• O Conceito de Autonomia de Escola: algumas reflexões. • Rui Moura (1999). Educare/Educere, 7, 85-94. A publicação do decreto-lei 115-A/98 • corresponde a uma nova legislação • acerca da gestão e administração das escolas. • • Para além das diversas alterações que implicou • na estrutura das escolas públicas portuguesas do ensino básico e secundário, • este novo ordenamento jurídico • refere-se directamente ao processo faseado de desenvolvimento da autonomia das escolas • através dos contratos de autonomia. • Segundo este Decreto-Lei • “a autonomia da escola desenvolve-se e aprofunda-se com base na iniciativa desta e segundo um processo faseado em que lhe serão conferidos níveis de competência e de responsabilidade acrescidos, de acordo com a capacidade demonstrada para assegurar o respectivo exercício” • (artigo 47, n.º 1). O conceito de autonomia • Pode conceptualizar-se autonomia versus heteronomia. a • Segundo esta concepção, a autonomia é vista como independência, isolamento, onde o sujeito assume o completo poder / controlo em completa oposição ao poder / controlo exercido por outros. • Ser autónomo implica, desta forma, um corte radical e uma ausência total de qualquer dependência dos outros. • Esta percepção corresponde muito pouco ao verdadeiro significado da autonomia. • O ser humano não é um ser isolado, ele é “intrinsecamente um ser de relação.” (Pinto, 1998, p. 17). • A literatura mais relevante sobre a autonomia na aprendizagem acentua a importância da inter-relação com os outros para que o aprendente possa assumir um maior controlo na sua aprendizagem • (Kerka, 1994; Brookfield, 1993; Long, 1992; Mezirow, 1985): • o aprendente autónomo não é independente ou dependente, mas sim interdependente (Garrison, 1992). • “A autonomia acontece quando a gestão das relações que tecem a nossa existência permite a afirmação do sujeito, nomeadamente na concretização de projectos.” (Pinto, 1998, p. 17). • Barroso (1996B) observa que o conceito de autonomia está ligado à ideia de autogoverno, onde os sujeitos se regulam por regras próprias. • Mas isto não é sinónimo de indivíduos independentes. • A autonomia é um conceito relacional (somos sempre autónomos de alguém ou de alguma coisa) pelo que a sua acção se exerce sempre num contexto de interdependência e num sistema de relações. • A autonomia é também um conceito que exprime um certo grau de relatividade: somos mais, ou menos, autónomos; podemos ser autónomos em relação a umas coisas e não o ser em relação a outras. • A autonomia é, por isso, uma maneira de gerir, orientar, as diversas dependências em que os indivíduos e os grupos se encontram no seu meio biológico ou social, de acordo com as suas próprias leis.” (p. 17) Macedo (1991) declara que a autonomia pressupõe auto-organização: • “Ao auto-organizarem-se isto é, ao estruturar-se na realização de objectivos que define o sistema diferencia-se de outros sistemas com quem está em interrelação, criando a sua própria identidade. É um sistema autónomo.” (p. 131). • A autonomia pressupõe que se seja capaz de identificar, e assim, se diferenciar dos outros. • Mas esta capacidade de diferenciação só é possível na inter-relação com os outros. • • “Quanto mais são as trocas de energia, informação e matéria que um sistema estabelece com o ‘meio’, maior é a sua riqueza, a sua complexidade, as possibilidades de construção da autonomia.” (p. 132). • Para esta autora, a essência da autonomia da escola passa pela capacidade de efectuar trocas com os outros sistemas que envolvem a escola. • A autonomia da escola não é algo adquirido, mas sim algo que se vai construindo na interrelação, pois só assim a escola vai criando a sua própria identidade. • Reflectindo sobre o conceito de autonomia de escola, Barroso (1995B) observa que este envolve duas dimensões: • a jurídico-administrativa, e a socioorganizacional. • A primeira dimensão corresponde à competência que os órgãos próprios da escola detêm para decidir sobre matérias nas áreas administrativa, pedagógica, e financeira. • Na segunda dimensão • “a autonomia consiste no jogo de dependências e interdependências que uma organização estabelece com o seu meio e que definem sua identidade.” • (p. 3). • A autonomia da escola pressupõe, assim, uma concepção da escola como tendo uma identidade própria • onde os diversos actores interagem entre si. • Se é verdade que existe um sistema, • são contudo os diversos actores que interagem na escola que, com as suas possibilidades de escolha, • alteram e criam novas regras ; • ou seja, também contribuem para a alteração do sistema. • No ponto de partida do raciocínio • encontra-se a constatação empírica da margem de liberdade dos actores , • da sua capacidade de ‘escolher’ a sua conduta • em função de considerações de oportunidades • entre um leque mais ou menos largo • de condutas possíveis. • É certo que os actores nunca actuam num espaço não estruturado. • A sua racionalidade e a sua capacidade de escolha • são preestruturados pela sua pertença a culturas (nacionais, profissionais, organizacionais). • A sua liberdade de acção é restringida • pelas condições materiais e sociais que prevalecem no seu contexto de acção e que estão relacionadas com um conjunto de estruturas e de regulações englobantes. • Para Lima (1991), mesmo num sistema educativo altamente estruturado e centralizado, • impondo as suas regras através da produção legislativa aos estabelecimentos de ensino da sua dependência, • tal não significa que esses mesmos estabelecimentos de ensino cumpram uniformemente essas regras. • “O actor é o elemento central – aquele que, mesmo nas situações mais extremas, conserva sempre um mínimo de liberdade que utilizará para bater o sistema.” (p. 148). • • • • • • • Lima fala de infidelidade normativa por parte das escolas às regras impostas que pode passar pela reprodução total, parcial, ou a não reprodução dos conteúdos normativos. Esta infidelidade às regras do sistema deve-se ao facto de os actores interagirem entre si e serem fieis aos seus objectivos, interesses, e estratégias, permitindo que a escola assuma a sua identidade dentro do sistema em que está inserida. “A escola não será apenas uma instância heteroorganizada para a reprodução, mas também uma instância auto-organizada para a produção de regras e tomada de decisões” (Barroso, 1996B, p. 31). • Sarmento (1998) • afirma que as organizações escolares podem assumir diversas formas de regulação, • tendo em conta duas grandes linhas: • o formal / informal, •e a diacronia / sincronia (correspondendo à continuidade / mudança). • Sarmento refere que, • no cruzamento destas duas grandes linhas, • as escolas podem assumir • quatro formas de regulação. • A primeira forma é a regulação normativa, correspondendo a um conjunto consignado de finalidade e intenções. • A segunda forma é a regulação institucional, onde a tradição institucional, através das mais variadas formas conduz a “um alto grau de conformidade simbólica” (p.22). • A terceira forma é a regulação administrativa, onde se procura mobilizar os dispositivos e os recursos de acção para “atingir determinados fins no contexto organizacional da escola.” (p.22). • A quarta forma é a regulação contingencial, distinguindo-se das outras formas, pelo facto da regulação “não se exercer sob a forma de normas, de comportamentos, de atitudes ou de actos administrativos, mas de se apresentar sobretudo como dependente do momento e da situação.” (p. 22). • Barroso (1996B) observa, também, • que as escolas variam entre a heteronomia absoluta • e a quase completa anomia (ausência de normas claras e comprometedoras, vivendo as escolas numa absoluta rotina), • existindo, todavia, muitas situações em que diversos estabelecimentos de ensino souberam construir uma real autonomia . • Este autor assinala ainda a existência de diversas situações onde “os órgão de gestão ‘contornam’ certos preceitos legais que impedem (ou dificultam) a tomada de decisão em domínios considerados estrategicamente importantes” (p. 25). • Este tipo de situação corresponde àquilo que Lima (1991) chama de infidelidades normativas, e ao qual Barroso apelida de autonomias clandestinas. • • Canário (1996) afirma a necessidade de articular os conceitos de sistema e actor na abordagem da organização escolar , sendo os referidos conceitos contigentes um ao outro. • Esta contingência combina os efeitos de constrangimento que se prendem com o funcionamento colectivo e global deste sistema humano, a autonomia dos actores (apesar de relativa), e a maneira particular como estes diversos factores se combinam nos contextos particulares. •A Autonomia •e a sua concretização • • • • • • • • • É pertinente reflectir sobre algumas formas de concretização da autonomia da escola, permitindo perceber quais os princípios teóricos, ideológicos, ou políticos que estão na base de uma determinada visão da autonomia escolar. Esta reflexão contribui também para uma melhor compreensão dos diversos caminhos possíveis na construção da autonomia da escola. • Wohlstetter e Mohrman (1996) referem que esta descentralização deve envolver quatro vertentes: • 1) poder, • 2) conhecimento, • 3) informação, • 4) recompensa. • O poder significa a capacidade “de tomar decisões que influenciam as práticas, as políticas e as direcções organizacionais” (p.33). • A dimensão do conhecimento permite aos diversos membros da escola perceberem e contribuírem para os resultados da mesma. Este conhecimento “inclui conhecimento técnico para realizar o trabalho ou proporcionar o serviço, capacidades interpessoais, e conhecimentos e práticas administrativas” (p.33). • A dimensão da informação refere-se ao conhecimento que os membros têm acerca da performance da organização, e à “informação estratégica acerca de políticas mais amplas e sobre o ambiente económico” (p.33). • A vertente da recompensa baseia-se nos resultados da organização e nas contribuições dos seus membros para esses mesmos resultados. Esta contribuição dos membros é favorecida através da recompensa do trabalho desenvolvido, ajudando a uma participação mais efectiva desses mesmos membros da organização escolar. Barroso (1996A) considera que a autonomia da escola deve ser construída e não decretada. • A autonomia da escola tem de ter em conta a especificidade da organização escolar, • sendo construída pela interacção dos diferentes actores organizacionais em cada escola (Barroso, 1995B). • A interacção destes diferentes actores conduz sempre a que se juntem diferentes interesses que é necessário saber articular. • • A autonomia, é o resultado do equilíbrio de forças numa escola entre os diversos detentores de influência. • A autonomia da escola pressupõe a autonomia dos seus actores. • A autonomia da escola não se constrói por decreto; • pelo contrário “esta perspectiva retira sentido à tentativa de encontrar, a partir das chamadas ‘escolas eficazes’, estruturas e modalidades de gestão que funcionem como padrão da autonomia para todas as escolas.” (1996A, p. 186). •O projecto educativo como expressão da identificação da escola O Decreto lei 43/89, mais conhecido por decreto da autonomia, • refere que “a autonomia da escola concretiza-se na elaboração de um projecto educativo próprio, constituído e executado de forma participada” (preâmbulo). • Desta forma, o projecto educativo tem um papel importante na concretização da autonomia da escola. • Projecto educativo não é sinónimo de autonomia, mas sim expressão da autonomia da escola (Madeira, 1995; Macedo, 1991). • • A autonomia da escola envolve a capacidade de se identificar / diferenciar face a outros sistemas, como também de se relacionar com eles. • O projecto educativo deve, por isso, levar a escola a ser capaz de se identificar e de se relacionar com o meio em que está inserida. • Segundo Tripa (1994) “para que o Projecto Educativo possa responder às necessidades reais da escola, • têm de se colocar as questões: • onde estamos?; • quem somos?” (p. 62). • O projecto educativo é a expressão da identidade da escola (Madeira, 1995; Ferreira, 1995; Tripa, 1994). • Ao possuir uma identidade própria e ao relacionarse com o meio envolvente, • a escola tem de ser capaz responder aos problemas e desafios que advêm dessa mesma relação: • A produção de inovações a nível local, • encarando-a como um processo colectivo de aprendizagem, • tem como referência o conceito de • criatividade da escola, • ou seja, a sua capacidade de responder de forma original e dinâmica • aos problemas simultaneamente singulares • e complexos • que tem de enfrentar. (Canário, 1992, p. 82) • A ‘capacidade de responder de forma original’ • tem de ter como base • a inter-relação dos diferentes intervenientes ou parceiros • da comunidade escolar. • A autonomia de escola passa pela capacidade da mesma se identificar e, por isso mesmo, de se diferenciar daquilo que a envolve. • Mas, esta capacidade de se diferenciar implica que seja capaz de se relacionar e interagir com o meio que a envolve. • Autonomia não significa independência, mas sim interdependência. • A construção de identidade própria pressupõe a participação de todos os actores que interagem entre si. • A nova concepção das organizações implica a ‘recuperação’ da importância dos actores. • Não se trata de uma concepção de racionalidade ilimitada, mas sim de uma concepção onde actores e sistema se condicionam mutuamente: • se os actores são constrangidos pelas regras do sistema, eles contribuem também para a transformação e alteração dessas mesmas regras. • Segundo o Professor João Barroso, • a autonomia não se define pela existência de um determinado ordenamento jurídico. • Se este último pode ser importante com vista a uma maior dinâmica na autonomia das escolas, a autonomia tem de partir da própria dinâmica da escola na construção da sua identidade. • A concepção de autonomia de escola tem de ter em conta • a diversidade, • pois “a transferência para a escolas não deve ser uniforme e decidida globalmente, mas deve ser adequada às diferentes situações existentes.” (Barroso, 1996C, p. 19). • Trata-se de uma mudança de percepção da escola como espaço de repetição, • para a noção da escola como lugar de produção e inovação (Canário, 1992).