto visam a proteção de todos os trabalhadores, sobrepondo-se ao interesse particularíssimo de determinados empregados de uma única empresa, isoladamente. Legítimo o direito de as entidades sindicais representantes dos trabalhadores promoverem negociações coletivas sobre condições de trabalho em geral, inclusive, salarial, por autorização constitucional até, mas não podem ultrapassar os limites da lei, malferindo direito fundamental conquistado por luta secular, em nome da flexibilização das normas trabalhistas, interpretando o inciso XXVI, do artigo 7º, da Constituição Federal, com a amplitude que sua clara redação não enseja. A redução do intervalo para repouso ou alimentação é até de competência exclusiva do Ministro do Trabalho, com observância das exigências elencadas no parágrafo 3º, do artigo 71, da C.L.T., vetando, inclusive, a adoção concomitante do regime de prorrogação da jornada de trabalho. 44 Já este próximo acórdão é completamente contrário ao anterior, pois considera invalida a norma que determina o monopólio da autorização para se diminuir o intervalo como do Ministério do Trabalho, atribuindo tal competência também às entidades sindicais, reconhecendo os fundamentos de validade dos acordos e negociações coletivas de trabalho. 27 Lícita a redução do intervalo para refeições por força de convenção ou acordo coletivo. O Ministério do Trabalho não detém o monopólio para essa autorização. Negar poderes às entidades sindicais para convencionarem pausa inferior a uma hora equivaleria a negar vigência à norma constitucional que reconhece a validade dos acordos e convenções e acordos coletivos (art. 7º, XXVI) e lhes confere autonomia para flexibilizar as regras de duração, redução e compensação da jornada de trabalho (incisos XIII e XIV do mesmo artigo). A questão, pois, da eqüidade no escalão hierárquico entre a CLT e as normas coletivas, vem sendo enfrentada até em nossos Tribunais do Trabalho, que começam a reconhecer as afirmações realizadas no presente trabalho, de equidade no grau hierárquico entre as citadas normas. Por exemplo, numa norma coletiva que tratou de reduzir, em um período de tempo, o horário de descanso intrajornada, retirando a validade da própria CLT, que regia a matéria de forma contrária à negociação coletiva realizada. Outro caso interessante pode ser revelado pelas decisões abaixo, extraídas do Tribunal Regional do Trabalho de Campinas, na 15a Região: 28 EMENTA – (...). HORAS "IN ITINERE". PREFIXAÇÃO EM NORMA COLETIVA. VALIDADE. A Constituição Federal, além de reconhecer expressamente as convenções e acordos coletivos de trabalho em seu 26 a Tribunal Regional do Trabalho da 2 Região/SP – Processo n. 43207200290202004 RO – Acórdão da 4ªT 20030576045 - Rel. Carlos Orlando Gomes - DOE 07/11/2003 27 a Tribunal Regional do Trabalho da 2 Região/SP – Processo n. 01279200202202005 RO - Acórdão da 1ªT 20030584307 - Rel. Wilson Fernandes - DOE 11/11/2003 28 a Tribunal Regional do Trabalho da 15 Região - Decisão 031965/2001-SPAJ do processo n. 001335/2002-SPAJ do Processo 00878-1997-029-15-00-7 RO – Juiz Relator Carlos Alberto Moreira Xavier. 45 artigo 7º, inciso XXVI, também prestigia a negociação coletiva como forma preferencial de prevenir e solucionar conflitos, como se pode verificar do disposto no parágrafo 2º do seu artigo 114. Verifica-se, deste modo, que a atual Carta Magna privilegiou a negociação coletiva, incentivando o entendimento direto das categorias, independente da intervenção do Estado. Por isso, a jurisprudência atual, tanto do C. TST quanto deste Regional, tem entendido válida a prefixação do tempo "in itinere" em norma coletiva. (...). Como se pode notar, novamente há uma citação da fonte da norma coletiva de trabalho, onde se demonstra o início da mudança ideológica da hierarquia das leis trabalhistas, devido ao expresso reconhecimento das convenções e acordos coletivos laborais, diretamente pela Carta Magna, o que lhe confere um vínculo de validade, trazendo-lhe existência no mundo jurídico. Nesse mesmo sentido, e como último caso, pode ser observado no julgado abaixo, no qual há novamente uma expressa menção à fonte das normas coletivas de trabalho e suas limitações, qual seja, a própria Constituição Federal. 29 EMENTA - TURNOS ININTERRUPTOS DE REVEZAMENTO. ACORDO COLETIVO AMPLIANDO JORNADA. FOLGAS VANTAJOSAS AO TRABALHADOR. VALIDADE. Muito embora o Legislador Constituinte tenha inserido na Constituição Federal o reconhecimento das Convenções e Acordos Coletivos celebrados (inciso XXVI, artigo 7º), autorizando a flexibilização, não se pode olvidar que autonomia conferida aos sindicatos tem limites na própria lei, não conservando soberania a ponto de vulnerar direitos mínimos assegurados constitucionalmente. Assim, se a categoria profissional abrir mão da jornada reduzida, deve a norma coletiva prever um benefício em compensação para sua validade, o que ocorreu no presente caso em que foram concedidas folgas semanais superiores às previstas em lei. Trabalho extraordinário que não se reconhece pela validade da norma coletiva. Recurso conhecido e não provido neste aspecto. O julgado é claro ao reconhecer que a fonte das normas coletivas do trabalho é a Carta Magna, bem como esta representa seu limite, e não a CLT, com vem sendo ensinado há tempo nas diversas faculdades. Diz claramente que os Tribunal Regional do Trabalho da 15a Região (Campinas/SP) - Decisão 031965/2001-SPAJ do Processo Decisão 009146/2002-SPAJ do Processo 02191-1998-097-15-00-5 ROS – Juiz Relator Lorival Ferreira dos Santos. 29 46 sindicatos têm como limite os direitos mínimos assegurados constitucionalmente, o que vai ao encontro da tese lançada na presente. 47 5.0) CONCLUSÃO O presente trabalho, que traz uma hierarquização mais adequada à realidade das normas trabalhistas e à própria e atual utilização das normas coletivas, vem acompanhado de uma visão mais adaptada à realidade social, no qual o Estado vem perdendo suas forças como que daquele poder que tudo deve prover, num sistema excessivamente intervencionista nas relações sociais existentes, principalmente no aspecto empregado e empregador. Logicamente, não se pretende uma negação ou supressão às normas estatais, e nem é sobre isso que se trata o presente estudo, mas sim, e apenas isso, uma flexibilização do direito laboral através da correta limitação das negociações coletivas de trabalho, o que pode trazer incentivos à produção de empregos e ao desenvolvimento econômico-social, se corretamente utilizada. Primeiro, como já dito anteriormente, sendo a Constituição Federal a norma imediatamente superior à própria CLT e outras normas coletivas quaisquer, e estando estas últimas no mesmo escalão, resta-nos o próprio conteúdo da Carta Magna como direitos mínimos aos trabalhadores, sendo certo que, por ter vigência 48 por prazo indeterminado, a CLT já exterioriza diversos direitos conquistados, inerentes à esfera jurídica laboral. Nesse sentido, tendo em vista o próprio conceito de um acordo ou convenção coletiva, teoricamente, os trabalhadores nunca podem ter seus direitos suprimidos, pois, se de um lado se retira algum benefício, de outro, o sindicato da categoria o traz de volta, já que tais normas representam, no fundo, um contrato bilateral, entre duas partes, mas que obriga toda uma categoria de empregados e empregadores. E mais, os direitos mínimos a serem negociados estão em nossa Carta Magna, que não permite as extrapolações não pretendidas pelo próprio Estado, que tem por fim manter a tranqüilidade e o desenvolvimento sócio-econômico, bem como a harmonia em nosso sistema jurídico-normativo, impedindo, assim, que as partes acordem direitos senão aqueles permitidos – nos limites das normas constitucionais e normas de ordem pública. As condições de trabalho não podem, seja no aspecto social, ou no legal, ser totalmente flexibilizadas, sob pena de trazer uma insegurança ao trabalhador, que ficaria completamente desprotegido. E é para tanto que existem as entidades sindicais, que tornam a negociação coletiva a melhor forma, e a mais democrática, de se ajustar as normas às atuais situações fáticas, de mercado e de necessidade, abrangendo situações peculiares de cada classe trabalhadora e empresas respectivas. 49 6.0) BIBLIOGRAFIA BOBBIO, Norbeto. Teoria do Ordenamento Jurídico. Tradução de Maria Celeste C. J. Santos. 10a Ed. Brasília : Ed. Universidade de Brasília, 1999. DINIZ, Maria Helena. Dicionário Jurídico. São Paulo: Saraiva, 1998. FERRAS JR., Tercio Sampaio / e outros / A Norma Jurídica. Freitas Bastos, 1980. Rio de Janeiro: GOMES, Orlando/ Contratos. 2a Ed. Rio de Janeiro : Editora Forense, 1966. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de Dr. João Baptista Machado. 6a Ed. Coimbra : Editora Armênio Amado, 1984. KELSEN, Hans. Teoria Geral das Normas. Tradução de José Florentino Duarte. Porto Alegre : Fabris, 1986. MARTINS, Sérgio Pinto. Flexibilização das Condições de Trabalho. 2a Ed. São Paulo : Editora Atlas S.A., 2002. MORATO, João Marcos Castilho Morato. Globalismo e Flexibilização Trabalhista. Belo Horizonte : Editora Inédita, 2003. BRASIL. Consolidação das Leis do Trabalho. Compilação de Armando Casimiro Costa, Irany Ferrari, Melchíades Rodrigues Martins. - 30a Ed. – São Paulo: LTr, 2003. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988 / obra coletiva de autoria da Editora Saraiva com a Colaboração de Antonio Luiz de Toledo Pinto e Márcia Cristina Vaz dos Santos Windt. – 22a Ed. atual. e ampl. – São Paulo: Saraiva., 1999.