AS TRANSFORMAÇÕES DO CONTRATO E A BOA-FÉ OBJETIVA Autor: Prof. ANDRÉ ROBERTO DE SOUZA MACHADO Mestre em Direito Econômico, Advogado e Consultor Jurídico, Professor da EMERJ e FESUDEPERJ, Professor da FGV e do IBMEC, Professor de cursos preparatórios para concurso. INTRODUÇÃO. O papel das partes nas relações econômicas sofreu profundas mudanças ao longo das últimas décadas, especialmente no Brasil com o advento da Constituição de 1988 e a consagração do Princípio da Dignidade Humana como alicerce fundamental do Estado Democrático de Direito. Dentre os paradigmas consagrados por essa nova concepção negocial, sem dúvida a cláusula geral da Boa-fé, exigida das partes de forma objetiva, é a que mais tem despertado o interesse dos juristas contemporâneos nacionais (Judith Martins-Costa, Cláudia Lima Marques, Gustavo Tepedino, dentre tantos) e estrangeiros (dentre todos, Menezes Cordeiro, pela excelência do trabalho acerca do tema). De fato, a cláusula geral da Boa-fé objetiva e suas diversas figuras parcelares (venire contra factum proprium, supressio, surrectio, tu quoque, duty to mitigate the loss) exigindo das partes um comportamento responsável para com o outro, inspirando a tutela da confiança, exigindo trocas justas, tem se mostrado fundamental para a transformação do contrato em um negócio realmente bom para todos os contratantes. O dever de colaboração imposto pela Boa-fé está a exigir dos contratantes que se exponham de modo transparente, informando claramente o outro de suas intenções negociais, a fim de que o contrato realmente produza efeitos previstos e desejados pelas partes, não por uma mera ficção jurídica imaginada pelo sistema liberal que inspirava o nosso Código Civil de 1916, mas por um imperativo de ordem pública consagrado no ordenamento jurídico vigente (Código de Defesa do Consumidor, Código Civil de 2002). Enzo Roppo, analisando as mudanças operadas nos contratos, em virtude desse novo paradigma, assevera: “com o progredir do modo de produção capitalista, com o multiplicar-se e complicar-se das relações econômicas, abre-se um processo que poderemos definir como de imobilização e desmaterialização da riqueza, a qual tende a subtrair ao direito de propriedade (como poder de gozar e dispor, numa perspectiva estática, das coisas materiais e especialmente dos bens imóveis) a sua supremacia entre os instrumentos de controle e gestão da riqueza. Num sistema capitalista desenvolvido, a riqueza de fato não se identifica apenas com as coisas materiais e com o direito de usá-las; ela consiste também, e sobretudo, em bens imateriais, em relações, em promessas alheias e no correspondente direito ao comportamento de outrem, ou seja, a pretender de outrem algo que não consiste necessariamente numa res a possuir em propriedade”. 1 É evidente que, afastada a paixão acadêmica sobre o tema, forçoso constatar que o processo de transformação social que se pretende operar com a mudança de paradigmas contratuais é lento, e não se atinge simples e imediatamente por ter o legislador contemplado positivamente uma regra geral de coerência e probidade. Necessário se faz que o jurista, especialmente o integrante do Poder Judiciário, insista na necessidade de observância de tais paradigmas a fim de que os mesmos realmente se insiram no cotidiano negocial como uma prática natural nas relações econômicas. 1 ROPPO, Enzo (1988). O Contrato. Trad. Ana Coimbra. Coimbra: Almedina, p.64. 2 O processo é lento e tende a ser frustrante muitas vezes, afinal fomos muito tempo o país dos “Gérsons” e sua famosa lei da vantagem2, mas o resultado final certamente é compensador suficiente para servir de estímulo para que se prossiga na direção de uma sociedade mais justa, não só uma justiça social decorrente de ações estatais distributivas mas também, e principalmente, uma justiça social decorrente da ética nas relações atomizadas dos particulares. Tal sociedade depende, portanto, de todos e de cada um de per si. Quando o Judiciário consagra a regra que proíbe o comportamento contraditório em nome da Boa-fé3 (doutrina dos atos próprios ou nemo potest venire contra factum proprium) ou quando reconhece a responsabilidade civil na fase das tratativas em proteção à confiança4 (responsabilidade civil précontratual), serve de indicativo para a sociedade de que tais normas devem realmente ser observadas, sob pena de serem impostas através do alargamento do papel do interprete no conteúdo do contrato por meio da sua atividade integrativa, como na modificação ou revisão de cláusulas incompatíveis com os novos paradigmas contratuais. Neste ponto cabe uma importante ressalva, o poder de integração conferido ao julgador deve ser utilizado em caráter excepcional e à luz dos ditames legais que o autorizam, sob pena de significar, ao contrário do que se pretende, a ditadura do Juiz impondo seus valores subjetivos às partes e gerando absoluta insegurança jurídica. Diz-se absoluta, pois quando o próprio Juiz atua em violação ao sistema, quem fará as vezes de guardião da justiça? Na precisa lição de Clóvis do Couto e Silva: “Os deveres resultantes do princípio da boa fé são denominados deveres secundários, anexos ou 2 Faz-se aqui referência a uma famosa campanha publicitária de cigarros, veiculada na década de 1970, protagonizada pelo jogador de futebol Gérson que afirmava, incluindo-se, que todos gostam de levar vantagem em tudo. 3 Ver STJ, REsp 95539 / SP, Quarta Turma, Relator RUY ROSADO DE AGUIAR, DJ 14.10.1996 p. 39015. 4 Ver TJ/RS, Apelação Cível 591028295, Quinta Câmara Cível, RELATOR: Ruy Rosado de Aguiar Júnior, Julgado em 06/06/1991). 3 instrumentais. Impõe-se, entretanto, cautela na aplicação do princípio da boa-fé, pois, do contrário, poderia resultar verdadeira subversão da dogmática, aluindo os conceitos fundamentais da relação jurídica, dos direitos e dos deveres” 5 Assim, observados os ditames legais e os requisitos mínimos exigidos para uma atuação integrativa do Juiz, cumpre ele um fundamental papel para a formação de uma consciência negocial à luz da Boa-fé. Dentro do escopo deste artigo pode se dizer que tal papel consiste em dar concretude à tríplice função da boa-fé objetiva: interpretativa dos negócios (art. 113, CC), limitativa de comportamentos abusivos das partes (art. 187, CC) e geradora de deveres anexos (art. 422, CC). A função interpretativa da Boa-fé serve como instrumento hábil ao preenchimento das lacunas eventualmente encontradas nos negócios jurídicos, bem como vai servir de parâmetro para aclarar a obscuridade ou para eleger o melhor caminho ante a contradição ou a ambigüidade de cláusulas contratuais. A segunda função, limitativa de condutas abusivas, é, a nosso ver, a mais importante das três especialmente neste momento de transformação, pois é através dela que se reprimirá o abuso de direito ou como preferem alguns, o abuso das posições contratuais de vantagem, atuando em toda a relação, desde as tratativas (fase pré-contratual) quando ainda não há obrigações contratualmente assumidas, até a fase pós-contratual que se prolonga depois de executadas todas as prestações contratadas, passando pela celebração e pela execução do contrato, estas últimas fases geradoras de responsabilidades contratuais propriamente ditas. A responsabilidade pré-contratual decorre da negligência aos deveres de transparência e de respeito à confiança depositada. Em sentido figurado, significaria no plano contratual a lição de Antoine de Saint-Exupéry, em sua 5 A obrigação como processo. São Paulo: José Bushatsky, 1976, p. 35. 4 obra O Pequeno Príncipe, a regra de que se é eternamente responsável por quem cativas; não se pode, portanto, abandonar a outra parte quando suas expectativas se mostram justas e razoáveis, existindo o dever de lealdade, de informação, a fim de que o outro possa antever também a dimensão dos riscos de uma mudança de interesses que conduzam à não celebração do contrato, evitando assim investimentos desmedidos. A terceira função da Boa-fé Objetiva diz respeito ao seu papel de cláusula criadora de deveres anexos aos contratos, estabelecendo regras de conduta que independem de sua previsão expressa no corpo do contrato celebrado para serem exigidas, uma vez que a lei determina que as partes devem guardar observância à boa-fé e probidade (art. 422, CC). FIGURAS PARCELARES DA BOA-FÉ OBJETIVA: Em uma visão simplificada do tema, em estreita atenção ao propósito do presente artigo, identificaremos as principais figuras associadas à Boa-fé Objetiva. São figuras que representam comportamentos dos contratantes que, sob o prisma da Boa-fé, recebem tratamento especial do direito. São elas: 1) Nemo potest venire contra factum proprium (proibição ao comportamento contraditório). Considerando que é dever de conduta dos contratantes observar a boa-fé e respeitar a confiança depositada pela outra parte, o comportamento deve apresentar coerência de modo a não surpreender o outro contratante com uma mudança repentina acarretando prejuízos inaceitáveis em um ambiente regido pela eticidade. O Superior Tribunal de Justiça já se manifestou no sentido de reprovar o comportamento contraditório, por sua flagrante afronta à boa-fé, como no caso da esposa que recusara assinar a escritura definitiva de venda de um imóvel, sob o argumento de que faltara sua assinatura no instrumento de promessa, o que por si só o invalidaria. Ocorre que a alegação de invalidade do documento só se dá muitos anos depois de celebrada a promessa, tendo sido os 5 promitentes compradores imitidos na posse sem maiores dificuldades; ficara demonstrado também que a esposa não só sabia sobre a promessa como já a havia alegado em outro processo, razão pela qual seu comportamento se mostrou contraditório ao depois alegar invalidade para se eximir de outorgar a escritura definitiva. Desta forma, o STJ entendeu que a contradição do comportamento da esposa deveria ser reprimido em nome da boa-fé, determinando que a mesma atendesse às expectativas criadas por seu comportamento anterior, isto é, assinasse a respectiva escritura6. Em outra oportunidade a Côrte decidiu ser contraditório o comportamento de um clube de futebol que, após valer-se dos benefícios de um contrato celebrado por um de seus diretores, alega a invalidade do mesmo em razão violação do estatuto quanto aos poderes de contratação7. A coerência é, como visto, uma exigência da boa-fé aos contratantes, assim na celebração quanto na execução do contrato (art. 422, CC), sendo abusiva a conduta contraditória (art. 187, CC), devendo ser por isso reprimida. A esse respeito o Enunciado n° 362, da IV Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal: 362 – Art. 422. A vedação do comportamento contraditório (venire contra factum proprium) funda-se na proteção da confiança, tal como se extrai dos arts. 187 e 422 do Código Civil. 2) Supressio – perda de um direito ou da faculdade de exercê-lo. Cada contratante deve observar o que cada conduta sua representa para as expectativas legítimas da outra parte, pois que, como observou brilhantemente 6 Ver STJ, REsp 95539 / SP, Quarta Turma, Relator RUY ROSADO DE AGUIAR, DJ 14.10.1996 p. 39015. 7 Ver STJ, REsp 681856 / RS, Quarta Turma, Relator Ministro HÉLIO QUAGLIA BARBOSA, DJ 06.08.2007 p. 497. 6 Clóvis do Couto e Silva8, a obrigação não é um vínculo jurídico estático, mas um processo contínuo composto de sucessivos comportamentos que devem ser analisados pelo jurista, a fim de estabelecer se ainda se legitimam as regras inicialmente pactuadas. O Código Civil de 2002 consagrou esta figura jurídica em seu art. 330, ao estabelecer que o credor que reiteradamente aceita receber a prestação em local diverso do que foi contratado, sem qualquer ressalva quanto a se tratar de uma excepcionalidade, perde o direito de exigir que o devedor pague no local inicialmente eleito. A figura da supressio serve neste caso à proteção da confiança do devedor, evitando que o mesmo seja injustamente surpreendido por um comportamento desleal do credor que voltasse a exigir os exatos termos do contrato, impondo sanções pelo não imediato adimplemento. A teoria do Adimplemento Substancial guarda igualmente relação com a supressio, na medida em que torna abusiva a conduta do credor que, diante do inadimplemento ínfimo do devedor, opta pela resolução do contrato ao invés de exigir o seu cumprimento integral9. 3) Surrectio - surgimento de um direito ou faculdade para uma das partes contratantes. Figura correlata à supressio, apresenta-se como o seu oposto. Aqui o comportamento anterior dos contratantes gera a expectativa legítima de um novo direito contratual, em favor de uma das partes, ainda que tal não tenha sido expressamente convencionado quando da celebração do negócio. Aplicando a cláusula geral de Boa-fé, o Tribunal de Justiça de São Paulo reconheceu presentes os pressupostos caracterizadores da surrectio, operada em favor do devedor, em contrato de mútuo, que reiteradamente efetuou 8 Ob. Cit. Ver STJ, REsp 469577 / SC, Quarta Turma, Relator Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR, DJ 05.05.2003 p. 310. 9 7 pagamentos através de depósito em conta-corrente, sem qualquer oposição do credor, fazendo emergir a presunção de validade dos pagamentos assim realizados. (Apelação 1331967000, Relator: Moura Ribeiro, Comarca: Americana, 11ª Câmara de Direito Privado, Data de registro: 07/08/2008). 4) Tu quoque – Até tu. Curiosa figura cuja expressão é atribuída a Julio César, quando surpreendido pela traição de Brutus; representa uma forma específica de comportamento contraditório, em que uma das partes adota comportamento oposto ao seu próprio, quando imputa ao outro conduta contratual inadequada, valendo-se assim de dois pesos e duas medidas. Pode se reconhecer como uma espécie de venire, mais específica que aquela, contudo, pois o comportamento do contratante aqui é representado por uma valoração diferenciada de duas situações idênticas ou semelhantes, como a do cônjuge infiel que se vale da conduta adúltera do outro como causa de mitigação de seu dever alimentar (art. 1704, CC). 5) Duty to mitigate the loss – dever de minimizar as perdas. Na perspectiva da boa-fé, não é somente o devedor quem deve se comportar de forma a não causar prejuízo ao credor, mas também deste se espera que não adote comportamentos que possam agravar o seu próprio prejuízo. Nesse sentido é o teor do Enunciado n° 169, aprovado pela III Jornada de Direito Civil promovida pelo Conselho da Justiça Federal, in verbis: 169 – Art. 422: O princípio da boa-fé objetiva deve levar o credor a evitar o agravamento do próprio prejuízo. 8 CONCLUSÃO: Foi-se o tempo em que o contrato representava um exercício de liberdade sem compromisso com o próximo, pautado exclusivamente em um interesse econômico particular não proibido. O ganho dos contratantes se pautava exclusivamente no seu próprio lucro, sendo vedada tão somente a conduta de má-fé, caracterizada pela inequívoca intenção de enganar a outra parte. O jogo legítimo dos negócios passou a exigir dos contratantes um ganhaganha, consistente em um resultado contratual que represente vantagens justas para todas as partes e não somente para aquela que detenha uma posição de superioridade na negociação. A tutela da confiança representaria, assim, um avanço econômico para todos os envolvidos, pois permitiria a redução de custos com mecanismos de proteção para a tomada de decisão, possibilitando acreditar que as informações relevantes serão necessariamente fornecidas pelo outro. Entretanto, como já observado, em um ambiente de intervenção do Estado-Juiz no conteúdo dos contratos, exige-se que as medidas judiciais sejam compatíveis com os preceitos do sistema e especialmente estáveis, sob pena de representar um desvio, uma anomalia no processo de evolução das relações contratuais. Não é por menos que se fala hoje em nova crise do contrato10, gerada pela incerteza de que os pactos sejam mesmo cumpridos nos moldes ajustados, levando as partes à elaboração de longos modelos contratuais, com muitas e muitas cláusulas cujo objetivo central é restringir a atuação jurisdicional na interpretação das lacunas. Todavia, a restrição que a Boa-fé impõe à autonomia da vontade, transformando-a em autonomia privada, não põe fim ao contrato, mas representa uma transformação em seus paradigmas, impondo um novo direito 10 MARQUES, Claudia Lima e outros. A nova crise do contrato. Estudos sobre a nova teoria contratual. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais. 2007. 9 comprometido com o fato concreto e não mais com modelos abstratos e ideais do passado. Também o Estado11, no seu papel legislativo, executivo e judiciário, deve observar os ditames da Boa-fé objetiva, garantindo estabilidade nas relações, respeitando a confiança dos cidadãos nos caminhos que estão sendo escolhidos, na segurança que se exige de que os Tribunais Superiores não mudarão de opinião repentinamente sobre determinado assunto quando inúmeros jurisdicionados já ingressaram em Juízo pleiteando direitos até então considerados líquidos e certos, como muito acertadamente sustentou, embora vencido, o Ministro Antonio Herman Benjamin12. Finalmente, resta reconhecer que se todos cumprirem o seu papel neste novo ambiente contratual, a chamada nova crise não passará de agitação natural que antecede um novo tempo. O contrato como conhecemos realmente não mais terá lugar, o que não significará o fim da liberdade ou a era da desconfiança, mas ao contrário em um ambiente de maior estabilidade e segurança amparada justamente na probidade e na boa-fé das partes envolvidas e do Estado, cada um desempenhando sem surpresas ou vantagens exageradas o seu papel. 11 “Assim é difícil competir”. Por Melina Costa. Revista Exame, Ed. 925, 27/08/2008. 12 A sombra da juridicidade. Nesse sentido ver voto do Min. Benjamin nos Eresp 767527, Eresp 765134 e Eresp 771184. 10