PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE DIREITO A REVISÃO JUDICIAL DOS CONTRATOS NO CÓDIGO CIVIL E NO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR SOB A ÓTICA DA TEORIA DA IMPREVISÃO CRISTIANO DA SILVA CASANOVA ORIENTAÇÃO DA PROFESSORA ME. VERA LÚCIA REMEDI PEREIRA. Porto Alegre, 2006. A possibilidade de revisão contratual é bastante antiga. A cláusula rebus sic stantibus, denominada modernamente teoria da imprevisão1, tem sido admitida no Brasil desde os anos 30 e aplicada por nossos tribunais desde meados do século XX. Rebus sic stantibus corresponde a “estando assim as coisas” 2. É a abreviação da fórmula contractus qui habent tractum successivum et depentiam de futuro rebus sic stantibus intelliguntur. A tradução é a seguinte: “nos contratos de trato sucessivo ou a termo, o vínculo obrigatório entende-se subordinado à continuação daquele estado de fato vigente ao tempo da estipulação”.3 Segundo as palavras de Arnaldo Rizzardo, a teoria da imprevisão: (...) corresponde ao princípio que admite a revisão dos contratos em certas circunstâncias especiais, como na ocorrência de acontecimentos extraordinários e imprevistos, que tornam a 4 prestação de uma das partes sumamente onerosas. 1 FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso Fortuito e Teoria da Imprevisão. Rio de Janeiro. Ed. Forense, 1958, p. 58. 2 Segundo a tradução de RODRIGUES, Dirceu A. Victor. Brocardos jurídicos. São Paulo. Ed. Scipione, 1988. 3 FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso Fortuito..., p. 49. 4 RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. Rio de Janeiro. Ed. Forense, 2005, p. 139. 2 Assim, tanto no Código Civil como no Código de Defesa do Consumidor, pode-se dizer que o termo “Teoria da Imprevisão” é relativo à condição de que, havendo mudança, a execução da obrigação contratual não seja exigível nas mesmas condições pactuadas antes daquela, podendo ser o contrato posto em equilíbrio. Com a promulgação do Novo Código Civil5, a Teoria da Imprevisão se põe expressamente em nossa legislação civil, definindo suas bases estruturais e fundamento6. A Teoria da Imprevisão está prevista no atual Código Civil no Livro I “Do Direito das Obrigações”, Título V “Dos Contratos em Geral”, na seção IV que trata “Da Resolução por Onerosidade Excessiva”, sendo disciplinada nos artigos 479 a 4807. O vigente diploma introduziu a figura da onerosidade excessiva, que tem o substrato comum da imprevisão, autorizando a resolução do contrato8, dentro das condições do artigo 478: Art. 478: “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação”. Nos artigos 479 e 480, constam medidas asseguradoras às partes a fim de evitar a resolução: 5 Lei n.° 10.406, de 10.01.2002. MARTINS, Francisco Serrano. A Teoria da Imprevisão e a Revisão Contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. Pesquisa feita na internet: http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=5240 em 23.03.2006. 7 Nesse Sentido, RIZZARDO, Arnaldo. Contratos. Rio de Janeiro. Ed. Forense, 2005, p. 145. 8 Idem, p. 141. 6 3 Artigo 479: “A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato”. Artigo 480: “Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executa-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva”. Distancia-se, assim, da idéia de que o contrato faz lei entre as partes, através do princípio do pacta sunt servanda, o qual visa preservar e proteger a autonomia da vontade, a liberdade de contratar e a segurança jurídica de que os instrumentos previstos no nosso ordenamento são confiáveis. Para a aplicação da Teoria da Imprevisão no Código Civil, há de se observar algumas condições, as quais, para o jurista Arnoldo Medeiros da Fonseca, as principais são: a. O deferimento ou a sucessividade na execução do contrato; b. Alteração nas condições circunstanciais objetivas em relação ao momento da celebração do contrato; c. Onerosidade excessiva para uma das partes contratantes e vantagem para outra d. Imprevisibilidade daquela alteração circunstancial.9 Renato José de Moraes, em sua obra, resume em quatro os requisitos para tornar possível a revisão do contratual: Primeiramente, o contrato a ser revisado tem de ser de execução periódica, continuada, ou diferida, isto é, não pode ter sido executado imediatamente após a sua celebração. Um segundo requisito é ter ocorrido, depois da celebração e antes ou durante a execução contratual, um fato que fosse imprevisível para as partes durante a celebração do contrato, e que tenha desequilibrado o seu conteúdo. A terceira exigência é que o fator superveniente tenha desequilibrado da maneira drástica o contrato. É preciso que um dos contratantes tenha de arcar com um ônus excessivo, bastante superior ao que normalmente ronda aquela espécie de negócio jurídico, para que a revisão seja admitida. O quarto e último requisito é que a parte prejudicada pelo desequilíbrio não tenha sido culpada 10 pala modificação do estado das coisas(...). 9 FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso Fortuito..., p. 55. MORAES, Renato José de. ‘Cláusula Rebus Sic Stantibus’, São Paulo. Ed. Saraiva, 2001, p. 34 e 35. 10 4 Presentes estes requisitos, pode-se pleitear a revisão contratual. Essa revisão é judicial. Portanto, é necessária a intervenção do juiz e de uma sentença. A situação contratual imprevista deve ser necessariamente reconhecida pelo Poder Judiciário (ou pelo procedimento arbitral, quando previamente convencionado pelas partes), sob pena de não se caracterizar um pressuposto formal para a revisão contratual.11 O devedor onerado deve ingressar com a ação, requerendo o reconhecimento da Teoria da Imprevisão. Se o interessado não demanda, confiante na evidência de seu estado, fatalmente ingressará na categoria de infrator contratual, em face da inexecução culposa das obrigações. O pedido poderá ser tanto de liberação do devedor da obrigação como de redução do montante da prestação. Pode-se pleitear a resolução do contrato12, ou a revisão de cláusula contratual13 mantendo-se o contrato. Esta solução é autorizada pela aplicação, pelo juiz, da cláusula geral da função social do contrato14 e também da cláusula geral da boa-fé15. Conforme adverte Venosa, a revisão judicial não deve limitar-se exclusivamente a resolver a obrigação. Pode, e com muita utilidade, colocar o contrato em seus bons e atuais limites de comprimento, sem rescindi-lo. Se a 11 RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Revisão Judicial dos contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão. São Paulo. Ed. Atlas, 2002, p. 108. 12 Art. 478 CC: “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação”. 13 Art. 317 CC: “Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quando possível, o valor real da prestação”. 14 Art. 421 CC: “A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato”. 15 Art. 422 CC: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”. 5 prestação de tornou excessiva, nada impede que o julgador a coloque no limite aceitável, de acordo com as circunstâncias.16 Nota-se, nessa situação, a redução do negócio jurídico, conservando, contudo, a real vontade das partes, retirando do contrato as eventuais invalidades e prosseguindo normalmente com o pactuado. Denota a boa-fé do contratante que quer pagar o justo, diferentemente daquele que simplesmente deseja livrar-se da obrigação. Contudo, o legislador brasileiro disciplinou o instituto da revisão contratual de forma equivocada, não respeitando o fim a que se propôs a teoria da imprevisão, que é a manutenção dos pactos.17 Nesse sentido, Arnoldo Medeiros Fonseca acrescenta a necessidade de: (...)investigar, em síntese, se é justo, e em que termos, admitir a revisão ou resolução dos contratos, por intermédio do Juiz, pela superveniência de acontecimentos imprevistos e razoavelmente imprevisíveis por ocasião da formação do vínculo, e que alterem o estado de fato no qual ocorreu a convergência de vontades, acarretando uma onerosidade excessiva para um dos 18 estipulantes. O pedido de revisão terá em foco as obrigações ainda não cumpridas. Extintas são as obrigações que já foram cumpridas. Porém, a Teoria da Imprevisão não se compatibiliza com a mora, respondendo pelas perdas e danos, art. 40319, quem der causa, sendo de todo inaceitável invocá-la quando já se caracteriza esse estado.20 16 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria Geral das Obrigações e Teoria Geral dos Contratos. São Paulo. Ed. Atlas, 2005 p. 499. 17 MARTINS, Francisco Serrano. A Teoria... . 18 FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso Fortuito..., p. 19. 19 Art. 403 CC. “Ainda que a inexecução resulte de dolo do devedor, as perdas e danos só incluem os prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito dela direito e imediato, sem prejuízo do disposto na lei processual”. 20 RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Revisão Judicial.... p. 109. 6 Não obstante, os contratos devem ser a prazo, ou de duração. O contrato de cumprimento instantâneo, como é elementar, não se amolda à problemática da onerosidade excessiva. Esta surge com o decorrer de certo tempo, ainda que muito próxima à feitura do contrato. O fato deve ser imprevisto e imprevisível aos contratantes. Se algum deles já souber de sua existência ou ocorrência, o enfoque desloca-se para os vícios da vontade. O campo de atuação é dos contratos bilaterais comutativos, ou unilaterais onerosos21. Há, também, de se observar que os fatos causadores da onerosidade devem desvincular-se de uma atividade do devedor. Portanto, tem-se que verificar uma ausência de culpa do obrigado. A doutrina também menciona como requisito a ausência de mora do devedor. A mora afasta o direito de requerer a incidência da imprevisão22, devendo a alteração das circunstâncias de fato ocorrer de modo independente da vontade das partes. Assim, a Teoria da Imprevisão deixa de ser aplicável quando há inexecução culposa ou voluntária, pois, nesse caso, estar-se-ia diante de uma clássica hipótese de resolução contratual, o que ensejaria à responsabilização do infrator segundo a teoria dos riscos23. Dessa forma, presente os requisitos analisados, é possível a revisão do contrato, no âmbito do Código Civil. Na visão contemporânea, produtos de inúmeras alterações sociais e da massificação das relações contratuais, ao contrário, o princípio da autonomia da vontade não configura algo absoluto, convivendo com outros princípios 21 Nesse sentido, RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Revisão Judicial..., p. 154, DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. São Paulo. Ed. Saraiva, 2005, p. 258 e VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria..., p. 490. 22 Nesse Sentido: Caio Mário Pereira, Enzo Roppo, Luiz Renato Ferreira da Silva, José Maria Othon Sidou. 23 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. São Paulo. Ed. Saraiva, 2005, p. 258. 7 igualmente importantes para melhor interpretação e solução dos conflitos resultantes de relações contratuais. Dentre esses princípios, podemos citar dois que sintetizam toda essa inovação ocorrida com o advento do Código Civil: o princípio da boa-fé que impõe às partes o dever de agirem de acordo com determinados padrões de conduta, cooperação e lealdade, garante aos contratantes a segurança jurídica e equilíbrio para firmarem contratos em condições suportáveis para ambas as partes, e o princípio da função social do contrato, que na verdade, age conjuntamente com o princípio da boa-fé, permitindo que o Estado intervenha nas relações contratuais e que estas sejam pautadas pela confiança, lealdade, sem abuso de direito da parte mais forte economicamente sobre a mais vulnerável, tudo isto para que o contrato atenda a sua função social, que significa dizer que o contrato não corresponde à manutenção absoluta da vontade inicial, mas a conformidade com a justiça comutativa. A comutatividade contratual importa em ver as partes da relação contratual em equilíbrio. O atual código traz três artigos específicos sobre a resolução do contrato por onerosidade excessiva, embora a noção também esteja espalhada por outros dispositivos. Observando os artigos 47824, 47925 e 48026, do Código Civil de 2002, é possível reconhecer as exigências para a resolução dos contratos por onerosidade excessiva. 24 Art. 478 CC: “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação”. 25 Art. 479 CC: “A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar eqüitativamente as condições do contrato”. 26 Art. 480 CC: “Se no contrato as obrigações couberem a apenas uma das partes, poderá ela pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterado o modo de executa-la, a fim de evitar a onerosidade excessiva”. 8 Também há, no artigo 31727 do Código Civil, a possibilidade da revisão contratual, através de motivos imprevisíveis que tornem o valor da prestação desproporcional. Sobre o tema, Otávio Luiz Rodrigues Junior, fala que: (...) sua ocorrência dar-se-á necessariamente nos contratos de execução continuada ou deferida; de modo objetivo, é necessária a existência concomitante de prestação excessivamente onerosa para umas das partes e a extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis; o devedor poderá pedir a resolução do contrato, admitindo-se a alternativa ao réu de evita-la, oferecendo-se para modificar eqüitativamente as condições do contrato; o reconhecimento da onerosidade excessiva será necessariamente por sentença, cujos efeitos devem retroagir à data da citação; nos contratos unilaterais, a parte a quem couber executa-lo poderá pleitear que a sua prestação seja reduzida, ou alterando o modo de executá-la, 28 a fim de evitar a onerosidade excessiva. Em uma linha geral, é desta forma que pode se dar à revisão judicial dos contratos sob a ótica da Teoria da Imprevisão. O Código Civil, ao prever a possibilidade de revisão da relação jurídica nos artigos mencionados, e considerando-se ainda a excepcionalidade da hipótese, faz menção a certos pressupostos que deverão ser observados, a saber: a) tratar-se de contrato de execução continuada ou diferida; b) ocorrer situação de extrema onerosidade para uma das partes, ao mesmo tempo ensejando manifesta vantagem para a outra; c) a ocorrência de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis. 27 Art. 317 CC: "Quando, por motivos imprevisíveis, sobrevier desproporção manifesta entre o valor da prestação devida e o do momento de sua execução, poderá o juiz corrigi-lo, a pedido da parte, de modo que assegure, quando possível, o valor real da prestação”. 28 RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Revisão Judicial... p. 155. 9 De outra banda, o Direito do Consumidor encontra sua expressão no século XX, com o novo Estado Industrial, que viu surgir populações mais educadas e cônscias de seus direitos29. É uma forma de intervenção do Estado na Economia e, por via de conseqüência, uma ruptura com o absenteísmo liberal do século XIX. Antônio Herman Benjamim relata o seguinte: O Direito do consumidor regra o mercado porque protege o consumidor. É na perspectiva deste que ele se impõe, como sistema de ordem pública, aos fornecedores. E não vice-versa, já que a proteção pura e simples do mercado nem sempre significa tutela efetiva do consumidor. Veja-se o exemplo da reserva de mercado: assegura-se o mercado para a indústria nacional, mas nem por isso o consumidor tem, automaticamente, sua posição 30 melhorada. A Constituição Federal reconheceu a fragilidade do consumidor e, a fim de protegê-lo, instituiu norma programática no sentido de que o legislador infraconstitucional editasse um Código de Defesa do Consumidor, que trouxe em seu bojo um microssistema jurídico inserido no sistema jurídico geral, que por sua vez, está inserido no sistema social31. O Código de Defesa do Consumidor representa o mais novo e mais amplo grupo de normas cogentes, editado com o fim de disciplinar as relações contratuais entre fornecedor e consumidor, segundo os postulados da nova teoria contratual.32 29 RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Revisão..., p. 158. BENJAMIN, Antônio Herman de Vasconcelos. O direito do consumidor. Revista dos Tribunais. São Paulo, 1991, v. 670, p. 52. 31 ANDRADE, Ronaldo Alves de. Curso de Direito do Consumidor. São Paulo. Ed. Manole 2006, p. 12/13. 32 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. São Paulo. Ed. Revista dosTribunais, 2002, p. 215. 30 10 Segundo essa nova teoria contratual, o contrato não pode mais ser considerado somente como um campo livre e exclusivo para a vontade criadora dos indivíduos. Hoje, a função social do contratual, como instrumento basilar para o movimento das riquezas e para a realização dos legítimos interesses dos indivíduos, exige que o contrato siga um regramento legal rigoroso. A nova teoria contratual fornecerá o embasamento teórico para a edição de normas cogentes, que traçarão o novo conceito e os novos limites da autonomia da vontade, com fim de assegurar que o contrato cumpra a sua função social33. O Código de Defesa do Consumidor dispõem que suas normas dirigem-se à proteção prioritária de um grupo social, os consumidores, e que se constituem em normas de ordem pública, inafastáveis, portanto, pela vontade individual. São normas de interesse social, pois, conforme Ripert, “as leis de ordem pública são aquelas que interessam mais diretamente à sociedade que aos particulares”. 34 O CDC, assim como o Código Civil de 2002, sofreu uma influência direta da Constituição, da nova ordem pública por ela imposta, e muitas relações particulares, antes deixadas ao arbítrio da vontade das partes, obtiveram uma relevância jurídica nova e conseqüentemente um controle estatal nas relações jurídicas dos indivíduos. Com esse dirigismo contratual, o Estado legislador pretendeu proteger o consumidor mesmo contra a sua vontade.35 Isso ocorre por conta da pressuposta desigualdade entre consumidores e fornecedores nas relações de consumo. 33 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos..., p. 222. RIPERT, Georges. Apud Santos, Antônio Jeová. Função Social do Contrato. São Paulo. Ed. Método, 2004, p. 35. 35 LOBO, Paulo Luiz Netto. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo. Ed. Revista dos Tribunais, 1993, p. 134. 34 11 No âmbito específico da força obrigatória dos contratos, o sistema do Direito do Consumidor introduz as mais significativas modificações36. Os princípios fundamentais que regem os contratos deslocam seu eixo do dogma da autonomia da vontade e de seu colorário da obrigatoriedade das cláusulas, para considerar que a eficácia dos contratos decorre da lei, a qual, sanciona porque são úteis, com a condição de serem justos. Com o CDC surge uma nova concepção de contrato, a concepção social do contrato, no qual não só o momento da manifestação da vontade (consenso) importa, mas onde também, e principalmente, os efeitos do contrato na sociedade serão levados em conta e onde a condição social e econômica das pessoas nele envolvidas ganha em importância.37 À procura do equilíbrio contratual, na sociedade de consumo moderna, o direito destacará o papel da lei como limitadora e como verdadeira legitimadora da autonomia da vontade. A lei passa a proteger determinados interesses sociais, valorizando a confiança depositada no vínculo, as expectativas e a boa-fé das partes contraentes38. É o princípio da função social do contrato, atuando como disposição básica dentro da relação contratual. As circunstâncias fáticas deverão ser interpretadas à luz dos princípios peculiares ao Direito do consumidor, conjugando-se o respeito ao equilíbrio econômico e a vulnerabilidade do hipossuficiente. O CDC possui princípios próprios, diversos do Código Civil. A Legislação consumerista parte do intuito tutelar do consumidor. Essa proteção especial que lhe é dispensada ocorre de maneira proposital, já que, 36 MARQUES, Cláudia Lima. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo.Ed. Revista dos Tribunais, 2006, p. 75. 37 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. São Paulo. Ed. RT, 2002, p. 175. 12 expressamente, a Constituição Federal dispõe em seu artigo 3°, III, que “constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais”, procurando, assim, uma isonomia não apenas formal entre as pessoas, mas sim uma isonomia material ou substancial. Assim, considerando as desigualdades fáticas, a Constituição legislou a fim de equalizar uma situação real de desigualdade entre fornecedores e consumidores39. Assim, no âmbito do direito consumerista, os princípios decorrem primeiramente da Constituição Federal, em especial do artigo 170, V,40 que estabelece, no título da Ordem Econômica e Financeira, a defesa do consumidor como princípio da ordem econômica. Nesse sentido, Fabiana Barletta afirma: (...) pode-se afirmar que o Código do Consumidor contém os princípios que regem as relações de consumo, os quais estão 41 subsidiados pelos princípios constitucionais. O artigo 4° do CDC aponta os princípios fundamentais nos quais toda a legislação consumerista se alicerça: seu inciso I trata do reconhecimento da vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo; seu inciso III sinaliza para a harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e compatibilidade da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico, mas ressalva que tal harmonização 38 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos..., p. 175. PASQUALOTTO, Adalberto. Conceitos fundamentais do Código de Defesa do Consumidor, Revista de Direito do Consumidor. RT, v. 666, 1999, p.49. O Autor questiona se esse caráter protetivo do Código não estaria violando o princípio da isonomia, consistente na igualdade de todos perante a lei, consagrado no intróito do art. 5° da CF. Complementa que a resposta é negativa, pois a igualdade que a Constituição protege não é a suposição cega de que todos desfrutam das mesmas condições básicas, nivelando-os de modo absoluto. Ainda afirma que a correta interpretação desse princípio reconhece a desigualdade fundamental que existe entre os homens, consistindo a isonomia em tratá-los desigualmente, na medida em que se diferenciam. 40 Art. 170 CF: “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos a existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios (...) V - defesa do consumidor”. 41 BARLETTA. Fabiana Rodrigues. A Revisão Contratual no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo. Ed Saraiva, 2002, p. 112. 39 13 deve estar de acordo com os preceitos da Ordem Econômica da Constituição da República e que deve basear-se na boa-fé e no equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores42. Durante a execução de um contrato de longa duração, podem sobrevir circunstâncias inexistentes no momento da formação do vínculo, que tornem a prestação avençada excessivamente onerosa para o consumidor, rompendo, assim, com o equilíbrio das prestações. Em face disso, a lei que regula as atividades do consumo previu expressamente em seu artigo 6°, V, a “modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas”. O CDC contemplou duas hipóteses de atuação do juiz para a modificação do contrato43. A primeira, concernentes às cláusulas abusivas, não podendo se falar em revisão, mas sim em nulidade da mesma, devendo o juiz, baseados nos princípios da boa-fé e eqüidade, promover a substituição da cláusula nula por outra adequada ao contrato, almejando sempre promover a justiça contratual mediante o equilíbrio das prestações contratuais. 44 Dessa forma, quando se tratar de cláusula abusiva – que estabeleça prestações desproporcionais -, não se falará em revisão de cláusula contratual, mas em modificação do contrato em razão da declaração de nulidade de cláusula contratual e introdução de outra em seu lugar pelo exercício da função integradora do juiz, conforme previsto no artigo 51, § 2°, do CDC.45 42 Neste sentido, NERY JUNIOR, Nelson. Os Princípios gerais do Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo, v. 18, 1992, p. 22, e BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A Revisão..., p. 128. 43 ANDRADE, Ronaldo Alves de. Curso..., p. 330. 44 Idem, p. 332. 45 Art. 51 CDC: “São nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao fornecimento de produtos e serviços que: (...) § 2°: “A nulidade de uma cláusula contratual abusiva 14 A segunda hipótese é a questão da revisão das cláusulas contratuais em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. Assim, a ocorrência de fato posterior à celebração do contrato que provoque um desequilíbrio contratual, tornando onerosa a prestação contratual enseja a revisão da mesma. A finalidade do disposto no artigo 6°, V, do CDC é assegurar a base objetiva do negócio jurídico celebrado e, com isso, a justiça contratual46, pela manutenção do equilíbrio da operação econômica encerrada no contrato durante toda a sua execução. Entretanto, uma vez estabelecida a base objetiva do contrato, a revisão de qualquer de suas cláusulas só se justifica ante a ocorrência de fato superveniente que altere a situação fática existente no momento de sua celebração, de maneira a provocar uma desestabilização da relação contratual e uma onerosidade excessiva para uma das partes contratantes, propiciando, em muitos casos, um enriquecimento indevido à outra. O dispositivo legal exige tãosomente a ocorrência de fato superveniente, sem opor e ele qualquer qualificativo, como imprevisível, inevitável, inescusável etc. O disposto no artigo 6°, V, do CDC não estabeleceu que o fato posterior deveria ser extraordinário e imprevisível, nem tampouco a ocorrência de extremada vantagem para a outra parte contratante, diferentemente do artigo 478 do Código Civil. Deste modo, a lei possibilita a recomposição da justiça contratual e a efetividade do princípio do equilíbrio das prestações, revitalizando a importância da comutatividade das prestações, reprimindo excessos do individualismo e não invalida o contrato, exceto quando de sua ausência, apesar dos esforços de integração, decorrer ônus excessivo a qualquer das partes.” 46 Justiça contratual, segundo NORONHA, Fernando. O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo. Ed. Saraiva, 1994, p. 214, é a relação de paridade, ou equivalência, que se estabelece nas relações de troca, de forma que nenhuma das partes dê mais nem menos do valor que recebeu. 15 procurando a justa proporcionalidade de direitos e deveres, de conduta e de prestação nos contratos. Em relação à Teoria da Imprevisão no âmbito do CDC, a doutrina não é totalmente uníssona, aproximando em alguns pontos e convergindo em outros. O inciso V, do art. 6°, do CDC47, permite a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão ante a superveniência de fatos que as tornem excessivamente onerosas48. Há, segundo Rodrigues Junior, na parte derradeira do inciso V do artigo 6° do CDC, de modo expresso, o acolhimento da teoria da imprevisão, sob o fundamento da excessiva onerosidade. 49 Pode-se afirmar que o elemento crucial para a modificação do contrato no CDC é o resultado objetivo da engenharia contratual, que, agora, apresenta o simples fato da onerosidade excessiva para o consumidor, sem exigir a extraordinariedade e a imprevisibilidade do mesmo. Vale, nesse rumo, a doutrina de Cláudia Lima Marques: A norma do art. 6° do CDC avança ao não exigir que o fato superveniente seja imprevisível ou irresistível, apenas exige a quebra da base objetiva do negócio, a quebra do seu equilíbrio intrínseco, a destruição da relação de equivalência entre as 50 prestações, ao desaparecimento do fim essencial do contrato. 47 Art. 6° CDC: “São direitos básicos do consumidor: (...) inc. V: “a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que tornem excessivamente onerosas;” 48 O artigo analisado dispõe sobre dois institutos diversos: a lesão e a excessiva onerosidade posterior à contratação. Ambos têm, de acordo com o disposto no artigo 6°, V, do CDC, o condão de modificar o conteúdo do contrato. O inciso V assegura ao consumidor, em sua primeira parte, a prerrogativa de postular a modificação das cláusulas que estabeleçam prestações desproporcionais em seu desfavor, através do instituto da lesão e, em sua segunda parte, a possibilidade de sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. Neste sentido, BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A revisão...p. 115. 49 RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. A Revisão..., p. 162. Nesse sentido: Fabiana Barletta, Rogério Donnini e Francisco Martins. 50 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos..., p. 413. 16 O preceito esculpido no inciso V do art. 6° do CDC dispensa a prova do caráter imprevisível do fato superveniente, bastando a demonstração objetiva da excessiva onerosidade advinda para o consumidor. Atribui-se a isso a teoria da quebra da base do negócio jurídico51. Neste sentido, corrobora o seguinte aresto: Revisão de contrato – Arrendamento mercantil (leasing) – relação de consumo – Indexação em moeda estrangeira (dólar) – Crise cambial de janeiro de 1999 – plano real – Aplicabilidade do art. 6°, inc. V do CDC – Onerosidade Excessiva caracterizada.”(STJ – Resp 299.501/MG – rel. Min. Fátima Nancy Andrighi – j. 11.09.2001). Os defensores da teoria da quebra da base52 afirmam que nos contratos de consumo devem prevalecer aspectos como a objetivação das relações contratuais, tendo em conta a massificação e padronização dos liames obrigacionais, que torna pouco perceptível a compreensão subjetiva quanto ao caráter previsível de eventos futuros. Assim, a quebra do equilíbrio contratual, a ausência de equivalências nas prestações seriam os fatores, por si mesmos e por suas próprias forças, determinantes da onerosidade excessiva para o consumidor, dando-lhe oportunidade para pleitear, em juízo, a revisão contratual, sem que se ocupe da comprovação de que o fato seja imprevisível, imprevisto e extraordinário ou mesmo irresistível, mas apenas um acontecimento superveniente, que poderia ter sido previsto e não foi, e que cause onerosidade excessiva para o consumidor. A modificação unilateral de uma cláusula do contrato de consumo após sua celebração constitui exceção ao princípio da intangibilidade contratual e, conseqüentemente, à regra do pacta sunt servanda, vale dizer, da regra de que os contratos devem ser cumpridos como contratados. O art. 6°, V do CDC estabelece 51 Ao tratar desse importante tema, Karl Larenz, in Base Del negocio jurídico y cumplimento de los contratos, p. 221, define base negocial como “o conjunto de fatores cuja perduração no futuro é essencial para o próprio fim do negócio, ainda que as partes não tiverem pensado neles”. 17 essa possibilidade ante a ocorrência de fatos supervenientes à celebração do contrato que tornem as cláusulas excessivamente onerosas. Nesse sentido, segue o seguinte julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul: APELAÇÕES CÍVEIS. AÇÃO REVISIONAL DE CONTRATO DE FINANCIAMENTO GARANTIDO COM CLÁUSULA DE ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA E AÇÃO DE BUSCA E APREENSÃO. INCIDÊNCIA DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR. DIREITO DO CONSUMIDOR À REVISÃO CONTRATUAL. O art. 6º, inciso V, da Lei n.º 8.078/90 consagrou de forma pioneira o princípio da função social dos contratos, relativizando o rigor do Pacta Sunt Servanda e permitindo ao consumidor a revisão do contrato em duas hipóteses: por abuso contemporâneo à contratação ou por onerosidade excessiva derivada de fato superveniente (Teoria da Imprevisão). Hipótese dos autos em que o desequilíbrio contratual já existia à época da contratação uma vez que o fornecedor inseriu unilateralmente nas cláusulas gerais do contrato de adesão obrigações claramente excessivas, a serem suportadas exclusivamente pelo consumidor. (TJRS - Apelação Cível nº 70016358483, Décima Terceira Câmara Cível, rel. Des. Angela Terezinha de Oliveira Brito, j. em 14/09/2006). O mandamento desse dispositivo legal busca manter as bases objetivas53 estabilizantes do negócio jurídico celebrado entre as partes, de forma que, durante toda a execução do contrato, as partes estejam vinculadas àquilo que objetivamente as levou a celebrar a contrato de consumo. Não se pode negar que o artigo ora analisado não menciona a necessidade da imprevisão ou da imprevisibilidade do fato superveniente para conceder ao consumidor o direito à revisão contratual. Outrossim, a jurisprudência dominante tem adotado a teoria da quebra da base do negócio jurídico. Nesse sentido, segue o seguinte aresto: 52 Cláudia Lima Marques, Rogério Ferraz Donnini, Fabiana Barletta, Rodrigues Junior. Segundo Ronaldo de Andrade, in Curso de Direito do Consumidor. Manole, São Paulo, 2006, p. 22, bases objetivas estabilizantes do negócio jurídico significa o sinalagma que levou os contratantes a firmar o contrato, tendo em consideração os elementos de que eles possuíam 53 18 CONTRATO DE FINANCIAMENTO – Cláusula de reajuste pela variação cambial do dólar – Incidência do Código de Defesa do Consumidor – Aplicação da teoria do rompimento da base do negócio jurídico. O CDC, em seu art. 6°, V permite expressamente a revisão das cláusulas contratuais sempre que fatos supervenientes os tornem excessivamente onerosos. Ali não mais de exige que esses fatos supervenientes sejam imprevisíveis, como na clássica teoria da imprevisão, bastando que sejam inesperados. (TJRS – 2ª Câm. – Ap. Cív. 16.654/99 – Rel. Dês. Sérgio Cavalieri Filho – j. 02.12.1999). Segundo Fabiana Barletta, a revisão contratual prevista no artigo 6°, V, 2ª parte, do CDC visa restaurar o equilíbrio do contrato e tornar possível o alcance de sua finalidade objetiva, tendo esse dispositivo, recebido influências da teoria da quebra da base objetiva de Larenz, avançando ainda mais para desconsiderar por completo a previsibilidade ou a imprevisibilidade das transformações, firmando-se, pois, em excessiva onerosidade superveniente à contratação. Assim, podemos afirmar que, considerando a onerosidade excessiva como elemento suficiente para a revisão, dispensando, assim, o requisito da imprevisibilidade do fato superveniente, protegemos de forma mais intensa o consumidor, visto não exigir dele a prova da imprevisibilidade do fato ocorrido ou mesmo de sua extraordinariedade para que seja revisto o contrato54. Após a análise da revisão judicial dos contratos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor, podemos afirmar que existem algumas semelhanças, bem como algumas diferenças entre a revisão contratual nos dois sistemas. Tais similitude e incongruências serão tratadas a seguir. 1. SEMELHANÇAS ENTRE OS DOIS SISTEMAS conhecimento no momento da celebração do contrato, fatores reveladores dos ganhos e perdas que cada um deles suportaria, e os direitos e deveres de cada contratante. 54 Neste sentido, BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A revisão..., p. 194. 19 Depois do desenvolvimento dos temas tratados, é possível pinçar algumas características que aproximam a revisão judicial dos contratos, á luz da Teoria da Imprevisão, no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. 55 1.1. QUANTO À ESPÉCIE DE CONTRATO A primeira similitude diz respeito às espécies de contratos que incidirão a teoria da imprevisão para realizar a revisão dos mesmos. O contrato bilateral também é denominado sinalagmático, havendo uma correspondência ou reciprocidade entre as prestações da partes. Nestes, cada uma das partes obriga-se à prestação que lhe é peculiar, de caráter contraposto a do outro contratante. A bilateralidade exige prestações recíprocas, vinculadas entre si, com execução simultânea. Assim, tanto no Código Civil quanto no Código de Defesa do Consumidor, para ser aplicada a Teoria da Imprevisão é preciso que haja essa contraprestação entre as partes. O contrato unilateral, por sua vez, é aquele em que há declaração de vontade de uma só pessoa. Assim, somente umas das partes contratantes obrigase para com a outra56. Entretanto, pode ocorrer que na unilateralidade do contrato haja um caráter de onerosidade, com a aposição de uma vantagem em face de um sacrifício, resgatando a base sinalagmática. Estes são chamados de unilaterais onerosos. Assim, se aproximam nas duas leis a idéia que os contratos têm que ser bilaterais ou unilaterais onerosos. Também há semelhança quando se fala em revisão judicial aos contratos aleatórios, podendo, estes serem revisados tanto no Código Civil como 55 56 Conforme autores que entendem que a teoria da imprevisão é aplicada no CDC. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria..., p. 352. 20 no CDC com o manto da teoria da imprevisão, quando as cláusulas a serem revisadas não sejam propriamente as de cunho aleatório57. 1.2. QUANTO AO MODO DE EXECUÇÃO Também há semelhança quando se trata do modo de execução do contrato, que enseja a aplicação da imprevisão à revisão judicial dos contratos nos dois institutos. A aplicação da teoria da imprevisão se dará nos contratos que tenham dependência do futuro, haja vista, a necessidade da existência de um lapso temporal entre a contratação e o cumprimento da obrigação. A existência desse interregno temporal é fundamental, pois nesse período estará aberta a possibilidade da ocorrência de fatores anormais (extraordinários), que imprevisivelmente venha tornar a prestação excessivamente onerosa. Assim, exige-se que o contrato tenha sua execução continuada ou diferida, de molde a satisfazer o necessário requisito do decurso temporal entre sua conclusão e os eventos ulteriores58. 1.3. QUANTO AO MOMENTO DE ARGÜIÇÃO Outra importante semelhança diz respeito ao momento em que se pode invocar a teoria da imprevisão nos dois sistemas. Sempre poderá ser argüida, a referida teoria, antes do descumprimento do contrato. Rodrigues Junior afirma que “o pedido de revisão judicial do contrato deve ser anterior à ocorrência de qualquer conduta inerente às causas de extinção anormal do contrato”, sob pena de se transformar seu eventual beneficiário em um simples devedor moroso, sujeito às regras da resolução por inexecução culposa.59 57 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria..., p. 498. RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Revisão Judicial..., p. 165. 59 Idem, p. 109. 58 21 Dessa maneira, a mora afasta o direito de requerer a incidência da imprevisão, devendo a alteração das circunstâncias de fato ocorrer de modo independente da vontade das partes. Assim, a Teoria da Imprevisão deixa de ser aplicável quando há inexecução culposa ou voluntária, pois, nesse caso, estar-seia diante de uma clássica hipótese de resolução contratual, o que ensejaria à responsabilização do infrator segundo a teoria dos riscos. 1.4. QUANTO Á APRECIAÇÃO DO PEDIDO Semelhante, também, é a quem poderá ser invocada a teoria da imprevisão. A situação contratual imprevista deve ser esta argüida, necessariamente, perante o Poder Judiciário, ressalvado a permissibilidade do Juízo arbitral, quando anteriormente pactuado. Assim, também se encontra na arbitragem campo fértil para a revisão contratual, fazendo o árbitro o mesmo papel do juiz na seara ora tratada. A arbitragem, como se sabe, foi colocada no mesmo nível do procedimento judicial e decorre da vontade negocial das partes. 60 A revisão é judicial. Portanto, é necessária a intervenção do juiz, de uma sentença. O devedor onerado deve ingressar com a ação, requerendo o reconhecimento da Teoria da Imprevisão. Se o interessado não demanda, confiante na evidência de seu estado, fatalmente ingressará na categoria de infrator contratual, em face da inexecução culposa das obrigações. 60 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria..., p. 499. 22 O pedido poderá ser tanto de liberação do devedor da obrigação como de redução do montante da prestação. Pode-se pleitear a resolução do contrato, ou a revisão de cláusula contratual mantendo-se o contrato. Esta solução é autorizada pela aplicação, pelo juiz, da cláusula geral da função social do contrato e também da cláusula geral da boa-fé. 1.5. QUANTO A IDÉIA DE CONSERVAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO. A última semelhança mais sentida, dentro da presente pesquisa, foi a possibilidade, mesmo que mais asseverada no Código de Defesa do Consumidor, da revisão contratual ao invés da resolução do mesmo. Se analisarmos, nos dois institutos, observaremos que em ambos há a idéia latente da função social do contrato. Tal princípio advém da nova concepção do contrato, uma concepção, como ensina Cláudia Lima Marques, social do contrato para a qual não só o momento da manifestação da vontade importa, mas onde também, e principalmente, os efeitos do contrato na sociedade serão levados em conta e onde a condição social e econômica das pessoas nele envolvidas ganha em importância. 61 Opta-se, pois pela conservação do vínculo e pela revisão das prestações que se tornaram exorbitantes ao invés da simples resolução do pacto. Dessa forma, mantendo o vínculo contratual, preserva-se as legítimas expectativas dos contratantes, restabelecendo o equilíbrio entre os mesmos para que o contrato atinja a sua finalidade.62 61 62 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos..., p. 175. BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A revisão..., p. 148. 23 Assim, o espaço reservado para que os particulares auto-regulem suas relações será reduzido por normas imperativas, como as do próprio Código de Defesa do Consumidor. É uma nova concepção do contrato no Estado Social, em que a vontade perde a condição de elemento nuclear, surgindo em seu lugar estranho às partes, mas básico à sociedade como um todo o interesse social63. 2. DIFERENÇAS ENTRE OS DOIS SISTEMAS Como já era de se esperar, ao longo do desenvolvimento da pesquisa, também surgiram algumas diferenças entre a revisão judicial dos contratos nas duas leis sob a aplicação da teria da imprevisão, entre as quais podemos destacar as seguintes diferenças: 2.1. QUANTO À LEGITIMIDADE Quanto à legitimidade, há de observar, como explica Rodrigues Junior, uma interpretação sistemática do Código Civil, pois se formos analisar a letra legal do artigo 478 e 479 do referido Código, cairemos em uma confusão conceitual do legislador. Na dicção do artigo 478, acredita-se que tanto credor como devedor encontram-se legitimados, pois o artigo menciona em um primeiro momento “partes”: “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra...”. Já na segunda parte do artigo, “partes” foi substituído por “devedor”: “...poderá o devedor pedir a resolução do contrato”. Assim, infere-se, de acordo com o autor supra citado, que no Código Civil, tanto o credor como o devedor estão legitimados a requerer a revisão judicial, tendo em vista o princípio da isonomia64 e desde que demonstrem o legítimo interesse de que a onerosidade excessiva estão a lhe causar prejuízo. 63 LOBO, Paulo Luiz Neto. Do contrato no Estado Social. Maceió, Ed. Edufal, 1983, p. 127 e 128. Cf. RODRIGUES JUNIOR, Otávio Luiz. Revisão Judicial..., p. 156, afirma que credor e devedor devem necessariamente figurar em posição de igualdade frente aos benefícios da teoria, desde que demonstrem o legítimo interesse (a comprovação de que a onerosidade excessiva está a lhes 64 24 Já no Código de Defesa do Consumidor, a disposição legal em que está inserida a possibilidade de modificação das cláusulas contratuais encontra-se no Capítulo III do referido Código – Dos Direitos Básicos do Consumidor, sendo legitimado, portanto, apenas o consumidor para pleitear a revisão judicial contratual. Ainda, o inciso V, que trata de tal matéria tem como caput: “São direitos básicos do consumidor”, reforçando a idéia de que apenas o consumidor pode requerer a aplicação da Teoria da Imprevisão para revisar o seu contrato. Portanto, o direito de pleitear a revisão contratual por excessiva onerosidade, previsto no artigo 6°, V, do CDC, é um direito conferido apenas ao consumidor e não ao fornecedor, a outra parte sempre presente neste tipo de relação contratual. 65 2.2. QUANTO À PRINCIPIOLOGIA UTILIZADA Primeiramente, necessário ressaltar que o Código Civil de 2002, através da Lei 10.406/2002, introduziu, entre todos os seus princípios, alguns que se coadunam com os princípios do Código de Defesa do Consumidor, qual sejam, por exemplo, o princípio da função social do contrato e da boa-fé objetiva66. Com a promulgação do CDC, segundo Nelson Nery Júnior, foram alterados os aspectos contratuais da proteção do consumidor, relativizando o princípio da intangibilidade do conteúdo do contrato, alterando, assim, a regra milenar do brocado pacta sunt servanda, enfatizando o princípio da conservação do contrato e instituindo o princípio da boa-fé como basilar informador das relações de consumo. 67 causar prejuízos ou a tornar insuportável a permanência da execução do contrato). Razão disto é a natureza do sinalagma e o principio constitucional da isonomia. 65 BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A revisão..., p. 101. 66 MARQUES, Cláudia Lima. Contratos..., p. 552. 67 NERY JUNIOR, Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor. Rio de Janeiro. Ed. Forense, 1992, p. 275. 25 Assim, o CDC alterou de sobremaneira os princípios da autonomia da vontade, da força obrigatória e da relatividade dos contratos, tudo para proteger o consumidor68, que é reconhecido pelo artigo 4°, I do referido código como a parte mais fraca da relação de consumo, a parte mais vulnerável, razão pela qual a interpretação dos contratos deve ser feita de maneira mais favorável a ele69. Neste ponto, diferencia-se o Código de Defesa do Consumidor do Código Civil, na medida em que o princípio da vulnerabilidade do consumidor se impõe no sentido de, como ensina Marcos Jurmena Villela Souto70, legitimar a ação do Estado a restabelecer o equilíbrio dos negócios, passando, assim, a vigiar e a limitar as ações e os constantes abusos da parte economicamente mais forte da relação de consumo, o fornecedor, tudo para proteger a parte mais fraca, o consumidor. 2.3. A EXIGÊNCIA DA EXTREMA VANTAGEM PARA A OUTRA PARTE A exigência da extrema vantagem para a outra parte, está legalmente prevista no artigo 478 do CC/02, como se observa: Art.478. “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação”. 68 DONNINI, Rogério Ferraz. A Revisão dos Contratos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo. Ed. Saraiva, 1999, p. 146. 69 ALTERINI, Atílio Aníbal. Os contratos de consumo e as cláusulas abusivas, Revista do Consumidor, n.° 15, Revista dos Tribunais, São Paulo, p. 11. 70 SOUTO, Marcos Jurmena Villela. O controle dos contratos e o código de defesa do consumidor. Revista Forense, Rio de Janeiro, V. 325, jan./mar. 1994, p. 61. 26 Tal exigência é requisito fundamental71 para o reconhecimento da aplicação da Teoria da Imprevisão no âmbito do Código Civil. Nesse sentido, Arnoldo Medeiros da Fonseca menciona, entre outros, o requisito ora analisado: Os pressupostos para a aplicação da Teoria da Imprevisão são: a) alteração radical no ambiente objetivo existente ao tempo da formação do contrato, decorrente de circunstâncias imprevistas e imprevisíveis; (...) c) enriquecimento inesperado e injusto da outra parte, como conseqüência direta da superveniência 72 imprevista. Embora há alguns autores73 que entendem que não é necessário o requisito da extrema vantagem da outra parte para a configuração da teoria da imprevisão, a grande maioria dos doutrinadores74, entendem que o requisito é imprescindível para a aplicação da teoria revisionista. Já no Código de Defesa do Consumidor, não é estabelecido o requisito da extrema vantagem para a outra parte, no caso o fornecedor, sendo exigido, apenas a configuração da onerosidade excessiva para o consumidor. Nesse sentido, Fabiana Barletta assevera com autoridade: Não se exige que a excessiva onerosidade superveniente para o consumidor importe em extrema vantagem para o fornecedor. O artigo em comento (art. 6, V, CDC) não menciona esse requisito, ao contrário do Código Civil brasileiro sancionado em 2002, que dispõe expressamente que o devedor poderá pedir a resolução do 71 DONNINI, Rogério Ferraz. A Revisão..., p. 66. FONSECA, Arnoldo Medeiros da. Caso Fortuito..., p. 78. 73 Nesse sentido, DINIZ, Maria Helena. Tratado teórico e prático dos contratos. São Paulo. Ed. Saraiva, 1993, p. 173, SANTOS, Regina Beatriz Papa dos. Cláusula rebus sic stantibus ou teoria da imprevisão – revisão contratual. Belém. Ed. Cejup, 1989, p. 37. 74 Nesse sentido, DONNINI, Rogério Ferraz. A Revisão..., p. 64, BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A Revisão...p. 151. 72 27 contrato se sua prestação se tornar excessivamente onerosa, com 75 extrema vantagem para a outra parte. Assim, o sistema de proteção contratual do CDC, seguindo o princípio da vulnerabilidade do consumidor, não permite contratações desproporcionais, iníquas e injustas que venham lesá-lo, exigindo, tão somente, a excessiva onerosidade para o consumidor para que o contrato seja revisado76. Assim, eventos supervenientes à avença contratual que tenham o condão de desequilibrar o que inicialmente havia sido aceitavelmente ajustável, trazendo, apenas a excessiva onerosidade ao consumidor, autorizam a revisão do primitivo contrato, a fim de se restabelecer a almejada igualdade na contratação.77 2.4. OS REQUISITOS DA IMPREVISIBILIDADE E A EXTRAORDINARIEDADE A diferença mais latente, sentida ao longo da pesquisa, entre a revisão judicial dos contratos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor sob a ótica da Teoria da Imprevisão, foi sem dúvida o requisito da imprevisibilidade. No Código Civil, sem maiores discussões sobre o assunto, tal requisito é, de acordo com o próprio texto legal, imprescindível, conforme se observa: Art.478. “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação”. 75 BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A Revisão...p. 152. DONNINI, Rogério Ferraz. A Revisão..., p. 169. 77 ALVIM, Arruda. ALVIM, Thereza. ALVIM, Eduardo Arruda. & MARTINS, James. Código do Consumidor comentado, São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1999, p. 65 e 66. 76 28 Esses acontecimentos não podem ser exclusivamente subjetivos. Assim sendo, devem atingir uma camada mais ou menos ampla da sociedade78. Nas palavras de Venosa: Um fato será extraordinário e anormal para o contrato quando se afastar do curso ordinário das coisas. Será imprevisível quando as partes não possuírem condições de prever, por maior diligência 79 que tiverem. Assim, o requisito da imprevisibilidade e da extraordinariedade para a obtenção da aplicabilidade da Teoria da Imprevisão no Código Civil, refere-se ao acontecimento extraordinário, incomum, imprevisto e imprevisível, modificador do equilíbrio contratual, que se pudesse ser previsto pelas partes não seria a avença realizada80. De outra banda, tais requisitos não foram incorporados pelo Código de Defesa do Consumidor. Nas palavras de Cláudia Lima Marques: A norma do art. 6° do CDC avança ao não exigir que o fato superveniente seja imprevisível ou irresistível, apenas exige a quebra da base objetiva do negócio. (...) Em outras palavras, o elemento autorizador da ação modificadora do Judiciário é o resultado objetivo da engenharia contratual, que agora apresenta a mencionada onerosidade excessiva para o consumidor, resultado de simples fato superveniente, fato que não necessita ser extraordinário, irresistível, fato que podia ser previsto e não 81 foi. Merecem destaque, também, as palavras de Fabiana Barletta: O Art. 6°, V, 2ª parte, do CDC liberta-se das amarras subjetivistas, que só possibilitavam a revisão ou resolução do contrato se o 78 VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil: Teoria..., p. 498. Idem, p. 489/499. 80 SANTOS, Regina Beatriz Papa dos. Cláusula rebus sic stantibus ou teoria da imprevisão – revisão contratual. Belém. Ed. Cejup, 1989, p. 37/38. 81 MARQUES, Cláudia Lima. Contrato ..., p. 783. 79 29 evento futuro, desencadeador da onerosidade excessiva, fosse 82 totalmente imprevisível. Assim, ao contrário do Código Civil, no CDC não é exigido que o acontecimento superveniente seja imprevisível e extraordinário. Basta, para tanto, que haja a quebra da base objetiva do negócio jurídico, a ausência de equivalência nas prestações, gerando dessa forma onerosidade excessiva para o consumidor. 83 Por derradeiro, afirma-se que, no âmbito da legislação consumerista, dizer que a Teoria da Imprevisão teria sido incorporada pelo CDC, poderia ser até prejudicial ao próprio consumidor, conforme Cláudia Lima Marques. 84 2.5. TEORIA DA IMPREVISÃO X TEORIA DA QUEBRA OBJETIVA DO NEGÓCIO JURÍDICO A última diferença levantada pela presente pesquisa diz respeito ao acolhimento, ou não da Teoria da Imprevisão no Código de Defesa do Consumidor. Essa questão é de fundamental importância, pois há uma parte da doutrina85 que afirma que a teoria da imprevisão foi incorporada pelo CDC, e afirmando-se isso, se traria uma série de conseqüências, que, como bem assinala Cláudia Lima Marques, seria prejudicial ao próprio consumidor. 82 BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A Revisão..., p. 189. DONNINI, Rogério Ferraz. A Revisão..., p. 171. 84 Nesse sentido, MARQUES, Cláudia Lima. Contratos..., p. 414/415, afirma “...mencionar simplesmente que a Teoria da Imprevisão teria sido aceita pelo CDC pode ser uma interpretação do art. 6°, inciso V, prejudicial ao próprio consumidor, pois dele pode ser exigida a referida imprevisão e extrinsibilidade do ocorrido, fatos não mencionados no referido artigo”. 85 Neste Sentido, MARINS, James. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto; FILOMENO, José Geraldo Brito. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto; NERY JÚNIOR, Nelson. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto; THEODORO JUNIOR, Humberto. Contratos - princípios gerais – tendências do direito contratual contemporâneo – abrandamento dos princípios tradicionais – intervenção estatal crescente – impacto do Código de Defesa do Consumidor e SAAD, Eduardo Gabriel. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor . 83 30 Há alguns autores que afirmam que o CDC acolheu a Teoria da Imprevisão, mas com algumas modificações, como bem destaca Rogério Ferraz Donnini: (...) pode-se asseverar que a teoria da imprevisão foi acolhida pelo CDC, mas com algumas modificações, que dispensam o requisito da incidência de fato estraordinário e imprevisível e objetivam a conservação do contrato de consumo, e não mais apenas sua 86 resolução. Por fim, há os autores87 que não admitem que a Teoria da Imprevisão tenha sido recepcionada pelo CDC, mas sim que o CDC trabalhe, em sede de revisão judicial dos contratos, com a Teoria da Quebra da Base Objetiva do Negócio Jurídico, idealizada por Larenz. Deste modo, o artigo 6º, V, 2ª parte, do CDC, traz a lume controvérsias acerca da positivação da Teoria da Imprevisão ou da onerosidade excessiva superveniente, caracterizando a Teoria da Quebra da Base do Negócio Jurídico88. Contemporaneamente o subjetivismo da imprevisibilidade dos acontecimentos supervenientes deve ceder lugar ao objetivismo de uma situação de excessiva onerosidade, que, se possível, deverá ser afastada por meio dos esforços de integração, dentre os quais se destaca a revisão ou a modificação de dispositivos contratuais a fim de preservar as expectativas dos pactuantes através da conservação do vínculo89. Neste sentido, valem as palavras de Rogério Donnini: O CDC busca tornar o contrato de consumo mais justo e equânime, evitando, assim, que distorções de ordem social, 86 DONNINI, Rogério Ferraz. A Revisão..., p. 173. Neste Sentido, MARQUES, Cláudia Lima. Contratos..., p. 413. BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A Revisão..., p. 169 e ANDRADE, Ronaldo Alves de. Curso..., p. 97. 88 BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A Revisão..., p. 193. 89 Idem, p. 196. 87 31 financeira ou econômica que afetem a relação contratual provoquem um desequilíbrio no contrato e, por via de conseqüência, prejudiquem o consumidor. Com o mecanismo constante do art. 6°, V, 2ª parte, o CDC lhe oferece a possibilidade de conservar o contrato, requerendo ao juiz a modificação ou revisão de cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou que lhe causem excessiva onerosidade, em decorrência de acontecimentos supervenientes, restabelecendose, pois o equilíbrio contratual entre fornecedor e consumidor. Trata-se de um meio mais moderno e justo, calcado no princípio 90 da conservação do contrato. Assim, toda a interpretação deve ter respaldo constitucional, pois mesmo em presença de aparentemente perfeita subsunção a uma norma de um caso concreto, é necessário buscar a justificativa constitucional daquele resultado hermenêutico91. Nesse caso específico, o dispositivo presente no artigo 6°, V, 2ª parte, do CDC e também de normas-princípios da lei especial consumerista devem estar em perfeita harmonia com a norma constitucional, principalmente com seus princípios que representam as escolhas axiológicas do ordenamento jurídico pátrio92. Desta maneira, aceitar esse princípio constitucional (a defesa do consumidor) e concretizá-lo, significa abandonar a tese dos que sustentam que o artigo 6°, V, 2ª parte, do CDC contém positivada a teoria da imprevisão. Esse tipo de entendimento seria totalmente prejudicial ao consumidor, que veria obrigado a provar a imprevisão e a imprevisibilidade dos fatos que geraram excessiva onerosidade, contra argumentos segundo os quais, nos dias de hoje, até tufões e terremotos são fenômenos previsíveis93, ou de que a superdesvalorização do real em face do dólar norte-americano também era previsível para o consumidor que confiou na estabilidade da moeda nacional. Tratar-se-ia, enfim, de infringir o princípio constitucional de defesa do consumidor, para, ao contrário, condená-lo a provas muito difíceis de serem produzidas, o que poderia levá-lo à ruína. 90 DONNINI, Rogério Ferraz. A revisão..., p. 173/174. MORAES, Maria Celina Bodin de. A caminho de um direito civil constitucional. Revista de Direito Civil. São Paulo. 1999, v. 65, p. 29. 92 BARLETTA, Fabiana Rodrigues, A revisão..., p. 197. 93 SILVA, Luís Renato Ferreira da. Revisão dos contratos: Do Código Civil ao Código do Consumidor. Rio de Janeiro. Ed. Forense, 1998, p. 111. 91 32 Diante se uma situação concreta de excessiva onerosidade superveniente nas relações de consumo, a exigência de tais provas é descabida, pois contraria a ratio iuris do CDC94, além de ditames constitucionais: não só o de defesa do consumidor, mas todo o sistema constitucional desenvolvido a partir dos princípios fundamentais, de zelar pela dignidade das pessoas e de reduzir desigualdades sociais95. Finalmente, a revisão contratual prevista no artigo 6°, V, 2ª parte do CDC visa restaurar o equilíbrio do contrato e tornar possível o alcance de sua finalidade objetiva, perante a Teoria da quebra da base objetiva, avançando ainda mais por desconsiderar por completo a previsibilidade ou a imprevisibilidade das transformações, firmando, pois, em excessiva onerosidade superveniente à contratação. 96 Assim, feitas essas comparações, percebe-se que há diferenças entre a revisão judicial dos contratos no Código Civil e no Código de Defesa do Consumidor. Ainda neste rumo, percebe-se que a teoria da imprevisão sequer é utilizada no Código de Defesa do Consumidor, seja pela não exigência dos requisitos imprevisibilidade e extraordinariedade, seja pela proteção ao consumidor, através do princípio da vulnerabilidade, optando assim, o Código de Defesa do Consumidor pela Teoria da Quebra da Base Objetiva do Negócio Jurídico. 94 Segundo Barletta, há que considerar a ratio iuris da disposição presente no art. 6°, V 2ª parte, do CDC em face dos princípios constitucionais fundamentais como a dignidade da pessoa humana, a solidariedade social, a igualdade substancial, que são princípios básicos, que também atribuem sentido ao princípio de defesa do consumidor. 95 PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito Civil. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro. Ed. Renovar, 1997, p. 12. 96 BARLETTA, Fabiana Rodrigues. A revisão..., p. 199.