Ética e democracia na governação e gestão da escola pública – contributo para novas dinâmicas Ethique et démocratie dans la gouvernance et la gestion de l’école publique – contribution à de nouvelles dynamiques João Correia Resumo A escola pública encerra pressupostos e valores da educação democrática para a cidadania. A governação das escolas e a interacção de todos os actores sociais e agentes educativos envolvidos no processo exigem novos paradigmas de acção e de desenvolvimento no sentido de uma afirmação de culturas escolares diferenciadoras e potenciadoras de singularidade e de identificação com o local e com a comunidade onde se inserem. Este artigo procura reflectir sobre a ética e valores democráticos na governação e na criação de uma cultura de escola construída de forma participada, livre, responsável e colaborativa, não só para a consecução de objectivos comuns e resultados positivos em termos da organização e do desenvolvimento do projecto escolar, mas contribuindo também para um bem-estar social e cultural que promova a equidade, a igualdade de oportunidades e a flexibilidade na gestão. No quadro actual da “globalização” e das políticas educativas em curso, foca também alguns constrangimentos na aplicação de práticas dinâmicas, participativas e democráticas, em contexto escolar, nas escolas públicas portuguesas. Résumé L’école publique a présupposés et des valeurs de l’éducation démocratique pour la citoyenneté. La gouvernance des écoles et l’interaction de tous les acteurs sociaux et agents éducatifs impliqués dans le processus exigent de nouveaux paradigmes d’action et de développement dans le sens d’une définition de cultures scolaires qui font la différence et potentialisent la singularité et l’identification avec le lieu et la communauté où ils s’insèrent. Dans cet article on cherche à réfléchir sur l’éthique et les valeurs démocratiques dans la “gouvernance” et dans la formation d’une culture d’école construite de forme participée, libre, responsable et collaborative, non seulement en termes de réalisation d’objectifs communs et de résultats positifs au niveau de l’organisation et du développement du projet scolaire, mais en contribuant aussi à un bienêtre social et culturel qui promeuve l’équité, l’égalité d’opportunités et la flexibilité dans la gouvernance. Dans le cadre actuel de la « globalisation » et des politiques éducatives en cours, on focalise aussi quelques contraintes dans l’application de pratiques dynamiques, participatives et démocratiques, en contexte scolaire, dans les écoles publiques portugaises. 426 Introdução Este artigo pretende realizar uma reflexão sobre a aplicação da Ética na gestão e na governação da escola pública, incidindo em conceitos de “governação”, “cultura democrática”, “cultura escolar” e “cultura participativa”, no âmbito da emergência de novos conceitos e novos paradigmas em Ciências da Educação em contexto mundial de “globalização”. A estratégia e a metodologia adoptadas consistirão em focar a atenção em estudos científicos recentes, artigos publicados ou não, mas com algum eco no meio académico e científico e outras leituras efectuadas, no contexto de um trabalho de investigação ainda há pouco iniciado com vista a estudos para uma tese de doutoramento. O discurso irá abranger três partes distintas: o contributo da Ética na prática de uma cultura democrática e participativa, cultura essa que implica o empenhamento de todos os actores sociais envolvidos no processo educativo, a importância da Ética e dos valores colaborativos na construção de uma cultura escolar única e diferenciada e os constrangimentos na prática dessa mesma cultura, sobretudo em contextos de autonomia das escolas em Portugal. Pretendo evidenciar que só com implementação de políticas educativas dinâmicas e participadas por toda a comunidade/sociedade e em plena envolvência no projecto educativo, será possível (ou pelo menos desejável) atingir metas de sucesso qualitativo, de melhoria do sistema educativo português e de valorização, não só dos profissionais directamente envolvidos, mas também contribuindo para a evolução cívica, económica, socioprofissional e cultural das comunidades (a nível local, regional e nacional) e da própria sociedade (a sociedade do conhecimento e da informação). Contributo da Ética na prática de uma cultura democrática e participativa A escola pública insere-se em contexto social onde não só os actores e agentes educativos interagem, mas toda a comunidade é envolvida, nomeadamente a participar na acção educativa comum com vista à integração de todos os que compõem o meio geográfico, social, político e económico que é toda a comunidade em si mesma inserida em todos os níveis (micro, meso e macro, isto é, desde o espaço das salas de aula até ao espaço global que transcende fronteiras nacionais e territoriais). O factor da importância de relevar uma cultura democrática e participativa em meio escolar e, em particular, articulando necessidades, interesses, vontades e tradições, implica a presença de questões de Ética que devem orientar as tomadas de decisões, as escolhas que servirão maioritariamente toda a comunidade de forma tolerante e democrática, na linha da tradição europeia, e contando com uma participação activa de um maior número possível de envolvidos (docentes, discentes, funcionários e pais/encarregados de educação, bem como de outras entidades locais, regionais e nacionais/transnacionais envolvidas no processo educativo). A investigação qualitativa em Ciências da Educação tem contribuído para um melhor conhecimento de todos os actores sociais e tem abrangido outro tipo de abordagens que permitem uma melhor compreensão da sociedade. Bogdan e Biklen (1994) referem a importância de existir uma preocupação, por parte dos investigadores qualitativos, em respeitar um código deontológico seguindo procedimentos habituais usando o “consentimento informado” e a “protecção de danos” de qualquer ordem. Os autores apontam quatro princípios éticos a ter em consideração numa “investigação-acção”: a protecção da identidade dos sujeitos, o tratamento de forma respeitosa a induzir à cooperação, a explicitação clara dos acordos estabelecidos com todos os intervenientes na investigação, bem como o respeito até ao final do que foi acordado e ser autêntico na descrição e/ou relato dos resultados. 427 Boaventura de Sousa Santos (2005:50) ao escrever sobre as políticas de “globalização cultural”, face às transformações sociais que ocorrem por todo o mundo e em todas as sociedades, ao que não podemos ficar alheios, reforça a ideia de uma “comunidade democrática global” “baseada na racionalidade colectiva, na liberdade e na igualdade.” Carvalho (2006:2), referindo-se a aspectos da cultura organizativa, em contexto escolar, devido à descentralização e à autonomia das escolas, bem como a uma determinada desresponsabilização dos Estados em relação à educação, à qual temos vindo a assistir em Portugal, ainda que de uma forma tímida e algo titubeante, quer devido a factores endógenos quer a factores exógenos, assinala três níveis fundamentais: “artefactos observáveis, valores manifestos e pressupostos básicos.” O quadro 1 apresenta, de uma forma resumida, os valores subentendidos em cada um dos níveis evidenciando características de uma cultura humanista de tradição europeia. Níveis Formas estruturas, processos organizacionais visíveis, artefactos tecnologia, espaços, linguagem, mitos e histórias observáveis e rituais de organização valores partilhados valores organização, manifestos organização pelos objectivos e elementos da estratégias da crenças, percepções, pensamentos e sentimentos pressupostos inconscientes sobre a natureza do tempo e do básicos espaço, da realidade e verdade, da actividade humana e das relações humanas no contexto da organização Quadro 1 - Cultura organizativa em contexto escolar Fonte: Renato Carvalho (2006) Assegurada a prática democrática na organização em que se constitui a escola pública, apresenta-se implícita a prática participativa, responsável e colaborativa de todos os actores sociais, tendo em vista a consecução comum dos objectivos e finalidades do acto educativo em si mesmo. A cultura organizativa de qualquer empresa ou até mesmo as suas influências nas práticas de gestão e organização neoliberal em escolas públicas implica o uso de técnicas, métodos e estratégias com a finalidade da obtenção quer dos objectivos comuns para os quais os membros da organização laboram ou devem (co)laborar quer até ao nível do contributo de todos para o prestígio da instituição/organização, através da obtenção de bons resultados. (1) Bilhim (2008:391), referindo-se à importância do funcionamento dos grupos, salienta que “os grupos, tal como os indivíduos, tentam actuar de forma a maximizar o sucesso e minimizar insucesso. Os grupos tentam aumentar a satisfação e impedir a insatisfação dos seus membros.” A “cultura de escola”, em defesa da instituição que os seus actores sociais e agentes educativos representam e onde se inserem promove a aplicação de normas, aceites ou não por todos, na qual o seu líder ou chefe (o director, de acordo com o novo figurino criado pelo Decreto-Lei nº 75/2008, de 22 de Abril) desempenha um papel fulcral para a consecução dos objectivos da instituição, mas onde todos são responsáveis pelo contributo individual para o bem do colectivo. 428 Uma vez mais, Bilhim (2008:391) faz notar que “as normas serão tanto mais fortes quanto assegurem o sucesso do grupo; reflictam a vontade do seu líder/chefe; simplifiquem e tornem previsíveis os comportamentos dos membros; evitem a conflitualidade entre os elementos que o integram.” Carvalho (2006) defende que cada escola tem a sua cultura própria e única e é, com base em estudos sobre a escola e a organização e gestão da escola (Lima, Barroso e Nóvoa, entre muitos outros) que se pode afirmar que a ética tem um importante papel a desempenhar no campo das Ciências da Educação, tendo em conta que no domínio da Administração e Gestão do ensino público, face à emergência das realidades locais que têm vindo a assumir um desempenho relevante com as práticas de descentralização e de autonomia por um lado, e com o processo de “globalização”, por outro, esse papel, em contexto escolar e local, terá de ser orientado para a obtenção de um bem-estar social e cultural que promova a equidade, a igualdade de oportunidades e a flexibilização. Monteiro (2004:69) identifica uma preocupação crescente (o que até aqui não tinha acontecido relativamente a estudos profundos sobre Ética em educação e/ou deontologia aplicada às Ciências da Educação, embora desde sempre presentes e com aplicações muito ambíguas neste campo) com questões de Ética em educação. Após analisar a evolução dos conceitos de “ética” e “deontologia” ao longo da história e do tempo, afirma que “o campo da educação é o mais ético dos campos profissionais e a educação a maior responsabilidade do mundo, mas continua a ser, também a maior irresponsabilidade do mundo”. O contributo da Ética para a realização de “boas práticas” no seio de uma cultura democrática e participativa/colaborativa no domínio da educação, e, mais especificamente no âmbito da gestão e administração da escola pública, na sua relação com métodos, estratégias e processos, não pode abdicar do próprio conceito de regras, normas e valores consignados em vários documentos nacionais e internacionais que regulam, controlam e supervisionam toda a acção humana e cívica. Assim sendo, importa referir as recomendações do Relatório Delors (1996) onde se verifica que “a educação em toda a vida funda-se em quatro pilares: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver juntos e aprender a ser.” (2) A educação não é um acto pedagógico ou social de tipo meramente reprodutivo, condicionado por normas e valores prescritos, transmitidos e impostos normalmente por uma classe dominante como acto político, tal como a gestão democrática da escola pública não pode ser, em si mesma, apenas um acto estritamente administrativo. A escola pública como comunidade/sociedade composta por actores sociais muito heterogéneos, mas acima de tudo, seres humanos, comportando, entre si, um complexo jogo e conjunto de relações e conflitos, necessitará sempre de uma ancoragem a princípios éticos que visem a consecução dos seus maiores objectivos – o sucesso educativo e a satisfação dos seus “clientes”, no caso não apenas os alunos, mas em sentido mais abrangente, englobando os pais/encarregados de educação, docentes e funcionários, ou seja, toda a comunidade educativa. Os direitos e deveres cívicos, em termos de cidadania universal, devem ser correctamente conhecidos e apreendidos por todos, prevalecendo o imperativo da tomada de decisão, bem como o assumir de riscos, livre mas consciente, com respeito e tolerância pelas maiorias, com honestidade e com idoneidade e imparcialidade, assim como usando a flexibilidade necessária e regrada/regulada ao nível do exercício do poder nos diferentes níveis hierárquicos da organização/instituição. A participação democrática na governação(3) da escola pública é um direito e um dever que assiste a todos os membros da comunidade/sociedade educativa. Como tal, a colaboração dos grupos (alunos, docentes, funcionários, pais/encarregados de educação, bem como outros agentes locais, regionais ou nacionais e até transnacionais) é fundamental não apenas para atingir níveis de qualidade e de 429 excelência, mas até mesmo para a sobrevivência e sustentabilidade da instituição/organização como entidade pública e ao serviço da comunidade/sociedade. Ética e valores colaborativos na construção de uma cultura escolar Cada escola, enquanto instituição e estrutura organizacional educativa, possui uma cultura própria, diferenciada e única. Essa cultura reflecte todo um conjunto de práticas, valores e crenças que são partilhados por todos aqueles em interacção nesse meio. (4) Barroso (2004) define três perspectivas quanto à cultura escolar: funcionalista, estruturalista e interaccionista. De uma forma muito sucinta, podemos verificar as características de cada uma delas no Quadro 2. Contudo, a título de uma abordagem do ponto de vista da Teoria Social, podemos verificar que o “arbítrio cultural” a que se referiam Bourdieu e Passeron (5) é socialmente discriminatório e que se assinala frequentemente uma “homogeneização condicionada”. No seu conceito de “violência simbólica” está subjacente a ideia da escola como meio de reprodução social dissimulada da qual Caria (1992) diz tratar-se de um “duplo arbítrio cultural”, porque “a cultura de qualquer grupo social não se fundamenta em nenhum princípio lógico-racional, mas somente num processo histórico que originou transformações” e “a cultura da escola é apresentada como universal e neutra, dissimulando o facto de ser um conjunto de obras tendencialmente homogéneas, produto de uma operação de selecção, reorganização e institucionalização de manifestações e conteúdos culturais diversos, plurais e contraditórios, realizados por grupos e fracções de classes sociais com poder simbólico e cultural.” (6) perspectivas características A instituição educativa é um simples transmissor funcionalista de uma cultura definida e produzida exteriormente e que se traduz nos princípios, finalidades e normas que o poder político determina como constituindo o substracto do processo educativo e da aculturação das crianças e dos jovens A cultura escolar é produzida pela forma escolar estruturalista de educação, principalmente através da modelização das suas formas e estruturas, seja o plano de estudos, as disciplinas, o modo de organização pedagógica, os meios auxiliares de ensino interaccionista A cultura escolar é a cultura organizacional de escola; considera-se cada escola em particular Quadro 2 - Cultura escolar – perspectivas Fonte : Barroso (2004) A escola pública como instituição democrática e participativa, quer a nível de órgãos de direcção ou gestão de topo (Conselho Directivo e Conselho Administrativo), quer ao nível de gestão intermédia (Assembleia de Escola, Conselho Geral e Conselho Pedagógico), é, por inerência própria um excelente local de pleno exercício democrático onde todos os seus membros têm o direito e o dever de participar 430 e de colaborar para o projecto comum que é o Projecto Educativo. Além disso, compete-lhes ainda colaborar para as finalidades máximas e essenciais da educação em torno do primordial desafio educativo – formar cidadãos livres, responsáveis e qualificados. É neste contexto que emergem os novos paradigmas educativos, com uma crescente preocupação comum, geralmente designada por accountability ou “prestação de contas”, porque se exige não só aos professores/educadores e às escolas, mas também aos alunos e aos pais/encarregados de educação uma maior corresponsabilização em todo o processo educativo, através de um rigoroso acompanhamento, controlo, regulação e avaliação, bem como dos recursos utilizados para a sua operacionalização e sustentabilidade. A partilha de experiências e de saberes, a colaboração activa e responsável, as iniciativas inovadoras e dinâmicas, podem e devem mudar a imagem da escola pública actual. Os estudos ultimamente realizados evidenciam que as lideranças tendem a assumir um papel fulcral nessa mudança, mas o espírito de equipa, o sentido de grupo (a força do social em detrimento do individual) e a vontade de mostrar sucesso e qualidade, denotam atitudes éticas e uma nova emergência de valores que devem ser cultivados e disseminados. Torres e Palhares (7) ao analisarem os dados recolhidos dos Relatórios de Avaliação Externa das escolas referentes aos anos de 2006 a 2008 inclusive, verificaram que as escolas em Portugal, nos últimos anos, têm-se assumido como “instâncias de regulação cultural e simbólica” onde imperam os valores de “competitividade económica” (Ball,2001) e “práticas de tipo gestionária e instrumental” em detrimento de valores que possibilitem uma maior autonomia da escola pública, maior participação democrática(preferencialmente por entre pares e não por nomeação) e uma efectiva e real partilha e colaboração livre, responsável e com índices reveladores de qualidade, visto que as políticas educativas tendem a enfatizar uma cultura de “tipo monocultural” e “modelos de gestão e administração tipicamente empresariais”. O estudo realizado pelos autores acima mencionados abrangeu um universo de 400 escolas e “unidades de gestão”, na sua maioria concentradas nas regiões Norte e Lisboa/Vale do Tejo, incluindo escolas não agrupadas, escolas secundárias, com e sem 3º ciclo do ensino básico, agrupamentos de escolas e escolas apenas com ensino secundário. Foram seleccionados para uma análise mais aprofundada os domínios “resultados”, “organização e gestão escolar” e “liderança”. Entre outras constatações, sobretudo as que mais nos interessam no âmbito deste artigo, podemos verificar que o diagnóstico sobre o funcionamento das escolas foi globalmente positivo (facto observado pelos próprios autores do estudo), a existência de um clima de bom relacionamento entre alunos, professores e funcionários, assim como o grau de participação das famílias e dos alunos nas actividades abertas à comunidade, constituiu um critério valorizado e um bom contributo para a obtenção quer de “bons resultados” quer no domínio da “organização e gestão escolar” e que, na óptica dos avaliadores, as escolas mais recentes tendem a desenvolver uma melhor liderança. A verificação de condições de governação das escolas coloca os gestores numa “dupla encruzilhada” porque, por um lado, a sua função é “preservar os princípios democratizadores inerentes à sua condição de gestores democraticamente eleitos”, mas, por outro, “são coagidos externamente a incorporar um perfil de gestão progressivamente mais tecnocrático ao serviço de valores da competitividade, da performance, dos resultados”. (8) Neste novo quadro que se perspectiva para a escola pública portuguesa, há que saber discernir o que é essencial e separar o que é apenas acessório, encarar e lidar com a mudança imposta pela legislação, normas e regulamentos das políticas implementadas ou a implementar e agir com eficiência e com eficácia, evitando formas de totalitarismo e usurpação do poder. 431 O contributo para a construção de uma forte cultura escolar democrática e participativa passa pela referência a uma ética de valores onde devemos incluir a honestidade, a idoneidade, a tolerância e a flexibilidade. Constrangimentos na prática de uma cultura democrática e participativa Em Portugal o recente Decreto-Lei nº 75/2008, de 22 de Abril deu início a um desempenho de novas práticas (e reorganizações) na gestão das escolas públicas ao criar a figura de director, ainda que representando os docentes, bem como a comunidade escolar, e eleito democraticamente, atribuindolhe funções e responsabilidades acrescidas, mas com a inerência de designar as chefias intermédias e presidir quer ao Conselho Administrativo quer ao Conselho Pedagógico. (9) O papel do director sofre pressões ideológicas, sociais, económicas e políticas, quer na tomada de decisões quer na escolha dos elementos que constituem a sua equipa, o que pode criar, por vezes, conflitos de difícil resolução e para os quais muitos dos actuais directores das escolas públicas poderão não estar preparados. O poder deliberativo democrático que inibe os departamentos curriculares, ao nível do 2º, 3º ciclo e Secundário, de eleger o representante dos seus pares, poderá criar clivagens, desmotivação e até alguma desconfiança, porque corre-se o risco de se tornar elitista e fragmentária (como se pretendeu fazer com a carreira docente), no caso de não haver critérios claros, transparentes e imparcialidade para essas escolhas. As escolas públicas portuguesas atravessam momentos de alguma indefinição quer ao nível das políticas educativas relacionadas com a autonomia quer mesmo ao nível da organização do trabalho, da afectação de recursos materiais e humanos, em clima de competitividade de mercados com a oferta variada e a concorrência das escolas do ensino privado e os rankings da avaliação, necessitando encontrar formas inovadoras para garantir a sua sustentabilidade. A autonomia da escola pública é um processo relevante para que a mesma possa competir no mercado. Contudo, ainda há muito caminho a percorrer para que essa autonomia seja efectiva e eficaz. (10) Adriano Moreira (2005:13) traçou parte desse percurso: “ A marcha para a autonomia, com acidentes marcados pelas históricas intervenções de juízes de fora, não se confunde porém com a independência: a autonomia foi ganha e estruturada com base na legitimidade do exercício reconhecida a partir dos serviços à comunidade, mas a dependência mantém-se a começar pelo financiamento, pelo enquadramento legislativo, pelas variações do poder político no que respeita à concepção interventora do Estado e, também cada vez mais, pela variação da efectiva capacidade do Estado para responder às finalidades em que se baseou a invenção dessa criatura, neste caso abrindo espaço às agressões das políticas furtivas.” Barroso (2004) salienta que a escola pública não pode ter uma “autonomia decretada” e que “as políticas de reforço da autonomia das escolas se realizam, normalmente, através de um tríplice movimento, com várias cambiantes e amplitudes: delegação de competências e recursos, individualização de percursos escolares; horizontalização das dependências.” (11) As questões éticas que se colocam face aos diversos constrangimentos relacionados com a autonomia das escolas e com o modo de governação destas instituições/organizações, passando de um poder de certo modo paternalista e proteccionista de um Estado-Nação providencial para outro tipo de poder no qual o Estado se assume como um “Estado educador”, são questões que importa ter em conta e analisar, 432 bem como todo o tipo de relações que se estabelecem na operacionalização dessa transferência de poderes. Os papéis do Estado e das escolas públicas (nomeadamente no âmbito da organização e gestão escolares) ganham novo fulgor e novas dinâmicas a que é necessário dar resposta adequada, pois não basta garantir direitos e deveres de autonomia e de participação, também é necessário dotar as escolas, as autarquias, os gestores das escolas, os docentes e os alunos e todos os que estão envolvidos no processo educativo, com os instrumentos e recursos que permitam colocar em prática uma efectiva gestão democrática, participativa e eficaz. As sociedades do conhecimento e da informação do século vinte e um serão sociedades cada vez mais exigentes e em constantes requisitos de preparação para a mudança e para a adaptabilidade a novas situações. É necessário o esforço, o empenhamento e a participação de cada um e de todos para atingir o bem comum e para uma subsidariedade económica e social de cariz humanista. Os estudos realizados, utilizando o método comparativo, em vários países, têm incidido, progressivamente, tanto na descrição e análise dos diferentes modos de regulação dos sistemas educativos, como na regulação das políticas educativas centrados em três níveis: nível nacional (regulação de carácter institucional), nível intermédio (regulação que opera em territórios intermédios, entre o local e o nacional) e nível local (modo de regulação interna das escolas). Entre as várias conclusões que Barroso assinala (12), verifica-se que em cinco países europeus onde se realizaram os estudos (França, Bélgica, Hungria, Portugal e Reino Unido) o modelo de regulação das políticas educativas até à década de oitenta do século passado, caracterizava-se por ser um modelo “burocrático-profissional”, cujos traços principais eram as combinações existentes entre uma regulação “estatal burocrática e administrativa” e outra “profissional, corporativa e pedagógica”. As tendências mais recentes visam uma regulação com base em modelos “pós-burocráticos”, tendo como referenciais a figura do “Estado avaliador” e o “quase-mercado”. Em função da legitimidade da regulação quer das políticas educativas institucionais quer da regulação interna das escolas, implementando modelos de autonomia eficazes e com vista ao sucesso educativo, se não de excelência, pelo menos de qualidade, importa assinalar algumas questões éticas finais face aos constrangimentos da sua aplicabilidade. Em primeiro lugar os modelos neo-liberais enformam características e princípios, como por exemplo ao nível da competitividade, que não se coadunam com outras características e princípios de cariz mais humanista e com maior “sensibilidade social”. (13) A falência do modelo de regulação burocrático-profissional e a emergência de modelos que colocam a ênfase nos resultados e na avaliação, implicam acções e estratégias diferenciadas, flexíveis e transparentes que providenciam instrumentos e recursos confiáveis, motivadores e propulsores do sucesso de todos os actores sociais envolvidos no processo educativo. As implicações éticas das medidas e políticas educativas a implementar não poderão imiscuir-se de apresentar soluções para uma aplicação de uma democracia participativa e de corresponsabilização, impregnada de valores humanistas de tradição europeia, tendo em vista a obtenção plena dos objectivos traçados na Estratégia de Lisboa (2001), onde a educação constitui um dos pilares fundamentais de desenvolvimento económico, social, político e cultural dos povos. Lopes e Barrosa (2008) baseados em estudos (14) sobre os recursos humanos em organizações, evidenciam que existem quatro dimensões (serviço, produtividade, redução de custos e competitividade) que são fundamentais em qualquer tipo de organização, que exigem compatibilização entre elas e que “são as pessoas, com o seu envolvimento no projecto organizacional, que dão conteúdo 433 às exigências da gestão, numa era de hipercompetitividade resultante das pressões múltiplas que afectam as actividades produtivas.” Por outro lado, a “gestão da comunicação” contribui para uma efectiva realização do poder legitimado da organização porque “ a gestão das organizações parece ainda inspirar-se de duas forças, actuando em sentido contrário: da liderança do projecto, como força interior que atravessa toda a organização do trabalho e da comunicação com aluno e encarregado de educação que comanda, a partir do meio envolvente, a mesma organização.” (15) Considerações Finais “A escola pública e democrática é laica e neutra. Está vinculada apenas ao respeito e promoção dos valores da Ética universal dos direitos do ser humano.” (16) As políticas educativas em Portugal necessitam de encontrar um novo rumo e uma nova forma de encarar a realidade. As escolas públicas portuguesas carecem ainda de orientações claras e precisas quer no seu modo de governação, no sentido de lhes proporcionar condições de efectiva operacionalização de autonomia, quer ao nível da profissão docente e de todo o sistema educativo. As dinâmicas a implementar terão de ser inovadoras e motivadoras para a mudança e para a realização (individual e colectiva) pessoal, profissional, social e cultural de todos os actores sociais envolvidos. Os princípios éticos, (17) definidos quer na Carta Ética da Administração Pública quer os “Princípios Fundamentais” do Estatuto Disciplinar dos funcionários e agentes da administração central, regional e local, devem ser respeitados, aplicados, supervisionados e avaliados regularmente. Os desafios das sociedades modernas implicam uma boa e cuidada preparação de todos para agir colaborativamente com o objectivo de atingir desejáveis níveis civilizacionais, culturais e profissionais que os novos tempos exigem. NOTAS (1) O uso do termo é propositado e visa acentuar a sua origem latina “labor(ar)” ou “trabalhar” e também “colaborar” para evidenciar o sentido de “trabalhar com…” revelando partilha de tarefas dentro da instituição/organização e com a comunidade do meio onde se insere. (2) In Delors, Jaques et al.(1996). Educação- Um tesouro a descobrir. Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para o século XXI. Rio Tinto: Edições Asa, p.103. (3) Utiliza-se aqui o sentido dado por Boaventura Sousa Santos(2006) do conceito de “governance” do sociólogo Bob Jessop nos anos setenta. Em língua francesa foi traduzido por “gouvernance” (em contraposição a “gouvernment”/”government”) e em Português do Brasil surge ainda a designação de “governança” e é, geralmente apresentado como “auto-organização reflexiva de actores independentes envolvidos em complexas relações de interdependência recíproca” (citado por Barroso, 2006:62 in Teodoro, António(2009). A Lição. Provas de Agregação. Lisboa: Universidade Lusofona de Humanidades e Tecnologias. Texto policopiado, p. 42). (4) Barroso (2004 e 2006) identifica as diferentes perspectivas da cultura escolar em função das correntes que orientam os modelos de “governação” vigentes. (5) Bourdieu e Passeron (2008:133) salientam que “a escola é concebida como instituição de reprodução da cultura legítima, determinando entre outras coisas, o modo legítimo de imposição e de inculcação da cultura escolar e, de outro lado, as classes sociais, caracterizadas 434 sob o aspecto da eficácia da comunicação pedagógica, pelas distâncias desiguais em relação à cultura escolar e pelas disposições diferentes para reconhecê-la e adquiri-la.” (6) In Carvalho, R. (2006). Cultura global e contextos locais: a escola como instituição possuidora de cultura própria, Revista Iberoamericana de Educación, volume 39, nº2, p.4 (7) Torres, L.L. e Palhares, J.A. (2009). Estilos de liderança e Escola Democrática. In Revista Lusófona da Educação, nº 14, Lisboa: Edições Universitárias Lusófonas, pp. 77-99. (8) idem, op. cit., p.97. (9) No Decreto-Lei nº 75/2008, de 22 de Abril, é conferido ao director “o poder de designar os responsáveis pelos departamentos curriculares, principais estruturas de coordenação e supervisão pedagógica”. (10) Monteiro, A. dos Reis (2004). Educação e Deontologia, Lisboa: Escolar Editora, p.126. (11) Moreira, A. e al. (2005). A autonomia das escolas. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkiam, p.24 (12) idem, op.cit., p.33 (13) idem, op.cit., pp. 43-44 (14) Lopes, Albino e Barrosa, Luis (2008). A Comunidade Educativa e a Gestão Escolar – um contributo da gestão estratégica de Recursos Humanos, Mangualde: Edições Pedago, p. 54 (15) idem, op.cit., pp. 55-56 (16) Monteiro (2004), op.cit., p.126. (17) A Carta Ética para a Administração Pública já foi aprovada em Conselho de Ministros mas ainda não foi publicada. No entanto existem dois documentos que regulam as questões éticas da administração pública e que são os Decreto-Lei nº 24/84 de 16 de Janeiro e o Decreto-Lei nº 184/89, de 2 de Junho. 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Legislação Decreto-Lei nº 75/2008 de 22 de Abril Decreto-Lei nº 139-A/90 de 28 de Abril (ECD) 436