Quarta Turma RECURSO ESPECIAL N. 611.872-RJ (2003/0197368-1) Relator: Ministro Antonio Carlos Ferreira Recorrente: Ford Motor Company Brasil Ltda. Advogados: Luciana Maria Gualter Bastos e outro(s) Fernanda Mendonça S. Figueiredo Gustavo Nunes de Pinho e outro(s) Recorrido: Maria Alice Bueno Neves e cônjuge Advogado: Atila da Cunha Lobo Souto Maior e outro Interessado: Realce Distribuidora de Veículos Interessado: Banco Ford S/A Advogado: Nelson Paschoalotto e outro(s) Interessado: Companhia Santo Amaro de Automóveis EMENTA Direito Civil. Código de Defesa do Consumidor. Aquisição de veículo zero-quilômetro para utilização profissional como táxi. Defeito do produto. Inércia na solução do defeito. Ajuizamento de ação cautelar de busca e apreensão para retomada do veículo, mesmo diante dos defeitos. Situação vexatória e humilhante. Devolução do veículo por ordem judicial com reconhecimento de má-fé da instituição financeira da montadora. Reposição da peça defeituosa, após diagnóstico pela montadora. Lucros cessantes. Impossibilidade de utilização do veículo para o desempenho da atividade profissional de taxista. Acúmulo de dívidas. Negativação no SPC. Valor da indenização. 1. A aquisição de veículo para utilização como táxi, por si só, não afasta a possibilidade de aplicação das normas protetivas do CDC. 2. A constatação de defeito em veículo zero-quilômetro revela hipótese de vício do produto e impõe a responsabilização solidária da concessionária (fornecedor) e do fabricante, conforme preceitua o art. 18, caput, do CDC. 3. Indenização por dano moral devida, com redução do valor. 4. Recurso especial parcialmente provido. REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ACÓRDÃO A Quarta Turma, por unanimidade, deu parcial provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Senhor Ministro Relator. Os Srs. Ministros Marco Buzzi, Luis Felipe Salomão, Raul Araújo e Maria Isabel Gallotti votaram com o Sr. Ministro Relator. Dr(a). Gustavo Nunes de Pinho, pela parte recorrente: Ford Motor Company Brasil Ltda. Brasília (DF), 2 de outubro de 2012 (data do julgamento). Ministro Antonio Carlos Ferreira, Relator DJe 23.10.2012 RELATÓRIO O Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira: Trata-se de recurso especial interposto com fundamento no art. 105, III, alíneas a e c, da CF, contra acórdão do TJRJ, assim ementado: Relação de consumo. Aquisição de veículo 0 km para utilização profissional como táxi. Defeito do produto. Demanda preexistente intentada pelos consumidores no Juizado Especial Cível. Rotineiros e infrutíferos ajustes no automóvel em oficina autorizada. Inercia da montadora e da autorizada para debelar o defeito. Contrato de financiamento com alienação fiduciária firmado com o banco da montadora. Ciência em ação judicial do defeito de montagem. Imediato ajuizamento de ação cautelar de busca e apreensão. Retomada do veículo. Situação vexatória e humilhante imposta aos consumidores perante vizinhos. Devolução do veículo por ordem judicial com reconhecimento de má-fé da financeira. Montadora. Descaso comprovado. Reposição da peça defeituosa, após diagnóstico de engenheiro, empregado da montadora vindo do Estado de São Paulo. Lucros cessantes. Paralisações alternadas e demoradas do veículo para reparos. Impossibilidade dos consumidores de exercerem a função de taxistas. Acúmulo de dívidas. Negativação no SPC. Danos morais evidentes. Tendo o Banco Ford S/A, financiado aos autores veículo, através de contrato com alienação fiduciária, sendo, ainda, réu perante o Juizado Especial, em ação movida por aqueles, teve a ousadia de intentar Ação Cautelar de Busca e Apreensão do mesmo veículo, cuja liminar foi deferida e posteriormente revogada com a aplicação das cominações pela litigância de má-fé, deverá ser o Banco, incluído na condenação, tendo em vista sua participação como coadjuvante, nos prejuízos experimentados pelos autores. 464 Jurisprudência da QUARTA TURMA A oficina autorizada pelo fabricante do veículo, esteve de posse do mesmo para conserto, por 14 (quatorze) meses, promovendo os reparos que julgava adequados, sem realmente detectar o defeito apresentado no veículo, que só teve a solução vindicada, após a vinda de um engenheiro enviado pelo fabricante, de São Paulo. Desta forma, deverá a oficina autorizada, responder solidariamente pelos danos sofridos pelos autores. Por outro lado, o fabricante do veículo, desdenhou, até judicialmente, do que lhe competia, deixando o caso chegar aos seus limites, ou seja, após mais de um ano com idas e vindas à oficina autorizada, procedeu a correção do seu próprio erro, muito embora ciente do problema desde o inicio. Por isso, também, arcará com os danos experimentados pelos autores. Assim, depreende-se que os proprietários de automóveis de passeio, ou dos destinados ao uso profissional, possuem seus direitos resguardados pela Lei Consumerista, enquadrando-se perfeitamente aos conceitos descritos nos artigos 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor. Considerando que “in casu”, o veículo foi adquirido para ser utilizado como táxi e, demonstrada a culpa por parte dos réus, pela longa espera da solução do defeito apresentado no automóvel, as verbas referentes aos lucros cessantes e danos morais são devidos a primeira, pela inutilização do bem por mais de 30 (trinta) dias e a segunda, decorrente das dívidas contraídas pelos adquirentes do bem, que, ainda, originaram a inclusão de seus nomes nos cadastros restritivos de crédito; pela vergonha e humilhação suportadas ante a apreensão do veículo diante de seus vizinhos, e pelo trauma psíquico comprovadamente adquirido pela menor, filha dos autores, advindo da retomada do veículo. Desta forma, deve o dano moral, ser indenizado pelos réus, que responderão solidariamente, em valor equivalente a 200 (duzentos) salários mínimos para cada autor. Recursos conhecidos, provido o dos primeiros apelantes e improvidos os dos segundo e terceiro. (fls. 502-505). Na origem, Maria Alice Bueno Neves e Adilson Neves ajuizaram ação de indenização contra Ford Motor Company Brasil Ltda., Companhia Santo Amaro de Automóvel, Realce Distribuidora de Veículos e Banco Ford S.A., objetivando a condenação das demandadas ao pagamento de indenização por danos morais e materiais, decorrentes da impossibilidade de utilização econômica do automóvel Ford Modelo Verona, GL 1.8, adquirido pelos autores para utilização profissional como táxi, em razão de inúmeros problemas mecânicos apresentados pelo referido bem, fato que ensejou a inadimplência do financiamento relativo à aquisição do mencionado veículo, ocasionando, ainda, a busca e apreensão deste, além de inscrição dos autores nos órgãos de proteção ao crédito. RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 465 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA O Juízo de Direito da 14ª Vara Cível da Comarca do Rio de Janeiro-RJ, em sentença proferida em 6.12.2000 (fls. 360-365), extinguiu o processo em relação ao Banco Ford S.A. (art. 267, VI, CPC) e julgou procedente o pedido para condenar, solidariamente, as três demandadas ao pagamento de 200 (duzentos) salários mínimos para cada um dos autores a título de danos morais, além de lucros cessantes a serem apurados em liquidação de sentença, bem como ao pagamento de honorários no percentual de 10% (dez por cento) sobre o valor da condenação (fl. 365). O TJRJ deu provimento a um dos recursos para incluir o Banco Ford S.A. na condenação fixada pelo Juízo Singular, isentando os autores dos ônus sucumbenciais (fls. 502-519). Os embargos de declaração, opostos por Banco Ford S.A., foram rejeitados (fls. 529-531). A recorrente, Ford Motor Company Brasil Ltda., nas razões de recurso especial, aduz violação dos seguintes dispositivos legais: (a) art. 2º do CDC, em razão da inaplicabilidade do CDC no caso concreto, porque o veículo foi adquirido para fins comerciais, qual seja, utilização profissional como táxi, (b) art. 159 do CC/2002, em virtude da ausência de prática de ilícito pela recorrente apta a ensejar a condenação ao pagamento de danos morais e lucros cessantes, sendo certo, ademais, que, na hipótese de eventual dano moral, a falta de participação da recorrente no evento conduz à ilegalidade da condenação solidária pelo ressarcimento, (c) art. 18 do CDC, em decorrência da equivocada aplicação do art. 12 do CDC no caso concreto, posto não se tratar de fato do produto, mas de vício do produto (art. 18 do CDC), que o tornou temporariamente inadequado à utilização, e (d) art. 7º, IV, da CF, diante da impossibilidade de fixação de indenização com base em salário mínimo. Assevera, ainda, divergência jurisprudencial quanto ao valor fixado a título de danos morais, qual seja, 200 (duzentos) salários mínimos para cada um dos dois autores (fls. 547-554). Os recorridos, em contrarrazões, pugnam pelo desprovimento do recurso especial (fls. 687-686). O recurso especial não foi admitido no Tribunal de origem (fls. 699-702), subindo a esta Corte em razão de provimento ao Agravo de Instrumento n. 481.012-RJ (fl. 785). É o relatório. 466 Jurisprudência da QUARTA TURMA VOTO O Sr. Ministro Antonio Carlos Ferreira (Relator): Trata-se de recurso especial interposto contra acórdão do TJRJ que, em sede de ação de indenização por danos morais e materiais, decorrentes da impossibilidade de utilização econômica do automóvel adquirido pelos autores para utilização profissional como táxi, manteve a decisão do Juiz singular e condenou solidariamente a instituição financeira, a montadora e a distribuidora de automóveis ao pagamento de 200 (duzentos) salários mínimos para cada um dos dois autores a título de danos morais, além de lucros cessantes a serem apurados em liquidação de sentença. Feitas essas breves considerações, passo ao exame do recurso especial em cada um de seus tópicos. Art. 2º do CDC. Conheço do recurso pela alínea a do permissivo constitucional, quanto à violação do art. 2º do CDC, em razão do prequestionamento do referido dispositivo legal. O art. 2º da Lei n. 8.078/1990, ao conceituar a pessoa do consumidor, dispõe: Art. 2º Consumidor é toda pessoa física ou jurídica que adquire ou utiliza produto ou serviço como destinatário final. Parágrafo único. Equipara-se a consumidor a coletividade de pessoas, ainda que indetermináveis, que haja intervindo nas relações de consumo. A jurisprudência desta Corte, em hipóteses análogas, vem decidindo que a aquisição de veículo para utilização como táxi, por si só, não afasta a possibilidade de aplicação das normas protetivas do CDC. Nesse sentido, confira-se o seguinte precedente: Civil. Processual Civil. Recurso especial. Direito do Consumidor. Veículo com defeito. Responsabilidade do fornecedor. Indenização. Danos morais. Valor indenizatório. Redução do quantum. Precedentes desta Corte. 1. Aplicável à hipótese a legislação consumerista. O fato de o recorrido adquirir o veículo para uso comercial - táxi - não afasta a sua condição de hipossuficiente na relação com a empresa-recorrente, ensejando a aplicação das normas protetivas do CDC. RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 467 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 2. Verifica-se, in casu, que se trata de defeito relativo à falha na segurança, de caso em que o produto traz um vício intrínseco que potencializa um acidente de consumo, sujeitando-se o consumidor a um perigo iminente (defeito na mangueira de alimentação de combustível do veículo, propiciando vazamento causador do incêndio). Aplicação da regra do artigo 27 do CDC. 3. O Tribunal a quo, com base no conjunto fático-probatório trazido aos autos, entendeu que o defeito fora publicamente reconhecido pela recorrente, ao proceder ao “recall” com vistas à substituição da mangueira de alimentação do combustível. A pretendida reversão do decisum recorrido demanda reexame de provas analisadas nas instâncias ordinárias. Óbice da Súmula n. 7-STJ. 4. Esta Corte tem entendimento firmado no sentido de que “quanto ao dano moral, não há que se falar em prova, deve-se, sim, comprovar o fato que gerou a dor, o sofrimento, sentimentos íntimos que o ensejam. Provado o fato, impõe-se a condenação” (Cf. AGA n. 356.447-RJ, DJ 11.6.2001). (...) 6. Recurso conhecido parcialmente e, nesta parte, provido. (REsp n. 575.469-RJ, Relator Ministro Jorge Scartezzini, Quarta Turma, julgado em 18.11.2004, DJ 6.12.2004, p. 325 - grifei). No mesmo viés, a seguinte decisão monocrática: REsp n. 1.159.052-MG, Relator Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, DJ 27.3.2012. Art. 159 do CC/1916. No que se refere à apontada afronta ao art. 159 do CC/1916, o recurso não reúne condições de admissibilidade, diante da incidência da Súmula n. 7-STJ. O Tribunal local, com respaldo em ampla cognição fático-probatória, cuja análise é interditada em sede de recurso especial, assentou, de modo incontroverso, a responsabilidade da empresa recorrente, Ford Motor Company Brasil Ltda., pelos danos suportados pelos autores: O 3º apelante, na condição de fabricante do veículo, desdenhou até judicialmente, do que lhe competia, deixando o caso chegar aos seus limites, para somente em abril de 1997, ou seja, após mais de um ano de idas e vindas à oficina autorizada, proceder à correção do seu próprio erro, muito embora ciente do problema desde o início, e solicitando o comparecimento de um engenheiro da montadora, em novembro de 1996. (fl. 9). Nesse contexto, o exame da pretensão recursal demandaria a incursão em aspectos fático-probatórios, especialmente no que se refere ao nexo de 468 Jurisprudência da QUARTA TURMA causalidade entre a ação da demandada e o evento danoso, portanto, inviável em recurso especial, tendo em vista o óbice da Súmula n. 7-STJ. Arts. 12 e 18 do CDC. Conheço do recurso quanto à suposta violação dos arts. 12 e 18 do CDC, porquanto efetivamente prequestionados. O art. 12 do CDC, ao tratar da responsabilidade pelo fato do produto e do serviço, dispõe: Art. 12. O fabricante, o produtor, o construtor, nacional ou estrangeiro, e o importador respondem, independentemente da existência de culpa, pela reparação dos danos causados aos consumidores por defeitos decorrentes de projeto, fabricação, construção, montagem, fórmulas, manipulação, apresentação ou acondicionamento de seus produtos, bem como por informações insuficientes ou inadequadas sobre sua utilização e riscos. O fato do produto ou do serviço, também denominado defeito de segurança, disciplinado no art. 12 do CDC, diversamente do vício do produto, ostenta natureza grave em razão da potencialidade de risco à incolumidade do consumidor e de terceiros. O fato do produto constitui um acontecimento externo que causa dano material ou moral ao consumidor ou a ambos, mas que decorre de um defeito do produto. A configuração de fato do produto influi sobremodo na legitimidade dos responsáveis, porquanto impõe ao fabricante, ao produtor, ao construtor, nacional ou estrangeiro, e ao importador, independentemente da existência de culpa, o dever de reparação dos danos causados aos consumidores, excluindo apenas o comerciante, mercê da ausência de ingerência sobre o controle das técnicas de fabricação e produção. Ainda sob o aspecto da responsabilização, é importante destacar, o comerciante, conquanto tenha sua responsabilidade excluída em via principal, poderá ser responsável subsidiário, com fundamento no art. 13 do CDC. O art. 18 do CDC, ao dispor sobre o vício do produto e do serviço e responsabilidade dos fornecedores, preconiza: Art. 18. Os fornecedores de produtos de consumo duráveis ou não duráveis respondem solidariamente pelos vícios de qualidade ou quantidade que os tornem RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 469 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA impróprios ou inadequados ao consumo a que se destinam ou lhes diminuam o valor, assim como por aqueles decorrentes da disparidade, com as indicações constantes do recipiente, da embalagem, rotulagem ou mensagem publicitária, respeitadas as variações decorrentes de sua natureza, podendo o consumidor exigir a substituição das partes viciadas. § 1º Não sendo o vício sanado no prazo máximo de trinta dias, pode o consumidor exigir, alternativamente e à sua escolha: I - a substituição do produto por outro da mesma espécie, em perfeitas condições de uso; II - a restituição imediata da quantia paga, monetariamente atualizada, sem prejuízo de eventuais perdas e danos; III - o abatimento proporcional do preço. § 2º Poderão as partes convencionar a redução ou ampliação do prazo previsto no parágrafo anterior, não podendo ser inferior a sete nem superior a cento e oitenta dias. Nos contratos de adesão, a cláusula de prazo deverá ser convencionada em separado, por meio de manifestação expressa do consumidor. § 3º O consumidor poderá fazer uso imediato das alternativas do § 1º deste artigo sempre que, em razão da extensão do vício, a substituição das partes viciadas puder comprometer a qualidade ou características do produto, diminuirlhe o valor ou se tratar de produto essencial. § 4º Tendo o consumidor optado pela alternativa do inciso I do § 1º deste artigo, e não sendo possível a substituição do bem, poderá haver substituição por outro de espécie, marca ou modelo diversos, mediante complementação ou restituição de eventual diferença de preço, sem prejuízo do disposto nos incisos II e III do § 1º deste artigo. § 5º No caso de fornecimento de produtos in natura, será responsável perante o consumidor o fornecedor imediato, exceto quando identificado claramente seu produtor. (grifei). O vício do produto ou serviço, também denominado vício de adequação, porquanto inerente ou intrínseco, influi no funcionamento, utilização ou fruição do produto ou serviço, comprometendo sua prestabilidade. Ao contrário do que ocorre na responsabilidade pelo fato do produto, no vício do produto a responsabilidade é solidária entre todos os fornecedores, inclusive o comerciante, a teor do que dispõe o art. 18, caput, do CDC. Sob esse enfoque, esta Corte já decidiu que “a melhor exegese dos arts. 14 e 18 do CDC indica que todos aqueles que participam da introdução do produto ou serviço no mercado devem responder solidariamente por eventual defeito ou 470 Jurisprudência da QUARTA TURMA vício, isto é, imputa-se a toda a cadeia de fornecimento a responsabilidade pela garantia de qualidade e adequação (REsp n. 1.077.911-SP, Relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 4.10.2011, DJe 14.10.2011). No âmbito do vício do produto, é importante distinguir o dano circa rem (inerente ao vício do produto ou serviço e diretamente ligado a ele) do dano extra rem (dano indiretamente ligado ao vício do produto ou do serviço porque, na realidade, decorre de causa superveniente, relativamente independente, e que por si só produz o resultado). Essa distinção assume relevo, mormente no que se refere à possibilidade de ressarcimento de danos morais e materiais, além da reparação do vício. SÉRGIO CAVALIERI FILHO, ao tratar do dano circa rem e extra rem, adverte: Tomemos como exemplo o caso do veículo zero-quilômetro, que apresenta defeitos. A concessionária, instada várias vezes para corrigir os defeitos, leva meses para atender as solicitações do consumidor, causando-lhe inúmeros aborrecimentos. Pode esse consumidor pleitear também danos morais? (...) Para o correto enfrentamento da questão há que se proceder à distinção entre o dano circa rem e dano extra rem. A expressão latina circa rem significa próximo, ao redor, ligado diretamente à coisa, de modo que não se pode dela desgarrar-se. Assim, dano circa rem é aquele que é inerente ao vício do produto ou serviço, que está diretamente ligado a ele, não podendo dele desgarrar-se. A expressão latina extra rem indica vínculo indireto, distante, remoto, tem sentido de fora de, além de, à exceção de. Consequentemente, o dano extra rem é aquele que apenas indiretamente está ligado ao vício do produto ou do serviço porque, na realidade, decorre de causa superveniente, relativamente independente, e que por si só produz o resultado. A rigor, não é o vício do produto ou do serviço que causa o dano extra rem - dano material e moral -, mas sim a conduta do fornecedor, posterior ao vício, por não dar ao caso a atenção e solução devidas. O dano moral, o desgosto íntimo, está dissociado do defeito, a ele jungido apenas pela origem. Na realidade, repita-se, decorre de causa superveniente (o não atendimento pronto e eficiente ao consumidor, a demora injustificável na reparação do vício), Tem caráter autônomo. (Sérgio Cavalieri Filho. Programa de Responsabilidade Civil. Atlas: São Paulo, 2010. p. 512). Desse modo, a constatação de defeito em veículo zero-quilômetro revela hipótese de vício do produto e impõe a responsabilização solidária da concessionária (fornecedor) e do fabricante, conforme preceitua o art. 18, caput, do CDC. RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 471 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Nesse aspecto, a jurisprudência desta Corte: Recurso especial. Código de Defesa do Consumidor. Veículo novo. Aquisição. Defeitos não solucionados durante o período de garantia. Prestação jurisdicional deficiente. Responsabilidade solidária do fabricante e do fornecedor. Incidência do art. 18 do CDC. Decadência. Afastamento. Fluência do prazo a partir do término da garantia contratual. 1. Diversos precedentes desta Corte, diante de questões relativas a defeitos apresentados em veículos automotores novos, firmaram a incidência do art. 18 do Código de Defesa do Consumidor para reconhecer a responsabilidade solidária entre o fabricante e o fornecedor. 2. O prazo de decadência para a reclamação de vícios do produto (art. 26 do CDC) não corre durante o período de garantia contratual, em cujo curso o veículo foi, desde o primeiro mês da compra, reiteradamente apresentado à concessionária com defeitos. Precedentes. 3. Recurso especial provido para anular o acórdão recorrido. (REsp n. 547.794-PR, Relatora Ministra Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 15.2.2011, DJe 22.2.2011 - grifei). Processual Civil. Direito do Consumidor. Aquisição de veículo que apresentou defeito no ar condicionado. Concessionária. Ilegitimidade afastada. Art. 18 do CDC. Responsabilidade solidária do fabricante e do fornecedor. I. “Comprado veículo novo com defeito, aplica-se o art. 18 do Código de Defesa do Consumidor e não os artigos 12 e 13 do mesmo Código, na linha de precedentes da Corte. Em tal cenário, não há falar em ilegitimidade passiva do fornecedor” (REsp n. 554.876-RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Carlos Alberto Menezes, DJU de 17.2.2004). II. Recurso especial parcialmente provido para afastar a ilegitimidade passiva da empresa ré. (REsp n. 821.624-RJ, Relator Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, julgado em 19.10.2010, DJe 4.11.2010 - grifei). Art. 7º, IV, da CF. O recurso não reúne condições de admissibilidade quanto à suposta violação do art. 7º, IV, da CF, em razão da impossibilidade de exame de questões de natureza constitucional em sede de recurso especial, cuja análise se insere na competência do e. Supremo Tribunal Federal. Assim, o recurso especial não constitui via adequada para o exame de questões de natureza constitucional, cuja análise se insere na competência do e. Supremo Tribunal Federal. 472 Jurisprudência da QUARTA TURMA Valor da indenização por danos morais. No caso concreto, o Juízo singular julgou procedente o pedido para condenar, solidariamente, as três demandadas, Ford Motor Company Brasil Ltda., Companhia Santo Amaro de Automóvel e Realce Distribuidora de Veículos, ao pagamento de 200 (duzentos) salários mínimos para cada um dos autores a título de danos morais, além de lucros cessantes a serem apurados em liquidação de sentença, bem como ao pagamento de honorários no percentual de 10% (dez por cento) sobre o valor da condenação (fl. 365). O TJRJ manteve a condenação solidária dos réus, incluindo a instituição financeira da montadora. Nos termos da firme jurisprudência do STJ, somente se justifica a alteração do valor fixado a título de danos morais quando este se revelar irrisório ou exorbitante. Nesse sentido: Agravo regimental no agravo em recurso especial. Cheque. Negócio realizado por meio de fraude. Requisitos configuradores. Pretensão de afastamento. Impossibilidade. Necessidade de reexame de provas. Súmula n. 7-STJ. Quantum indenizatório. Valor razoável. Agravo improvido. 1. Em relação à responsabilização do agravante pelos danos sofridos pelo agravado, o Tribunal de origem, apreciando o conjunto probatório dos autos, concluiu pela presença dos requisitos ensejadores da responsabilidade civil. A alteração de tal entendimento, como pretendida, demandaria a análise do acervo fático-probatório dos autos, o que é vedado pela Súmula n. 7 do STJ, que dispõe: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial.” 2. O entendimento pacificado no Superior Tribunal de Justiça é de que o valor estabelecido pelas instâncias ordinárias a título de indenização por danos morais pode ser revisto tão somente nas hipóteses em que a condenação se revelar irrisória ou exorbitante, distanciando-se dos padrões de razoabilidade, o que não se evidencia no presente caso. Desse modo, não se mostra desproporcional a fixação em R$ 8.000,00 (oito mil reais) a título de reparação moral, decorrente das circunstâncias específicas do caso concreto, motivo pelo qual não se justifica a excepcional intervenção desta Corte no presente feito, como bem consignado na decisão agravada. 3. Agravo interno a que se nega provimento. (AgRg no AREsp n. 202.921-SP, Relator Ministro Raul Araújo, Quarta Turma, julgado em 28.8.2012, DJe 17.9.2012). Responsabilidade civil e Processual Civil. Embargos de declaração recebidos como agravo regimental. Omissão. Inexistência. Reexame de provas, em sede de RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 473 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA recurso especial. Inviabilidade. Quantum indenizatório arbitrado com razoabilidade. Revisão. Descabimento. 1. Orienta a Súmula n. 7 desta Corte ser vedado, em recurso especial, o reexame de provas. No caso, a fixação do valor indenizatório operou-se com moderação, na medida em que não concorreu para a geração de enriquecimento indevido do ofendido e, também, manteve a proporcionalidade da gravidade da ofensa ao grau de culpa e ao porte sócio-econômico dos causadores do dano. 2. Nos termos da jurisprudência consolidada neste Superior Tribunal de Justiça, a revisão de indenização por danos morais só é possível, em sede de recurso especial, quando o quantum indenizatório arbitrado pelas instâncias ordinárias for exorbitante ou ínfimo, de modo a afrontar os princípios da razoabilidade e da proporcionalidade. 3. Agravo regimental a que se nega provimento. (EDcl no REsp n. 945.551-SC, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 21.8.2012, DJe 3.9.2012). A meu ver, é a hipótese dos autos. Com efeito, o valor de 200 (duzentos) salários para cada um dos autores, destoa dos precedentes desta Corte em relação a valores correspondentes a indenizações por danos morais. Todavia, o caso em apreço apresenta uma série de particularidades, bem expostas na ementa da decisão recorrida: Considerando que “in casu”, o veículo foi adquirido para ser utilizado como táxi e, demonstrada a culpa por parte dos réus, pela longa espera da solução do defeito apresentado no automóvel, as verbas referentes aos lucros cessantes e danos morais são devidos a primeira, pela inutilização do bem por mais de 30 (trinta) dias e a segunda, decorrente das dívidas contraídas pelos adquirentes do bem, que, ainda, originaram a inclusão de seus nomes nos cadastros restritivos de crédito; pela vergonha e humilhação suportadas ante a apreensão do veículo diante de seus vizinhos, e pelo trauma psíquico comprovadamente adquirido pela menor, filha dos autores, advindo da retomada do veículo. Em tais circunstâncias, consideradas as peculiaridades do caso em questão e os princípios da razoabilidade e da moderação, entendo cabível a redução do valor indenizatório para a quantia correspondente a 100 (cem) salários mínimos para cada um dos autores, valor capaz, a meu ver, de adequadamente recompor o dano sofrido. Em face do exposto, dou parcial provimento ao recurso especial para reduzir a indenização para R$ 62.200,00 (sessenta e dois mil e duzentos reais) para cada autor - com juros desde o evento danoso (a primeira apresentação do carro na concessionária), na ordem 0,5% (cinco décimos percentuais) até a 474 Jurisprudência da QUARTA TURMA entrada em vigor do CC/2002, momento a partir do qual incidirá a Taxa Selic. Sucumbência mantida como no acórdão. É como voto. RECURSO ESPECIAL N. 819.008-PR (2006/0029864-0) Relator: Ministro Raul Araújo Recorrente: Waldir Augusto de Carvalho Braga Advogado: Hildegard Taggesell Giostri Recorrido: Ilda Rodrigues de Andrade Advogado: Ricardo de Lucca Macking EMENTA Civil. Responsabilidade civil. Erro médico. Cirurgia plástica estética e reparadora. Natureza obrigacional mista. Responsabilidade subjetiva dos profissionais liberais (CDC, art. 14, § 4º). Improcedência do pedido reparatório. Recurso especial provido. 1. Pela valoração do contexto fático extraído do v. aresto recorrido, constata-se que na cirurgia plástica a que se submeteu a autora havia finalidade não apenas estética, mas também reparadora, de natureza terapêutica, sobressaindo, assim, a natureza mista da intervenção. 2. A relação entre médico e paciente é contratual e encerra, de modo geral, obrigação de meio, salvo em casos de cirurgias plásticas de natureza exclusivamente estética. 3. “Nas cirurgias de natureza mista - estética e reparadora -, a responsabilidade do médico não pode ser generalizada, devendo ser analisada de forma fracionada, sendo de resultado em relação à sua parcela estética e de meio em relação à sua parcela reparadora” (REsp n. 1.097.955-MG, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 27.9.2011, DJe de 3.10.2011). 4. Recurso especial provido. RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 475 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ACÓRDÃO Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Ministro Marco Buzzi dando provimento ao recurso, acompanhando o Relator, e os votos da Ministra Maria Isabel Gallotti e dos Ministros Antonio Carlos Ferreira e Luis Felipe Salomão, no mesmo sentido, decide a Quarta Turma, por unanimidade, conhecer e dar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Relator. Os Srs. Ministros Maria Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira, Marco Buzzi (voto-vista) e Luis Felipe Salomão votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 4 de outubro de 2012 (data do julgamento). Ministro Raul Araújo, Relator DJe 29.10.2012 RELATÓRIO O Sr. Ministro Raul Araújo: Ilda Rodrigues Andrade ajuizou ação de indenização por danos estético, material e moral contra CPO Day Hospital (Centro Paranaense de Oftalmologia Ltda.) e Waldir Augusto de Carvalho Braga, decorrentes de suposto erro médico por ocasião de ato cirúrgico a que foi submetida, em 12.12.1998. Narra a inicial que a promovente era portadora de mama volumosa, o que lhe causava desconforto tanto físico como psicológico. Dirigindose ao consultório do segundo requerido, foi marcada a cirurgia, efetuado o procedimento e, já no dia seguinte, a promovente sentiu dores no braço e na mama direita. Encerrado o período de recuperação, as dores foram se agravando, impossibilitando a autora de exercer sua atividade profissional (empregada doméstica). Foi realizado, então, pelo mesmo médico, sete meses após, outro procedimento cirúrgico, porém, sem sucesso em relação à solução do problema da dor e inchaço na mama direita, que apareciam ao realizar a paciente atividade laboral. Alega a autora que, além das dores, passou a ter que conviver com cicatrizes grandes e excesso de pele na mama direita, o que trouxe abalo emocional e problemas no relacionamento afetivo. Contestada a ação, o médico promovido deu nova versão aos fatos, afirmando que as queixas da autora começaram somente um mês após a cirurgia, 476 Jurisprudência da QUARTA TURMA ressaltando ter encaminhado a paciente, gratuitamente, a um ortopedista, a um mastologista e a um neurologista, após o que se decidiu pela realização do segundo procedimento cirúrgico (em 17.7.1999) para averiguação da razão da dor, bem como de um retoque de sobra tecidual na cicatriz. Informa a contestação que o médico mastologista constatou a existência de “patologia mamária benigna”, não relacionada com o processo cirúrgico sofrido pela autora, e informa, ainda, que sete meses depois do último procedimento cirúrgico, com retirada de glândula mamária displásica, houve mais uma consulta, intermediada, inclusive, por advogados, e que, após esta data, a paciente não mais retornou ao consultório do réu. Ressalta que em abril de 2000 a autora foi encaminhada pelo réu, gratuitamente, a novo exame médico realizado pelo Dr. Arnaldo Miró, conceituado cirurgião plástico, que se dispôs a operá-la para retirada do nódulo doloroso, mas a autora se recusou a assinar o termo de consentimento, motivo pelo qual não ocorreu a intervenção cirúrgica. Foi deferida a realização de prova pericial, bem como a oitiva de testemunhas. Às fls. 284-285, o Centro Paranaense de Oftalmologia Ltda. noticia decisão, com trânsito em julgado, proferida pelo eg. Tribunal de Alçada do Paraná, que reconheceu sua ilegitimidade passiva e o excluiu da lide. A r. sentença julgou improcedente o pedido, fundamentalmente sob o entendimento de que “não restou comprovado nos presentes autos o nexo causal existente entre a atuação médica e o dano que ensejou o pedido indenizatório e, consequentemente, não ficou comprovado que o médico-réu Waldir foi o culpado pelos danos que a autora alegou na inicial” (fl. 392). Interposta apelação pela autora, a eg. Sexta Câmara Cível do Tribunal de Alçada do Paraná, por maioria, deu provimento ao recurso, em aresto assim ementado: Responsabilidade civil. Cirurgia plástica. Estética. Obrigação de resultado. Cirurgia de redução das mamas. Resultado insatisfatório. Danos estéticos e psicológicos presentes face ao resultado estético negativo. Precedentes doutrinário e jurisprudencial. Indenização devida. Sentença reformada. Apelação provida. A cirurgia sub examine, por se tratar de uma intervenção estética, por meio da qual a paciente buscava obter um resultado que lhe fosse satisfatório, remediando uma situação que lhe era desagradável, torna o médico responsável pelo resultado frustrado da intervenção cirúrgica realizada, uma vez que a paciente RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 477 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA espera que o cirurgião obtenha um resultado em si (obrigação de resultado), e não que ele se empenhe para atingir tal resultado (obrigação de meio). (fl. 502). Visando à prevalência do d. voto vencido, o réu opôs embargos infringentes que, entretanto, foram rejeitados, também por maioria de votos, guardando o acórdão a seguinte ementa: Embargos infringentes. Responsabilidade civil. Erro médico. Cirurgia plástica. Obrigação de resultado. Presunção de culpa não afastada. Inocorrência do abandono do tratamento configurado. Embargos infringentes rejeitados. (fl. 559). Os votos vencidos, que davam provimento aos embargos infringentes, foram assim resumidos: Responsabilidade civil. Erro médico. Cirurgia plástica. Obrigação de meio. Ausência de prova de imperícia do cirurgião. Reação anômala do organismo. Fato que não pode ser imputado ao profissional. Paciente que deixa de fazer retoque às expensas do médico requerido. Abandono do tratamento configurado. Perícia que conclui por resultado estético bom. Embargos infringentes acolhidos. (fl. 565). Opostos embargos de declaração pelo médico réu, foram rejeitados (fls. 598-599). Inconformado, Waldir Augusto de Carvalho Braga interpôs recurso especial, com fundamento na alínea a do permissivo constitucional, defendendo, em suma, que a cirurgia a que se submeteu a autora era de cunho reparador, pois visava à correção de um defeito congênito, não podendo, por isso, ser considerada como obrigação de resultado. Por isso, entende que houve violação ao art. 14, § 4º, do CDC, em relação à presunção de culpa do médico. Requer, portanto, seja julgado improcedente o pedido indenizatório ou, alternativamente, haja a redução do valor dos danos morais para dez salários mínimos. Com contrarrazões (fls. 617-623), o recurso foi admitido (fls. 625-627) e encaminhado a esta Corte, tendo sido atribuído a esta relatoria. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Raul Araújo (Relator): Pela leitura da íntegra dos acórdãos proferidos pela eg. Corte de origem, tanto no julgamento da apelação 478 Jurisprudência da QUARTA TURMA quanto no dos embargos infringentes, constata-se que a divergência ocorreu, fundamentalmente, em relação à finalidade da cirurgia plástica a que foi submetida a autora, se reparadora ou puramente estética e, consequentemente, sua natureza obrigacional. Como é cediço, o julgamento do recurso nesta instância especial deve ater-se ao panorama fático delineado pelas instâncias ordinárias, sendo defeso reexaminá-lo, a teor do que dispõe o enunciado da Súmula n. 7-STJ. Porém, no caso, torna-se necessária uma valoração do conjunto fáticoprobatório dos autos que se extrai do v. acórdão recorrido, notadamente em relação à caracterização da natureza da cirurgia plástica em comento, na medida em que é indispensável ao correto desate da controvérsia. Nesse sentido, a em. Ministra Maria Isabel Gallotti, quando do julgamento do AgRg no REsp n. 1.110.839-PE, DJe de 10.4.2012, afirmou com maestria que “o equívoco na valoração da prova passível de correção por esta Corte Superior é o de direito, quando se trata, portanto, de norma ou princípio atinente ao campo probatório”, como ocorre na hipótese destes autos, em que o recorrente aponta violação ao art. 14, § 4º, do CDC, em relação à presunção de culpa do médico. Da leitura atenta dos autos, extrai-se que a intervenção cirúrgica realizada na autora, além de ter-se destinado a resolver um problema físico (mamas gigantes), com finalidade terapêutica, agregava também objetivos estéticos, revelando a natureza mista do procedimento. Com efeito, a inicial afirma que “a requerente era portadora de mama volumosa, fato este que lhe causava desconforto, tanto físico como psicológico” e que seu objetivo era “corrigir tal desconforto” (fl. 6). Já no laudo pericial, à fl. 242, no quesito de número 18, observa-se o seguinte: 18. Sendo a paciente portadora de mamas de tamanho avantajado (razão da sua cirurgia) e sabendo-se ser este um fator causativo de problemas na coluna vertebral, devido ao peso excessivo daquelas, pergunta-se: o fato de ocorrer uma diminuição expressiva daquele peso poderia levar a uma mudança de postura da própria coluna? resposta: Sim, a retirada do peso excessivo através da mamoplastia redutora, poderia levar a uma nova postura da coluna vertebral, ao nível torácico e cervical. No voto vencido da apelação, lê-se o seguinte: RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 479 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA A cirurgia a que se submeteu a apelante não pode ser caracterizada como meramente estética, pois objetivava correção de hipertrofia mamária, também denominada gigantismo mamário, causador de problema postural da apelante, corrigido com a redução das mamas. (fl. 514). No julgamento dos embargos infringentes, no próprio voto vencedor é afirmada a natureza mista, estética e reparadora da cirurgia. Confiram-se as seguintes passagens: Ao adotar os fundamentos do voto majoritário do acórdão original, esta relatoria reconheceu que trata-se de cirurgia plástica estética reparadora (...) (...) O caso sob exame é cirurgia de mamas volumosas, que além de causar desconforto físico causava desconforto psicológico. (...) A paciente pretendia também resolver o seu problema psíquico de estar bem consigo mesma e desfrutar sua vida normal (...) (...) Com natureza mista, estética reparadora, indiscutivelmente é obrigação de resultado. (fls. 562-564). E, nos d. votos vencidos: Voltando os olhos ao caso descrito nestes autos, é de se reconhecer razão ao julgador vencido, na medida em que não está sobejamente comprovado que a cirurgia contratada pela embargada fosse meramente estética, como afirmado no voto vencedor, havendo grande possibilidade de que a mamoplastia redutora tivesse finalidade de corrigir a postura ou evitar danos à coluna da paciente, como é de regra. Porém, ausentes elementos probatórios capazes de assegurar o motivo real da opção pela intervenção cirúrgica, inadmissível que levianamente se conclua tratar-se de procedimento meramente embelezador, consequentemente, obrigação de resultado, acarretando a responsabilidade objetiva do profissional e a inversão do ônus da prova. (fls. 570). (...) No caso em exame, isso não ocorre. Além da desarmonia causada pelos seios volumosos, também sua saúde física e psicológica era afetada pelo grande volume de seus seios. (fl. 575). Portanto, valorando-se o contexto fático que emana dos autos, não há dúvidas de que houve correção não apenas da beleza plástica, mas também 480 Jurisprudência da QUARTA TURMA reparação de natureza terapêutica, sobressaindo a natureza mista da cirurgia a que se submeteu a autora. Passa-se, então, a se perquirir a responsabilidade do médico neste contexto, tendo como balizamento o disposto no mencionado art. 14, § 4º, do CDC, dispositivo tido por violado nas razões do recurso especial. Esta Corte já se pronunciou no sentido de que “a relação entre médico e paciente é contratual e encerra, de modo geral (salvo cirurgias plásticas embelezadoras), obrigação de meio, sendo imprescindível para a responsabilização do referido profissional a demonstração de culpa e de nexo de causalidade entre a sua conduta e o dano causado, tratando-se de responsabilidade subjetiva” (cf. REsp n. 1.104.665-RS, Relator em. Min. Massami Uyeda, DJe de 9.6.2009). Por outro lado, a obrigação do médico na cirurgia plástica estética é de resultado, pois o contratado deve alcançar um resultado específico, que é a própria obrigação. Por tal razão, inverte-se o ônus da prova, ficando a cargo do médico a prova liberatória de que não laborou com imprudência, negligência ou imperícia, para não ser responsabilizado pelo dano ou prejuízo que causar. Quanto à hipótese dos autos, de natureza mista da cirurgia, esta Corte teve oportunidade de recentemente apreciar situação análoga, quando do julgamento do REsp n. 1.097.955-MG, da relatoria da em. Ministra Nancy Andrighi, DJe de 3.10.2011, acórdão que está assim ementado: Processo Civil e Civil. Responsabilidade civil. Médico. Cirurgia de natureza mista - estética e reparadora. Limites. Petição inicial. Pedido. Interpretação. Limites. 1. A relação médico-paciente encerra obrigação de meio, e não de resultado, salvo na hipótese de cirurgias estéticas. Precedentes. 2. Nas cirurgias de natureza mista - estética e reparadora -, a responsabilidade do médico não pode ser generalizada, devendo ser analisada de forma fracionada, sendo de resultado em relação à sua parcela estética e de meio em relação à sua parcela reparadora. 3. O pedido deve ser extraído da interpretação lógico-sistemática da petição inicial, a partir da análise de todo o seu conteúdo. Precedentes. 4. A decisão que interpreta de forma ampla o pedido formulado pelas partes não viola os arts. 128 e 460 do CPC, pois o pedido é o que se pretende com a instauração da ação. Precedentes. 5. O valor fixado a título de danos morais somente comporta revisão nesta sede nas hipóteses em que se mostrar ínfimo ou exagerado. Precedentes. 6. Recurso especial não provido. (REsp n. 1.097.955-MG, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 27.9.2011, DJe de 3.10.2011). RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 481 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Nessa linha de raciocínio, é necessária, inicialmente, a averiguação acerca da parte estética da cirurgia, ressaltando-se, mais uma vez, que a inconformidade da autora e seu pedido indenizatório circunscrevem-se, basicamente, ao surgimento do nódulo e à cicatriz na mama direita. A responsabilidade do médico é, sem dúvida, contratual, mas baseada, fundamentalmente, na culpa. É necessário ter coerência com o exame das provas dos autos, responsabilizando o profissional porque ele realmente errou grosseiramente ou foi omisso, e não simplesmente com a argumentação simplista de que sua obrigação seria de resultado, presumindo-se a culpa. Para se eximir do dever de indenizar, o cirurgião deve demonstrar qualquer causa excludente de sua responsabilidade, como, por exemplo, o surgimento de fatores corporais imprevisíveis e inesperados, o que levaria ao rompimento do nexo causal. No REsp n. 1.180.815-MG, DJe de 26.8.2010, da relatoria da em. Min. Nancy Andrighi, a eg. Terceira Turma pronunciou-se sobre o tema, nestes termos: Recurso especial. Responsabilidade civil. Erro médico. Art. 14 do CDC. Cirurgia plástica. Obrigação de resultado. Caso fortuito. Excludente de responsabilidade. 1. Os procedimentos cirúrgicos de fins meramente estéticos caracterizam verdadeira obrigação de resultado, pois neles o cirurgião assume verdadeiro compromisso pelo efeito embelezador prometido. 2. Nas obrigações de resultado, a responsabilidade do profissional da medicina permanece subjetiva. Cumpre ao médico, contudo, demonstrar que os eventos danosos decorreram de fatores externos e alheios à sua atuação durante a cirurgia. 3. Apesar de não prevista expressamente no CDC, a eximente de caso fortuito possui força liberatória e exclui a responsabilidade do cirurgião plástico, pois rompe o nexo de causalidade entre o dano apontado pelo paciente e o serviço prestado pelo profissional. 4. Age com cautela e conforme os ditames da boa-fé objetiva o médico que colhe a assinatura do paciente em “termo de consentimento informado”, de maneira a alertá-lo acerca de eventuais problemas que possam surgir durante o pós-operatório. Recurso especial a que se nega provimento. (REsp n. 1.180.815-MG, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 19.8.2010, DJe de 26.8.2010). Na doutrina: Se o insucesso parcial ou total da intervenção ocorrer em razão de peculiar característica inerente ao próprio paciente e se essa circunstância não for 482 Jurisprudência da QUARTA TURMA possível de ser detectada antes da operação, estar-se-á diante de verdadeira escusa absolutória ou causa excludente de responsabilidade. (STOCO, Rui. Responsabilidade Civil e sua interpretação jurisprudencial. 1ª ed. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1994, p. 162). Compulsando os autos, constata-se que foi exatamente isso o que aconteceu. O laudo pericial (fl. 236) é categórico em afirmar que nas duas cirurgias realizadas pelo réu foram observadas todas as técnicas necessárias e adequadas e que a conduta em encaminhar a paciente aos três médicos especialistas foi de muito bom alvitre, demonstrando comprometimento com a elucidação do quadro clínico apresentado (fl. 237). Não se constatou imprudência na conduta do cirurgião, que usou regras e técnicas atualizadas da ciência médica e, em particular, de sua especialidade, adotando todas as cautelas indicadas para o ato cirúrgico. Não houve, outrossim, diagnóstico errado. Afirmou, ainda, que a causa da dor dentro da mama estava relacionada, muito provavelmente, com anterior patologia mamária benigna, não relacionada com o processo cirúrgico prévio, e que este diagnóstico só estaria definitivamente esclarecido através de estudo anátomo-patológico do nódulo mamário, o que não ocorreu, não se podendo, por isso, creditar a dor à imperícia do cirurgião (fls. 237 a 239). Ademais, afirmou o laudo que a exploração cirúrgica da mama, em julho de 1999, foi correta, pois tentava diagnosticar a causa da dor. É de se ressaltar que a autora não reclamou do resultado estético da primeira cirurgia, mas sim da cicatriz após o segundo procedimento. Porém, com a “infiltração de corticóide e anestésico no nervo intercostal” e “retirada de glândula mamária displásica” (fl. 238), era natural que a cicatriz tivesse ficado um pouco maior que a da outra mama, pois houve necessidade de busca sobre a origem da dor, com maior exploração cirúrgica. O médico réu, inclusive, ofereceu à autora uma terceira intervenção para extirpação do nódulo e correção cicatricial (retoque), que seria efetuada por renomado cirurgião, mas que a autora recusou, negando-se a assinar o termo de consentimento (fl. 241) e abandonando o tratamento com mastologista. Portanto, o aparecimento do nódulo não poderia ter sido previsto ou controlado pelo cirurgião, pois resultou de uma resposta do organismo da paciente, que, na cicatrização, produziu uma trama fibrosa mais intensa na mama direita. RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 483 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Finaliza o laudo pericial afirmando que “nestes autos não há evidências de relação direta entre a dor na mama no pós operatório de mamoplastia redutora com erro médico” e que “a real causa do nódulo só pode ser afirmada através de estudo anátomo-patológico, não se podendo afirmar que o cirurgião é responsável pelo nódulo” (fl. 242). Acrescenta, ainda, que “não há fatos ou evidências que estabeleçam uma relação causal entre a dor mamária e imperícia do cirurgião nestes autos” (fl. 243). É evidente, portanto, que o aparecimento do nódulo é causa excludente da responsabilidade do médico, pois é incontroverso ser fator imprevisível e inesperado, o que rompe o nexo causal entre a conduta do profissional e o suposto dano. Ainda, quanto ao resultado estético da cirurgia, o laudo afirmou, à fl. 238, que, “embora o resultado estético da mamoplastia ter sido considerado como bom, a Sra. Ilda Rodrigues de Andrade não está satisfeita. Esta paciente está disposta a submeter-se à nova reparação cirúrgica (retoque), objetivando um resultado final muito bom ou excelente”. À fl. 240, consta do laudo pericial que “na opinião deste perito o resultado estético é bom. Todavia, segundo informações obtidas com a Sra. Ilda Rodrigues de Andrade, o resultado estético buscado por esta paciente não era o bom ou satisfatório, e sim, o muito bom ou excelente”. Percebe-se a tênue fronteira entre o erro médico e a mera insatisfação do lesado. Porém, se o resultado ficou aquém das expectativas da paciente, isso não quer dizer que houve falhas durante a intervenção. Analisa-se, agora, a hipótese sob o ponto de vista reparador. Na doutrina, em Responsabilidade civil do médicos ( Jerônimo Romanello Neto, ed. Jurídica Brasileira, 1998, p. 134), o autor afirma que “na cirurgia plástica reparadora, ou seja, aquela que tem uma finalidade terapêutica, entendemos ser de meio e não de resultado, a obrigação do profissional, respondendo este, todavia, pelos danos morais e patrimoniais causados em razão de imprudência, negligência ou imperícia”. In casu, atingiu-se, sem dúvida, a solução do problema físico de gigantismo das mamas, tanto que as queixas da autora (cf. fl. 11) são relacionadas a dores e inchaço no braço direito e na mama direita, ao realizar atividade laboral; cicatriz e excesso de pele na mama direita; surgimento de nódulo; além de estar a autora, por essas razões, emocionalmente abalada. A inicial nada se refere à conduta médica quanto à redução das mamas. 484 Jurisprudência da QUARTA TURMA Acrescente-se que o perito afirma, à fl. 240, que “o resultado da mastoplastia redutora foi atingido em relação à redução do volume da mama”. Portanto, quanto à obrigação de meio, igualmente não há nos autos comprovação alguma de falha técnica do médico ou de que este não cumpriu o seu mister. Por todo o exposto, conheço do recurso especial e dou-lhe provimento para julgar improcedente o pedido de indenização posto na inicial, invertidos os ônus da sucumbência, com observância, porém, do disposto no art. 12 da Lei n. 1.060/1950, uma vez que a autora é beneficiária da justiça gratuita. É como voto. VOTO-VISTA O Sr. Ministro Marco Buzzi: Cuida-se de recurso especial, interposto por Waldir Augusto de Carvalho Braga contra acórdão do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná, nos autos da ação indenizatória que lhe é movida por Ilda Rodrigues de Andrade. No caso concreto, a demandante afirma que se submeteu a uma primeira intervenção cirúrgica plástica realizada pelo ora recorrente, visando à redução de suas mamas, cujas dimensões causavam-lhe desconforto físico e psicológico. Todavia, logo após à intervenção, surgiu em uma das mamas nódulo de aproximadamente 2,5 cm, o que determinou a realização de um segundo procedimento, o qual também se destinaria a retoques estéticos. A segunda intervenção, entretanto, resultou cicatriz em uma das mamas, além de desproporção entre elas, levando à necessidade de uma terceira cirurgia. Esta, seria em princípio realizada perante o próprio demandado, mas isso deixou de ocorrer pois a autora negou a se submeter ao novo procedimento, dada a exigência da assinatura de um termo previamente ao ato cirúrgico. A derradeira operação foi então consumada perante outro profissional, agora com resultados satisfatórios. Busca, assim, perante o médico originalmente contratado, indenização por danos materiais e morais, face o resultado insatisfatório das duas cirurgias a que se submeteu. O pedido em primeiro grau quedou rejeitado. A Corte Paranaense, em sede de apelação cível, reformou a sentença e reconheceu a responsabilidade civil do réu, médico cirurgião, face aos danos RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 485 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA materiais e estéticos postulados na petição inicial. Assim o fez, salientando que, na espécie, a obrigação assumida pelo demandado é daquelas de resultado, presumindo-se sua culpa pelos eventos lesivos. Houve embargos infringentes, aos quais o Tribunal negou provimento. Daí o recurso especial, buscando o profissional eximir-se de qualquer responsabilidade, à alegação de inexistir prova de culpa quanto aos procedimentos por ele realizados. O eminente relator, Ministro Raul Araújo, votou no sentido de prover o recurso especial e isentar o médico da condenação imposta perante a Corte local. Baseou seu posicionamento, asseverando entender equivocado o entendimento que fixou natureza jurídica de obrigação de resultado à assumida pelo cirurgião no caso concreto. Ponderou que a natureza dos procedimentos cirúrgicos, visando à redução das mamas, bem como a superveniência de um nódulo após a primeira intervenção impuseram ao médico uma obrigação mista, de meio e resultado, por englobar fins de reparação e estéticos. Nesse contexto, cuidando-se de responsabilidade civil subjetiva e à míngua de prova de culpa do profissional na realização de ambas as cirurgias, fez pesar em desfavor da demandante o ônus da prova, rechaçando a pretensão exordial. Pedi vista dos autos para melhor exame do tema. É a síntese. Acompanho o relator. De início, reputo prudente apenas deixar assentado meu posicionamento pessoal quanto à natureza da primeira cirurgia plástica a que se submeteu a demandante, pois em relação a este ponto entendo estar configurada obrigação exclusivamente de resultado. De qualquer sorte, adianto que essa pequena ressalva não levará este subscritor a julgamento diverso daquele proposto pelo Excelentíssimo Ministro Relator. Com efeito. No caso, a primeira cirurgia plástica (mamoplastia) a que se submeteu a demandante, buscando a redução de suas mamas, atribuiu ao médico cirurgião obrigação nitidamente de resultado. Não há, ao menos neste ponto, falar em obrigação mista. Irrelevante o fato de a autora buscar com uma operação de cunho estético livrar-se, como consequência dela, de eventuais desconfortos psicológicos, dores nas costas ou outros problemas derivados do grande porte de suas mamas. É que a intervenção realizada pelo médico, sobre a qual se responsabilizou tecnicamente, estava concentrada preponderantemente na alteração plástica pretendida pela acionante, despontando um caráter 486 Jurisprudência da QUARTA TURMA exclusivamente estético, ficando em segundo plano os objetivos terapêuticos ou ortopédicos. Basta ver que ao médico não competia proceder qualquer intervenção ortopédica, na coluna vertebral da demandante, por exemplo. A tarefa que foi designada ao médico visava fins plásticos decorrentes da redução, sendo meramente consequências desta operação a posterior atenuação dos demais problemas narrados pela demandante. O profissional que consente em realizar procedimento deste caráter, plástico/estético, intervindo pela primeira vez no organismo da paciente, está assumindo, à ótica deste signatário, indubitável obrigação de atingir a um resultado determinado. Caso o médico cirurgião vislumbre a impossibilidade de alcança-lo, deve prevenir o paciente ou então recusar-se à realização do procedimento. De todo modo, como já adiantado, este primeiro aspecto não exerce maior influência para o deslinde do caso, já que o pedido inicial não ataca apenas e propriamente eventual resultado insatisfatório do primeiro procedimento. Ao que se depreende, o dano estético de maior repercussão causado à demandante derivou da segunda intervenção cirúrgica, na qual, todavia, não eram almejados apenas fins de ordem plástica como se dera quando da primeira. Na segunda operação, existia finalidade também reparadora/terapêutica, dada a necessidade de solucionar patologia, com a retirada de nódulo que surgiu na mama direita da demandante somente após o primeiro ato cirúrgico. Agregaram-se, pois, no segundo procedimento, finalidades estéticas e reparatórias, o que traduz uma obrigação mista, de meio e de resultado, com importante reflexo no que tange à definição da natureza da responsabilidade civil a reger a conduta do demandado. Com efeito, a definição pertinente à finalidade da obrigação é relevantíssima e decisiva para a resolução do caso concreto. Em se cuidando de obrigação de resultado, o entendimento jurisprudencial dominante, ao qual adere o subscritor, é no sentido de reputar a responsabilidade civil do médico cirurgião ainda como sendo subjetiva, nos termos do art. 14, § 4º, do CDC, mas com inversão do ônus probatório. Por isso, desloca-se, em regra, o ônus probandi, incumbindo ao profissional demonstrar que não laborou com imperícia, para, assim, livrar-se do dever indenizatório, mormente quando verificada a hipossuficiência técnica do consumidor dos serviços médicos (art. 6º, VIII, do CDC). Do contrário, antevendo-se um caráter reparatório, terapêutico na intervenção cirúrgica, o dever contratual assumido pelo profissional da medicina RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 487 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA consiste em obrigação de meio, cabendo-lhe proceder da melhor e mais diligente forma possível, dentro do atual estado da técnica da medicina. Nesta segunda hipótese, o regime da responsabilidade civil subjetiva consagrado no art. 14, § 4º, do CDC, não permite a inversão do ônus probatório, cabendo, nessa medida, ao próprio autor fazer a prova da imperícia com que empreendeu o cirurgião. No caso dos autos, como visto, a segunda cirurgia teve também como finalidade a extração de nódulo surgido no organismo da demandante após a realização da primeira intervenção. Poder-se-ia até cogitar em atribuir ao médico a responsabilidade com inversão do ônus probatório, caso ficasse demonstrado ter este nódulo surgido como resultado de eventual negligência quando da primeira operação. Haveria, assim, nexo de causalidade entre a necessidade da segunda intervenção, da qual resultaram os danos estéticos e o agir culposo do demandado. Entretanto, as provas produzidas durante o trâmite do feito não lograram alcançar definição acerca do que causou a aparição do aludido nódulo, tornandose impossível afirmar tenha sido uma decorrência da primeira cirurgia a que se submeteu a demandante. Nesse quadro, somente se pode presumir que se tratou de algo natural e espontâneo, uma patologia congênita ao organismo da acionante. Nesse sentido, retira-se do acórdão proferido ao julgamento da apelação cível: O laudo pericial acostado às fls. 214-224, indica que a paciente possuía um nódulo medindo aproximadamente 2,5 cm no maior diâmetro no quadrante inferior externo da mama direita (fl. 216), dizendo o expert que ‘’Há grande propoabilidade de o nódulo da mama direita da Sra. Ilda Rodigues de Andrade estar relacionada à Patologia Mamária Benigna, não relacionada com o processo cirúrgico prévio. Contudo o diagnóstico etiológico só estaria definitivamente esclarecido através de estudo anatômico patológico do nódulo mamário (...)” Ora, se houve a necessidade de extração de “patologia mamária benigna”, por óbvio que a obrigação atribuída ao médico não pode ser de resultado, já que inexigível, em tal contexto, atingir perfeição estética após a retirada de nódulo de aproximadamente 2,5 cm de uma das mamas. A obrigação aqui é de meio, cabendo ao cirurgião agir mediante aposição de toda sua diligência para a cura da patologia e também obviamente para proporcionar o melhor resultado estético possível à demandante, mas não como um fim em si mesmo, e sim de modo a contornar eventual deformidade decorrente da extração de parte do organismo da paciente. 488 Jurisprudência da QUARTA TURMA Nesse contexto, configurando-se a obrigação de meio, somente se poderia responsabilizar civilmente o profissional da medicina mediante prova de culpa, na modalidade de negligência ou imperícia quanto à intervenção cirúrgica. Entretanto, essa demonstração não ocorreu no caso dos autos. Como bem ponderou o eminente relator, a condenação fixada pela Corte de origem baseouse exclusivamente na equivocada aplicação da presunção de culpa face ao não atingimento de perfeição na segunda operação realizada pelo demandado. Tem-se por configurada, assim, violação ao art. 14, § 4º, do CDC, motivo pelo qual acompanho o relator, votando no sentido de dar provimento ao recurso especial. É como voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.053.473-RS (2008/0094654-9) Relator: Ministro Marco Buzzi Recorrente: Marisa Maria Caumo Bof Advogado: Frank Max Simon Hermann Recorrido: Fabiana Lourega Guatymozin Lorenzetti e outros Advogado: Rogério Viegas Viana Interessado: Paola Rita Caumo Bof Advogado: Frank Max Simon Hermann EMENTA Recurso especial (art. 105, III, a, da CF). Procedimento de inventário. Primeiras declarações. Aplicação financeira mantida por esposa do de cujus na vigência da sociedade conjugal. Depósito de proventos de aposentadoria. Possibilidade de inclusão dentre o patrimônio a ser partilhado. Perda do caráter alimentar. Regime de comunhão universal. Bem que integra o patrimônio comum e se comunica ao patrimônio do casal. Exegese dos arts. 1.668, V e 1.659, VI, ambos do Código Civil. Recurso desprovido. RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 489 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 1. Não se conhece da tese de afronta ao art. 535, I e II do CPC formulada genericamente, sem indicação do ponto relevante ao julgamento da causa supostamente omitido no acórdão recorrido. Aplicação da Súmula n. 284-STF, ante a deficiência nas razões recursais. 2. Os proventos de aposentadoria, percebidos por cônjuge casado em regime de comunhão universal e durante a vigência da sociedade conjugal, constituem patrimônio particular do consorte ao máximo enquanto mantenham caráter alimentar. Perdida essa natureza, como na hipótese de acúmulo do capital mediante depósito das verbas em aplicação financeira, o valor originado dos proventos de um dos consortes passa a integrar o patrimônio comum do casal, devendo ser partilhado quando da extinção da sociedade conjugal. Interpretação sistemática dos comandos contidos nos arts. 1.659, VI e 1.668, V, 1.565, 1.566, III e 1.568, todos do Código Civil. 3. Recurso especial parcialmente conhecido e desprovido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça acordam, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas, A Quarta Turma, por unanimidade, conhecer parcialmente do recurso e, nesta parte, negar-lhe provimento, nos termos do voto do Senhor Ministro Relator. Os Srs. Ministros Luis Felipe Salomão, Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti e Antonio Carlos Ferreira votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 2 de outubro de 2012 (data do julgamento). Ministro Marco Buzzi, Relator DJe 10.10.2012 RELATÓRIO O Sr. Ministro Marco Buzzi: Cuida-se de recurso especial (art. 105, III, a, da CF), interposto por Marisa Maria Caumo Bof contra acórdão proferido pelo 490 Jurisprudência da QUARTA TURMA Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, nos autos de agravo de instrumento tirado de procedimento de inventário, aberto em virtude da morte de Léo Carlos Bof. O aresto hostilizado consubstancia-se na seguinte ementa: Inventário. Meação. Partilha de valores provenientes da aposentadoria da exesposa do de cujus e de outros bens imóveis. 1. Os valores recebidos por qualquer dos cônjuges até a separação de fato do casal comunicam-se, sendo irrelevante a origem, pois constituíam economia do casal, mas não se comunicam os valores recebidos depois da separação fática, sejam eles decorrentes dos proventos de aposentadoria da ex-esposa do falecido, sejam eles recebidos a título de juros ou correção monetária. 2. A separação de fato do casal põe termo ao regime de bens, motivo pelo qual o imóvel adquirido depois da ruptura não se comunica. 3. O imóvel que foi adquirido na vigência do casamento, mas de forma parcelada, deverá ser partilhado de forma proporcional ao valor quitado até a separação do casal. Recurso parcialmente provido. Opostos e rechaçados embargos declaratórios. Irresignada, a insurgente sustenta: a) violação ao art. 535, I e II do CPC, haja vista omissão no acórdão recorrido; b) afronta aos arts. 1.668, V e 1.659, VI, do Código Civil, correspondentes ao art. 263, XIII, do CC/1916; assevera que os proventos percebidos por força da aposentadoria da ex-esposa do falecido, investidos em aplicação financeira, constituem patrimônio exclusivo e não se comunicam durante a vigência da sociedade conjugal; pede, por isso, a exclusão de tais quantias do monte partilhável nos autos do inventário. Apresentadas contrarrazões, o recurso especial não foi admitido, decisão revertida face ao provimento de agravo de instrumento. Os autos ascenderam a esta Corte Superior. O Ministério Público manifestou-se pelo não conhecimento do recurso especial; sucessivamente, pelo desprovimento da insurgência. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Marco Buzzi (Relator): O recurso deve ser parcialmente conhecido e desprovido. 1. Inicialmente, não pode ser conhecida a tese de afronta ao art. 535, I e II, do CPC. RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 491 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA No particular, as razões do recurso especial revelam-se de todo genéricas, não indicando concretamente qual ponto relevante para solução da causa deixou de ser efetivamente examinada pelo Tribunal de segunda instância. A deficiência na fundamentação da insurgência obsta a esta Corte chegar à exata compreensão da controvérsia, o que impede o conhecimento do apelo extremo, por incidência da Súmula n. 284-STF. 2. Tocante à alegação de negativa de vigência aos arts. 1.659, IV e 1.668, V, ambos do CC/2002 e 263, XIII, do CC/1916, verifica-se que apenas os dispositivos ao novo Códex merecem ser examinados na presente insurgência. Consoante bem apontou o representante do Ministério Público Federal, o acórdão recorrido não se pronunciou em relação ao dispositivo contido no Código Beviláqua, o que afasta o necessário prequestionamento a autorizar a admissão do recurso especial. Colhe-se do aresto hostilizado a seguinte passagem que denota a resolução do reclamo mediante invocação apenas dos dispositivos constantes do CC/2002. Embora o art. 1.668, inc. V, do Código Civil, que remete ao art. 1.659, inc. VI, do mesmo Código, disponha expressamente que “excluem-se da comunhão: os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge”, é forçoso convir que os valores, depois de recebidos por qualquer dos cônjuges, passam a compor a renda familiar e se comunicam, até a separação de fato do casal, sendo absolutamente irrelevante a origem”. Veja-se que muito embora tenha a sociedade conjugal acabado, de fato, no ano de 2002, ou seja, ainda sob a vigência do CC/1916, houve por bem a Corte local em deslindar a temática à luz do CC/2002, diploma cuja entrada em vigor deu-se em janeiro de 2003. Nos embargos declaratórios, opostos ao acórdão recorrido, a parte insurgente até alegou omissão, mas defendendo que os artigos sob foco não autorizariam a compreensão na senda de que os valores depositados em aplicação financeira se comunicam ao patrimônio comum. Naquela oportunidade, assim como quando da interposição do recurso especial, deixou de expender qualquer irresignação voltada a eventual equívoco na aplicação do direito intertemporal. Nesse panorama, tem-se a ausência de prequestionamento do art. 263, IX, do CC/1916, impedindo a análise do apelo extremo em tal quadrante. Fica delimitado o presente julgamento, assim, ao exame de eventual violação aos dispositivos insertos no CC/2002. 492 Jurisprudência da QUARTA TURMA Faz-se essa ponderação, pouco mais alentada sobre o assunto, na medida em que há pequena alteração na redação do texto então constante do diploma revogado em comparação com a norma agora em vigor. De toda sorte, qualquer digressão nesse sentido queda obstada, como visto acima, pela ausência de prequestionamento da temática referetne ao direito intertemporal. Analisa-se, por isso, o recurso especial apenas ao enfoque do Novo Diploma Civil. 3. Sobre os fatos que ensejam a controvérsia, extrai-se do acórdão recorrido: Com efeito, cuida-se da discussão acerca da inclusão no monte-mor de dois imóveis, na sua integralidade, e, ainda, da meação sobre os rendimentos e as aplicações financeiras dos proventos de aposentadoria da recorrente, constantes na sua conta corrente. Ora, os autos mostram que a recorrente e o de cujus eram casados sob o regime da comunhão universal de bens, mas estavam separados de fato desde 18 de novembro de 2002, sendo que a recorrente Marisa é funcionária pública estadual aposentada e percebe os seus proventos através da conta corrente que possui junto ao Banrisul, como comprova os contracheques juntados à fl. 77 (grifou-se). Vale esclarecer, ainda, que o casal encontrava-se separado de fato quando da morte do autor da herança, mas o aresto Estadual ressalvou expressamente que a partilha dos bens, para fins de aferição do patrimônio particular do de cujus, teria por base apenas o período de vida comum do casal, desprezando-se os bens adquiridos após o rompimento de fato do vínculo conjugal. A matéria a ser decidida no presente recurso especial, portanto, consiste em definir se deve ser partilhada em inventário, por integrar o patrimônio comum do casal, unido em regime de comunhão universal de bens, a aplicação financeira mantida por um dos ex-consortes, mediante investimento de seus proventos de aposentadoria, formando uma reserva patrimonial durante a vigência do matrimônio. Acerca do assunto, esta Corte Superior, tratando de situação pouco diversa, mas similar à dos autos, possui sólida jurisprudência na esteira de que as verbas auferidas, mesmo após a dissolução do casamento, a título de indenização trabalhista, devem ser ulteriormente partilhadas entre o casal. Invoca-se, em tais precedentes, o entendimento de que a diminuição salarial experimentada por um dos cônjuges repercute na esfera patrimonial do outro, que passa a dispor de modo mais intenso de seus vencimentos para fazer frente às despesas correntes RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 493 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA do lar. Por consequência, este último deve também ser beneficiado quando da recomposição patrimonial obtida pelo ex-consorte. Nesse sentido: Regime de bens. Comunhão universal. Indenização trabalhista. Integra a comunhão a indenização trabalhista correspondente a direitos adquiridos durante o tempo de casamento sob o regime de comunhão universal. Recurso conhecido mas improvido. (EREsp n. 421.801-RS, Rel. Ministro Humberto Gomes de Barros, Rel. p/ acórdão Ministro Cesar Asfor Rocha, Segunda Seção, julgado em 22.9.2004, DJ 17.12.2004, p. 410). Recurso especial. Civil. Direito de Família. Regime de bens do casamento. Comunhão parcial. Bens adquiridos com valores oriundos do FGTS. Comunicabilidade. Art. 271 do Código Civil de 1916. Interpretação restritiva dos arts. 269, IV, e 263, XIII, do CC de 1916. Incomunicabilidade apenas do direito e não dos proventos. Possibilidade de partilha. 1. Os valores oriundos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço configuram frutos civis do trabalho, integrando, nos casamentos realizados sob o regime da comunhão parcial sob a égide do Código Civil de 1916, patrimônio comum e, consequentemente, devendo serem considerados na partilha quando do divórcio. Inteligência do art. 271 do CC/1916. 2. Interpretação restritiva dos enunciados dos arts. 269, IV, e 263, XIII, do Código Civil de 1916, entendendo-se que a incomunicabilidade abrange apenas o direito aos frutos civis do trabalho, não se estendendo aos valores recebidos por um dos cônjuges, sob pena de se malferir a própria natureza do regime da comunhão parcial. 3. Precedentes específicos desta Corte. 4. Recurso especial desprovido. (REsp n. 848.660-RS, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 3.5.2011, DJe 13.5.2011). Conquanto não se tenha identificado precedentes cuidando de hipótese fática idêntica a ora sob enfrentamento, tem-se que a mesma linha de raciocínio empreendida para os casos de indenização trabalhista deve estender-se ao caso de aplicação financeira mantida por apenas um dos consortes. Estabelecida a sociedade conjugal, ambos os consortes passam imediatamente a obedecer ao dever legal de mútua assistência (art. 1.566, III, 494 Jurisprudência da QUARTA TURMA do CC), sendo ainda “responsáveis pelos encargos da família” (art. 1.565, caput, do CC) e, por decorrência, “obrigados a concorrer, na proporção de seus bens e dos rendimentos do trabalho, para o sustento da família e educação dos filhos, qualquer que seja o regime patrimonial” (art. 1.568 do CC). Os arts. aos arts. 1.668, V, e 1.659, VI e VII excluem da comunhão universal os “proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge”, bem como “as pensões, meio-soldos, montepios e outras rendas semelhantes”. A interpretação literal do dispositivo conduz ao entendimento de que são incomunicáveis os valores obtidos pelo trabalho individual de cada cônjuge, impedindo a comunhão até mesmo dos bens adquiridos com tais vencimentos. No entanto, sempre asseverando a manifesta contradição de tal exegese com o sistema, é corrente na doutrina brasileira que referidas disposições atinentes à incomunicabilidade dos vencimentos, salários e outras verbas reclamam interpretação em sintonia e de forma sistemática com os deveres instituídos por força do regime geral do casamento. Nesse prisma, Maria Berenice Dias formula crítica ao legislador de 2002: Absolutamente desarrazoado excluir da universalidade dos bens comuns os proventos do trabalho pessoal de cada cônjuge (CC 1.659 VI), bem como as pensões, meios-soldos, montepios e outras rendas semelhantes (CC 1.659 VII). Injusto que o cônjuge que trabalha por contraprestação pecuniária, mas não converte suas rendas em patrimônio, seja privilegiado e suas reservas consideradas crédito pessoal e incomunicável. Tal lógica compromete o equilíbrio da divisão das obrigações familiares. O casamento gera comunhão de vidas (CC 1.511). Os cônjuges têm o dever de mútua assistência (CC 1.566 III) e são responsáveis pelos encargos da família (CC 1.565). Assim, se um dos consortes adquire os bens para o lar comum, enquanto o outro apenas guarda o dinheiro que recebe de seu trabalho, os bens adquiridos por aquele serão partilhados, enquanto os que este entesourou resta injustamente incomunicável (Manual de Direito das Famílias, p. 237, Editora Revista dos Tribunais: 2011). Em idêntico rumo, Carlos Roberto Gonçalves deixa assentado: Se se interpretar que o numerário recebido não se comunica, mas somente o que for com ele adquirido, poderá esse entendimento acarretar um desequilíbrio no âmbito financeiro das relações conjugais, premiando injustamente o cônjuge que preferiu conservar em espécie os proventos de seu trabalho, em detrimento do que optou por converter suas economias em patrimônio comum. Como assevera Silvio Rodrigues, “entendimento diverso contraria a essência do regime da comunhão parcial e levaria ao absurdo de só se comunicarem os aquestos RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 495 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA adquiridos com o produto de bens particulares e comuns ou por fato eventual, além dos destinados por doação ou herança do casal”. (Direito Civil Brasileiro, vol. 5, p. 458, Editora Saraiva: 2010). De fato, já em primeira vista torna-se imperiosa a relativização do comando de incomunicabilidade, quando examinado em conjunto com os demais deveres do casamento. Instituída a obrigação de mútua assistência e de mantença do lar por ambos os cônjuges, não há como considerar imunes as verbas obtidas pelo trabalho pessoal de cada consorte ou proventos e pensões, tampouco como hábeis a formar uma reserva particular. Conforme dispõe a lei, esses valores devem obrigatoriamente ser utilizados para auxílio à mantença do lar, da sociedade conjugal. Retira-se da doutrina de Milton Paulo de Carvalho Filho, quando, comentando os incisos em questão, assevera: Essa exclusão da lei deve ser entendida para o caso de separação do casal: a remuneração de cada qual não integrará a partilha. Contudo durante a vigência do casamento, uma vez percebido o provento, este passa a integrar o patrimônio do casal, seja em espécie, seja por meio da aquisição de outros bens (Código Civil Comentado, organização Cezar Peluso, p. 1898, Editora Manole: 2011). Com efeito, a natureza jurídica dos salários, pensões e proventos reveste-se de caráter volátil, temporário, que perdura apenas enquanto tais verbas ainda possuem função de garantir o sustento imediato daquele que as aufere. Não à toa, referidas verbas erigem-se ao caráter de impenhoráveis consoante se infere do art. 649 do CPC. E assim o são por uma razão de ordem muito simples. Tem o legislador em mira possibilitar a subsistência do respectivo titular, garantindolhe fonte monetária hábil a fazer frente aos gastos alimentares, de saúde, vestuário, lazer, educação etc., tudo o que possibilita, em realidade, proporcionar acesso do indivíduo ao mínimo vital, sob os auspícios do princípio da dignidade da pessoa humana. O que justifica conferir aos salários, proventos e outras verbas periódicas a impenhorabilidade, prevista no CPC, ou a incomunicabilidade, estabelecida no CC, é justamente a necessidade de se manter a garantia alimentar ao titular dessas quantias. A observar, contudo, que, no caso da incomunicabilidade, a proteção dá-se de modo mais tênue, pois aqui ela há de ser compatibilizada com os já aludidos deveres recíprocos de sustento e auxílio mútuo entre os cônjuges, mormente em regime de comunhão universal, como no caso dos autos. 496 Jurisprudência da QUARTA TURMA Nesse sentido, quando ultrapassado o lapso de tempo correspondente ao período em que são periodicamente percebidas as verbas, havendo sobras, esse excesso deixa de possuir natureza alimentar. Transforma-se, de tal momento em diante, em verdadeiro patrimônio da pessoa que os recebe, até porque, em geral, é com essas quantias que são formadas reservas de capital, ou mesmo obtidos os bens de consumo duráveis e não duráveis a constituir aquele mesmo patrimônio. Tratando da impenhorabilidade das verbas dotadas de caráter salarial, alimentar, esta Corte já teve oportunidade de assentar raciocínio idêntico ao ora empreendido: Processual Civil. Recurso especial. Ação revisional. Impugnação ao cumprimento de sentença. Penhora on line. Conta corrente. Valor relativo a restituição de imposto de renda. Vencimentos. Caratér alimentar. Perda. Princípio da efetividade. Reexame de fatos e provas. Incidência da Súmula n. 7-STJ. - Apenas em hipóteses em que se comprove que a origem do valor relativo a restituição de imposto de renda se referira a receitas compreendidas no art. 649, IV, do CPC é possível discutir sobre a possibilidade ou não de penhora dos valores restituídos. - A devolução ao contribuinte do imposto de renda retido, referente a restituição de parcela do salário ou vencimento, não desmerece o caráter alimentar dos valores a serem devolvidos. - Em princípio, é inadmissível a penhora de valores depositados em conta corrente destinada ao recebimento de salário ou aposentadoria por parte do devedor. - Ao entrar na esfera de disponibilidade do recorrente sem que tenha sido consumido integralmente para o suprimento de necessidades básicas, a verba relativa ao recebimento de salário, vencimentos ou aposentadoria perde seu caráter alimentar, tornando-se penhorável. - Em observância ao princípio da efetividade, não se mostra razoável, em situações em que não haja comprometimento da manutenção digna do executado, que o credor não possa obter a satisfação de seu crédito, sob o argumento de que os rendimentos previstos no art. 649, IV, do CPC gozariam de impenhorabilidade absoluta. - É inadmissível o reexame de fatos e provas em recurso especial. Recurso especial não provido. (REsp n. 1.059.781-DF, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 1º.10.2009, DJe 14.10.2009). Ainda: RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 497 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Civil e Processual Civil. Dívida de sociedade limitada. Execução frustrada. Redirecionamento aos bens de sócio. Possibilidade. Dissolução irregular da sociedade. 1. Em caráter excepcional, o sócio de sociedade por cotas de responsabilidade limitada responde com seus bens particulares por dívida da sociedade, quando esta foi dissolvida de modo irregular. Precedentes. 2. Além do mais, a alegação de que inexistiu excesso de mandato por parte do ora recorrente, que firmou, conjuntamente, o instrumento de encerramento do contrato social, ficando estabelecido que eventual responsabilidade deveria recair unicamente sobre o sócio majoritário, implica o reexame do conjunto fático-probatório. Incidência da Súmula n. 7-STJ. 3. Em princípio, é inadmissível a penhora de valores depositados em conta corrente destinada ao recebimento de salário ou aposentadoria por parte do devedor. No caso ora em análise, contudo, não restou comprovado o caráter alimentar dos valores depositados em conta poupança, implicando o acolhimento dos argumentos do recorrente em incursão do conjunto fático-probatório. Incidência, mais uma vez, da Súmula n. 7-STJ. 4. Recurso especial conhecido em parte e, nesta parte, desprovido. (REsp n. 586.222-SP, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 23.11.2010, DJe 30.11.2010). Essa ordem de raciocínio, formulada no tocante à penhorabilidade das verbas salariais alimentares deve ser estendida aos casos de comunicabilidade patrimonial no regime de casamento. Na sociedade brasileira, a maioria absoluta dos casais constroem patrimônio como fruto de seu exclusivo trabalho. Raras são as famílias que herdam vultoso patrimônio mobiliário e imobiliário, suficiente a permitir o sustento por meio das rendas daí resultantes. Há casais em que apenas um dos cônjuges se dedica ao trabalho remunerado, enquanto o outro cuida dos afazeres domésticos. Assim, a melhor interpretação referente à incomunicabilidade dos salários, proventos e outras verbas similares, é justamente aquela que fixa a separação patrimonial apenas durante o período em que ela ainda mantém natureza alimentar, nunca desprezada a necessária compatibilização dessa restrição com os deveres de mútua assistência, sendo irrelevante sua origem a partir de então. Do contrário, apenas o consorte que possui trabalho remunerado seria titular da íntegra do patrimônio construído durante a sociedade conjugal, entendimento este em subversão a todo o sistema normativo relativo ao regime patrimonial do casamento. 498 Jurisprudência da QUARTA TURMA Desponta daí a ratio essendi da incomunicabilidade derivada dos arts. 1.668, V, e 1.659, VI e VII, ou seja, atribuir a separação dos vencimentos enquanto verba suficiente a possibilitar a subsistência do indivíduo, mas sempre observados os deveres de mútua assistência e mantença do lar conjugal. Nesse panorama, andou bem o acórdão recorrido, pois procedeu a interpretação melhor ajustada ao espírito das normas que regem o casamento, na senda de considerar os proventos de aposentadoria como bem particular, excluído da comunhão, apenas enquanto as respectivas cifras mantenham um caráter alimentar em relação àquele consorte que as aufere. Suplantada a necessidade de proporcionar a subsistência imediata do titular, as verbas excedentes integram e se comunicam o patrimônio comum do casal, devendo ser observada a meação do outro consorte, mostrando-se correta, portanto, sua inclusão dentre os bens a serem partilhados no inventário aberto em função da morte de um dos cônjuges. Do exposto, o voto é no sentido de conhecer em parte e negar provimento ao recurso especial. RECURSO ESPECIAL N. 1.079.344-RJ (2008/0172003-1) Relatora: Ministra Maria Isabel Gallotti Recorrente: Indústrias Muller de Bebidas Ltda. Advogados: Lanir Orlando e outro(s) Lia Mara Orlando e outro(s) Recorrido: Miller Brewing Company Advogados: José Antônio Barbosa Lima Faria Corrêa e outro(s) Leonardo Valente Gomes Bezerra e outro(s) Interessado: Instituto Nacional de Propriedade Industrial INPI EMENTA Propriedade industrial. Colidência de marcas. Possibilidade de confusão afastada. Princípio da especialidade. Marca notória. Art. 126 RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 499 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA da Lei n. 9.279/1996. Admitida a convivência das marcas em litígio. Precedentes. 1. O dissídio jurisprudencial a ser dirimido pelo Superior Tribunal de Justiça é aquele em que, mediante o cotejo analítico entre os acórdãos confrontados, fica evidenciada a similitude da base fática dos casos e a divergência de resultados diante da aplicação da legislação federal regente, o que não se verificou na hipótese dos autos. 2. Segundo o princípio da especialidade das marcas, não há colidência entre os signos semelhantes ou até mesmo idênticos, se os produtos que distinguem são diferentes. 3. Reconhecida a notoriedade da marca Miller pelo Tribunal de origem, incide o art. 126 da Lei n. 9.279/1996, que confere proteção especial à marca notoriamente conhecida em seu ramo de atividade. 4. Afastada a possibilidade de erro ou confusão do público entre as marcas Miller, da recorrida, e Mülller Franco e Miler, da recorrente, ante a ausência de semelhança dos produtos que representam, possível a convivência dos signos em exame. Precedentes. 5. Recurso especial a que se nega provimento. ACÓRDÃO A Turma, por unanimidade, negou provimento ao recurso especial, nos termos do voto da Sra. Ministra Relatora. Os Srs. Ministros Antonio Carlos Ferreira, Marco Buzzi, Luis Felipe Salomão e Raul Araújo votaram com a Sra. Ministra Relatora. Brasília (DF), 21 de junho de 2012 (data do julgamento). Ministra Maria Isabel Gallotti, Relatora DJe 29.6.2012 RELATÓRIO A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti: Miller Brewing Company ajuizou ação anulatória de ato administrativo contra o Instituto Nacional da Propriedade Industrial - INPI e Indústrias Muller de Bebidas Ltda, objetivando o registro 500 Jurisprudência da QUARTA TURMA para as marcas de cerveja “Miller” e “America’s Quality Beer Miller High Life”, denegado pelo primeiro réu. O MM Juiz Federal da 6ª Vara Federal do Rio de Janeiro julgou improcedente o pedido de invalidação das decisões administrativas, ao fundamento de que há colidência entre as marcas “Miller”, da autora, e “Muller Franco” e “Miler”, da segunda ré. Foi assinalado que tanto o produto explorado pela autora (cerveja), quanto o produto da ré (aguardente), pertencem ao mesmo segmento mercadológico, qual seja, o de bebidas alcóolicas, de forma que o registro pretendido pode provocar erro, dúvida ou confusão por parte do público consumidor. Foi observado, ainda, que o acordo de convivência entre as marcas, entabulado entre a autora e a segunda ré, é ineficaz perante o INPI. Inconformada, a autora interpôs apelação cível alegando diversidade de consumidores e impossibilidade de confusão das marcas Miller, e Muller Franco. Ressaltou que a marca Miller é notoriamente conhecida como pertencente à segunda maior empresa cervejeira dos Estados Unidos e identifica a cerveja fabricada há mais de 100 anos pela apelante, encontrando-se, assim, amparada pelo contido no art. 6-bis da Convenção da União de Paris. Defende a coexistência das marcas no mercado e a inexistência de conflitos entre os sinais em tela. A Segunda Turma Especializada do Tribunal Regional Federal da 2ª Região, por maioria, deu provimento à apelação, em acórdão espelhado na seguinte ementa (e-STJ fl. 958): Direito da Propriedade Industrial. Marcas. Marca notoriamente conhecida. Teoria da diluição ou degeneração. 1. A marca notoriamente conhecida em seu ramo de atividade goza de proteção especial, independentemente de classe, na forma do art. 6º, bis, da Convenção Unionista de Paris. 2. Inexiste óbice à convivência entre a marca “Miller” e as marcas da recorrida (“Muller Franco” e “Miler”), conquanto sejam da mesma classe, pois comercializam produtos diversos. 3. O princípio da especialidade não se confunde com as divisões de classe operadas pelas convenções de Genebra e Nice, que não servem de critério último para a determinação das esferas de colidência de marcas, em um mesmo mercado relevante. 4. Apelo parcialmente provido, para que os procedimentos administrativos com vistas ao registro da marca “Miller” retomem o seu curso normal, reconhecendose, contudo, a possibilidade de convivência entre a marca “Miller” e as marcas “Muller Franco” e “Miler”. RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 501 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Indústrias Müller de Bebidas Ltda. opôs embargos infringentes buscando a prevalência do voto vencido que mantinha a sentença de improcedência do pedido de registro das marcas Miller e America’s Quality Beer Miller High Life. Por unanimidade, a Primeira Seção Especializada do TRF da 2ª Região negou provimento ao recurso, em acórdão assim ementado (e-STJ fls. 1.1031.104): Embargos infringentes. Colidência entre marcas. Inteligência do artigo 6º bis da Convenção de Paris em face de marca estrangeira já registrada no Brasil e posteriormente caduca. Recurso improvido. I - É de se notar, no cadastro do INPI, que a marca – “Miller” – de titularidade autoral, foi regularmente registrada em 25.2.1979 e, posteriormente, extinta por caducidade, em 12.9.1989, conforme atestam a sentença de fls. 451-456, do Juízo da 11ª Vara Federal-RJ, e o acórdão de fls. 457, do Tribunal Federal de Recursos. II - Por outro lado, o dito fato propiciou o registro legítimo e regular da marca denominada “Muller Franco”, de titularidade da Embargante, destinada ao mesmo ramo de negócios - bebidas alcoólicas – até então negado, em razão do registro da marca Miller que se encontrava em vigor. III - De sorte, que o alto conhecimento da marca “Miller” é situação que não encontra mais proteção no Estado Brasileiro à luz do art 6º da Convenção de Paris, por se tratar de marca que já foi objeto de registro no Brasil, e, concretamente extinta, por decisão transitada em julgado, fazendo com que a notoriedade em questão não mais reúna condições de prevalência para peitar registros regular e posteriormente inscritos no INPI. IV - Tais considerações, contudo, não obstam o registro das marcas da empresa Embargada à luz dos preceitos da Lei n. 9.279/1996, uma vez que suas normas repudiam apenas contrafação suscetível de causar confusão ou associação com marca alheia; não sendo essa a hipótese dos autos, em razão, justamente, do grande conhecimento que a marca “Miller” desfruta junto ao público consumidor, perfeitamente capaz de distinguir a origem e os produtos de ambas as empresas. V - Recurso improvido. Inconformada, a 2ª ré, Indústrias Müller de Bebidas Ltda, interpôs recurso especial amparado no art. 105, inciso III, alíneas a e c, da Constituição Federal, apontando divergência jurisprudencial entre o acórdão recorrido e o entendimento adotado por esta Corte no REsp n. 698.855 e pelo TJSP, além de violação aos seguintes dispositivos: a) art. 129 da Lei n. 9.279/1996 - ao argumento de que a recorrente detém titularidade do “registro das marcas Müller Franco e Miler para designar ‘bebidas 502 Jurisprudência da QUARTA TURMA alcoólicas’”, sendo-lhe assegurada “a proteção dos direitos de uso exclusivo da marca no território nacional, dentro de sua atividade”. Com isso, sendo a cerveja e a aguardente espécies de bebidas alcoólicas, não haveria de se permitir que empresas do mesmo ramo utilizassem “a mesma marca em ambos os produtos, induzindo, com relativa facilidade, o consumidor a erro, dúvida e engano”; b) art. 124, inciso XIX, da Lei n. 9.279/1996 - sob a alegação de que, ao vedar o uso exclusivo das marcas de titularidade da recorrente, a Corte de origem autorizou o “registro de marca idêntica para mesmos produtos e permitiu a coexistência de signos que, efetivamente, se confundem”, beneficiando “concorrente do mesmo segmento de mercado, haja vista que ambas atuam na produção de bebida alcoólicas”. Foram apresentadas contra-razões ao recurso especial (e-STJ fls. 1.1631.182). Juízo prévio positivo de admissibilidade às fls. e-STJ 1.185-1.186. Às fls. 1.205-1.208 e-STJ, o então Ministro Honildo Amaral de Mello Castro, Desembargador convocado do TJ-AP, negou provimento ao recurso especial. Em razão dos fundamentos esposados nas razões do agravo regimental interposto por Indústrias Müller de Bebidas Ltda., esta relatora reconsiderou a decisão de fls. 1.205-1.208 e-STJ e determinou a inclusão do recurso especial em pauta para melhor exame da questão pelo colegiado. É o relatório. VOTO A Sra. Ministra Maria Isabel Gallotti (Relatora): Como visto do relatório, trata-se de recurso especial em que a recorrente, Indústrias Müller de Bebidas Ltda., sustenta impossibilidade da coexistência entre as suas marcas “Muller Franco” e “Miler” e a marca da recorrida, “Miller”, e pretende a exclusividade de utilização dos signos registrados pelo INPI. Inicialmente anoto que o recurso não merece prosperar pela alínea c do dispositivo constitucional. Com efeito, a demonstração do dissídio jurisprudencial não obedeceu ao disposto nos arts. 541 do Código de Processo Civil e 255 do RISTJ, uma vez que a parte recorrente deixou de evidenciar a semelhança entre os fatos considerados RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 503 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA pelo acórdão recorrido e o panorama de fato do paradigma invocado, limitandose a afirmar a existência de divergência na interpretação do direito. Ausente, pois, a demonstração de que os casos confrontados tenham se assentado em bases de fato similares e adotado conclusões opostas sobre idêntica questão jurídica, requisito fundamental para conhecimento do recurso fundado na alínea c do permissivo constitucional. Passo a apreciar a alegação de afronta à legislação federal. Apontou a recorrente ofensa às normas dos arts. 124, inciso XIX, e 129 da Lei n. 9.279/1996, que guardam a seguinte redação: Art. 124. Não são registráveis como marca: (...) XIX - reprodução ou imitação, no todo ou em parte, ainda que com acréscimo, de marca alheia registrada, para distinguir ou certificar produto ou serviço idêntico, semelhante ou afim, suscetível de causar confusão ou associação com marca alheia; (...) Art. 129. A propriedade da marca adquire-se pelo registro validamente expedido, conforme as disposições desta Lei, sendo assegurado ao titular seu uso exclusivo em todo o território nacional, observado quanto às marcas coletivas e de certificação o disposto nos arts. 147 e 148. A análise da questão passa, pois, pela verificação da possibilidade de confusão entre os signos da recorrente e da recorrida e do direito de exclusividade de utilização das marcas pela recorrente. Como se sabe, a marca é bem da propriedade industrial que tem como finalidade principal distinguir o produto ou serviço dos seus “concorrentes” no mercado, ou seja, é sinal destinado a individualizar produtos ou serviços e a permitir sua diferenciação de outros do mesmo gênero. Surgiu o direito marcário da necessidade de evitar a concorrência desleal. Conforme acentua LUCAS ROCHA FURTADO, “a proteção que a lei confere às marcas tem sua extensão delimitada pela aplicação de dois princípios: o da territorialidade e o da especialidade do registro. O poder de identificação e atração de determinadas marcas, porém, ditas notórias, impôs a necessidade do alargamento de sua proteção, além dos limites fixados por estas regras tradicionais. Tal matéria foi tratada pelo art. 6º bis da Convenção de Paris, 504 Jurisprudência da QUARTA TURMA que denominou de notoriamente conhecida a marca cuja proteção independe de qualquer registro. Criou-se, portanto, importante exceção ao princípio da territorialidade” (“Sistema de Propriedade Industrial no Direito Brasileiro”, 1ª edição, 1996, p. 106). As marcas protegem seu titular, como obstáculo à concorrência desleal, e atendem ao importante escopo de evitar a confusão entre o público consumidor. No caso em exame, a marca “Miller” é notoriamente conhecida no ramo das cervejas, como acentuado pelo acórdão tomado do julgamento dos embargos infringentes (e-STJ fls. 1.086-1.104) e também do acórdão proferido no julgamento da apelação, do qual transcrevo (e-STJ fl. 936): Com efeito, a marca de cervejas Miller é mundialmente conhecia em seu ramo de atividades, sendo certo que suas atividades se iniciaram ainda no século XIX. É para situações como essa que foi incluída a aludida proteção na Convenção Unionista de Paris, sem sombra de dúvidas relevante marco na proteção da propriedade intelectual. Portanto, não interessa determinar anterioridade de registro ou caducidade, poque a marca é notoriamente conhecia. Atualmente, vale frisar, já comercializa seu produto em território nacional. Não se olvida que na ratio atual da propriedade intelectual, há componente relevantíssimo, qual seja, a proteção do consumidor. Ora, a venda de cerveja Miller que não seja “a” Miller, mundialmente conhecida e agregadora de valor ao produto, levará outrossim o consumidor à confusão. A circunstância de ter tido o seu registro em território nacional, deferido em 1979, cancelado por caducidade, não coloca a recorrida em posição pior do que se nunca o tivesse obtido. Neste ponto, importante lembrar que o art. 126 da Lei da Propriedade Industrial estabelece que “a marca notoriamente conhecida em seu ramo de atividade nos termos do art. 6º, bis (I), da Convenção da União de Paris para Proteção da Propriedade Industrial, goza de proteção especial, independentemente de estar previamente depositada ou registrada no Brasil”. Com efeito, diversamente do tratamento legal da marca de alto renome, que a protege em todos os segmentos do mercado, mas tem como pressuposto o registro em território nacional (Lei n. 9.279/1996, arts. 125 e 126), “a necessidade de proteção da marca notoriamente conhecida surge, ao contrário, exatamente porque ela não está registrada no país. No entanto, ainda que não esteja registrada no Brasil, será protegida exatamente em face de sua internacional notoriedade no seu ramo de atividade. Surge, neste ponto, outra distinção entre a RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 505 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA marca de alto renome e a marca notoriamente conhecida. Enquanto a primeira protege todos os seguimentos do mercado, a última protege apenas o segmento do mercado em que se tornou notoriamente conhecida” (FURTADO, Lucas Rocha, ob citada, p. 132, grifo não constante do original). O legislador conferiu, pois, tutela especial à marca notoriamente conhecida, diga-se, dentro do seu ramo de atividade. No caso em exame, mesmo reconhecida a notoriedade, no ramo de cerveja, da marca “Miller” da recorrida, há registro deferido em território nacional, da marca Müller Franco”, em favor da recorrente, fabricante de aguardente. Anoto que não está em questão, no presente recurso, a frustrada tentativa da recorrida de invalidar o registro obtido pela recorrente após a extinção por caducidade de seu registro, mas apenas a pretensão da cervejaria internacional de obter o registro, no país, das marcas de cerveja “Miller” e “America’s Quality Beer Miller High Life”, indeferido pelo INPI em face do registro em vigor das marcas “Müller Franco” e “Miler”, que individualizam a aguardente fabricada pela recorrente. Assim, cumpre verificar se ambas as marcas integram o mesmo segmento do mercado, único âmbito de proteção às marcas notoriamente conhecidas, o que conduz ao exame do chamado princípio da especialidade ou especificidade, o qual impede o titular de uma marca de reagir contra a utilização do seu sinal em produtos ou serviços diferentes daqueles para os quais foi registrada. Ou seja, o âmbito da proteção concedida à marca registrada é delimitado pelo princípio da especialidade e pela noção de afinidade verificada entre produtos ou serviços. DOUGLAS GABRIEL DOMINGUES, em seu Comentários à Lei da Propriedade Industrial, Editora Forense, 1ª edição, fl. 439, bem esclarece: O princípio da especialidade tem maior aplicação nos casos em que a marca é idêntica ou semelhante a outra já usada para distinguir produtos diferentes ou empregada em outro ramo de comércio ou de indústria, pois em referida hipótese a regra relativa à novidade é abrandada. A marca deve ser nova, diferente das já existentes; mas tratando-se de produtos ou indústrias, não importa que ela seja idêntica ou semelhante a outra em uso. Todavia, como assinala Gama Cerqueira, o princípio da especialidade da marca não é absoluto, nem neste assunto podem firmar-se regras absolutas, pois se trata sempre de questões de fato, cujas circunstâncias não podem ser desatendidas quando se tem que decidir sobre a novidade das marcas e a possibilidade de confusão. 506 Jurisprudência da QUARTA TURMA Distintos os produtos e diferentes as clientelas, não há competição do mercado, nem direito do estabelecimento empresarial recorrente em manter a exclusividade do signo. A propósito: Propriedade industrial e Processual Civil. Colisão de marcas. Possibilidade de confusão afastada pelo Tribunal a quo. Convivência de marcas admitida nas instâncias ordinárias. Matéria fática. Reexame. Impossibilidade. Súmula n. 7-STJ. I. Com base nos elementos fático-probatórios dos autos o Tribunal local concluiu que “as marcas apresentam-se distintas e inconfundíveis”, de sorte que a revisão dessa conclusão atrai a incidência da Súmula n. 7 desta Corte. Precedentes. II. “Segundo o princípio da especialidade ou da especificidade, a proteção ao signo, objeto de registro no INPI, estende-se somente a produtos ou serviços idênticos, semelhantes ou afins, desde que haja possibilidade de causar confusão a terceiros” (REsp n. 333.105-RJ, Rel. Ministro Barros Monteiro). III. Recurso especial não conhecido. (REsp n. 900.568-PR, Rel. Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, julgado em 21.10.2010, DJe 3.11.2010). Direito Comercial. Propriedade industrial. Nulidade do registro da marca nominativa “Paul Shark”. Colidencia com o nome comercial (“Shark Boutique Ltda.”) e com marca mista (expressão “Shark” associada ao desenho estilizado de um tubarão) anteriormente registrados. Principio da especificidade. Ausencia de possibilidade de erro, duvida ou confusão (art. 67, 17, da Lei n. 5.772/1971). Orientaçoes da Corte. Recurso não acolhido. I (...) II III - Possível e a coexistência de duas marcas no universo mercantil, mesmo que a mais recente contenha reprodução parcial da mais antiga e que ambas se destinem a utilização em um mesmo ramo de atividade (no caso, classe 25.10 do Ato Normativo n. 0051/81/INPI - industria e comercio de “roupas e acessórios do vestuário de uso comum”), se inexistente a possibilidade de erro, duvida ou confusão a que alude o art. 67, n. 17, da Lei n. 5.772/1971. (REsp n. 37.646-RJ, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, Quarta Turma, julgado em 10.5.1994, DJ 13.6.1994, p. 15.111). Assim, não prospera a assertiva de que as marcas litigantes não podem conviver porque os pedidos de registro foram feitos na mesma classe 35, prevista RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 507 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA no Ato Normativo INPI n. 51, de 27.1.1981. Isso porque a proteção decorrente do registro de um signo abrange apenas os produtos ou serviços similares ou afins. Produtos ou serviços diferentes podem apresentar marcas semelhantes, desde que não sejam passíveis de confusão. A classe 35 compreende bebidas alcoólicas e não alcoólicas, xaropes, sucos, gelos e substâncias para fazer bebidas e para gelar, ou seja, abrange tal variedade e diversidade de produtos que o fato de estarem sob mesma classificação não sugere, por si só, a possibilidade de confusão para o público. Também não vislumbro impedimento de uso da marca pela recorrida, até porque não me parece que o signo “Miller”, notoriamente conhecido, possa se aproveitar das marcas da empresa recorrente, desprestigiando o seu sinal. Ao contrário, creio que a marca da recorrida pode até favorecer a recorrente com sua boa imagem no mercado. Questão semelhante à debatida nos presente autos foi apreciada pela 3ª Turma desta Corte, que concluiu pela possibilidade de convivência entre marca notoriamente conhecia e outra já registrada no Brasil. Confira-se: Recurso especial. Propriedade industrial. Direito Marcário. Art. 131, do Código de Processo Civil. Inexistência de violação. Fundamentação suficiente. Art. 460, do CPC. Princípio da adstrição do julgador. Observância, na espécie. Marca notoriamente conhecida. Exceção ao princípio da territorialidade. Proteção especial independente de registro no Brasil no seu ramo de atividade. Marca de alto renome. Exceção ao princípio da especificidade. Proteção especial em todos os ramos de atividade desde que tenha registro no Brasil e seja declarada pelo INPI. Notoriedade da marca “skechers”. Entendimento obtido pelo exame de provas. Incidência da Súmula n. 7-STJ. Marcas “sketch” e “skechers”. Possibilidade de convivência. Atuação em ramos comerciais distintos, ainda que da mesma classe. Recurso parcialmente conhecido e, nessa extensão, improvido. I - O v. acórdão regional explicitou de forma clara e fundamentada suas razões de decidir. Assim, a prestação jurisdicional, ainda que contrária à expectativa da parte, foi completa, restando inatacada, portanto, a liberalidade do artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal, bem como do art. 131 do Código de Processo Civil. II - Na hipótese, a decisão do Tribunal Regional observa estritamente os limites do pedido, ou seja, a legalidade da concessão do registro da marca “Skechers” em favor da ora recorrida, afastando-se, por conseguinte, eventual alegação de violação ao art. 460 do Código de Processo Civil. III - O conceito de marca notoriamente conhecida não se confunde com marca 508 Jurisprudência da QUARTA TURMA de alto renome. A primeira - notoriamente conhecida - é exceção ao princípio da territorialidade e goza de proteção especial independente de registro no Brasil em seu respectivo ramo de atividade. A segunda - marca de alto renome - cuida de exceção ao princípio da especificidade e tem proteção especial em todos os ramos de atividade, desde que previamente registrada no Brasil e declarada pelo INPI - Instituto Nacional de Propriedade Industrial. IV - A discussão acerca da notoriedade ou não da marca “Skechers” deve ser observada tendo em conta a fixação dada pelo Tribunal de origem, com base no exame acurado dos elementos fáticos probatórios. Assim, qualquer conclusão que contrarie tal entendimento, posta como está a questão, demandaria o reexame de provas, atraindo, por consequência, a incidência do Enunciado n. 7-STJ. V - Nos termos do artigo 124, inciso XIX, da Lei n. 9.279/1996, observa-se que seu objetivo é o de exclusivamente impedir a prática de atos de concorrência desleal, mediante captação indevida de clientela, ou que provoquem confusão perante os próprios consumidores por meio da reprodução ou imitação, no todo ou em parte, de marca alheia, para distinguir ou certificar produto ou serviço idêntico, semelhante ou afim. VI - No caso dos autos, não se observa, de plano, a possibilidade de confusão dos consumidores pelo que viável a convivência das duas marcas registradas “Sketch”, de propriedade da ora recorrente e, “Skechers”, da titularidade da ora recorrida, empresa norte-americana. VII - Enquanto a ora recorrente, Lima Roupas e Acessórios Ltda., titular da marca “Sketch”, comercializa produtos de vestuário e acessórios, inclusive calçados, a ora recorrida, Skechers USA Inc II”, atua, especificamente, na comercialização de roupas e acessórios de uso comum, para a prática de esportes, de uso profissional. De maneira que, é possível observar que, embora os consumidores possam encontrar em um ou em outro, pontos de interesse comum, não há porque não se reconhecer a possibilidade de convivência pacífica entre ambos. VIII - Recurso especial parcialmente conhecido e, nessa extensão, improvido. (REsp n. 1.114.745-RJ, Rel. Ministro Massami Uyeda, Terceira Turma, julgado em 2.9.2010, DJe 21.9.2010, grifei). Em última análise, não havendo possibilidade de erro ou confusão do consumidor, não há o que proteger. Inexistindo, pois, óbice à convivência entre as marcas “Miller”, da recorrida, e “Muller Franco” e “Miller”, da recorrente, nego provimento ao recurso especial. É como voto. RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 509 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA RECURSO ESPECIAL N. 1.175.763-RS (2010/0005677-0) Relator: Ministro Marco Buzzi Recorrente: Lauro José Kessler Advogado: Augustinho Gervásio Göttems Telöken e outro(s) Recorrido: Brasil Telecom S/A Advogado: Jorge Rojas Carro e outro(s) EMENTA Recurso especial. Ação de adimplemento contratual. Fase de impugnação a cumprimento de sentença. Acórdão local determinando a exclusão da multa prevista no art. 475-J do CPC. Insurgência do exequente. 1. Não conhecimento do recurso especial no tocante à sua interposição pela alínea c do art. 105, III, da CF. Cotejo analítico não realizado, sendo insuficiente para satisfazer a exigência mera transcrição de ementas dos acórdãos apontados como paradigmas. 2. Violação ao art. 535 do CPC não configurada. Corte de origem que enfrentou todos os aspectos essenciais ao julgamento da lide, sobrevindo, contudo, conclusão diversa à almejada pela parte. 3. Afronta ao art. 475-J do CPC evidenciada. A atitude do devedor, que promove o mero depósito judicial do quantum exequendo, com finalidade de permitir a oposição de impugnação ao cumprimento de sentença, não perfaz adimplemento voluntário da obrigação, autorizando o cômputo da sanção de 10% sobre o saldo devedor. A satisfação da obrigação creditícia somente ocorre quando o valor a ela correspondente ingressa no campo de disponibilidade do exequente; permanecendo o valor em conta judicial, ou mesmo indisponível ao credor, por opção do devedor, por evidente, mantémse o inadimplemento da prestação de pagar quantia certa. 4. Recurso especial parcialmente conhecido e, na extensão, provido em parte. 510 Jurisprudência da QUARTA TURMA ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça acordam, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas, por unanimidade, conhecer em parte do recurso especial e, nesta parte, dar-lhe parcial provimento, nos termos do voto do Senhor Ministro Relator, com ressalva de fundamentação do Sr. Ministro Raul Araújo. Os Srs. Ministros Luis Felipe Salomão, Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti e Antonio Carlos Ferreira votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 21 de junho de 2012 (data do julgamento). Ministro Marco Buzzi, Relator DJe 5.10.2012 RELATÓRIO O Sr. Ministro Marco Buzzi: Trata-se de recurso especial interposto pela Lauro Jose Kessler, com amparo nas alíneas a e c do permissivo constitucional, no intuito de ver reformado o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, assim ementado (fls. 339-344): Agravo de instrumento. Cumprimento de sentença. Impugnação. Correção monetária. Imperativo o refazimento dos cálculos porquanto a decisão em cumprimento determina que o valor pago seja corrigido monetariamente desde as datas de pagamento até a data da conversão da ação - 30.6.1991. A data de 30.12.1990 equivocadamente utilizada pelo perito e homologada pelo juízo a quo diz tão somente com a apuração do valor patrimonial da ação. Multa do art. 475-J, do CPC. Tendo a parte efetuado o depósito no prazo de 15, contados da intimação ao pagamento da quantia devida, mesmo que à título de garantia do juízo, tenho que tal comportamento elide a incidência da multa prevista no art. 475-J, do CPC. Honorários advocatícios. Os honorários advocatícios se prestam a bem remunerar o trabalho desenvolvido pelo procurador da parte. In casu, atento às diretrizes do art. 20, §§ 3º e 4º, do Estatuto Processual vigente e, diante da correção do critério utilizado pelo nobre magistrado a quo, mantenho a verba honorária conforme fixado na decisão combatida. RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 511 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Deram parcial provimento ao agravo de instrumento. Unânime. (sem grifo no original). O ora recorrente deflagrou embargos de declaração (fls. 350-351), desacolhidos, nos termos do acórdão de fls. 353-358. Nas razões do especial, a recorrente sustenta que o acórdão Estadual incorreu em violação ao art. 535 do CPC, ante a omissão não sanada em sede de aclaratórios, e ao art. 475-J, do CPC, haja vista que a devedora limitou-se a proceder ao depósito da quantia executada em juízo, conduta esta que, segundo alega, não equivaleria ao pagamento exigido pelo dispositivo legal e, por tal fato, ensejaria a incidência da multa de 10%. Ainda, defendeu a existência de divergência jurisprudencial. Contrarrazões (fls. 376-385). Admitido o presente recurso por força da decisão de fls. 387-390, os autos ascenderam a esta Corte Superior. É o relatório. Decido. VOTO O Sr. Ministro Marco Buzzi (Relator): O recurso merece ser conhecido e parcialmente provido, porquanto o mero depósito para garantia do juízo não obsta a incidência da multa prevista no art. 475-J, do CPC. 1. Inicialmente, consigne-se que não encontra amparo o inconformismo no pertinente à alegação de ofensa ao artigo 535 do CPC, haja vista que foram enfrentadas todas as questões jurídicas relevantes para a solução da controvérsia, sobrevindo, porém, conclusão em sentido contrário ao almejado pela recorrente. 2. Não merece acolhida a insurgência no tocante ao dissenso jurisprudencial. Com efeito, para a análise da admissibilidade do recurso especial pela alínea c do permissivo constitucional, torna-se imprescindível a indicação das circunstâncias que identifiquem ou assemelhem os casos confrontados, mediante o cotejo dos fundamentos da decisão recorrida com o acórdão paradigma, a fim de demonstrar a divergência jurisprudencial existente (arts. 541 do CPC e 255 do RISTJ). Nesse sentido, confira-se o AgRg no Ag n. 1.053.014-RN, Rel. Ministro Jorge Mussi, 5ª Turma, julgado em 7.8.2008, DJe 15.9.2008. A não-realização do necessário cotejo analítico, bem como a não apresentação adequada do dissídio jurisprudencial, não obstante a transcrição 512 Jurisprudência da QUARTA TURMA de ementas, impedem a demonstração das circunstâncias identificadoras da divergência entre o caso confrontado e o aresto paradigma, como é a hipótese dos autos. Do exposto, não conheço do especial nesse particular. 3. No tocante à alegada violação ao art. 475-J, do CPC, que disciplina a incidência da multa de 10% sobre o quantum exigido na fase de cumprimento de sentença, a irresignação merece provimento. O cerne da discussão reside em definir a incidência, ou não, da multa punitiva para os casos em que o devedor comparece nos autos e deposita, a título de garantia do juízo, o quantum exigido pelo credor. O recorrente defende violação, pelo aresto Estadual, ao art. 475-J, porquanto isentou a recorrida do pagamento da multa de 10%, ante o depósito judicial efetivado, o qual, segundo alega, não consiste no efetivo pagamento do débito, não possuindo, portanto, o condão de afastar a incidência da sanção processual. Com efeito, o termo pagamento, constante do art. 475-J, do CPC, deve ser interpretado de forma restritiva, considerando-se somente naquelas situações em que o devedor deposita a quantia devida em juízo, sem condicionar o levantamento à discussão do débito em sede de impugnação, permitindo o imediato levantamento por parte do credor. Tal interpretação está em consonância com o espírito da nova sistemática processual civil, protagonizado, especialmente, pela Lei n. 10.232/2005, que introduziu no ordenamento jurídico brasileiro o sincretismo processual, proporcionando, em consonância com a sistemática constitucional (art. 5º, LXXVIII), e a celeridade na entrega da prestação jurisdicional. Ademais, um dos instrumentos criados pelo legislador, com o objetivo de conferir maior efetividade ao processo foi, justamente, a multa prevista no art. 475-J, que possui caráter coercitivo, a fim de ensejar o pagamento imediato naquelas hipóteses em que inexista divergência de valores, evitando assim a deflagração de defesas meramente protelatórias por parte do devedor. Deste modo, nos casos em que o devedor deixar de agir nesses moldes - de sorte a promover a disposição imediata das quantias para levantamento pelo credor - persistirá o inadimplemento, ainda que com juízo garantido, justificando a incidência da multa do art. 475-J do CPC, pois descumprido, de qualquer sorte, o prazo de 15 dias para pagamento voluntário. RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 513 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Essa linha de interpretação revela-se imprescindível para preservação do intuito do legislador, amoldando-se, conforme já dito, às novas características do processo de execução, além de compelir o devedor a agir de boa-fé. Sobre o tema, retira-se do ensinamento de Athos Gusmão Carneiro: Visa a multa, evidentemente, compelir o sucumbente ao pronto adimplemento de suas obrigações no plano do direito material, desestimulando as usuais demoras “para ganhar tempo”. Assim sendo, o tardio cumprimento da sentença, isto é, o pagamento após esgotados os quinze dias, ou posterior oferecimento de cauções ou garantias, não livram o devedor da multa já incidente. A circunstância de o executado efetuar um “depósito” em juízo, com o propósito de “garantir” o pagamento (ou seja, para que nele incida a penhora) não afasta a incidência da multa; mas a multa não incidirá se o depósito for feito “em pagamento” (ou seja, como cumprimento voluntário da obrigação), hipótese em que o exequente poderá requerer o levantamento da quantia, sem prejuízo de prosseguir na execução pelo saldo, se não houver sido coberta a totalidade do crédito exequendo. (Cumprimento da sentença civil e procedimentos executivos, Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 51-52, sem grifo no original). Leciona Cássio Scarpinella Bueno: Alguém poderá perguntar: não seria o caso de admitir que o devedor pudesse nomear, desde logo, bens à penhora? Esta sua atitude não significaria aceleração nos atos executivos a serem praticados? Isto, se feito no prazo de quinze dias do caput do art. 475-J, não deveria ser entendido como uma forma de isentar o devedor da multa lá cominada? É supor, para ilustrar a hipótese, que o devedor deposite em juízo, dentro daquele prazo, o numerário perseguido pelo credor. Não para fins de pagamento (entrega do dinheiro) mas, diferentemente, para, garantido o juízo, apresentar a impugnação a que se referem os arts. 475-L e 475-M (art. 475-J, § 1º), mero depósito, portanto. As respostas são todas negativas. O comportamento do devedor não foi valorado pelo legislador e não deve ser aceito como forma de isenção ou de dispensa da multa. Nem a lembrança do art. 620 socorre, na hipótese, o devedor. A perspectiva da lei é que o devedor tem de submeter-se à força contida no título judicial, à sua “executividade intrínseca” (Curso Sistematizado de Direito Processual Civil, v. 3, São Paulo: Saraiva, 2008, p. 181). In casu, é ponto incontroverso o fato de que a devedora procedeu ao depósito da quantia executada, com a observância do lapso de 15 dias previsto no art. 475-J, do CPC, porém, ressalvando de forma expressa que o ato restringiase à garantia do juízo (fl. 129). 514 Jurisprudência da QUARTA TURMA Deste modo, considerando que o depósito deu-se a título de garantia do juízo, não há falar em isenção da devedora ao pagamento da multa de 10%, prevista no art. 475-J, do CPC, aferindo-se, desta conclusão, a violação, pelo aresto Estadual, do dispositivo legal invocado. Do exposto, conheço parcialmente do especial, e, nessa extensão, dou-lhe provimento, a fim de permitir a incidência da multa prevista no art. 475-J, do CPC, nos casos em que o devedor efetua depósito judicial, tão-somente, para fins de garantia do juízo. VOTO-VOGAL O Sr. Ministro Raul Araújo: Considero relevante o ato do depósito da quantia executada, sendo esse depósito feito espontaneamente pelo devedor para discutir algum aspecto, pois, muitas vezes, o título judicial ainda enseja discussão, não quanto ao direito da parte credora, mas quanto ao valor, quanto ao importe do direito reconhecido na decisão judicial. Não fico tranquilo, porque não temos precedentes e essa questão me parece relevante, ou seja, o depósito judicial, feito pela parte devedora, em juízo. Se está nas mãos do juiz, o credor já está absolutamente assegurado, e o devedor quer apenas discutir algum aspecto relacionado com a execução, já não é mais com a ação. Penso que essa situação não pode receber o mesmo tratamento dado a quem não comparece, não vem espontaneamente dar uma satisfação ao juízo, de que está apto a pagar, mas ainda tem algum ponto a debater. Essas situações parecem-me diferentes: quem não paga mesmo, e espera ser objeto de alguma constrição judicial, e quem comparece, deposita e quer discutir algum outro ponto. O Sr. Ministro Raul Araújo: Em relação a consequência, também tenho dúvidas. Não me parece indiferente para o credor. O depósito é garantia. O Sr. Ministro Raul Araújo: Sou incentivado a pagar espontaneamente o que devo, mas não mais do que devo. O Sr. Ministro Raul Araújo: Sr. Presidente, considero valiosas as ponderações que fazem os eminentes Ministros Relator e Isabel Gallotti, mas não vejo essas ressalvas colocadas na ementa. Talvez se pudesse dar alguma abertura para elas (...) Estamos tratando de forma mais severa, mais rigorosa, RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 515 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA esse caso, porque poderia ter havido o pagamento da parte incontroversa. São aspectos relevantes esses que Vossas Excelências mencionaram, mas, penso, que não se deve dar o mesmo tratamento a quem simplesmente não paga e a quem, pelo menos, deposita judicialmente o que deve para discutir perante o juiz, ficando, então, totalmente submetido à jurisdição, já com a garantia do credor feita com o depósito. Acompanho o eminente Relator com ressalvas. RECURSO ESPECIAL N. 1.191.262-DF (2010/0077935-6) Relator: Ministro Luis Felipe Salomão Recorrente: Mozariém Gomes do Nascimento Advogado: Eduardo Roberto Stukert Neto e outro(s) Recorrente: Condomínio do Conjunto Nacional Advogado: Rodrigo Freitas Rodrigues Alves Recorrido: Os mesmos EMENTA Direito Processual Civil. Ação de interdição de estabelecimento comercial localizado em shopping center. Antecipação de tutela concedida. Sentença de improcedência. Responsabilidade objetiva pelos danos causados pela execução da tutela antecipada. Arts. 273, § 3º, art. 475-O, incisos I e II, e art. 811, parágrafo único, do CPC. Indagação acerca da má-fé do autor ou da complexidade da causa. Irrelevância. Responsabilidade que independe de pedido, ação autônoma ou reconvenção. 1. Recurso especial interposto por Condomínio do Conjunto Nacional: 1.1. Afigura-se dispensável que o órgão julgador venha a examinar uma a uma as alegações e fundamentos expendidos pelas partes, bastando-lhe que decline as razões jurídicas que embasaram a decisão, 516 Jurisprudência da QUARTA TURMA não sendo exigível que se reporte de modo específico a determinados preceitos legais. Inexistência de ofensa ao art. 535 do CPC. 1.2. O acórdão ostenta fundamentação robusta, explicitando as premissas fáticas adotadas pelos julgadores e as conseqüências jurídicas daí extraídas. O seu teor resulta de exercício lógico, revelando-se evidente a pertinência entre os fundamentos e a conclusão, entre os pedidos e a decisão, razão por que não se há falar em ausência de fundamentação ou de julgamento citra petita. 1.3. As conclusões a que chegou o acórdão recorrido no que concerne à segurança do empreendimento e à ausência de infração a disposições condominiais decorreram da análise soberana da prova e, por isso, não podem ser revistas por esta Corte sem o reexame do acervo fático-probatório. Incidências das Súmulas n. 5 e n. 7 do STJ. 2. Recurso especial interposto por Mozariém Gomes do Nascimento: 2.1. Os danos causados a partir da execução de tutela antecipada (assim também a tutela cautelar e a execução provisória) são disciplinados pelo sistema processual vigente à revelia da indagação acerca da culpa da parte, ou se esta agiu de má-fé ou não. Basta a existência do dano decorrente da pretensão deduzida em juízo para que sejam aplicados os arts. 273, § 3º, 475-O, incisos I e II, e 811 do CPC. Cuida-se de responsabilidade objetiva, conforme apregoa, de forma remansosa, doutrina e jurisprudência. 2.2. A obrigação de indenizar o dano causado ao adversário, pela execução de tutela antecipada posteriormente revogada, é consequência natural da improcedência do pedido, decorrência ex lege da sentença e da inexistência do direito anteriormente acautelado, responsabilidade que independe de reconhecimento judicial prévio, ou de pedido do lesado na própria ação ou em ação autônoma ou, ainda, de reconvenção, bastando a liquidação dos danos nos próprios autos, conforme comando legal previsto nos arts. 475-O, inciso II, c.c. art. 273, § 3º, do CPC. Precedentes. 2.3. A complexidade da causa, que certamente exigia ampla dilação probatória, não exime a responsabilidade do autor pelo dano processual. Ao contrário, neste caso a antecipação de tutela se evidenciava como providência ainda mais arriscada, circunstância RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 517 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA que aconselhava conduta de redobrada cautela por parte do autor, com a exata ponderação entre os riscos e a comodidade da obtenção antecipada do pedido deduzido. 3. Recurso especial do Condomínio do Shopping Conjunto Nacional não provido e recurso de Mozariém Gomes do Nascimento provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça acordam, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, Prosseguindo no julgamento, após o voto-vista do Ministro Marco Buzzi, acompanhando o relator, e os votos dos Ministros Raul Araujo, Maria Isabel Gallotti e Antonio Carlos Ferreira, no mesmo sentido, a Quarta Turma, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial do Condomínio do Shopping Conjunto Nacional e dar provimento ao recurso de Mozariém Gomes do Nascimento. Os Srs. Ministros Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi (voto-vista) votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 25 de setembro de 2012 (data do julgamento). Ministro Luis Felipe Salomão, Relator DJe 16.10.2012 RELATÓRIO O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão: 1. Condomínio do Shopping Conjunto Nacional de Brasília (CNB) ajuizou ação inibitória com pedido de antecipação de tutela em face de Mozariém Gomes do Nascimento, noticiando que o réu explorava de forma ilegal e irregular um restaurante em local impróprio para tanto, no quarto pavimento do edifício, contrariando laudo técnico de engenharia e a convenção do condomínio. Afirmou o autor que, segundo informações técnicas de que dispunha, a área em questão foi projetada para servir como terraço, mirante do terceiro andar, não havendo condições de segurança para ali ser instalado o restaurante. Enfatizou que todo o conjunto estrutural (lajes, vigas e pilares), com as mudanças realizadas pelos 518 Jurisprudência da QUARTA TURMA antigos proprietários, chegara ao seu limite máximo, sendo certo que o excesso de sobrecarga na área colocava em risco a vida daqueles que frequentam o estabelecimento, lojistas e outros consumidores. Em 19 de dezembro de 2007, último dia do semestre judiciário, foi concedida a antecipação de tutela pleiteada “para determinar a interdição do empreendimento denominado de Brasil Verde, situado na área denominada de L-401 do Shopping Conjunto Nacional, sob pena de aplicação de multa diária de R$ 5.000,00, até o limite de R$ 200.000,00”. Advertiu o magistrado de piso, em contrapartida, “que o autor em caso de insucesso da demanda, deverá indenizar o réu por todos seus danos materiais e morais, especialmente em razão da melhor época de venda para qualquer comerciante e, sabidamente, a interdição do empreendimento irá causar prejuízos de todas as ordens” (fls. 100-101). Após regular tramitação do feito, em 2 de dezembro de 2008, realizada análise exauriente da controvérsia, o Juízo de Direito da 10ª Vara Cível da Circunscrição Especial Judiciária de Brasília-DF julgou improcedentes os pedidos autorais, revogou a tutela anteriormente antecipada e condenou o autor ao pagamento dos danos materiais e morais decorrentes da interdição, a serem apurados em liquidação de sentença (fls. 474-484). Em grau de apelação, a sentença foi parcialmente reformada apenas para afastar a condenação do autor ao ressarcimento de danos. O acórdão recebeu a seguinte ementa: Apelação. Condomínio. Destinação do imóvel. Atividade. Restaurante. Assembléia condominial. Proibição não verificada. Laudo pericial. Quesitos. Capacidade de sobrecarga. Responsabilidade. Danos materiais e morais. Documento novo. O artigo 397 do CPC permite a juntada de documentos novos quando destinados a fazer prova de fatos ocorridos depois dos articulados. Não se enquadrando no conceito de documento novo o juntado em sede de apelação, não é possível a sua apreciação. Não há nulidade na perícia decorrente de ausência de manifestação sobre quesito que não foi aventado pela parte. Não havendo proibição para a execução da atividade de restaurante no pavimento onde se situa o imóvel, e tratando-se de atividade lícita, pode ser exercida pelo réu. Não pode o juiz, de ofício, impor condenação ao autor por danos materiais e morais decorrentes de ordem judicial exarada em antecipação de tutela que determinou a interdição de restaurante se o autor não agiu com má-fé ou culpa, RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 519 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA ou praticou ato ilícito, mormente quando o réu não apresentou reconvenção nesse sentido (fl. 562). Opostos dois embargos de declaração, foram acolhidos aqueles manejados pelo Condomínio do Conjunto Nacional, para arbitrar honorários com base no art. 20, § 4º, do CPC (fls. 590-594 e 595-598). Novos embargos de declaração foram opostos, os quais foram rejeitados (fls. 612-614). Autor e réu interpuseram recurso especial. No recurso especial de Mozariém Gomes do Nascimento, que está apoiado nas alíneas a e c do permissivo constitucional, alega-se, além de dissídio, ofensa aos arts. 273, § 3º, 475-O, inciso I e 811, inciso I e parágrafo único, todos do Código de Processo Civil. Aduz o recorrente, em síntese, ser objetiva a responsabilidade pelos danos causados no processo diante da tutela antecipada, que deverão ser liquidados nos próprios autos, independentemente de pedido da parte lesada. No recurso especial do Condomínio do Shopping Conjunto Nacional, que está apoiado na alínea a do permissivo constitucional, alega o autor ofensa aos arts. 128, 460 e 535 do CPC; arts. 3º, 9º e 19 da Lei n. 4.591/1964, e arts. 1.228 e 1.336, incisos II, III e IV, do Código Civil. Aduz a recorrente que o acórdão foi omisso e não fundamentou suas conclusões com base em todas as causas de pedir deduzidas na inicial. Sustenta, ademais, que o réu violou a convenção de condomínio, pois esta não autorizava a instalação de restaurante na área litigiosa, porquanto reservada a destinação diversa. Contra-arrazoados (fls. 727-740 e 742-753), os recursos especiais foram admitidos, o de Mozariém Gomes do Nascimento por decisão do Presidente do TJDFT, ao passo que o do Condomínio do Shopping Conjunto Nacional por decisão proferida no Ag n. 1.311.053-DF, de minha relatoria, para melhor exame e julgamento conjunto. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão (Relator): 2. Analiso, primeiramente, o recurso especial interposto por Condomínio do Shopping Conjunto Nacional, em razão da potencial prejudicialidade. 520 Jurisprudência da QUARTA TURMA 2.1. Afasto, de saída, a alegada ofensa ao art. 535 do CPC, pois o Eg. Tribunal a quo dirimiu as questões pertinentes ao litígio, afigurando-se dispensável que venha examinar uma a uma as alegações e fundamentos expendidos pelas partes. Além disso, basta ao órgão julgador que decline as razões jurídicas que embasaram a decisão, não sendo exigível que se reporte de modo específico a determinados preceitos legais (EDcl no RHC n. 6.570PR, Rel. Ministro Barros Monteiro, Quarta Turma, julgado em 3.10.2000, DJ 27.11.2000 p. 163). Por outro lado, do exame da petição inicial constata-se também a absoluta congruência entre as causas de pedir e o que foi decidido nas duas instâncias recursais. Em revista aos fundamentos do voto condutor, revela-se clara a abordagem completa do Tribunal a quo acerca de todos os pontos relevantes ao desate da controvérsia, seja no que concerne à segurança do empreendimento realizado pelo réu, seja em relação à adequação às normas condominiais relativas à destinação da área. Quanto à segurança do empreendimento, assim se manifestou o acórdão: Pelo que consta das informações trazidas pelo réu/apelado em sede de contestação, este iniciou as atividades de um restaurante em meados de agosto de 2007 (fl. 146). Em 19.12.2007, o imóvel, e consequentemente a atividade do restaurante, foi interditado pela decisão exaradada em antecipação de tutela (fls. 99-100), que tomou como base o laudo apresentado pelo autor/apelante (fls. 7375), o qual atestou que no imóvel não haveria condições de se estabelecer um restaurante. Contestando os documentos trazidos com a inicial, o réu/apelado apresentou laudo favorável à instalação de restaurante no imóvel em litígio (fl. 158). Diante dos fatos intrincados, o MM. juiz a quo determinou a produção de prova pericial objetivando esclarecer a situação e responder os quesitos formulados por si e pelas partes. Sobreveio, então, o laudo pericial e os documentos (fls. 357-392), que concluíram: (...) a sobrecarga de 250,00 kg/m² não pode ser ultrapassada, pois foi a utilizada no cálculo da estrutura. Conforme ficou constatado, a carga de utilização do restaurante, que é de 45,85 kg/m² está muito inferior a 250,00 kg/m². Portanto, não oferece nenhum risco à estrutura do Shopping. Com base, então, no minucioso laudo pericial, o magistrado de piso julgou improcedente o pedido e condenou o autor/apelante ao pagamento dos danos morais e materiais sofridos pelo réu/apelado no período em que o restaurante ficou interditado. RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 521 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA [...] Com efeito, o laudo pericial foi elaborado com o objetivo de “constatar se há excesso de cargas na área das instalações do restaurante do Réu, localizado na Loja L-401, de modo a não provocar aumento de sobrecarga na estrutura do Shopping.” (fl. 357). Conforme já explicitado, a perícia foi feita para verificar se o imóvel suportaria a instalação das atividades de um restaurante e concluiu pela ausência de sobrecarga provocada pela atividade, uma vez que a capacidade de carga de utilização do restaurante é muito inferior à permitida para o imóvel. Além disso, o laudo foi explícito ao recomendar que se evite carga dinâmica na estrutura, e exemplifica que como carga dinâmica pode-se considerar “danças carnavalescas com pessoas pulando, festas dançantes do tipo usadas em boates”. Desse modo, o laudo não considerou a atividade cotidiana de um restaurante como carga dinâmica capaz de comprometer a estrutura do imóvel, sendo, assim, desnecessário novo estudo para considerar tal aspecto. Não merece acolhimento, portanto, a alegação de nulidade da sentença (fls. 565-566). Alinhando-se às conclusões do Relator, a Desembargadora revisora assentou que: No mérito, depois de analisar detidamente os autos, em especial o laudo pericial confeccionado pelo perito nomeado pelo juiz condutor da causa, cheguei à mesma conclusão do eminente Relator. Referido laudo não deixa dúvidas de que o imóvel denominado L-401, localizado no Condomínio do Conjunto Nacional, tem capacidade para abrigar um restaurante, sem que a atividade coloque em risco as pessoas e a estrutura do Shopping Conjunto Nacional (fl. 570). No que concerne à adequação do empreendimento do réu às normas condominiais, inclusive quanto à regular destinação, o acórdão recorrido também se manifestou explicitamente: Da destinação do imóvel em assembléia condominial Argui o autor/apelante que a perícia desconsiderou o documento da Assembléia Geral do Condomínio que vedou a destinação das unidades para a atividade de restaurante. Entendo, todavia, não haver qualquer irregularidade do laudo pericial ao não apreciar o documento juntado pelo autor/apelante à fl. 352, já que as disposições ali constantes não se aplicam ao imóvel em litígio, isso porque as vedações de realização de determinadas atividades constantes na Convenção de Condomínio 522 Jurisprudência da QUARTA TURMA de fl. 352 referem-se a lojas do “terceiro pavimento”, contudo, o imóvel em discussão está situado no quarto pavimento, de acordo com a sua matrícula no Registro de Imóveis (fl. 43). Dessa forma, sem razão o autor/apelante neste ponto. Da área comum do condomínio O autor/apelante alega que a sentença desconsiderou ser de propriedade do Condomínio do Conjunto Nacional a área comum contígua à sala L-401, devendo-se cassar a decisão para que novo laudo seja elaborado, calculando-se a sobrecarga apenas sobre a área privativa do imóvel, de 103,00 m². De fato, a área privativa do imóvel L-401 é de 103,023m², conforme disposto em sua matrícula. Ocorre que o imóvel ora analisado possui uma situação peculiar em relação ao condomínio, pois está localizado em uma parte separada do prédio, sendo que a sua área privativa e as suas imediações são acessadas conjuntamente e estão isoladas das demais lojas do shopping, enquanto estas dividem corredores e elevadores, o que não ocorre no imóvel in casu. Por isso, devido à sua especificidade, aliada ao uso pelo réu/apelado da área privativa conjuntamente com as imediações, o laudo pericial calculou a sobrecarga em relação a toda a área de 777,00 m² (fl. 370), o que não induz à invalidade de suas avaliações, pois a perícia foi requerida em relação à área total, e não à privativa, não podendo o autor/apelante querer modificar em sede recursal o objeto da perícia. Assim, apesar de a perícia ter considerado a área total, sem avaliar exclusivamente a área privativa de propriedade do réu/apelado, não há vício na conclusão pericial, que se ateve aos quesitos elencados pelo juiz e pelas partes, não tendo o autor/apelante, quando especificou os seus quesitos à fls. 321322, arguido pontualmente sobre a capacidade de a área privativa suportar um restaurante, razão pela qual não pode agora, em sede recursal, alegar a nulidade de uma perícia por não ter considerado um fato que nem mesmo ele aduziu. Acrescente-se que, possivelmente, tal questionamento não foi aventado em razão de ambas as partes terem inferido que o réu/apelado usaria a totalidade da área para a instalação de seu empreendimento, sendo certo que a discussão sobre a propriedade e a utilização da área não privativa nas imediações da sala L-401 não é objeto desta lide. Não merece acolhimento o recurso neste tocante (fls. 566-567). Com efeito, percebe-se que o acórdão ostenta fundamentação robusta, explicitando as premissas fáticas adotadas pelos julgadores e as conseqüências jurídicas daí extraídas. O seu teor resulta de exercício lógico, revelando-se evidente a pertinência entre os fundamentos e a conclusão, entre os pedidos e a decisão, razão por que não se há falar em ausência de fundamentação ou de julgamento citra petita. RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 523 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 2.2. Quanto ao mais, é bem de ver que as conclusões a que chegou o acórdão recorrido, especialmente no que concerne à segurança do empreendimento e à ausência de infração a disposições condominiais, decorreram da análise soberana da prova e, por isso, não podem ser revistas por esta Corte sem o reexame do acervo fático-probatório, circunstância que atrai a incidências das Súmulas n. 5 e n. 7 do STJ. 2.3. Assim, quanto ao recurso interposto pelo Condomínio do Shopping Conjunto Nacional, dele se conhece parcialmente e, na extensão, nega-se-lhe provimento. 3. Quanto ao recurso especial interposto por Mozariém Gomes do Nascimento, o ponto controvertido é a possibilidade de o autor, em razão da revogação de tutela antecipada, responder pelos danos causados ao réu, independentemente de pedido nesse sentido. O restaurante de propriedade do autor permaneceu interditado por aproximadamente 1 (um) ano, em razão da antecipação de tutela concedida com suporte em laudo apresentado pelo Condomínio do Shopping e que foi, posteriormente, infirmado por outro, confeccionado por perito nomeado pelo Juízo sentenciante. Por isso, a decisão liminar foi revogada por sentença meritória de improcedência. Já na decisão antecipatória, advertiu o magistrado de piso “que o autor em caso de insucesso da demanda, dever[ia] indenizar o réu por todos seus danos materiais e morais, especialmente em razão da melhor época de venda para qualquer comerciante e, sabidamente, a interdição do empreendimento irá causar prejuízos de todas as ordens” (fls. 100-101). Na sentença de improcedência, o Juízo condenou o autor a ressarcir o réu pelos danos experimentados, os quais deveriam ser liquidados posteriormente. Nesse sentido, confira-se o seguinte trecho da sentença: Desta feita, deverá o autor indenizar o réu pelos prejuízos materiais e morais pelos danos processuais causados ao réu, tais como o valor mensal da locação do imóvel que ficou fechado, pelo valor comercial, além dos prejuízos efetivos acarretados, tais como a rescisão de contrato de trabalho com os pagamentos devidos (multa rescisória, férias proporcionais, aviso prévio e outros eventuais pagamentos que teve de suportar), e os prejuízos com a perda de estoque, mercadorias e despesas com o consumo de energia, água, taxas de condomínio, impostos, taxas e fornecedores, eis que o autor obstou o funcionamento do empreendimento explorado pelo réu, como determina o artigo 611 (rectius, 811) do CPC, que se aplica subsidiariamente ao presente feito. 524 Jurisprudência da QUARTA TURMA Deverá indenizar também pelos danos morais, como dito supra, eis que não é crível que o autor utilizando-se de afirmações falsas, eis que tinha conhecimento das falsidades apresentadas, cause tamanho prejuízo para terceiro (réu), e, certamente repercutiu em sua imagem, reputação e em sua honra, pois não é crível que uma pessoa que explore um comércio sofra os dissabores vividos pelo réu em razão de uma ordem judicial como a proferida e acredita que tais fatos possam ficar sem indenização (fls. 482). Em grau de apelação, todavia, esse ponto foi reformado, uma vez que entendeu o Tribunal a quo não ser cabível a condenação de ofício pelo magistrado sentenciante, sem que houvesse pedido nesse sentido. Afirmou o acórdão ora hostilizado que, não havendo reconvenção, nem demonstrada a má-fé do autor, descaberia a referida disposição de ofício. Confira-se: Observa-se que a condenação por danos materiais e morais não foi requerida pelo réu/apelado, tendo o juiz de piso fixado-a de ofício. A meu ver, o magistrado decidiu além dos limites da lide, sem que houvesse pedido do réu/apelado e sem que tenha se configurado qualquer situação que exigisse o pronunciamento de ofício do magistrado, até mesmo porque não se verificou, pela análise dos autos, que o autor/apelante tivesse agido com má-fé ou culpa, ou que houvesse configuração de ato ilícito. O autor/apelante, ao requer a antecipação de tutela, estava apenas exercendo o seu direito de ação, tanto que trouxe aos autos elementos capazes de convencer o magistrado que, vislumbrando a presença dos requisitos previstos no artigo 273 do CPC, deferiu a tutela antecipada e determinou a interdição do restaurante, que ocorreu tão somente após a ordem judicial. Repise-se que esta ordem judicial foi fundamentada, não havendo que se falar em responsabilidade do autor/apelante por interrupção das atividades empresariais do réu/apelado, que decorreu exclusivamente de medida judicial. Além da interdição do restaurante ter sido autorizada por ordem judicial, nos autos não ficou demonstrado que o autor/apelante tenha agido com má-fé ou culpa, ou que tenha praticado fato ilícito, capazes de ensejar a responsabilidade por danos. Isso porque, quando do ajuizamento da ação, o autor/apelante não detinha condições de saber qual seria o resultado da lide, em razão de que os fatos trazidos aos autos eram bastante complexos e controvertidos, tendo cada uma das partes juntado laudos técnicos divergentes sobre a capacidade do imóvel, sendo que o laudo do autor/apelante atestou que não haveria condições de funcionamento de um restaurante no local, enquanto o réu/apelado sustentava exatamente o contrário. Em razão das provas controvertidas, o juiz determinou a prova pericial, que foi devidamente acompanhada pelos assistentes técnicos indicados pelas RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 525 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA partes. Assim, foi necessária a produção de conjunto probatório para se verificar a procedência ou improcedência do pedido inicial, não se sabendo, até o proferimento do julgamento, qual seria o resultado da lide. Dessa forma, tendo em vista que os fatos eram intricados, que a interdição do restaurante decorreu de ordem judicial, e que o autor/apelante não agiu com máfé ou culpa, entendo que não houve configuração, pelo menos na análise relativa aos pedidos deduzidos nesta ação, de responsabilidade do autor/apelante de indenizar o réu/apelado, mormente porque o réu/apelado não apresentou reconvenção nesse sentido, merecendo parcial provimento o recurso para afastar a condenação à indenização por danos materiais e morais (fls. 568-567). 3.1. Cumpre ressaltar que se trata de antecipação de tutela concedida com amparo no art. 273 do CPC, cujo § 3º assim preleciona: § 3º A efetivação da tutela antecipada observará, no que couber e conforme sua natureza, as normas previstas nos arts. 588, 461, §§ 4º e 5º, e 461-A. A referência ao art. 588, revogado pela Lei n. 11.232/2005, deve ser atualizada para que se aplique o art. 475-O, sobretudo os incisos I e II: Art. 475-O. A execução provisória da sentença far-se-á, no que couber, do mesmo modo que a definitiva, observadas as seguintes normas: (Incluído pela Lei n. 11.232, de 2005) I - corre por iniciativa, conta e responsabilidade do exeqüente, que se obriga, se a sentença for reformada, a reparar os danos que o executado haja sofrido; II - fica sem efeito, sobrevindo acórdão que modifique ou anule a sentença objeto da execução, restituindo-se as partes ao estado anterior e liquidados eventuais prejuízos nos mesmos autos, por arbitramento; Ressalte-se também que a antecipação de tutela é espécie do gênero tutelas de urgência previsto no direito brasileiro, assim como a tutela cautelar, razão pela qual é tranquila, na doutrina, a aplicabilidade dos preceitos relativos a esta última (tutela cautelar) à antecipação de tutela (cf. por todos, MEDINA, José Miguel Garcia. Código de processo civil comentado. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 259; BEDAQUE, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência. 5 ed. São Paulo: Malheiros, p. 435). Assim, no particular, em conjunto com o mencionado art. 475-O do CPC, aplica-se o art. 811, assim redigido: 526 Jurisprudência da QUARTA TURMA Art. 811. Sem prejuízo do disposto no art. 16, o requerente do procedimento cautelar responde ao requerido pelo prejuízo que lhe causar a execução da medida: I - se a sentença no processo principal lhe for desfavorável; II - se, obtida liminarmente a medida no caso do art. 804 deste Código, não promover a citação do requerido dentro em 5 (cinco) dias; III - se ocorrer a cessação da eficácia da medida, em qualquer dos casos previstos no art. 808, deste Código; IV - se o juiz acolher, no procedimento cautelar, a alegação de decadência ou de prescrição do direito do autor (art. 810). Parágrafo único. A indenização será liquidada nos autos do procedimento cautelar. O mencionado “microssistema” representado pelos arts. 273, § 3º, 475O, incisos I e II, e art. 811 do CPC não exaure, todavia, a sistemática legal vocacionada à compensar o chamado dano processual, que encontra suporte também em diversos dispositivos do CPC, como nos arts. 16, 17, 18, 538, parágrafo único, 557, § 2º, e 601. Porém, muito embora os mencionados dispositivos visem a combater o dano processual, a sistemática adotada para a tutela antecipada, tutela cautelar e a execução provisória inspira-se em princípios diversos daqueles que norteiam as demais disposições do Código, as quais buscam reprimir as condutas maliciosas e temerárias das partes no trato com o processo - o chamado improbus litigator (por todos, BARBOSA MOREIRA, José Carlos. A responsabilidade das partes pelo dano processual no direito brasileiro. Temas de direito processual. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 24). Se a demanda é ajuizada de forma maliciosa ou temerária pelo litigante, ou se da mesma forma se comporta o litigante no trâmite do feito, para esse vício processual acionam-se as reprimendas previstas nos arts. 16, 17 e 18 do CPC, além de outros congêneres, cuja justificação hospeda-se na existência de má-fé processual, do que resulta responsabilidade processual fundada na culpa. Nesse caso, nem mesmo eventual procedência do pedido é capaz de elidir a reprovabilidade da conduta da parte no decorrer do processo. 3.2. Por sua vez, os danos causados a partir da execução de tutela antecipada (assim também a tutela cautelar e a execução provisória) são disciplinados pelo sistema processual vigente à revelia da indagação acerca da culpa da parte, ou se esta agiu de má-fé ou não. RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 527 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Basta a existência do dano decorrente da pretensão deduzida em juízo para que sejam aplicados os arts. 273, § 3º, 475-O, incisos I e II, e art. 811. Cuida-se de responsabilidade processual objetiva, conforme apregoa, de forma remansosa, doutrina e jurisprudência. É que, para efeito da responsabilidade de que tratam os mencionados artigos, não se deve confundir o pleito ilícito com pedido injusto. A ilicitude da demanda - cuja análise passa certamente pelo direito público de ação - pode ser suavizada pela subjetiva convicção do autor acerca do aparente direito deduzido. Porém, o posterior reconhecimento da inexistência desse direito revela necessariamente a injustiça da demanda, e é essa (injustiça), e não aquela (ilicitude), que é objeto das disposições previstas nos arts. 273, § 3º, 475-O, e 811 do CPC. Nessa linha de raciocínio, confira-se o magistério do saudoso Galeno Lacerda, criticando as sistemáticas adotadas no direito comparado, em que prevalece a exigência de culpa: O erro maior da teoria subjetiva consiste em não compreender que o princípio da culpa não serve para solucionar o problema do dano produzido pelo processo, quando movido dentro da esfera do lícito jurídico. Se o dano é produzido no exercício da atividade lícita (como no uso da ação cautelar, ou da execução provisória), não há que pensar em nexo de causalidade culposa, e sim em nexo de causalidade objetiva, provinda do fato da sucumbência (LACERDA, Galeno. Comentários ao código de processo civil. volume VIII. Forense: Rio de Janeiro, 1998, p. 313). Em boa verdade, como bem esclarece Galeno Lacerda, na esteira do magistério de Chiovenda, a justiça da fórmula objetivista, adotada no direito brasileiro, hospeda-se exatamente na circunstância de que para o interessado experimentar, a bem de sua comodidade e interesse, a execução de tutela antecipada, cautelar ou execução provisória, deve também suportar o incômodo de indenizar os danos causados, se decair do pedido futuramente - ubi commoda ibi incommoda. A responsabilidade, no caso, justifica-se pela livre avaliação dos riscos que podem advir do processo (Idem. Ibidem). Na mesma direção, confira-se a lição de Pontes de Miranda: A responsabilidade do art. 811 é de direito processual, e não de direito material. Não se trata de princípio de direito civil, que se haja colocado, heterotopicamente, no Código de Processo Civil, mas de regra jurídica de direito processual posta no lugar próprio. 528 Jurisprudência da QUARTA TURMA No art. 811, parágrafo único, estatui que, no caso de responsabilidade do autor da ação cautelar, conforme os itens do art. 811, a indenização se liquida nos autos do procedimento cautelar. Quer dizer: não se precisa da propositura de ação de condenação, pois art. 811, que abstrai do pressuposto da má-fé (art. 16), já apontou os quatro fundamentos apresentados pelo prejudicado com a medida cautelar, e basta a liquidação. [...] O pedido de liquidação é nos próprios autos, com a simples invocação de qualquer dos fundamentos do art. 811. Se houve sentença desfavorável no processo principal, basta a certidão da sentença (Comentários do código de processo civil. Tomo XII. Forense, 1976, p. 101). 3.3. Com efeito, reputo que a obrigação de indenizar o dano causado ao adversário, pela execução de tutela antecipada posteriormente revogada, é consequência natural da improcedência do pedido, decorrência ex lege da sentença, e por isso independe de pronunciamento judicial, dispensando também, por lógica, pedido da parte interessada. Independe, com mais razão, de pedido reconvencional ou de ação própria para o acertamento da responsabilidade da parte acerca do dano causado pela execução da medida. Na verdade, se bem refletida a questão, toda sentença é apta a produzir seus efeitos principais (o de condenar, declarar, constituir, por exemplo), que decorrem da demanda e da pretensão apresentada pelo autor, e também efeitos secundários, que independem da vontade das partes ou do próprio juízo. Em relação aos primeiros, há de se observar a congruência entre o pedido e a sentença, sem a qual haverá julgamento extra, ultra ou citra petita. Ao passo que em relação aos segundos se mostra imprópria a averiguação acerca da observância dos pedidos e da causa de pedir. São efeitos automáticos, produzidos por força de lei, como decorrência do efeito principal ou do simples fato de ter sido prolatada sentença, dispensando até mesmo, qualquer pedido expresso da parte ou pronunciamento do juízo acerca dos mesmos (PORTO, Sérgio Gilberto. Comentários ao código de processo civil. vol. 6. Revista dos Tribunais: São Paulo, 2000, p. 137). Apenas a título de exemplos desses efeitos secundários da sentença, vale lembrar a sentença condenatória como título de hipoteca judiciária (art. 466, CPC), e, no direito penal, a aptidão de a sentença penal “tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo crime” (art. 91, inciso I, do CP). Assim, não causa nenhum assombro o fato de a sentença de improcedência, quando revoga tutela antecipadamente concedida, constituir, como efeito secundário, título de certeza da obrigação de o autor indenizar o réu pelos danos RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 529 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA eventualmente por este experimentados, cujo valor exato será posteriormente apurado em liquidação. Em suma, a responsabilidade objetiva pelo dano processual causado por tutela antecipada posteriormente revogada decorre da inexistência do direito anteriormente acautelado, responsabilidade que independe de reconhecimento judicial prévio ou de pedido do lesado. Reporto-me, uma vez mais, ao magistério de Galeno Lacerda: A indenização será liquidada nos próprios autos do procedimento cautelar, reza o parágrafo único do art. 811. Como se trata de cautela jurisdicional, litigiosa, e como a responsabilidade objetiva do autor resulta diretamente da lei, não há necessidade de ação própria nem de pedido reconvencional para essa liquidação. Como acentua Dini, o pedido de ressarcimento dos danos, no caso, não se deve considerar demanda reconvencional, porque não se trata de pedido baseado em título anterior ou estranho ao processo, mas de demanda que encontra seu título no próprio processo, por força de lei. Daí, carecer de razão Marcos Afonso Borges, quando afirma que, “para que haja indenização, é necessário que a sentença que julgar improcedente o processo principal condene expressamente o requerente da cautela a efetuá-la. Se isso não ocorrer não se pode falar em responsabilidade, pois não existe título judicial que lhe sirva de suporte”. Não. O título judicial exequendo é a sentença de liquidação, de natureza condenatória, resultante do pedido de liquidação formulado nos próprios autos do procedimento cautelar (Op. cit., p. 318). Sobre o mesmo tema, e com referência ao mestre dos pampas, arremata Ovídio A. Baptista da Silva: Como mostra Galeno Lacerda (p. 440), diferentemente do que acontece com o Direito alemão, entre nós a indenização não necessita de ser pedida em ação autônoma ou através de demanda reconvencional, inserida no processo da ação principal. Daí sua conclusão, rigorosamente correta, de ser dispensável, e até mesmo impossível, que a sentença do processo principal contenha um capítulo condenando aquele que executa medida cautelar a indenizar perdas e danos, o que a Marcos Afonso Borges (Comentários, 32) parecera indispensável, como pressuposto para a ação de liquidação (SILVA, Ovídio A. Baptista da. Do processo cautelar. 4 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 231-232). Dispensando má-fé, ação própria ou reconvenção, cito os seguintes precedentes: Processual Civil. Medida cautelar. Indenização. Responsabilidade objetiva. Interpretação do art. 811, do CPC. Sociedade de fato. Inexistencia. Sumula n. 7-STJ. 530 Jurisprudência da QUARTA TURMA I - Consoante a melhor doutrina, “o Código estabelece, expressamente, que responda pelos prejuízos que causar a parte que, de má-fé, ou não, promove medida cautelar. Basta o prejuízo, se ocorrente qualquer das espécies do art. 811, I e V, do CPC e, nesse tipo de responsabilidade objetiva processual, o pedido de liquidação é formulado nos próprios autos, com simples invocação de qualquer dos fundamentos do art. 811 do CPC. [...] (REsp n. 127.498-RJ, Rel. Ministro Waldemar Zveiter, Terceira Turma, julgado em 20.5.1997, DJ 22.9.1997, p. 46.462). Processual Civil. Recurso especial. Equipamentos introduzidos no território nacional de modo irregular. Aplicação de pena de perdimento de bens. Procedimento cautelar. Depósito. Ação principal. Pedido julgado improcedente. Art. 811 do CPC. Violação não-verificada. Recurso desprovido. 1. Da leitura do art. 811, I, do CPC, observa-se que, no procedimento cautelar, independentemente da existência de dolo ou culpa, a requerente deverá ressarcir os danos advindos à parte requerida em razão da execução da medida, na hipótese de a sentença prolatada no processo principal ser-lhe desfavorável. O parágrafo único do citado dispositivo consigna que a indenização devida será liquidada nos autos do procedimento cautelar. [...] (REsp n. 744.380-MG, Rel. Ministra Denise Arruda, Primeira Turma, julgado em 4.11.2008, DJe 3.12.2008). Processual Civil. Ação cautelar de sustação de protesto. Cessação dos efeitos da liminar concedida e extinção do feito em razão da não propositura da ação principal no prazo legal. Liquidação da indenização nos próprios autos. CPC, art. 811, parágrafo único. Possibilidade. 1. - Em conformidade com o parágrafo único do artigo 811 do Código de Processo Civil, pode o Requerido, mesmo após o trânsito em julgado da sentença de extinção, formular nos próprios autos do procedimento cautelar pedido de liquidação dos prejuízos causados pela execução da medida. 2. - Recurso Especial provido. (REsp n. 802.735-SP, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 3.12.2009, DJe 11.12.2009). Nesse último precedente, o eminente relator, Ministro Sidnei Beneti, fundamentou a conclusão na mesma direção ora proposta: RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 531 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA 5. - Como se vê, o Acórdão recorrido não vislumbra a possibilidade de liquidação nos próprios autos da cautelar em razão do seu trânsito em julgado e de “ausência de carga sancionadora que pudesse realmente ser liquidada”. [...] 8. - A interpretação emprestada ao dispositivo legal pelo Acórdão recorrido esvazia seu conteúdo, tornando-o inócuo. E o texto legal é expresso no sentido de que “a indenização será liquidada nos autos do procedimento cautelar” (CPC, art. 811, parágrafo único). No presente feito, a cessação dos efeitos da medida deferida coincidiu com a extinção da cautelar, desse modo, a responsabilidade da Autora somente emergiu nesse momento. Na realidade, é o que comumente ocorre nesses casos. Assim, limitar a possibilidade de liquidação nos próprios autos ao trânsito em julgado e condicioná-la à existência de condenação nesse sentido inviabiliza sua aplicação. Na verdade, o objetivo da norma em tela é a celeridade e a economia do processo, com a possibilidade de liquidação dos danos sofridos pela execução da cautelar frustrada nos próprios autos. E, como bem demonstrado pela Recorrente, a obrigação de indenizar decorre da extinção da medida cautelar e a sentença da liquidação formulada no bojo dos autos concederá ao Requerente o título de conteúdo condenatório. No Supremo Tribunal Federal também há antigo precedente: Artigo 811, I, do CPC. Sua aplicação. A responsabilidade prevista no art. 811, I, do Código de Processo Civil e de natureza processual, funda-se no fato da execução da medida cautelar e na cassação dela pela sentença final proferida no processo principal. Independe da prova de ma-fé e de reconvenção. Recurso extraordinário conhecido e provido. (RE n. 100.624, Relator(a): Min. Soares Munoz, Primeira Turma, julgado em 4.10.1983, DJ 21.10.1983 PP-16307 Ement Vol-01313-02 PP-00462 RTJ Vol-0010902 PP-00785). 3.4. Retomando o raciocínio para o caso concreto, há de ser reformado o acórdão recorrido, que afastou a responsabilidade do autor, Condomínio do Shopping Conjunto Nacional de Brasília, pelos danos experimentados pelo réu, decorrentes da interdição açodada de seu estabelecimento comercial durante quase 1 (um) ano. Ressalte-se, finalmente, que não me impressiona a assertiva contida no acórdão recorrido, segundo a qual o autor não responderia pelos danos porque, 532 Jurisprudência da QUARTA TURMA por ocasião do ajuizamento da ação, ele “não detinha condições de saber qual seria o resultado da lide, em razão de que os fatos trazidos aos autos eram bastante complexos e controvertidos, tendo cada uma das partes juntado laudos técnicos divergentes sobre a capacidade do imóvel”. A prosperar essa tese, com a devida vênia, quanto mais complexa a causa, tanto mais razão terá o autor para pleitear a antecipação de tutela de forma leviana, com base na conhecida e odiosa “loteria judicial”. Ora, a par da já mencionada dispensabilidade do elemento subjetivo, a complexidade da causa, que exigia ampla dilação probatória, não exime a responsabilidade do autor pelo dano processual. Ao contrário, nesse caso, a antecipação de tutela se evidenciava como providência ainda mais arriscada, circunstância que aconselhava uma conduta de redobrada cautela por parte do autor, com a exata ponderação entre os riscos e a comodidade da obtenção antecipada do pedido deduzido. Ao final, não se sagrando vitorioso o autor, mostra-se mesmo de rigor o reconhecimento de sua responsabilidade objetiva pelos danos suportados pela parte adversa, os quais poderão ser simplesmente liquidados nos presentes autos, por arbitramento, conforme comando legal previsto nos arts. 475-O, inciso II, c.c. art. 273, § 3º, do CPC. 3.5. Finalmente, apenas a título de esclarecimento, cumpre ressaltar que a conclusão ora encaminhada não se aplica, de forma automática, a eventuais questionamentos acerca da responsabilidade civil do Estado ou mesmo do magistrado que deferiu a multicitada tutela antecipada. Certamente, caso queira o autor voltar-se contra o Estado deverá procurar a via própria, manejando ação autônoma que obedecerá a princípios específicos, como o da responsabilidade subjetiva por ato judicial. Como já decidido pelo Supremo Tribunal Federal em diversas oportunidades, “o princípio da responsabilidade objetiva do Estado não se aplica aos atos do Poder Judiciário, salvo os casos expressamente declarados em lei” (RE n. 219.117, Relator(a): Min. Ilmar Galvão, Primeira Turma, julgado em 3.8.1999, DJ 29.10.1999). No mencionado precedente, dentre vários outros citados, o eminente relator citou a doutrina majoritária trilhada por Hely Lopes Meirelles, nos seguintes termos: Para os atos administrativos, já vimos que regra constitucional é a responsabilidade objetiva da Administração. Mas, quanto aos atos legislativos RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 533 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA e judiciais, a Fazenda Pública só responde mediante comprovação de culpa manifesta na sua expedição, de maneira ilegítima e lesiva. Essa distinção resulta do próprio texto constitucional que só se refere aos agentes administrativos (servidores), sem aludir aos agentes políticos (parlamentares e magistrados), que não são servidores da Administração Pública, mas sim membros de Poderes do Estado. Continua Sua Excelência a afirmar que: [...] a independência de que devem gozar os juízes e as garantias que precisam ter, para julgar sem receio, estariam irremediavelmente postas em xeque se eles houvessem de ressarcir os danos provenientes de seus erros. E mais: ficariam os juízes permanentemente expostos ao descontentamento da parte vencida e o foro se transformaria no repositório de ações civis contra eles. Para corrigir sentença errada bastam recursos; o prejuízo por ela causado é consequência natural da falibilidade humana; essa possibilidade de erro é fato da Natureza, não é ato do juiz. Nesse diapasão, não há que se cogitar de total irresponsabilidade dos órgãos judiciários, esses poderão no exercício de suas funções serem responsabilizados por erros que vierem a realizar, entretanto, essas hipóteses autolimitadoras da soberania desse Poder deverão ser expressas em lei. Atualmente estão regradas, principalmente, no art. 5º, inciso LXXV, da Constituição Federal (regulamentado pelo artigo 630 do Código de Processo Penal), além do artigo 133 do Código de Processo Civil, este no entanto, como frisa o recorrente, define a responsabilidade subjetiva do magistrado, exigindo deste modo do jurisdicionado a comprovação do dolo ou culpa do órgão judiciário responsável pela ação ou omissão que eventualmente lhe acarretou o dano [...]. Na mesma linha, confira-se o seguinte precedente: Constitucional e Administrativo. Embargos de declaração em recurso extraordinário. Conversão em agravo regimental. Responsabilidade objetiva do Estado. Prisão em flagrante. Absolvição por falta de provas. Art. 5º, LXXV, 2ª parte. Atos jurisdicionais. Fatos e provas. Súmula STF n. 279. 1. Embargos de declaração recebidos como agravo regimental, consoante iterativa jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. 2. O Supremo Tribunal já assentou que, salvo os casos expressamente previstos em lei, a responsabilidade objetiva do Estado não se aplica aos atos de juízes. 3. Prisão em flagrante não se confunde com erro judiciário a ensejar reparação nos termos da 2ª parte do inciso LXXV do art. 5º da Constituição Federal. 4. Incidência da Súmula STF n. 279 para concluir de modo diverso da instância de origem. 5. Inexistência de argumento capaz de infirmar o entendimento adotado pela decisão agravada. Precedentes. 6. Agravo regimental improvido (RE n. 553.637 ED, Relator(a): Min. Ellen Gracie, Segunda Turma, julgado em 4.8.2009). 534 Jurisprudência da QUARTA TURMA 4. Diante do exposto, nego provimento ao recurso do Condomínio do Shopping Conjunto Nacional e dou provimento ao recurso de Mozariém Gomes do Nascimento. É como voto. VOTO-VOGAL O Sr. Ministro Raul Araújo: Sr. Presidente, também acompanho V. Exa. e o Sr. Ministro Marco Buzzi, lembrando aquele precedente de que fui Relator, quando imputamos responsabilidade à seguradora de plano de saúde pelo pagamento das despesas hospitalares decorrentes de antecipação de tutela. Este caso é semelhante. Nego provimento ao recurso especial do Condomínio e dou provimento ao recurso de Mozariém Gomes do Nascimento. VOTO-VISTA O Sr. Ministro Marco Buzzi: Trata-se de recursos especiais, interpostos por Condomínio do Shopping Conjunto Nacional de Brasília (CNB) e Mozariém Gomes do Nascimento, no intuito de ver reformado o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, nos autos da ação inibitória c.c. antecipação de tutela, proposta pelo primeiro em face do segundo. O aresto atacado restou assim ementado: Apelação. Condomínio. Destinação do imóvel. Atividade. Restaurante. Assembléia condominial. Proibição não verificada. Laudo pericial. Quesitos. Capacidade de sobrecarga. Responsabilidade. Danos materiais e morais. Documento novo. O artigo 397 do CPC permite a juntada de documentos novos quando destinados a fazer prova de fatos ocorridos depois dos articulados. Não se enquadrando no conceito de documento novo o juntado em sede de apelação, não é possível a sua apreciação. Não há nulidade na perícia decorrente de ausência de manifestação sobre quesito que não foi aventado pela parte. Não havendo proibição para a execução da atividade de restaurante no pavimento onde se situa o imóvel, e tratando-se de atividade lícita, pode ser exercida pelo réu. RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 535 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Não pode o juiz, de ofício, impor condenação ao autor por danos materiais e morais decorrentes de ordem judicial exarada em antecipação de tutela que determinou a interdição de restaurante se o autor não agiu com má-fé ou culpa, ou praticou ato ilícito, mormente quando o réu não apresentou reconvenção nesse sentido. (fl. 562, e-STJ). Os embargos de declaração interpostos pelo condomínio restaram rejeitados (fls. 595-598, e-STJ), e aqueles do réu, parcialmente acolhidos (fls. 590-594, e-STJ). Em suas razões (art. 105, III, a, da CF), Condomínio do Shopping Conjunto Nacional de Brasília (CNB) defende violação aos artigos 128, 460 e 535 do CPC, 3º, 9º e 19 da Lei n. 4.591/1964, 1.228 e 1.336, do CC. Sustenta, em síntese, a omissão do aresto Estadual, e o desrespeito à convenção do condomínio, a qual não autoriza a instalação de restaurante na área litigiosa. De sua vez, o réu Mozariém Gomes do Nascimento defende, em suas razões recursais (art. 105, III, a e c, da CF), além do dissídio jurisprudencial, a afronta aos artigos 273, § 3º, 475-O, I, e 811, I, todos do CPC. Para tanto, sustenta que a responsabilidade pelos danos causados em decorrência do deferimento da tutela antecipada, posteriormente revogada, é objetiva. Após as contrarrazões e decisão de admissibilidade do recurso especial, os autos ascenderam a esta egrégia Corte de Justiça. É o relatório. Acompanho o eminente Relator. O cerne da discussão que culminou no meu pedido de vista reside na viabilidade de o autor, em razão da revogação da tutela antecipada deferida initio litis, responder pelos danos causados ao réu, independentemente de pedido da parte adversa. Com efeito, a interpretação sistemática dos artigos 273, § 3º, 475-O, I e II, e 811, todos do CPC, permite extrair do sistema processual civil a responsabilidade objetiva daquele que postula antecipação dos efeitos da tutela e, em decorrência de tal circunstância, causa danos ao réu que, ao final, sagra-se vencedor, por ser titular do direito material discutido na demanda. Tal interpretação possui respaldo na doutrina processualista pátria, que, diante da similitude existente entre os institutos da tutela cautelar (art. 811 do CPC), e da antecipada de tutela (art. 273 do CPC) - espécies do gênero tutelas de urgência -, determina a aplicação da previsão constante do art. 811 do CPC, analogicamente, aos casos em que os prejuízos ao réu sejam oriundos 536 Jurisprudência da QUARTA TURMA do deferimento de tutela antecipada no curso da lide, independentemente de pedido do réu para que tal condenação seja efetivada na sentença, porquanto cuida-se de responsabilidade processual objetiva. Sobre o assunto: Responsabilidade. Revogada a antecipação de tutela, o demandante fica obrigado a responder pelos danos eventualmente causados ao demandado (arts. 273, § 3º, e 475-O, I, CPC). Trata-se de responsabilidade objetiva, independente de dolo ou culpa. Basta o fato objetivo da revogação aliado ao dano para responsabilização do demandante. (Marinoni, Luiz Guilherme. Código de processo civil anotado artigo por artigo. 3ª ed. São Paulo: RT, 2011, p. 276). Rejeitada a pretensão do autor, não parece possível sejam mantidos os efeitos decorrentes da antecipação da tutela. Essa providência foi tomada com base em cognição sumária, que apontou para a probabilidade do direito afirmado na inicial. Investigação mais profunda dos fatos revelou, todavia, o equívoco dessa conclusão, o que motivou a improcedência da pretensão. (...) Se o beneficiário obtiver a tutela satisfativa referente à sanção e o resultado do processo lhe for desfavorável, surgirá, em tese, o dever de indenizar a parte contrária, fundado na responsabilidade objetiva de quem se beneficia indevidamente com a tutela provisória (CPC, art. 811). Esta conclusão está fundada na premissa de que à tutela antecipada aplicam-se as regras da cautelar, tendo em vista tratar-se de espécies do mesmo gênero. (Bedaque, José Roberto dos Santos. Tutela cautelar e tutela antecipada: Tutelas sumárias e de urgência. 5ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 431 e 434-435). Ponto que não desperta maiores polêmicas em sede de doutrina e de jurisprudência é o de que a responsabilidade daquele que se beneficia da tutela antecipada é objetiva, a exemplo do que o art. 811 reserva, expressamente, para o beneficiário da “tutela cautelar”. É o que, de resto, extrai-se do inciso I do art. 475O, que, no particular, não aceita nenhuma das ressalvas feitas pelo § 3ª do art. 273. Por “responsabilidade objetiva” deve ser entendido que o beneficiário da tutela antecipada, pelo simples fato de o ser, deve responder, perante a parte contrária, pelos prejuízos que ela, de alguma forma, experimentar. Não se cogita, na espécie, de perquirir qualquer grau de culpabilidade do beneficiário. Basta seu favorecimento com a tutela antecipada. Trata-se, inequivocamente, de “tutela genérica”, com finalidade indenizatória, a ser exercitada, em momento oportuno (quando a tutela antecipada deixar de ser eficaz), pela parte contrária. (...) Considerando que todos os elementos relativos à reparação do dano encontram-se nos autos do processo em que a tutela foi antecipada e cumprida, RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 537 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA nada mais coerente, visando à otimização da prestação jurisdicional, que a parte que se sinta prejudicada possa valer-se daqueles mesmos autos para perseguir sua indenização, aplicando-se, ao caso, o disposto no inciso II do art. 475-O. não há nisso uma “nova ação” ou um “novo processo”. A “ação” e o “processo” são os mesmos que já existem, alterando-se, apenas, a busca de uma diversa tutela jurisdicional diante dos fatos derivados da concessão e do cumprimento da tutela antecipada. (Bueno, Cássio Scarpinella. Cursos Sistematizado de Direito Processual Civil. v.4. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 85-86). Com efeito, firmada a possibilidade de aplicação dos artigos 475-O e 811 do CPC ao instituto da antecipação de tutela, por força do disposto no art. 273, § 3º, do CPC, demonstra-se prescindível pedido expresso do réu - por meio de reconvenção ou mesmo ação autônoma - visando a indenização pelos prejuízos sofridos em decorrência de antecipação de tutela contra si deferida, e posteriormente revogada. Isso porque, o art. 811 do CPC permite que tais prejuízos sejam apurados em liquidação de sentença, deflagrada pelo réu da ação, dispensando, inclusive, condenação expressa do autor a tal pagamento quando do julgamento de improcedência da demanda cautelar. Nesse sentido, leciona o mestre Ovídio A. Baptista da Silva: Como e onde, todavia, se irá averiguar e declarar a existência de tais prejuízos, senão da fase de liquidação dos danos, prevista pelo art. 811? Como mostra Galeno Lacerda, diferentemente do que acontece no Direito alemão, entre nós a indenização não necessita de ser pedida em ação autônoma ou através de demanda reconvencional, inserida no processo da ação principal. Daí sua conclusão, rigorosamente correta, de ser dispensável, e até mesmo impossível, que a sentença do processo principal contenha um capítulo condenando aquele que executara a medida cautelar a indenizar perdas e danos (...) Sendo assim, então a sentença de liquidação do art. 811, parágrafo único, não pode ser tratada como se fora uma ordinária ação de liquidação de sentença condenatória que, no caso, por definição ainda não houve. Tem-se de condeber o art. 811 como um efeito anexo da sentença desfavorável proferida no processo principal, que se traduz na outorga da pretensão à liquidação de danos, cuja existência se há de provar na própria demanda de liquidação. (Do processo Cautelar. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 233-234). Na mesma linha, retira-se da jurisprudência desta Corte de Justiça: Processual Civil. Medida cautelar. Indenização. Responsabilidade objetiva. Interpretação do art. 811, do CPC. Sociedade de fato. Inexistência. Sumula n. 7-STJ. 538 Jurisprudência da QUARTA TURMA I - Consoante a melhor doutrina, “o Código estabelece, expressamente, que responda pelos prejuízos que causar a parte que, de ma-fé, ou não, promove medida cautelar. Basta o prejuízo, se ocorrente qualquer das espécies do art. 811, I e V, do CPC e, nesse tipo de responsabilidade objetiva processual, o pedido de liquidação e formulado nos próprios autos, com simples invocação de qualquer dos fundamentos do art. 811 do CPC. II - Sociedade de fato não comprovada. (Sumula n. 7-STJ). III - Recurso do espólio-réu provido e recurso da autora improvido. (REsp n. 127.498-RJ, Rel. Min. Waldemar Zveiter, 3ª Turma, J. em 20.5.1997). Tal raciocínio, como visto acima, deve ser aplicado aos casos de revogação de tutela antecipada, porquanto se a legislação sequer exige a condenação expressa para que a parte adversa pleiteie a liquidação de sentença, na qual demonstrará os prejuízos mediante a instauração do contraditório, não é crível que se vede a condenação, ex officio, pelo magistrado, e a consequente apuração do quantum em fase liquidatória. É o caso dos autos, porquanto o magistrado singular, ao promover a revogação da antecipação dos efeitos da tutela no bojo da sentença, condenou o autor a ressarcir os prejuízos suportados pelo réu, resultantes de tal medida, determinando que as quantias fossem apuradas em liquidação de sentença. Do exposto, acompanho o judicioso voto do eminente Relator, para negar provimento ao recurso do autor, e prover aquele interposto pelo réu. É o voto. RECURSO ESPECIAL N. 1.298.576-RJ (2011/0306174-0) Relator: Ministro Luis Felipe Salomão Recorrente: Manoel Lima dos Santos Cunha Advogado: Elenice C de Almeida e outro(s) Recorrido: Antonio Lopes da Silva Cunha Advogado: Octávio Augusto Brandão Gomes e outro(s) RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 539 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA EMENTA Responsabilidade civil. Recurso especial. Apreciação, em sede de recurso especial, de matéria constitucional. Inviabilidade. Compensação por danos morais, por abandono afetivo e alegadas ofensas. Decisão que julga antecipadamente o feito para, sem emissão de juízo acerca do seu cabimento, reconhecer a prescrição. Paternidade conhecida pelo autor, que ajuizou a ação com 51 anos de idade, desde a sua infância. Fluência do prazo prescricional a contar da maioridade, quando cessou o poder familiar do réu. 1. Embora seja dever de todo magistrado velar a Constituição, para que se evite supressão de competência do egrégio STF, não se admite apreciação, em sede de recurso especial, de matéria constitucional. 2. Os direitos subjetivos estão sujeitos à violações, e quando verificadas, nasce para o titular do direito subjetivo a faculdade (poder) de exigir de outrem uma ação ou omissão (prestação positiva ou negativa), poder este tradicionalmente nomeado de pretensão. 3. A ação de investigação de paternidade é imprescritível, tratando-se de direito personalíssimo, e a sentença que reconhece o vínculo tem caráter declaratório, visando acertar a relação jurídica da paternidade do filho, sem constituir para o autor nenhum direito novo, não podendo o seu efeito retrooperante alcançar os efeitos passados das situações de direito. 4. O autor nasceu no ano de 1957 e, como afirma que desde a infância tinha conhecimento de que o réu era seu pai, à luz do disposto nos artigos 9º, 168, 177 e 392, III, do Código Civil de 1916, o prazo prescricional vintenário, previsto no Código anterior para as ações pessoais, fluiu a partir de quando o autor atingiu a maioridade e extinguiu-se assim o “pátrio poder”. Todavia, tendo a ação sido ajuizada somente em outubro de 2008, impõe-se reconhecer operada a prescrição, o que inviabiliza a apreciação da pretensão quanto a compensação por danos morais. 5. Recurso especial não provido. 540 Jurisprudência da QUARTA TURMA ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Ministros da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça acordam, na conformidade dos votos e das notas taquigráficas a seguir, por unanimidade, negar provimento ao recurso especial, nos termos do voto do Senhor Ministro Relator. Os Srs. Ministros Raul Araújo, Maria Isabel Gallotti, Antonio Carlos Ferreira e Marco Buzzi votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 21 de agosto de 2012 (data do julgamento). Ministro Luis Felipe Salomão, Relator DJe 6.9.2012 RELATÓRIO O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão: 1. Manoel Lima dos Santos Cunha ajuizou, em outubro de 2008, ação de indenização por danos morais em face de Antonio Lopes da Silva, por abandono afetivo. Afirma que nasceu em 28 de fevereiro de 1957 e, em agosto de 2007, moveu ação de investigação de paternidade em face do réu. Sustenta que sempre buscou o afeto e reconhecimento de seu genitor, “que se trata de um pai que, covardemente, durante todos esses anos, negligenciou a educação, profissionalização e desenvolvimento pessoal, emocional, social e cultural de seu filho”. Afirma que a conduta do réu causou prejuízo à formação de sua personalidade, decorrente da falta de afeto, cuidado e proteção. Acena que experimentou complexos de inferioridade e rejeição e, diferentemente da conduta dispensada para com os demais filhos, “sempre foi humilhado e e inferiorizado por seu próprio pai durante o período em que” mantiveram convívio. (fls. 33-58) O Juízo da 5ª Vara Cível do Foro Regional da Barra da Tijuca, em decisão interlocutória, rejeitou a arguição de prescrição suscitada pelo réu (fls.121). Interpôs o requerido agravo de instrumento (fls. 5-29) para o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, que deu provimento ao recurso. (fls. 187-191) A decisão tem a seguinte ementa: Agravo de instrumento. Civil e Processual Civil. Ação de indenização por danos morais decorrentes de abandono. Alegação de prescrição. Ação que RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 541 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA prescreve em três anos ao teor do art. 206, § 3º, V do CC. Inexistência de causa obstativa da fluência do lapso prescricional. Indivíduo maior. Inexistência de imprescritibilidade. Decisão que reconhece a prescrição nesta sede, operando efeitos meritórios no processo. Recurso conhecido e provido para reconhecer a prescrição, julgando extinto processo com resolução do mérito na forma do art. 269, IV, do CPC. Inconformado com a decisão colegiada, interpõe o autor recurso especial, com fundamento no artigo 105, inciso III, alíneas a e c, da Constituição Federal, sustentando divergência jurisprudencial e violação aos artigos 197, 205, 206 e 1.596 do Código Civil; 6º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro e 5º e 227 da Constituição Federal. Afirma que, desde o seu nascimento, o recorrido sabia ser seu pai, todavia somente após cinquenta (50) anos reconheceu a paternidade. Argumenta que o réu tem outros dois filhos aos quais dedicou cuidados integrais, “não só no sentido emocional, mas também financeiramente”, proporcionado apenas aos demais filhos “formação de excelência”. Sustenta que, enquanto conviveu com o demandado, sofreu desprezo, discriminação e humilhações repetidas, causando-lhe dor psíquica e prejuízo à formação de sua personalidade, decorrentes da falta de afeto, cuidado e proteção. Sustenta que só houve o reconhecimento da paternidade em 2007, não havendo falar em decurso do prazo prescricional. Em contrarrazões, afirma o recorrido que: a) o recorrente não enfrenta o cerne da questão submetida ao recurso e agita matérias novas, não enfrentadas pelas instâncias ordinárias; b) não há prequestionamento; c) é inviável a apreciação em recurso especial da apontada violação aos artigos 1º, 3º, 5º e 227 da Constituição Federal; d) não houve a devida demonstração da divergência jurisprudencial; e) o recurso pretende o reexame de provas; f ) o recorrente deixa claro que desde a tenra infância sabe quem é seu pai, todavia só com mais de 50 anos de idade ajuizou ação de investigação de paternidade, não podendo reivindicar os alegados danos morais, tendo em vista a prescrição, decorrente de sua própria desídia; g) não ofereceu compensação financeira para evitar o reconhecimento de paternidade; h) o recorrente jamais buscou os benefícios afetivos advindos de sua paternidade reconhecida, pretendendo fazer de sua ascendência “fonte de enriquecimento, tentando, por diversos meios e modos, alcançar em vida de seu pai, herança a que somente terá direito após seu falecimento”; i) alega, mas não prova que era humilhado, fazendo contraprova 542 Jurisprudência da QUARTA TURMA do afirmado abandono ao reconhecer que durante um período houve convívio entre as partes; j) o recorrente não reivindicou oportunamente o reconhecimento da paternidade, eximindo-se do convívio paterno. O recurso especial foi admitido. É o relatório. VOTO O Sr. Ministro Luis Felipe Salomão (Relator): 2. Cumpre observar que, embora seja dever de todo magistrado velar a Constituição, para que se evite supressão de competência do egrégio STF, não se admite apreciação, em sede de recurso especial, de matéria constitucional, ainda que para viabilizar a interposição de recurso extraordinário: Processual Civil. Embargos de declaração. Art. 557 do CPC. Recurso em confronto com súmula e jurisprudência do STJ. Ofensa ao art. 535 do CPC não configurada. Rediscussão da matéria de mérito. Impossibilidade. Prequestionamento para fins de interposição de recurso extraordinário. Inviabilidade. Acolhimento parcial. [...] 3. Sob pena de invasão da competência do STF, descabe analisar questão constitucional em Recurso Especial, ainda que para viabilizar a interposição de Recurso Extraordinário. 4. Embargos de declaração parcialmente acolhidos, sem efeitos infringentes. (EDcl no AgRg no REsp n. 886.061-RS, Rel. Ministro Herman Benjamin, Segunda Turma, julgado em 20.8.2009, DJe 27.8.2009). 3. A matéria em debate cinge-se à questão da ocorrência ou não da prescrição, reconhecida pela Corte de origem, para ajuizamento de ação por filho contando cinquenta e um anos de anos de idade, buscando compensação por danos morais decorrentes de afirmados abandono afetivo e humilhações ocorridas quando autor ainda era menor de idade. No caso, não é discutido no recurso o cabimento da indenização (precedente contido no REsp n. 1.159.242-SP), pois a matéria controvertida devolvida a esta Corte limita-se a saber se, tendo o autor desde sempre conhecimento de quem era seu pai biológico, se ainda assim, decorridos muitos anos após sua maioridade, pode ajuizar ação buscando compensação por danos morais oriundos do descumprimento dos deveres relativos ao poder familiar (pátrio RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 543 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA poder, na literalidade do Código Civil de 1916) e de afirmadas humilhações sofridas durante a primeira parte infância - quando conviveu com o recorrido. A decisão de primeira instância consignou: Partes legítimas e bem representadas e presentes os pressupostos processuais e as condições da ação. Rejeito a argüição de prescrição, tendo em vista que a paternidade do réu foi reconhecida em 2007, não havendo que se falar em decurso do prazo prescricional para a presente ação de indenização, que tem como causa de pedir o abandono, até porque a situação se protraiu no tempo. (fl. 121) O acórdão recorrido, por seu turno, dispôs: O agravante insurge-se contra a decisão, por entender, em suma, que o transcurso do prazo prescricional inicia-se com a contagem da maioridade e que a inexistência de reconhecimento de paternidade não é causa suspensiva desse prazo. Alega ainda descabimento de quebra de sigilo fiscal determinada via ofício. [...] Razão pela qual não pode agora manejar ação que objetiva recebimento de indenização com espeque em danos morais decorrentes de abandono, pois tal pretensão revela-se prescrita. Deve incidir in casu o disposto nos arts. 197, II, e 206, § 3º, V, ambos do CC. Pelos quais não corre a prescrição entre ascendente e descendente durante a vigência do poder familiar, e será de três anos o prazo prescricional para pleitearse a reparação civil. A imprescritibilidade do direito ao reconhecimento somente se admite quanto ao atributo da personalidade, referente ao direito ao reconhecimento da condição de filho, ou, em outras palavras, Para garantia do status filiae, conforme o art. 27 do ECA. Ademais, segundo o clássico escólio de Agnelo Amorim Filho, não se admite a imprescritibilidade de ações condenatórias, onde estão em jogo direitos subjetivos. Com efeito, a inexistência de sentença a reconhecer a paternidade não se revela como obstativa do transcurso do lapso prescricional, tendo em vista não ser nenhuma das hipóteses previstas no Código. Dessarte, reconhece-se a prescrição de ofício, nesta sede; razão pela qual a decisão a quo merece ser reformada e, com isso, opere-se o efeito expansivo objetivo externo. (fls. 189-191) 544 Jurisprudência da QUARTA TURMA 4. A doutrina civilista, desde Windscheid, que trouxe para o direito material o conceito de actio, direito processual haurido do direito romano, diferencia com precisão os direitos subjetivo e potestativo. O primeiro é o poder da vontade consubstanciado na faculdade de agir e de exigir de outrem determinado comportamento para a realização de um interesse, cujo pressuposto é a existência de uma relação jurídica. Nessa esteira, Caio Mário afirmava que o direito subjetivo, visto dessa forma, sugere sempre de pronto a ideia de uma prestação ou dever contraposto de outrem: Quem tem um poder de ação oponível a outrem, seja este determinado, como nas relações de crédito, seja indeterminado, como nos direitos reais, participa obviamente de uma relação jurídica, que se constrói com um sentido de bilateralidade, suscetível de expressão pela fórmula poder-dever: poder do titular do direito exigível de outrem; dever de alguém para com o titular do direito. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. v. 1. 20ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 36). Encapsulados na fórmula poder-sujeição, por sua vez, estão os chamados direitos potestativos, a cuja faculdade de exercício não se vincula propriamente nenhuma prestação contraposta (dever), mas uma submissão à manifestação unilateral do titular do direito, muito embora tal manifestação atinja diretamente a esfera jurídica de outrem. Os direitos potestativos, porque a eles não se relaciona nenhum dever, mas uma submissão involuntária, são insuscetíveis de violação, como salienta remansosa doutrina. Os direitos potestativos podem ser constitutivos - como o que tem o contratante de desfazer o contrato em caso de inadimplemento -, modificativos - como o direito de constituir o devedor em mora, ou o de escolher entre as obrigações alternativas -, ou extintivos - a exemplo do direito de despedir empregado ou de anular contratos eivados de vícios (AMARAL, Francisco. Direito civil: introdução. 6ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 201-202). Somente os direitos subjetivos estão sujeitos a violações, e quando ditas violações são verificadas, nasce para o titular do direito subjetivo a faculdade (poder) de exigir de outrem uma ação ou omissão (prestação positiva ou negativa), poder este tradicionalmente nomeado de pretensão. Dessarte, por via de consequência, somente os direitos subjetivos possuem pretensão, ou seja, o poder de exigência de um dever contraposto, já que este RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 545 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA dever inexiste nos direitos potestativos nem nos direitos que se exercem por meio de ações de estado. O sistema civil brasileiro de 1916, como é amplamente sabido, não tratou com muito esmero os institutos da prescrição e da decadência, atribuindo prazos ditos prescricionais a direitos potestativos, sujeitos evidentemente a decadência. Colhem-se como exemplos dessa erronia o pedido de anulação de casamento (art. 178, § 1º e § 4º, II, § 5º, I e II), a ação para se contestar a paternidade de filho (art. 178, § 3º), a ação para revogar doação (art. 178, § 6º, I), ação do adotado para se desligar da adoção (art. 178, § 6º, XIII), ação para anulação de contratos em razão de vício de vontade (art. 178, § 9º, inciso V). Quanto à prescrição, desde o diploma revogado, o legislador optou por prever um prazo geral (art. 177) e situações discriminadas sujeitas a prazos especiais (art. 178), sem exclusão de outros prazos conferidos por leis específicas. Grosso modo, esse método foi transferido para o Código Civil de 2002, que também prevê um prazo geral (art. 205), e prazos específicos (art. 206) de prescrição. Essa sistemática, por si só, possui a virtualidade de apanhar, ordinariamente, todas as pretensões de direito subjetivo e lhes conferir um prazo de perecimento: se a pretensão não se enquadra nos prazos prescricionais específicos, sujeitarse-á, certamente, ao prazo geral. Somente alguns direitos subjetivos, observada sua envergadura e especial proteção, não estão sujeitos a prazos prescricionais, como na hipótese de ações declaratórias de nulidades absolutas, pretensões relativas a direitos da personalidade e ao patrimônio público. Esta é a lição de abalizada doutrina; A pretensão é própria dos direitos subjetivos, não existindo nos direitos potestativos nem nos direitos que se exercem por meio de ações prejudiciais ou de estado. Nas ações para o exercício de um direito potestativo, o autor não exige prestação alguma do réu, querendo apenas que o juiz modifique, por sentença, a relação jurídica que admite a modificação pretendida, como, por exemplo, a ação do foreiro para resgatar a enfiteuse e converter em propriedade plena a propriedade até então restrita. (GOMES, Orlando. Introdução ao direito civil. 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 99). Não estão sujeitos à prescrição nem à usucapião: 3º) As ações de estado, isto é, as que se destinam a fazer reconhecida a situação jurídica da pessoa no Estado ou na família, por exemplo: como cidadão, pai, 546 Jurisprudência da QUARTA TURMA cônjuge ou filho. O estado da pessoa é a situação jurídica a ela atribuída pela ordem jurídica em determinadas circunstâncias; desde se demonstre a existência dessas circunstâncias, é forçoso que o estado correspondente seja reconhecido à pessoa, porque a determinação dele é de ordem pública. O estado das pessoas tem, além disso, um aspecto moral, que não pode ser posto de lado, e que revela, mais claramente, a íntima ligação, que existe entre ele e a organização jurídica da sociedade. (BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil. Campinas: Servanda, 2007, pp. 401 e 402). A distinção entre direitos potestativos e subjetivos, como bem assinala Caio Mário da Silva Pereira, muito embora seja de nítida feição acadêmica, mostrou-se fundamental para solucionar um dos mais antigos problemas de direito civil, o da diferença entre prescrição e decadência. Assim, a prescrição é a perda da pretensão inerente ao direito subjetivo, em razão da passagem do tempo, ao passo que a decadência se revela como o perecimento do próprio direito potestativo, pelo seu não exercício no prazo predeterminado. Este é o antigo magistério de Antônio Luís da Câmara Leal: Posto que a inércia e o tempo sejam elementos comuns à decadência e à prescrição, diferem, contudo, relativamente ao seu objeto e momento de atuação, por isso que, na decadência, a ineficácia diz respeito ao exercício do direito e o tempo opera os seus efeitos desde o nascimento deste, ao passo que, na prescrição, a inércia diz respeito ao exercício da ação e o tempo opera os seus efeitos desde o nascimento desta, que, em regra, é posterior ao nascimento do direito por ela protegido. (CAMARA LEAL, A. L. da. Da prescrição e da decadência. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1959, p. 115). Corolário desse entendimento é o de que os deveres jurídicos que subsumem aos direitos subjetivos são exigidos, ao passo que os direitos potestativos são exercidos (AMARAL, Francisco. Idem, p. 565). Nesse passo, o prazo de prescrição, em essência, começa a correr tão logo nasça a pretensão, a qual tem origem com a violação do direito subjetivo. Por outro lado, o prazo decadencial tem início no momento do nascimento do próprio direito potestativo, que deverá ser exercido em determinado lapso temporal sob pena de perecimento: Mas, se as ações relativas à determinação do estado das pessoas são imprescritíveis, os direitos patrimoniais, que dele decorrem estão sujeitos à prescrição. RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 547 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Não importa se o estado de família possa adquirir-se por posse diuturna (nome, fama e tratamento). (BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil. Campinas: Servanda, 2007, ps. 401 e 402). Em primeiro lugar, porque as prescrições e as decadências visam a punir a inércia de um titular. Alguém tem um direito, mas não o usa; pode cobrar a dívida, mas não a cobra; pode anular o casamento, mas não o anula; quer dizer, a faculdade que a lei põe nas mãos do titular é, então, atingida pela prescrição ou pela decadência, o que os antigos exprimiam num brocardo: juge silentium diuturnum silentium, jugis taciturnitas”. A essa razão acrescenta-se uma outra que é, talvez, a razão fundamental em que se amparam os nossos dois institutos. Esta influência do tempo consumido pelo direito pela inércia do titular serve a uma das finalidades supremas da ordem jurídica que é estabelecer a segurança das relações sociais. Tenho eu o direito de anular o meu matrimônio, mas não o faço. Passam-se anos e anos e a situação jurídica contrária ao meu direito se mantém, sem que eu me abalance a praticar os atos capazes de corrigi-la. Então, para que a insegurança não reine na sociedade, para que nós não estejamos expostos, a cada dia, à discussão de certas situações que o tempo já se incumbiu de consagrar, vem a prescrição considerar desaparecidos todos os defeitos e estender sua anistia sobre os defeitos porventura existentes nas relações entre os indivíduos. Como se passou muito tempo sem se modificar o atual estado de coisas, não é justo que continuemos a expor as pessoas à insegurança que o nosso direito de reclamar mantém sobre todos, como uma espada de Dámocles. Então, a prescrição vem e diz: daqui em diante o inseguro é seguro, quem podia reclamar não o pode mais. De modo que, vêem os senhores, o instituto da prescrição tem suas raízes numa das razões de ser da ordem jurídica: distribuir a justiça - dar a cada um o que é seu - e estabelecer a segurança nas relações sociais - fazer com que o homem possa saber com o quê conta e com o quê não conta. [...] Os senhores compreenderão completa e definitivamente esta matéria se reportarem ao que estudamos há duas aulas atrás a respeito da lesão do direito. O que é lesão do direito? A lesão do direito é aquele momento em que o nosso direito subjetivo vem a ser negado pelo não-cumprimento do dever jurídico que a ele corresponde. Sabem os senhores que da lesão do direito nascem dois efeitos: em primeiro lugar, um novo dever jurídico, que a responsabilidade, o dever de ressarcir o dano; e, em segundo lugar, a ação, o direito de invocar a tutela do Estado para corrigir a lesão do direito. Pois bem, a prescrição nós a devemos conceituar em íntima ligação com a lesão do direito. No momento em que surge a lesão do direito e, com ela, aquela sua primeira conseqüência, que é o dever de ressarcir o dano, aí é que se coloca pela primeira vez o problema da prescrição. Se o tempo decorrer longamente sem que o dever secundário, a responsabilidade, 548 Jurisprudência da QUARTA TURMA seja cumprida, então não será mais possível invocar a proteção do Estado, porque a lesão do direito estaria curada. [...] Nasce da lesão do direito o dever de ressarcir e, para mim, o direito de propor uma ação para obter o ressarcimento. Se, porém, deixo que passe o tempo sem fazer valer o meu direito de ação, o que acontece? A lesão do direito se cura, convalesce, a situação que era antijurídica torna-se jurídica; o direito anistia a lesão anterior e já não se pode mais pretender que eu faça valer nenhuma ação. Esta é a conceituação da prescrição que mais nos defende das dificuldades da matéria. [...] Se conceituarmos a prescrição a partir da lesão de direitos, já se está vendo que só há prescrição dos direitos subjetivos. Quer dizer: é preciso que ao direito do titular corresponda um dever jurídico, para que, pela violação deste dever jurídico, surja a lesão e, por conseguinte, prescrição. [...] Quer dizer que a prescrição conta-se sempre da data em que se verificou a lesão do direito. [...] Todos os autores sustentam isto e o fundamento desta contagem está na própria definição de prescrição que estabelecemos. [...] Quer dizer que o que ela faz realmente é exonerar o dever jurídico e não extinguir o direito subjetivo a ele correspondente. Sobre mim cais o dever; eu, por conseguinte, é que me exonero com a prescrição. [...] E os direitos da personalidade? Os direitos da personalidade são com a prescrição naturalmente incompatíveis, porque sendo indispensáveis não poderíamos admitir que a lesão do direito a respeito deles convalescesse. Jamais poderíamos admitir que a lesão de um direito da personalidade convalescesse pelo decurso do tempo, porque isto importaria na disposição desse direito em favor de quem o estivesse ofendendo. [...] Portanto, para os direitos da personalidade, o problema é simplíssimo: a lesão do direito jamais convalesce. (DANTAS, San Tiago. Programa de Direito Civil. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, pp. 342-349). Prescrita a pretensão, remanesce ainda um direito subjetivo desprovido de exigibilidade, como aqueles relacionados às chamadas obrigações naturais. RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 549 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA Com efeito, conclui-se facilmente que, tratando-se de pretensões de direito subjetivo, a prescritibilidade é a regra e a imprescritibilidade a exceção. Destarte, fica evidente a máxima doutrinária, alicerçada sobretudo na teoria trinária das ações de Chiovenda, segundo a qual as tutelas condenatórias (que visam a recompor um direito subjetivo violado, mediante uma prestação do réu) sujeitam-se a prazos prescricionais; as tutelas constitutivas (positivas ou negativas, que visam à criação, modificação ou extinção de um estado jurídico: anulatória ou revocatória de ato jurídico, por exemplo) sujeitam-se a prazos decadenciais; e as tutelas declaratórias (v.g., de nulidade) não se sujeitam a prazo prescricional ou decadencial (AMORIM FILHO, Agnelo. Critério científico para distinguir a prescrição da decadência e para identificar as ações imprescritíveis. In. Revista de Direito Processual Civil. São Paulo, v. 3º, p. 95-132, jan./jun. 1961). 5. Noutro giro, buscando iniciar a solução do caso em exame, observa Caio Mário que a ação de investigação de paternidade tem caráter declaratório, visando acertar a relação jurídica da paternidade do filho, sem constituir para o autor nenhum direito novo, não podendo o seu efeito retrooperante alcançar os efeitos passados das situações de direito: Como via de regra, vêm cumuladas com ações patrimoniais de alimentos ou petição de herança, ostentam nesta hipótese duplo caráter: declaratórias e condenatórias, porque seu objeto, além do acertamento de estado, é a pretensão aos alimentos ou à herança, que importa condenação do réu numa prestação, sendo, pois, providas de execução direta. Mas a ação de investigação de paternidade considerada em si, investigação simples, é puramente declaratória, visa acertar a relação jurídica da paternidade do filho, afirmar a existência de uma condição ou estado, sem constituir para o autor nenhum direito novo, nem condenar o réu a uma prestação. Nem ao mesmo seu objeto será compelir o réu a admitir a relação jurídica da paternidade, porque, declarada por sentença esta relação, o estado de filho fica estabelecido erga omnes, não dependendo de execução o dever de admiti-lo o réu. Este terá reconhecido o estado de filho apenas, independentemente de sua vontade, porque, uma vez declarado o estado de filho, com a procedência da ação, a relação jurídica da filiação importa o modo particular da existência civil do autor, que ele adquire adversus omnes está o réu, vencido na ação. Por motivo de não terem admitido essa caracterização apriorística, autores de mor peso e tribunais mais bem conceituados deixaram-se conduzir a doutrinas e decisões que desafiam emenda. Nunca será demais repetir que, na ação de investigação de paternidade, cumpre dissociar o estado que se declara, da conseqüência patrimonial que se persegue. 550 Jurisprudência da QUARTA TURMA Como acentua Antônio Cicu, não pode haver um estado patrimonial e outro moral, e muito menos a ação de estado poderá ser de natureza variável, apresentando-se ora como ação nitidamente patrimonial ora como puramente moral. O estado não se confunde com o efeito patrimonial; a ação de estado distingue-se daquela em que é pleiteada a conseqüência. Pouco importa que a perquisição judicial da paternidade venha ou não seguida de pedido pecuniário. Esta em nada afetará a natureza daquela, pela razão muito óbvia de que na ação investigatória o objeto colimado é a declaração da existência de uma relação de parentesco, e, conseguido isto, está finda. [...] Este conceito de nímia relevância, terá de ser recordado toda vez que enfrentarmos problemas cujo equacionamento depende da distinção ora formulada, e, por não terem observado, muitos e bons autores obscureceram as questões atinentes aos efeitos do reconhecimento. [...] É certo que a ação de reconhecimento é um direito do filho, e, pois, não poderá o pai compeli-lo a iniciá-la enquanto estiver vivo, para que se possa defender pessoalmente, porque este direito do filho compreende a faculdade de demandar o reconhecimento, quer em vida do pai quer contra os seus herdeiros. Por outro lado, o alegado pai tem também, inequivocamente, o direito de bater às portas do Judiciário, pleiteando, num Juízo de acertamento, a declaração da inexistência da pretendida relação jurídica. [...] O reconhecimento, na verdade, não atribui ao filho natural qualquer direito, não cria para ele uma relação jurídica. Um e outra preexistiam ao ato declaratório da filiação, amalgamados no fenômeno natural da paternidade. Mas esta relação de consagüinidade era estéril, incapaz, só por si, de produzir conseqüências jurídicas, porque, se uma realidade no domínio da Biologia, se um fato incontestável sob o império da lei natural, pela razão de que não há geração espontânea, inexistia no campo do direito, e desconhecida pela lei civil, jamais permitiria ao filho o gozo de qualquer faculdade. [...] Mas é o reconhecimento que torna conhecido o vínculo da paternidade, que transforma aquela situação de fato em relação de direito, que torna objetiva no mundo jurídico uma tessitura até então meramente potencial. [...] Sem dúvida que o ato de reconhecimento, espontâneo ou judicial, é declarativo, e como tal não atribui direitos. É o argumento fundamental dos opositores. É preciso, porém, atentar em que, se a fonte primária dos direitos RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 551 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA direitos subjetivos de que é titular o filho de relações extramatrimoniais é o vínculo da paternidade, e este nasce com a concepção, é certo, também, que a filiação biológica, por si só, não produz efeitos civis. [...] Se a relação natural só produz efeitos quando ocorre o reconhecimento, este é uma causa de sua verificação; se o complexo de direitos se origina da concepção, esta é uma causa de sua existência. [...] Primeiro, verifica-se que do reconhecimento decorre para o filho um estado, estabelece-se para ele uma relação de parentesco, surge o direito a uma denominação patronímica, assegura-se-lhe proteção, e fica ele, se menor, submetido ao pátrio poder. Segundo, vê-se que o reconhecimento importa tornar exigível e civil a obrigação natural de alimentos, e garante-lhe direitos sucessórios. [...] 83. Se o reconhecimento por ato espontâneo ou por sentença judicial, fosse atributivo de direitos, a paternidade teria seu início com ele. Mas, uma vez que se trata de ato declaratório, retroage à data do nascimento ou à época da concepção, no que, aliás, estão acordes todos os autores. Decorre, portanto, de sua natureza declaratória, que o reconhecimento de filiação produz efeitos ex tunc. A regra geral de retroação dos efeitos do reconhecimento encontra, entretanto, um limite intransponível: o respeito às situações jurídicas definitivamente constituídas. Desta sorte, sempre que o efeito retrooperante do reconhecimento encontrar de permeio esta barreira, não poderá transpor, para alcançar os efeitos passados das situações de direito. Assim entendendo, o Supremo Tribunal Federal negou habeas corpus impetrado contra ato de expulsão de estrangeiro num caso em que o reconhecimento de filha ocorreu anos depois da expulsão. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento de Paternidade e seus Efeitos. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, pp. 52-55 e 136-139) 5.1. Na vigência do Código Civil de 1916, o artigo 384 daquele Diploma indicava diversos deveres relevantes que competiam aos pais, relativos ao então denominado “pátrio poder” (rectius, poder familiar): Direito moderno, dizemos, aludindo aos povos de cultura democrática, em que o Estado compreendeu que a instituição do pátrio não pode vigorar no sentido de serem ao pai concedidos direitos e faculdades contra o filho, porque 552 Jurisprudência da QUARTA TURMA “não constitui um direito a beneficiar que o exerce, mas visa apenas à proteção do filho”, e tal preponderância do interesse deste sobre as prerrogativas do pai, que se transformou o instituto do pátrio poder em pátrio dever. Os direitos dos filhos sobrelevam de tal forma os dos pais, que não mais se poderia conceber a existência de um poder paterno como complexo de direitos, puramente, mas ao contrário, só se admite como conjunto de deveres dos pais para com os filhos. [...] 124. Na forma do art. 384 do Código Civil, caberá ao pai natural: [...] Criado e educado fora da companhia do pai, nem por isto fica este isento dos deveres inerentes ao pátrio poder. (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Reconhecimento de Paternidade e seus Efeitos. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, pp. 200, 210 e 214) 5.2. No caso em exame, a causa de pedir do pleito de compensação por danos morais está assentado no descumprimento, pelo réu, dos deveres inerentes aos poder familiar e em alegadas ofensas à honra subjetiva do autor - no período em que havia convívio entre o réu e o autor, correspondente à sua primeira infância. O artigo 392, III, do Código Civil de 1916 dispunha que o pátrio poder extinguia-se com a maioridade do filho que, na vigência daquele Diploma (artigo 9º, caput), ocorria aos vinte e um anos completos: O artigo 168, II, do Código Civil de 1916, por seu turno, prescrevia que não corre a prescrição entre ascendentes e descendentes, durante o pátrio poder: Suspensão da prescrição é a parada, que o direito estabelece, por considerações diversas, ao curso dela, ou o impedimento que opõe ao seu início. Não ocorre a prescrição: 1º) Entre cônjuges, na constância do matrimônio; 2º) Entre ascendentes e descendentes, durante o pátrio poder; 3º) Entre tutelados e seus tutores ou curadores, durante a tutela e curatela. [...] As considerações, que determinam o impedimento do início ou curso da prescrição, nos casos que acabam de ser apontados, entre cônjuges, entre progenitores e filhos-família entre tutores ou curadores e pupilos ou curatelados, são de ordem moral. As relações afetivas que devem existir entre essas pessoas, RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 553 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA a obrigação que umas têm de proteger as outras e velar por seus interesses jurídicos, justificam o preceito legal, a que as impede de liberar-se por prescrição. (BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil. Campinas: Servanda, 2007, p. 415). 5.3. Nessa linha, como o autor nasceu no ano de 1957, fica nítido que o prazo prescricional fluiu a contar do ano de 1978, ainda na vigência do Código Civil de 1916, sendo inequívoco que o pleito exordial cuida-se de direito subjetivo, dentro do que o Diploma revogado estabelecia como direito pessoal. De efeito, a paternidade biológica sempre foi do conhecimento do autor - fato incontroverso nos autos -, portanto o prazo prescricional começou a fluir em 1978, ano em que o autor atingiu a maioridade e cessou os deveres inerentes ao pátrio poder e, também, terminou a causa que impedia o início da contagem do prazo prescrional: No direito pessoal, distinguem-se as prestações positivas das negativas. Se a obrigação se tem de cumprir por um ato positivo do devedor (dare vel facere), desde o momento em que ele não cumpriu violou o direito do credor, e a prescrição se iniciou, isto é, um estado contrário ao direito particular do credor começou a formar-se. Se a obrigação tem de cumprir-se por uma omissão (non facere) a violação do direito se dá, quando o devedor pratica os atos contrários à inação, a que se tinha obrigado. [...] Ações pessoais são as que tendem a exigir o cumprimento de uma obrigação. Dizem-se pessoais propriamente ditas e in rem scriptae. Pertencem à primeira classe: as que se fundam em um contrato, sejam diretas, sejam contrárias, ou em uma declaração unilateral da vontade inter vivos; as que se originam de ato ilícito; e as de nulidade, em geral. Pertencem à segunda classe as que, embora pessoais, podem ser intentadas contra terceiro possuidor, tais como a pauliana, a remissória da cláusula retro, a exibitória. Também podem considerar-se pessoais as ordinariamente denominadas mistas, comunni dividundo, familiae erciscundae e finiumregundorum, porque se originam de relações obrigacionais existentes entre os comunistas e se dirigem a determinadas pessoa. Tal é o parecer de Maynz. (BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil. Campinas: Servanda, 2007, pp. 409 e 431). Dessarte, embora também entenda ter operado a prescrição, data venia, no caso, não parece possível a invocação de prazo prescricional previsto no Código Civil em vigor. Ocorre que, como o artigo 177 do Código Civil de 1916 estabelecia que as ações pessoais prescreviam, ordinariamente, em vinte anos e como o recorrente 554 Jurisprudência da QUARTA TURMA ajuizou a ação buscando compensação, por alegados danos morais, apenas em outubro de 2008, quando contava cinquenta e um anos de idade, fica nítido que operou a prescrição, ainda na vigência do Código Civil de 1916. Assim, não há sequer a necessidade de se analisar a prescrição desse tipo de ação no âmbito do Novo Código Civil, pois, na hipótese em exame, a prescrição iniciou-se e encerrou-se na vigência do velho diploma. 6. Realmente, embora seja certo que o reconhecimento da paternidade constitua decisão de cunho declaratório de efeito ex tunc, todavia “não poderá alcançar os efeitos passados das situações de direito” (PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituição de Direito Civil: Direito de Família.16 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, vol. v, p. 353). E tanto é assim que a jurisprudência do STJ admite a possibilidade da prescrição, mesmo no que tange a direitos hereditários e alimentos: Civil. Ação de investigação de paternidade. Alimentos. Marco inicial. Citação. I. Os alimentos, na ação de investigação de paternidade, têm como termo inicial a data da citação do réu. II. Jurisprudência pacificada no âmbito do STJ (EREsp n. 152.895-PR, rel. Min. Carlos Alberto Menezes Direito, 2ª Seção, DJU de 22.5.2000). III. Recurso especial conhecido e provido. (REsp n. 430.839-MG, Rel. Ministro Aldir Passarinho Junior, Quarta Turma, julgado em 20.8.2002, DJ 23.9.2002, p. 369). Agravo regimental. Ação de investigação de paternidade cumulada com petição de herança. Prescrição. Inocorrência. Aplicação da Súmula n. 83-STJ. Improvimento. I. A ação de investigação de paternidade cumulada com petição de herança, proposta na constância do Código Civil de 1916, não extrapolou o prazo prescricional vintenário. II. O Tribunal de origem, ao afastar a alegada prescrição, decidiu em consonância com o entendimento jurisprudencial desta Corte. Aplicação da Súmula n. 83-STJ. III. O agravo não trouxe nenhum argumento novo capaz de modificar a conclusão alvitrada, a qual se mantém por seus próprios fundamentos. IV. Agravo Regimental improvido. (AgRg no Ag n. 1.247.622-SP, Rel. Ministro Sidnei Beneti, Terceira Turma, julgado em 5.8.2010, DJe 16.8.2010). RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 555 REVISTA DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA É esse também o teor da Súmula n. 149-STF, esclarecendo que é imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não o é a de petição de herança. Tem razão a doutrina quando alerta para a necessidade de estabilidade das relações jurídicas, visto que, no presente caso, a prescrição resultou do fato de o próprio interessado, ao reconhecer que desde a infância sabia que o réu era seu pai, ter permanecido inerte, ante a afirmada lesão ao seu alegado direito subjetivo, de modo a permitir o transcurso, ainda na vigência do Código Civil revogado, de todo o extenso lapso prescricional vintenário para o pleito de compensação por danos morais: A prescrição é uma regra de ordem, de harmonia e de paz, imposta pela necessidade de certeza nas relações jurídicas: finis solicitudinis ac periculi litium, exclamou Cícero. Tolhe o impulso intempestivo do direito negligente, para permitir que se expandam as forças sociais, que lhe vieram a ocupar o lugar vago. E nem se pode alegar que há nisso uma injustiça contra o titular do direito, porque, em primeiro lugar, ele teve tempo de fazer efetivo o seu direito, e, por outro, é natural que o seu interesse, que ele foi o primeiro a desprezar, sucumba diante do interesse mais forte da paz social. (BEVILÁQUA, Clóvis. Teoria Geral do Direito Civil. Campinas: Servanda, 2007, pp. 401 e 402). Desse modo, se o titular permanecer inerte, tem como pena a perda da pretensão que teria por via judicial. Repise-se que a prescrição constitui um benefício a favor do devedor, pela aplicação da regra de que o direito não socorre aqueles que dormem, diante da necessidade do mínimo de segurança jurídica nas relações negociais. A prescrição extintiva, fato jurídico em sentido estrito, constitui nesse contexto, uma sanção ao titular do direito violado, que extingue tanto a pretensão positiva quanto a negativa (exceção ou defesa). Trata-se de um fato jurídico stricto sensu justamente pela ausência de vontade humana, prevendo a lei efeitos naturais, relacionados com a extinção da pretensão. A sua origem está no decurso do tempo, exemplo típico de fato natural. Na prescrição, nota-se que ocorre a extinção da pretensão; todavia o direito em si permanece incólume, só que sem proteção jurídica para solucioná-lo. [...] (...) cresce na jurisprudência do Superior tribunal de Justiça a adoção da teoria da actio nata, pela qual o prazo deve ter início a partir do conhecimento da violação ou lesão ao direito subjetivo. Realmente, a tese é mais justa, diante do princípio da boa-fé. (TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. São Paulo: Método, 2011, pp. 244-245) 556 Jurisprudência da QUARTA TURMA Nasce da lesão do direito o dever de ressarcir e, para mim, o direito de propor uma ação para obter o ressarcimento. Se, porém, deixo que passe o tempo sem fazer valer o meu direito de ação, o que acontece? A lesão do direito se cura, convalesce, a situação que era antijurídica torna-se jurídica; o direito anistia a lesão anterior e já não se pode mais pretender que eu faça valer nenhuma ação. Esta é a conceituação da prescrição que mais nos defende das dificuldades da matéria. [...] Todos os autores sustentam isto e o fundamento desta contagem está na própria definição de prescrição que estabelecemos. [...] Quer dizer que o que ela faz realmente é exonerar o dever jurídico e não extinguir o direito subjetivo a ele correspondente. Sobre mim cais o dever; eu, por conseguinte, é que me exonero com a prescrição. (DANTAS, San Tiago. Programa de Direito Civil. 3 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, pp. 342-349). 7. Diante do exposto, ainda que por fundamento diverso, reconheço ter operado a prescrição e, por conseguinte, nego provimento ao recurso especial. É como voto. RSTJ, a. 24, (228): 461-557, outubro/dezembro 2012 557