DIREITO ECONÔMICO E PÓS-POSITIVISMO: O DIÁLOGO ENTRE A
TEORIA DAS NORMAS DA FILOSOFIA DO DIREITO E A DIVISÃO DE
REGRAS, PRINCÍPIOS E NORMAS DE WASHINGTON ALBINO PELUSO DE
SOUZA*
DERECHO ECONÓMICO Y POS-POSITIVISMO: EL DIÁLOGO ENTRE LA
TEORÍA DE LAS NORMAS DE LA FILOSOFÍA DEL DERECHO Y LA
DIVISIÓN REGLAS, PRINCIPIOS Y LAS NORMAS DE WASHINGTON
PELUSO ALBINO DE SOUZA
Giovani Clark
Leonardo Alves Corrêa
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo apresentar um estudo comparativo da teoria das
normas à luz de duas concepções diferentes. De um lado, a contribuição do debate de
Hart e Dworkin e, posteriormente, Robert Alexy na diferenciação de normas, princípios,
regras. Por outro lado, no âmbito do Direito Econômico, a relevante e ainda atual
proposta de classificação de princípios, regras e normas de Washington Albino Peluso
de Souza. A estrutura do trabalho consiste em: (I) explicar os diferentes paradigmas da
teoria da norma no âmbito da Filosofia do Direito; (II) discutir o debate travado entre
Dworkin e Hart sobre o conceito de Direito; (III) relatar as visões de Dworkin e Alexy
sobre o conceito de norma, regras e princípios; e por fim, (IV) apresentar
detalhadamente a proposta de classificação e definição de princípio, regra e norma
sugerida por Washington Albino Peluso de Souza, na obra “Primeiras Linhas de Direito
Econômico”.
PALAVRAS-CHAVES: TEORIAS DAS NORMAS; FILOSOFIA DO DIREITO;
DIREITO ECONÔMICO;
RESUMEN
Este documento tiene como objetivo presentar un estudio comparativo de la teoría de las
normas a la luz de dos conceptos diferentes. Para una banda, la contribución de la
discusión de Hart y Dworkin y, más tarde, Robert Alexy en la diferenciación de las
normas, principios, reglas. Por otra parte, en virtud de lo Derecho económico, la
clasificación propuesta pertinente y actual de los principios, normas y reglas de
Washington Peluso Albino de Souza. La estructura de la obra consiste en: (i) explicar
los diferentes paradigmas de la teoría en el marco de la Filosofía del Derecho, (ii)
discutir el debate entre Dworkin y Hart sobre el concepto de Derecho, (III) para
informar de las opiniones de Dworkin y Alexis en el concepto de las normas y
principios, y, finalmente, (iv) presentar en detalle la propuesta de clasificación y
*
Trabalho publicado nos Anais do XVIII Congresso Nacional do CONPEDI, realizado em São Paulo –
SP nos dias 04, 05, 06 e 07 de novembro de 2009.
4235
definición de principios, reglas y normas propuestas por Washington Peluso Albino de
Souza, en el "Primer Líneas de Derecho Económico"
PALAVRAS-CLAVE: TEORÍA DE LAS NORMAS; FILOSOFÍA DEL DERECHO,
DERECHO ECONÓMICO.
INTRODUÇÃO
O atual debate da Filosofia do Direito sobre o tema “teoria das normas” adquiriu
um altíssimo grau de refinamento acadêmico nos últimos anos. A temática rompeu
barreiras epistemológicas e, atualmente, tornou-se objeto de estudo e aplicação prática
em todas as disciplinas jurídicas. A disseminação do referido debate teórico, inclusive
em ambientes geralmente refratários aos temas ditos “acadêmicos”, pode representar um
importante indicador do início de um processo de superação de uma concepção legalista
do Direito.
A matéria (teoria da norma), entretanto, depara-se com o interessante paradoxo
da co-existência de diferentes classificações e definições em disciplinas específicas do
Direito. Explicando melhor: a despeito das categorizações normativas propostas pela
Filosofia do Direito, algumas disciplinas jurídicas utilizam classificações e definições
próprias sobre as espécies normativas. É o caso do Direito Econômico, pois, como
veremos, emprega uma qualificação diferenciada ao tratar de regras, princípios e
normas.
Portanto, pergunta-se: por se tratar de uma matéria propedêutica, a classificação
da Filosofia do Direito deve ser adotada pelos demais ramos do Direito? O Direito
Econômico deve renunciar a toda classificação própria em favor de uma coerência e
unidade científica do Direito? Podem as duas classificações existirem
simultaneamente?
O objetivo do presente trabalho é enfrentar o desafio acima lançado. A estrutura
do trabalho consiste em: (I) explicar os diferentes paradigmas da teoria da norma no
âmbito da Filosofia do Direito; (II) discutir o debate travado entre Dworkin e Hart sobre
o conceito de Direito; (III) relatar as visões de Dworkin e Alexy sobre o conceito de
norma, regras e princípios; e por fim, (IV) apresentar detalhadamente a proposta de
classificação e definição de princípio, regra e norma sugerida por Washington Albino
Peluso de Souza, na obra “Primeiras Linhas de Direito Econômico”, como elementos
fundamentais para o estudo sistemático do Direito Econômico.
1TEORIA DAS NORMAS DA FILOSOFIA DO DIREITO: NOÇÕES
PRELIMINARES
4236
A atual discussão sobre o verdadeiro alcance e significado da expressão “póspositivismo”, como paradigma científico do Direito, fornece indícios de que estamos
longe de qualquer consenso mínimo sobre o tema. Em uma análise crítica sobre a
matéria, Travessoni Gomes (2007; 154) aponta que não “há, porém, até agora, uma
definição clara do que seja pós-positivismo; seus conceitos, suas principais teses e,
sobretudo, o que incorpora do movimento que pretende negar (o positivismo jurídico)
ainda não foram estudados de forma satisfatória.”.
O referido processo de alteração paradigmática do Direito (do positivismo para o póspositivismo) pode ser estudado a partir de diferentes horizontes, de forma a alterar o
modo pelo qual o objeto se apresenta ao olhar do pesquisador. Neste sentido, o mesmo
objeto científico (pós-positivismo) pode contemplar um estudo pormenorizado de temas
como: a) a reformulação ou ampliação da concepção do problema ontológico do Direito
(afinal, o que é o Direito?); b) a reaproximação entre moral, Direito e política tão
ignorado pelo paradigma positivista; c) a discussão sobre a existência, ou não, de
método de analise ou formas de interpretação do Direito, tal como se apresenta em um
variado cardápio teórico: (I) uma metódica estruturante (concretude) de Muller; (II) o
método da proporcionalidade de Robert Alexy; (III) a concepção do Direito como
integridade Ronald Dworkin; (IV) a noção de adequabilidade de Klaus Günther e d) o
estudo do pós-positivismo a partir da análise da teoria da norma (regra e princípio) e
suas variações.
Nosso recorte metodológico contemplará o estudo da teoria das normas, em especial, o
debate acadêmico Dworkin X Hart e a posterior contribuição de Robert Alexy. Neste
trabalho, entende-se por “teoria das normas” como o conjunto de formulações teóricas
que enfrentam o problema ontológico e, consequentemente, estudam e problematizam o
conceito e a diferença entre princípios, regras e normas. Repita-se: trata-se apenas de
uma opção metodológica de estudo, ou seja, de uma “possibilidade de leitura” do nosso
objeto e não uma redução ou simplificação do pós-positivismo ao estudo de normas,
regras e princípios.
Souza Cruz (2007; 271) propõe uma interessante classificação sobre a evolução
histórica da compreensão/aplicação dos princípios no Direito. A tríade paradigmática se
dividiria em três momentos históricos distintos: paradigma clássico, paradigma
moderno e paradigma contemporâneo. A contribuição é relevante para o nosso debate,
na medida em que busca promover uma sistematização histórico-científica a partir de
diferentes autores e escolas.
O paradigma clássico – fundado no Estado Liberal de Direito – estruturou-se a partir da
pretensa rigidez da separação dos poderes e os métodos de dedução e subsunção da
escola de Savigny. Neste sentido, o referido paradigma, segundo palavras do
constitucionalista mineiro, “ignora ou apenas vislumbra um papel secundário aos
princípios jurídicos”, ou seja, “os princípios jurídicos eram absorvidos como expressão
de cunho político do legislador típico do constitucionalismo do século XIX” (Souza
Cruz, 2007; 271, 272, 273). Neste período histórico, portanto, a distinção entre
princípios, regras e normas não constitui um objeto de estudo da Filosofia do Direito
e/ou Direito Constitucional.
4237
O paradigma moderno compreende os princípios como normas gerais ou
fundamentais de um sistema. Em um esforço de sintexe, Souza Cruz (2007; 275) assim
define o citado paradigma:
Em suas variantes, os princípios assumem a condição metanormativa por meio da
percepção de algumas que os definiram: desse modo, uns optam pelo fato de que os
princípios exprimiriam os valores retores do ordenamento jurídico; outros vêem seu
traço distintivo no maior grau de abstração; outros derivam seu raciocínio em torno que
entendem ser uma maior indeterminação da sua tipicidade (fatie specie). No entanto,
seja qual for a tese, todos passam a sustentar um papel de proeminência dos princípios
no ordenamento jurídico, chegando alguns a entender haver uma hierarquia entre eles e
as regras no qual os princípios estariam em posição privilegiada.”
Souza Cruz buscará refutar cada uma dessas variantes[1] que, no entendimento
do autor, não logram êxito ao tentarem estabelecer a distinção entre espécies normativas
(princípios e regras), pois “percebe-se que todo o esforço empreendido no sentido de
buscar sintática ou semanticamente características morfológicas típicas de regras e de
princípios deu em nada.” (CRUZ, 2007; 289)
Por fim, no paradigma contemporâneo, inaugurado por Ronald Dworkin, a
distinção entre regras e princípios é fundamentada a partir da diferenciação do “modo de
aplicação” de cada espécie normativa. E este é um ponto central para a compreensão do
debate. Dworkin – e futuramente outros autores, como Robert Alexy – estão
preocupados em apresentar uma diferença entre as espécies normativas fundamentada
na lógica de aplicação/operação de princípios e regras aos casos concretos. Tais autores
buscam superar uma análise da diferenciação de regras e princípios a partir da avaliação
da estrutura formal ou a semântica das espécies normativas, em outras palavras, não é o
texto que definirá sua classificação como regra ou princípio, mas o modo pelo qual
aplicamos e operamos tal texto em um caso concreto. Neste sentido, apresentaremos a
seguir como Dworkin e Alexy vislumbram tal distinção.
1.1- O PARADIGMA CONTEMPORÂNEO: O DEBATE HART-DWORKIN.
O paradigma contemporâneo tem como marco principal o texto de Ronald
Dworkin “O Modelo de Regras I”, escrito ainda na década de 60. O referido texto –
posteriormente incluído como um capítulo da obra “Levando os Direitos a Sério” –
propõe uma ruptura na forma de concepção estrutura normativa do próprio Direito. Para
um melhor entendimento da proposta dworkiniana, se faz necessário recordar o contexto
histórico no qual o texto foi redigido e publicado, ou seja, o célebre debate HartDworkin.
4238
Hebert Hart – antecessor de Dworkin na cátedra de Jurisprudence (teoria do Direito) na
Universidade de Oxford – foi autor de uma das principais obras da Teoria do Direito do
Século XX, denominada “O Conceito de Direito”. No desenvolvimento de sua obra,
Hart tem como principal objetivo a superação do modelo formulado pelo inglês Jonh
Austin, em sua obra “A Delimitação do Objeto do Direito” publicada em 1832.
Hart considera a proposta de Austin por demais simplista e insuficiente em diversos
pontos. Neste sentido, “as oposições a Austin podem ser sumariadas nos seguintes itens:
1) insuficiência da caracterização do Direito como “ordens baseadas em ameaças”; 2)
insuficiência do critério de soberania como “a chave do Direito”; 3) deficiência na
formulação de soberania ilimitada de Austin.” (SGARBI, 2006; 105)
Para Hart (2001; 101), o Direito é composto por uma relação interdependente de regras
primárias e regras secundárias. As regras primárias são modelos de conduta que
estabelecem, independente da vontade do destinatário, uma determinada ação ou
abstenção. Assim, são típicos exemplos de regras primárias, as normas “é proibido usar
celular neste recinto” ou “os usuários de barcos, botes, lanchas e similares devem
utilizar coletes salva-vidas”. Trata-se de uma estrutura normativa rudimentar na medida
em que disciplina um modelo de conduta de abstenção (proibido uso de celular) ou um
modelo de conduta ativo ou de ação (utilizar o colete em caso de uso de barcos, botes,
lanchas e similares).
Hart reconhece a possibilidade das normas primárias assumirem o papel de controle
social em um agrupamento constituído de relações sociais de baixa complexidade. Para
este tipo de estrutura social regulada pelo Direito, o autor denomina de estrutura
integrada por regras primárias de obrigação.
Ora, qual seria a estrutura de uma regulamentação jurídica de sociedades modernas?
Seriam as normas primárias suficientes para a ordenação de estruturas sociais
complexas? Hart buscará responder tal questão indicando três déficits de uma
regulamentação jurídica exclusivamente formulada a partir de regras primárias. São os
defeitos da incerteza, da qualidade estática das regras primárias e, por fim, o problema
da ineficácia. As normas secundárias[2], como veremos a seguir, nascem com o
objetivo mitigar/eliminar os defeitos de uma normatização exclusivamente realizada por
meio de normas primárias.
Em relação ao problema da incerteza, entende Hart que em sociedades reguladas apenas
por meio de normas primárias não é possível identificar com exatidão as normas que
regulamentam as condutas dos indivíduos, ou seja, a preocupação do autor é a ausência
de um critério jurídico-normativo que possa identificar e reconhecer determinada norma
como jurídica Em outras palavras: qual norma identificará (reconhecerá) o que é uma
norma jurídica?
Para solucionar tal problema, Hart apresenta como remédio a regra de reconhecimento,
isto é, “ao modo pelo qual as demais regras do sistema podem ser identificadas, ao
mesmo tempo em que estabelece seus critérios de validade.” (HART, 2006; 410). Neste
sentido, as regras de reconhecimento identificam os critérios por meio dos quais
determinadas regras recebem o status de regras jurídicas. Exemplos de regras de
reconhecimento: normas legisladas pelo órgão competente, prática consuetudinária ou
pela relação de decisões judiciais.
4239
No que tange ao problema da qualidade estática das regras primárias, Hart alerta para o
fato que, em sociedades primitivas (reguladas apenas por meio de regras primárias), a
alteração de tais regras se daria apenas por um lento processo de adaptação social, no
qual condutas facultativas se tornariam lentamente habituais/usuais e, posteriormente,
obrigatórias. Hart pretende solucionar este caso com a adoção da “regra de alteração”,
segundo a qual poderes seriam atribuídos a um indivíduo ou a um grupo de indivíduos
para introduzir, alterar ou suprimir as regras primárias do ordenamento jurídico.
Por fim, em relação ao problema da eficácia, Hart considera também um defeito a
ausência de regras que estabeleçam instâncias oficiais competentes para avaliar o
descumprimento da regra e, consequentemente, a aplicação da sanção. A proposta para
a solução do déficit de eficácia são regras que determinem um órgão judicante
competente, bem como as regras procedimentais: eis as regras de julgamento.
Tipos de regras
Defeitos
Regra
de
Incerteza na
Reconhecimento
identificação de
regras;
Regra de Alteração Natureza estática;
Regra de julgamento
Ineficácia
Objetivos
Estabelecer critérios para a identificação
da validade de uma regra;
Regras que permitem a introdução,
alteração e supressão de uma regra
primária;
Regras que estabelecem a competência
para aplicação de regras primárias
Em um breve resumo: Hart, ao buscar superar o modelo proposto por Austin, defende
um modelo interdependente e complementar de regras primárias e regras secundárias.
Aquelas estabelecem um modelo de conduta de obrigação (abstenção ou ação); estas,
por sua vez, seriam normas que objetivam reconhecer, alterar ou aplicar/julgar as
normas primárias. Apesar da magnitude e importância de sua obra para a ciência do
Direito do século XX, a obra de Hart não vislumbra um papel normativo aos princípios
jurídicos.
Assim como Austin serviu como ponto de partida para a proposta de Hart, Dworkin
elegeu exatamente Hart como alvo principal para o seu violento ataque ao positivismo
jurídico. Vejamos, a seguir, a proposta de Dworkin.
4240
1.2 O PARADIGMA CONTEMPORÂNEO: A TEORIA DA NORMA ENTRE
RONALD DWORKIN E ROBERT ALEXY
No item 3 do famoso Capítulo 2 – O Modelo de Regras I – na obra “Levando os
Direitos à Serio”, Dworkin é enfático ao definir desde logo seu alvo principal: “Quero
lançar um ataque geral contra o positivismo e usarei a versão de Hart como alvo,
quando um alvo específico se fizer necessário.” (DWORKIN, 2002; 35).
O jus-filósofo americano argumenta que os juristas ao discutirem sobre direitos
e obrigações, principalmente naqueles casos considerados difíceis, não fundamentam
sua argumentação apenas em regras jurídicas, mas utilizam princípios, políticas e outros
tipos de padrões[3]. Dworkin sustenta que a inexistência de regra jurídica aplicável ao
caso concreto (lacuna da lei) – exemplo típico do que o autor denomina de “caso difícil”
– seria resolvida pelo jurista a partir de argumentos não previstos expressamente no
ordenamento jurídico na forma de dispositivos legais. Assim, a partir das descrições de
casos concretos[4], Dworkin sustentará que o modelo positivista – alicerçado apenas em
regras jurídicas – “nos força a ignorar os papéis importantes desempenhados pelos
padrões que não são regras” (DWORKIN , 2002; 36).
Para confirmar sua assertiva, Dworkin lança mão do caso Riggs vs. Palmer.
Neste caso, o Tribunal de Nova Iorque teve diante de si o pedido de um herdeiro que
assassinou seu avô com a intenção de herdar. Apesar de não existir expressamente um
dispositivo legal considerando o neto homicida como indigno de suceder, o Tribunal o
excluiu da ordem sucessória com fundamento no principio de que ninguém pode se
beneficiar de seus próprios atos ilícitos.
Neste sentido, o autor americano considera que o Direito é composto por duas
espécies normativas: regras e princípios. Eis o primeiro grande impacto da obra de
Dworkin: denunciar a fragilidade de um sistema jurídico constituído apenas por regras e
reconhecer, consequentemente, a co-existência de outra espécie normativa (portanto,
capaz também de gerar direitos e obrigações), os princípios jurídicos.
A diferença entre princípios e regras, então, não reside em nenhum aspecto
sintático-semântico. Em outras palavras: nosso autor está convencido que a distinção de
princípios e regras a partir de critérios de natureza sintático-semântica (por exemplo,
uma maior generalidade ou abstração dos princípios se comparado com as regras) não
representa um caminho argumentativo mais adequado[5]. Para a teoria dworkinana, a
diferença entre essas duas espécies normativas se reside em uma distinção na lógica de
aplicação de regras e princípios.
Mas afinal, qual seria a diferenciação entre a “lógica-regra” e a “lógica-princípio”?
As regras possuem uma forma de aplicação fundamentada na lógica do tudo-ounada, ou seja, se um fato se enquadra perfeitamente ao comando estabelecido na regra
deve-se aplicar aquela espécie normativa. Caso contrário, a aplicação da regra deve ser
afastada pelo jurista. Em verdade, Dworkin defende a subsunção clássica – o que não
deixa de ser atualmente problemático em termos hermenêuticos – caso estejamos diante
de uma regra. Nas palavras do autor:
4241
“As regras são aplicáveis à maneira do tudo ou nada. Dados os fatos de uma regra
estipula, então ou a regra é válida, e neste caso a resposta que ele fornece deve ser
aceita, ou não é válida, e neste caso em nada contribui para a decisão.” (DWORKIN,
2002; 39)
A sistemática de aplicação dos princípios, por sua vez, não segue a lógica do
tudo ou nada das regras jurídicas, pois se manifestam como padrões a serem
observados, ou seja, uma razão que conduz o argumento numa certa direção de justiça,
equidade ou uma dimensão da moralidade.[6]
Dworkin ainda aponta uma segunda diferença entre regras e princípios: Estes
teriam uma dimensão de peso ou importância, de forma que, em caso de colisão entre os
princípios, deverá o intérprete mensurar a força relativa de cada um. O conflito de
regras, por sua vez, poderia ser resolvido no plano da validade, uma vez que o sistema
jurídico pode regular tal conflito por meio de critérios legais específicos (hierarquia,
especialidade, temporal).
Como afirma Souza Cruz ao comentar a visão dworkiana sobre os princípios
jurídicos:(CRUZ, 2007: 291)
“Desse modo, percebe-se que os princípios não fixam absolutamente sua aplicação, eis
que exigem uma atitude reflexiva do intérprete de modo a respeitar-lhe sua dimensão de
peso. Assim, não existem princípios contraditórios e sim princípios que concorrem entre
si. E a solução de tal concorrência não deve seguir a proposta de discricionariedade
inerente ao positivismo, mas uma reflexão que traduza os aspectos mais relevantes e
profundos da moralidade política.”
Robert Alexy, por sua vez, buscará “aperfeiçoar”, ao seu modo, a distinção entre
regras e princípios. Percebe-se desde logo, portanto, que Alexy é tributário do grande
giro proporcionado por Dworkin, adotando uma concepção do sistema jurídico formado
por regras e princípios. Entretanto, como veremos, difere do autor norte-americano
quando se refere ao conceito de cada espécie normativa, seu modo de aplicação e,
principalmente, na adoção de um método para a resolução de conflito entre princípios.
Alexy, portanto, considera regras e princípios como espécie do gênero “norma
jurídica”, pois, essencialmente, ambos estabelecem aquilo que deve ser. (ALEXY,
1993; 83) O jurista alemão vê na diferença entre regras e princípios um elemento central
na discussão sobre a teorização dos direitos fundamentais.
Para o jus-filósofo alemão, o debate sobre a distinção entre regras e princípios
não é algo recente, sendo o critério da generalidade (princípios possuem um grau de
generalidade alto e regras um nível de generalidade baixo) uma das formas mais
4242
utilizadas pelos juristas na definição (critério objetivo de diferenciação) entre as
espécies normativas. Todavia, para Alexy as regras e os princípios não se diferenciam
pelo critério de generalidade, mas sim por uma diferença qualitativa.
As regras seriam normas que ordenam um mandamento de ação ou omissão
definitivo, ou seja, aplica-se na lógica da subsunção do caso concreto ao enunciado
normativo. Neste ponto, pode-se afirmar que o modelo de Alexy não propõe qualquer
inovação se comparado com a proposta de aplicação da regra em Dworkin (lógica do
tudo ou nada). Em relação aos princípios, entretanto, a teoria de Alexy segue um
caminho absolutamente diverso.
Os princípios para Alexy seriam normas jurídicas que exprimem algo a ser
cumprido na maior medida, ou seja, deve ser obedecido no maior grau possível de
acordo com as situações fáticas e jurídicas do caso concreto. Os princípios se
constituem, portanto, em um mandamento de otimização.
El puento decisivo para la distinción entre reglas y principios es que los principios son
normas que ordenam que algo sea realizado en la mayor medida posible, dentro de lãs
posibilidades juridicas y reales existentes. Por lo tanto, los principios son mandatos de
optimizacion, que están caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos en
diferente grado y que la medida debida de su cumplimento no sólo depende de las
posibilidades reales sino tambíen de las juridicas. El ámbito de las posibilidades
juridicas es determinado por los principios y reglas opuestos. (ALEXY, 1993; 86)
Portanto, e Alexy e Dworkin se aproximam em alguns pontos: para ambos
autores, a norma jurídica é um gênero da qual são espécies as regras e os princípios
jurídicos. Ademais, concebem as regras de forma semelhante, ou seja, por meio de uma
aplicação tudo ou nada. Registramos, desde já, nossa crítica em relação tal proposta de
conceituação de regra em Alexy e Dworkin. Ora, ao afirmar que as regras jurídicas
operam em uma lógica do tudo ou nada, isto é, subsunção pura, a dupla Dworkin/Alexy
não incorpora as bases científicas de um positivismo normativista que pretendem negar?
Seria o intérprete metade positivista (regra) e metade pós-positivista (princípio), tal
como a figura mítica de um minotauro hermenêutico pronto a devorar qualquer jurista
perdido no labirinto de Dédalo?
Por outro lado, os autores se distanciam quanto ao conceito de princípio e a
forma de resolução de conflito principiológico. No primeiro caso, Alexy entende os
princípios como mandamentos de otimização que podem ser concretizados em escalas
graduadas de acordo com as situações fáticas e jurídicas. Dworkin, por seu turno,
entende o princípio como um padrão de justiça ou equidade que deve ser observado por
uma determinada comunidade política. No que tange ao modo de resolução de conflitos,
Alexy adota, ao contrário de Dworkin, um método a priori para solução do choque entre
princípios: a lei da colisão. Em apertada sintexe, podemos assim esquematizar a
diferença entre as concepções de Dworkin e Alexy no âmbito do debate sobre as teorias
das normas.
4243
Resolução de conflito entre
princípios
Os princípios são padrões Não adota um método a priori.
que devem ser observados, Os princípios possuem uma
Subsunção.
de
peso
ou
Aplica-se
a uma razão que conduz o dimensão
Dworkin lógica do tudo argumento
numa
certa importância, de forma que, em
ou nada (all or direção de justiça, equidade caso de colisão deverá o
ou uma dimensão da intérprete mensurar a força
nothing)
moralidade.
relativa de cada um.
Subsunção.
Os
princípios
são
Adoção de um método (lei da
Aplica-se
a
mandamentos de otimização
colisão) para a solução de
Alexy lógica do tudo
e devem ser realizado na
conflito entre princípios.
ou nada (all or
maior medida possível.
nothing)
Regras
Princípios
2 - DIVISÃO DE REGRAS, PRINCÍPIOS E NORMAS DE WASHINGTON
ALBINO PELUSO DE SOUZA
A obra de Washington Albino Peluso de Souza constitui um marco fundamental
no estudo do Direito Econômico no Brasil. A história de sua vida acadêmica e produção
bibliográfica se confundem com a própria introdução e desenvolvimento da disciplina
em nosso país.
Independentemente da linha teórica que se adote, torna-se imperativo reconhecer
a importância da Washington Albino Peluso de Souza na criação, sistematização e
aprofundamento de institutos e categorias científicas do Direito Econômico. Um dos
pontos importantes da obra do jurista mineiro é a distinção entre regra, princípios e
normas.
Primeiramente cabe esclarecer a proposta de divisão de regras, princípios e normas na
obra de Washington Albino Peluso de Souza foi concebida e estruturada a partir das
necessidades/particularidades do Direito Econômico. Apesar de reconhecer o intenso
debate sobre a teoria das normas no âmbito da filosofia do Direito, o citado jurista deixa
claro que sua intenção é puramente didática e circunscrita ao âmbito de ação do Direito
Econômico.
Os ensinamentos de Washington Albino Peluso de Souza ensejam desde já
vários questionamentos: Qual a utilidade de se apresentar uma nova divisão no campo
da teoria das normas? Há, realmente, utilidade em novas divisões normativas? Por qual
razão o Direito Econômico se julgaria tão especial a ponto de pleitear uma divisão
própria de regras, princípios e normas?
4244
A resposta é fornecida pelo próprio autor ao longo de sua vasta obra, isto é, a
especificidade do Direito Econômico é promover a juridicização do fato econômico. O
Direito ao juridicizar o fenômeno econômico (seja por ato legislativo, judicial,
administrativo) define um sentido a ser atribuído ao fato econômico; escolhe um
caminho ao deliberar na valoração do “econômico” de acordo com a ideologia
constitucionalmente adotada. Em uma metáfora: o fato econômico constitui uma massa
amorfa que nas mãos do artista-intérprete obtém uma forma, uma estrutura, enfim,
assim como na obra de arte, um sentido social.
Eis um ponto importante: o objeto “fato econômico” não é algo natural, apartado
das relações sociais. O fato econômico constitui, antes de qualquer coisa, um fato sóciocultural (no sentido latu), sendo, portanto, amoldado de acordo com as aspirações e
pressões de grupos de interesses múltiplos, classes sociais, elites políticas e movimentos
sociais de toda a ordem. Pensar ao contrário é naturalizar a realidade sócioeconômica.
Ao Direito Econômico cabe a difícil missão de depurar as pretensões
conflitantes em justas ou injustas, legítimas ou ilegítimas de acordo com a opção
político-constitucional da ordem econômica. Neste sentido, mostra-se forçoso a criação
de mecanismos e categorias próprias do Direito Econômico.
Ao versar sobre o Direito Econômico, a obra de Washington Albino Peluso de Souza
buscará mitigar uma análise intrumentalizada, na qual o Direito possui o papel de
simples garantidor dos fenômenos econômicos existentes. Propõe, assim, uma forma
alternativa de pensar a tensão entre economia/direito, “fato econômico”/ato normativo.
A empreitada de sistematizar um raciocínio científico na referida tensão, deságua na
racionalidade jurídico-econômica capaz de fornecer ao intérprete instrumentos
hermenêuticos de concretização da ordem constitucional vigente.
Os “instrumentos jurídicos-hermenêuticos” a serem estudados a seguir não devem ser
compreendidos como um “método científico” absoluto ou hábil a extirpar dúvidas ou
incertezas dos estudiosos, tal como pretende a lógica cartesiana. De fato, desde
Gadamar sabemos que toda a compreensão de um objeto (seja de um fato econômico ou
de um ato normativo) estará impregnada das pré-compressões do sujeito. O método não
é mais um instrumento asséptico do qual o jurista pode se socorrer para uma
interpretação certa e segura.
Reafirmamos, pois, a possibilidade de conciliação entre a racionalidade jurídicaeconômica proposta por Washington Albino Peluso de Souza e o giro hermenêutico
pós-gadamer. A função dessa racionalidade e, consequentemente, seus instrumentos
hermenêuticos é de reafirmar o papel do Direito Econômico de “modulador do fato
econômico” de acordo com os fundamentos de justiça e equidade do Direito, balizados
pelo texto constitucional.
2.1 - OS PRINCÍPIOS DE DIREITO ECONÔMICO
4245
Na obra de Washington Albino Peluso de Souza a expressão “princípio” assume duas
dimensões diferentes. Em primeiro lugar, tem-se os princípios como elemento de
positivação de uma “ideologia” na ordem jurídica econômica; noutro sentido, os
princípios assumem a função de instrumento hermenêutico. Vejamos cada um deles.
Ao disciplinar sobre o tema “ordem econômica”, a Constituição estabelece
determinados fundamentos e valores segundo os quais o sistema econômico deverá ser
conduzido. Tais “valores e fundamentos” refletirão as manifestações de ideologias de
diversas matizes do pensamento econômico-político. Assim, não resta dúvida, que a
positivação da livre iniciativa ou o direito à propriedade representa as conquistas
liberais-burguesas do final século XVII e início do XIX. Por outro lado, a busca do
pleno emprego e a redução das desigualdades sociais são conquistas do
Constitucionalismo Social.
Nesta primeira concepção, portanto, os princípios retratam a pluralidade de escolas
acadêmicas, linhas teóricas, aspirações e influxos sociais, enfim, correntes do
pensamento político-econômico que, em conjunto, representam aquilo que Washington
Albino Peluso de Souza denominará de ideologia constitucionalmente adotada. Sendo
tal ideologia resultado do embate de forças sociais na Assembléia Nacional Constituinte
e cristalizada no texto da Carta Magna de 1988, sobretudo na Constituição Econômica
(arts. 170 a 192).
A Constituição, no que se refere à ordem econômica, não aderiu integralmente ao
modelo econômico unidimensional pró-mercado ou neoliberal como desejam alguns
intérpretes mais afoitos. A opção é pela pluralidade de leituras e concepções dos
principais fatores de produção: terra, trabalho, capital.
Ao nosso sentir, o ‘princípio’ encerra o elemento ideológico que define a ‘Ordem
Jurídica’ sob consideração. Nas ‘Ordens Jurídicas’ expressas nas chamadas
‘Constituições Plurais’, como a brasileira de 1988, que encerram dados ideológicos de
‘modelos puros’ diferentes entre si, ou ate mesmo antagônicos, essa diversidade
ideológica teórica é expressa objetivamente nos ‘princípios’ constitucionais que os
absorvem e conciliam na ‘ideologia configurada na Constituição’”. (SOUZA, 2005;
118)
O princípio é, assim, a forma pela qual a ideologia constitucionalmente adotada se
traduz na ordem constitucional. Em se tratado de uma ordem econômica-constitucional
plural, há de se admitir a co-existencia de princípios que representam diferentes
matizes: Princípio da propriedade privada e livre concorrência (ideologia liberal);
princípio da soberania nacional, função social da propriedade, defesa do consumidor,
defesa do meio ambiente, redução das desigualdades regionais, busca do pleno
emprego, tratamento favorecido para as empresas brasileiras de pequeno porte
(ideologia socializante). Não há, repita-se, a adoção de um modelo puro ou uma
ideologia única como fez o artigo 179 da Constituição do Império que considerava a
propriedade como um direito absoluto.
4246
“Ao contrário, a ideologia, em nosso conceito, exprimi-se pelos princípios adotados na
ordem jurídica, significando que está é a que se comprometerá com o aspecto político,
quando tomada enquanto Direito Positivo” (SOUZA, 1980; 33).
De fato, percebe-se pela simples leitura dos princípios do artigo 170 da Constituição da
República, que a ideologia constitucionalmente adotada reflete diversas matrizes de
pensamento. Ao jurista cabe interpretar a ordem econômica de forma global, pois a não
preferência por um sistema puro (como o fez a Constituição do Império) impede a
interpretação/aplicação retalhada dos princípios da ordem econômica. Washington
Albino Peluso de Souza propõe, neste caso, a adoção de instrumentos hermenêuticos
com o objetivo de auxiliar o intérprete na concretização dos princípios da ordem
econômica. Eis a segunda função da expressão “princípios”.
Como instrumento hermenêutico, os princípios podem assumir diferentes formas:
princípio da economicidade, princípio da flexibilidade, princípio da mobilidade,
princípio da subsidiariedade, princípio da universalidade e princípio da eficiência.
Analisaremos sinteticamente um deles, o princípio da economicidade.
O referido princípio (agora entendido como instrumento hermenêutico e não mais como
elemento que positivação de uma ideologia constitucionalmente adotada) reflete a
preocupação em apresentar uma racionalidade jurídico-econômica, na medida em que
busca harmonizar elementos conflitantes e contraditórios.
Na obra, Primeiras Linhas de Direito Econômico, o prof. Washington Peluso Albino de
Souza define o princípio da Economicidade “como aquele que melhor conduza os
objetivos da ideologia constitucional como um todo” (SOUZA, 2005; 32). A
economicidade busca, portanto, assegurar uma flexibilidade e maleabilidade – de acordo
com as características do fato econômico concretamente considerado - dentre os
diversos princípios que compõem a ordem econômica no momento do discurso de
justificação ou aplicação da política econômica.
A ‘economicidade’, no sentido funcional, é tratada, pois, como instrumento
hermenêutico pelo qual a flexibilidade, a maleabilidade, a revisibilidade e a mobilidade
das opções se impõem ao direito moderno, de modo geral, e especificamente, nas
Constituições correspondentes aos regimes políticos mistos ou plurais. Interessa
sobremodo ao Direito Econômico, pela própria natureza político-econômica do seu
objeto. (SOUZA, 2005; 32)
Portanto, o princípio da economicidade – como instrumento hermenêutico – veda
qualquer tipo de interpretação da Constituição Econômica que busque considerar seu
fundamento jurídico em apenas uma corrente ideológica da ordem econômica. Seria
flagrantemente inconstitucional uma política econômica aniquiladora da livre
4247
concorrência de um setor da economia, ou que socializasse todos os bens de produção
de uma determinada região, pois nossa ordem econômica está fundada na livre iniciativa
e na propriedade privada. Por outro lado, não mereceriam guarida em nossa ordem
jurídica, políticas econômicas que desconsiderassem o valor do trabalho humano frente
ao processo de automação de algum setor econômico, ou ainda concentrasse as ações
estatais de crescimento econômico, como renúncias fiscais e investimentos em infraestrutura, em apenas uma região do pais.
Na mesma linha de pensamento, defende Ricardo Lucas Camargo a importância do
princípio da economicidade na formulação de políticas econômicas:
Parte de princípios próprios, como o da economicidade, segundo o qual no acolhimento
de determinadas valorações do fato econômico ainda que aparentemente contraditórias,
a ordem jurídica, na conformação da ordem econômica, adota sempre uma linha da
maior vantagem que se traduz pela definição do ponto de equilíbrio na harmonização
entre interesses conflitantes; o da indissociabilidade entre as medidas de política
econômica e os atos jurídicos que as manifestam. (1993; 51)
Em breve resumo: os princípios, na obra de Washington Peluso Albino de Souza,
possuem dois significados diferentes: (I) seja como um elemento de positivação da
ideologia constitucionalmente adotada ou (II) como um instrumento hermenêutico.
2.2 - AS REGRAS DO DIREITO ECONÔMICO
Segundo a proposta de Washington Albino Peluso de Souza, as regras não são
espécies normativas e, por isso, não possuem efeitos cogentes. Segundo o jurista
mineiro, a regra “define a natureza jurídica da ‘opção’. Diremos que corresponde à
afirmação do ‘ser jurídico’, ou melhor, como foi dito acima, ela ‘juridifica’ o ‘fato’.”
(SOUZA, 2005; 120).
Como afirmado acima, o fato econômico em si, isoladamente considerado, nada
representa ao Direito. Cabe à Ciência Econômica, por meio de seus métodos, institutos,
categorias e instrumentos, analisar cientificamente o fenômeno econômico. Paulo
Sandroni afirma que a Economia é a ciência que “estuda a atividade produtiva. Focaliza
estritamente os problemas referentes ao uso mais eficiente de recursos materiais
escassos para a produção de bens; estuda as variações e combinações dos fatores de
produção (terra, capital, trabalho, tecnologia), na distribuição de renda, na oferta e
procura e nos preços de mercadoria.” (SANDRONI, 2008; 271).
A Economia, por meio de seu arcabouço técnico-científico, buscará descrever o
fenômeno econômico, explicar suas causas e conseqüências, demonstrar a prognose
(favorável ou desfavorável) quanto ao comportamento futuro da economia.
4248
Evidentemente, a interpretação do fato econômico pelo economista não é uma atividade
neutra imparcial, pois dependerá, essencialmente, das pré-compreensões e da filiação
acadêmica do economista-intérprete (escola austríaca liberal, escola de Chicago
neoliberal reguladora, escola marxista etc).
O Direito Econômico, por meio de uma forte interação com o subsistema econômico,
será influencia pela análise técnica-científica da Economia, mas a ela não se vincula,
sob pena de esvaziar sua natureza deontológica. A normatização de um fato econômico,
portanto, não está previamente condicionada ao cânone economicistas, pois a natureza
contrafática do Direito impõe a abertura de múltiplas opções de reorganização das
relações econômicas. Há, portanto, possibilidades – ainda que limitadas pela própria
força do subsistema econômico – de uma redefinição normativa do fato econômico.
Eis a explicação de Washington Peluso Albino de Souza (2005; 122):
“Mas, por se tratar de ‘regra jurídica’, é possível que se oriente a conduta do sujeito de
Direito, tanto para a direção que a Economia tenha indicado quanto para sentido
diverso, e até mesmo contrário. Precisamente a aceitação da ‘explicação’ dada pela
Ciência Econômica como definitiva, imutável, foi que conduziu a figura do ‘tecnocrata’.
Diferentemente deste, o cientista do Direito e o jurista, ao receberem a informação da
Ciência Econômica, vão submetê-las a valores jurídicos que coincidam com os reclamos
da realidade social e da vida dos indivíduos.”
As regras de Direito Econômico, repita-se, possuem a função de abertura de
possibilidades de juridização do fato econômico. Tais regras enunciam comandos gerais
que auxiliam na construção de diferentes direções de elaboração/execução da política
econômica. As regras do Direito Econômico não são modelos de conduta herméticos de
aplicação do tudo ou nada, como em Dworkin ou Alexy. O objetivo das regras de
Direito Econômico não é regular situações gerais e abstratas, mas permitir a criação de
diferentes opções de proposições jurídicas que regularão determinado fato econômico.
Assim, dado o fato econômico “X”, as regras do Direito Econômico permitirão ao
intérprete a construção e interpretação da política econômica “Y” ou “Z”, conforme as
condições e limitações históricas, políticas, sociais e econômicas.
A fonte de criação das regras é a própria evolução da doutrina, por ser abstraída pelos
juristas, através de um esforço intelectual da ideologia constitucionalmente adotada. As
regras do Direito Econômico – diferentemente das regras estudadas na teoria do Direito
– não vinculam os indivíduos, a sociedade e o Estado.
Washington Albino Peluso de Souza (2005) cita vários exemplos de regras do Direito
Econômico: regra do equilíbrio, regra da equivalência, regra da recompensa, regra da
liberdade de ação, regra da primazia da liberdade social, regra do interesse social, regra
da indexação, regra da utilidade publica, regra da oportunidade, regra da razão, regra da
irreversibilidade, regra da precaução, regra da flexibilização e regra da subsidiariedade.
O próprio autor afirma, contudo, que sua relação proposta possui apenas um caráter
exemplificativo.
4249
Vejamos um exemplo da utilização das regras do Direito Econômico: imaginemos o
caso de uma política econômica elaborada pelo Estado com o objetivo de fornecer
subsídios ao setor X da economia em um período de ameaça de desemprego e recessão.
A Economia, ao analisar o exemplo, provavelmente afirmará que a diminuição do custo
de produção – por meio da redução de impostos - provocará uma redução no preço final
do produto e, consequentemente, aumentará o consumo. Tal aumento da demanda, por
sua vez, provocará a manutenção ou aumento da produção de bens ou serviços. O
resultado final é que o agente econômico não diminuirá seu quadro de funcionários, em
razão do reaquecimento daquele setor econômico. Eis um exemplo típico de como a
Economia analisa o “fato econômico”.
Uma vez exposto e explicado o “fato econômico” pela Economia – como no exemplo
acima - a regra do Direito Econômico terá como função precípua a construção de
possíveis políticas econômicas aplicáveis ao fato em questão. A regra da recompensa,
por exemplo, estabelece que a “toda ação econômica deve corresponder um proveito
que coincida com os sacrifícios e dispêndios efetuados pelo sujeito da ação e, ao mesmo
tempo, com o interesse dela decorrente.” (SOUZA, 2005; 124).
A ação econômica do Estado (subsídios) resultou em um sacrifício fiscal das contas
públicas. Espera-se, segundo a análise da Economia, que o Estado ao abnegar-se em
recolher tributos, incentivará o reaquecimento da economia e minimiza a crise social.
Por outro lado, o esforço do setor privado em não desempregar é compensado com
subsídios estatais.
Partindo-se do caso concreto (fato econômico), o intérprete do Direito Econômico
encontrará na regra da recompensa uma abertura para a possibilidade de regulação do
fenômeno econômico: poder-se-á, assim, (I) anuir aos preceitos formulados pela Ciência
Econômica e abster-se de regular juridicamente o fato, de forma a permitir que o agente
econômico privado não realize demissões a partir do reajuste do próprio mercado; por
outro lado, (II) a referida regra permite que seja elaborada uma norma na qual o agente
econômico que aderir aos benefícios fiscais (sacrifício) garanta – por determinado
tempo e condições - a permanência do quadro de empregados. Há, assim, uma
verdadeira contraprestação do agente particular.
A regra do Direito Econômico permitirá a juridicização de diferentes opções jurídicas,
ou seja, de uma edificação e reconstrução permanente de diferentes caminhos jurídicos,
pois, é nesta fase, que o fato econômico é imerso na discussão sobre elementos próprios
do sistema jurídico: justiça/injustiça. A proposta de Washington Albino Peluso de
Souza consiste em afirmar que as regras do Direito Econômico podem auxiliar o
intérprete nesta árdua trilha de aproximação da linguagem do justo (Direito) com a
lógica do eficiente (Economia).
Percebe-se, desde logo, o extraordinário potencial democrático das regras do Direito
Econômico, na medida em que permitem a participação de diferentes atores na
formulação de propostas das opções no processo de juridicização do “fato econômico”,
assim como da sua interpretação. Se faz necessário, portanto, que o processo de
construção das opções jurídico-econômicas sejam realizado de forma intersubjetiva e
com a ampla participação de movimentos sociais, sindicatos, ONGs, academia e o setor
privado. Deste embate de forças contrárias surgirão aplicações de regras do Direito
Econômico que permitirão democratizar o fenômeno jurídico-econômico.
4250
As regras para o jurista mineiro não são uma das espécies da norma jurídica, como na
visão de Dworkin e Alexy. Ela é uma construção jurídica-doutrinária, retirada da
ideologia constitucionalmente adotada, devendo ser usada não só na elaboração das
normas de políticas econômicas, mas também em sua aplicação e interpretação.
Ainda na visão do renomado jurista mineiro, a adoção de uma regra não exclui a
utilização de outra, ou seja, é possível a utilização e a convivência de regras em
determinados momentos e conforme determinadas circunstancias fáticas. Logicamente,
tal raciocínio jurídico não é possível na obra de Dworkin e Alexy, diante na visão de
ambos em relação às regras como espécies de normas advindas dos Poderes
Constituídos.
1.3 - DAS NORMAS DE DIREITO ECONÔMICO
No âmbito da teoria das normas, vimos que a partir de Alexy e Dworkin, a norma tornase um gênero do qual fazem parte integrante as regras e princípios. Em Washington
Albino Peluso de Souza, as normas de Direito Econômico são os elementos de
concretização – no plano do dever ser – das escolhas fornecidas pelas regras do Direito
Econômico.
“A ‘norma’ recebendo da ‘regra’ a ‘opção’ já portadora de elementos econômicos e
políticos ‘juridicizados’, vai imprimir-lhe o sentido do ‘dever ser’. Indicará o modo de
efetivação da opção fornecida pela ‘regra’, para garantir-lhe a ‘legetimidade’ jurídica,
ou seja, a sua inserção no conjunto de normas que vão compor a ‘ordem jurídica’”
(SOUZA, 2005; 120)
Assim, dado o fato econômico “X”, as regras de Direito Econômico permitirão a
formulação de opções de juridicização do fenômeno econômico. A escolha do caminho
jurídico-econômico realizado pelas regras de Direito Econômico ingressará no plano do
“dever ser” por meio da norma. A definição de uma opção (regra) desprovida da norma
nada vale, pois ausente estará o elemento normativo (dever ser).
Assim sendo, a visão de norma do Prof. Washington Peluso Albino de Souza, enquanto
comando jurídico aberto advindo do “legislador” aproxima-se da visão de Dworkin e
Alexy de princípios enquanto espécies das normas.
CONCLUSÃO
4251
As classificações e definições de categorias científicas (normas, regras e princípios) são
instrumentos metodológicos do qual se vale o pesquisador no desenvolvimento de uma
investigação científica. Cabe à comunidade científica avaliar a pertinência ou não da
referida proposta. Em termos científicos, a classificação se sustentará na medida em que
tem utilidade no progresso daquela disciplina.
As classificações da teoria da norma da Filosofia do Direito e do Direito Econômico
não se excluem, pois se prestam a objetivos diferentes. Não há que se negar uma das
classificações. Tão pouco, devemos buscar a adaptar a classificação do Direito
Econômico aos modelos sugeridos pela Filosofia do Direito. Por uma simples razão: as
classificações são diferentes, os objetivos e objetos científicos são distintos.
A Filosofia do Direito – a partir da proposta de Dworkin em “Levando os Direitos à
Sério” – buscou superar a proposta de Hart de um Direito formado apenas por regras.
Ao defender a inclusão de outras espécies normativas – os princípios – Dworkin
reaproximou o Direito da Moral. Ta divisão, e suas posteriores propostas de
alteração/aperfeiçoamento, devem ser utilizadas por todos os estudiosos do Direito
Econômico.
Washington Albino Peluso de Souza ao defender a diferença entre princípios, regras e
normas pretendeu repelir qualquer risco de colonização do Direito pela Economia, pois
somente ao sistema jurídico cabe definir a justeza do fato econômico. O jurista mineiro,
apostou em uma racionalidade jurídica-econômica, na qual o intérprete promoverá a
aproximação da linguagem do justo (Direito) com a lógica do eficiente (Economia).
Apesar de sua histórica e fundamental contribuição, o pensamento de Washington
Albino Peluso de Souza é datado no tempo e espaço. Neste sentido, a consolidação e
permanência de seus ensinamentos dependerão, essencialmente, da forma como seus
seguidores – dentre os quais nos filiamos – se apresentarão para o debate de suas idéias
no atual paradigma científico do Direito.
É exatamente esta abertura constante ao debate e ao diálogo que permitirá a obra do
renomado autor a sua revitalização e reafirmação diária como um grande clássico do
Direito.
Referências
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Constitucionales. 1993
4252
CAMARGO, Ricardo Antônio Lucas. Breve Introdução ao Direito Econômico. Porto
Alegre: SafE, 1993.
CRUZ, Álvaro Souza. Hermenêutica Jurídica e(m) debate: o constitucionalismo
brasileiro entre o discurso e a ontologia existencial. Belo Horizonte: Fórum, 2007.
DWORKIN. Ronald. Levando os direitos a sério. São Paulo: Martins Fontes. 2002
GOMES, Alexandre Travessoni e MERLE, Jean-Chistophe. A Moral e o Direito em
Kant: Ensaios analíticos. Belo Horizonte: Mandamentos, 2007.
GRAU, Eros Roberto. A ordem econômica na Constituição de 1988. 12 ed. São Paulo:
Malheiros. 2007
HART, Herbert L. A. O conceito do direito. 3º ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2001.
KOZICKI, Kátya. Verbete: HART, Hebert Lionel Adolphus, in Dicionário de Filosofia
do Direito. Coord. BARRETO. Vicente de Paulo. São Leopoldo: Unisinos e Rio de
Janeiro: Renovar. 2006
SANDRONI. Paulo. Dicionário de Economia do século XX. 4º ed. Rio de Janeiro:
Record. 2008
SGARBI, Adrian. Clássicos da Teoria do Direito: John Austin. Hans Kelsen. Alf Rosse.
Hebert L.A. Hart. Ronald Dworkin. Rio de Janeiro: Lúmen Júris. 2006
SOUZA, Washington Peluso Albino de. Primeiras Linhas de Direito Econômico. São
Paulo: LTR, 2005
4253
SOUZA, Washington Peluso Albino de. Direito Econômico. São Paulo: Saraiva. 1980
[1] Para um melhor entendimento sobre o debate, buscaremos reproduzir, de forma
sintética, algumas das variações sobre a diferenciação entre regras e princípios, autores
principais e as críticas de Souza Cruz a cada corrente:
A) Diferença de generalização de regras e princípios. Autores: Bobbio e Del Vechio;
Tese central: Os princípios são normas mais gerais que as regras; Crítica: Não é todo
princípio que se origina de um processo de generalização. Ex: O princípio federativo e o
princípio da legalidade não seriam generalizações de normas específicas.
B) Diferença axiológica entre princípios e regras. Autores: Canaris, Celso Antonio
Bandeira de Melo, Miguel Reale, Karl Larenz. Tese central: Ligação de princípios com
valores. Críticas: Duas são as razões. b.1 – O Direito – ao tutelar bens jurídicos (vida,
intimidade, propriedade) protege também valores de uma sociedade. Entretanto, a forma
de operar do Direito não pode ocorrer no âmbito valorativo, sob pena de déficit de
legitimidade. b.2 – As regras também protegem valores essências para toda a sociedade,
como por exemplo, o caso da regra do artigo 121 do Código Penal.
C) Diferença morfológica entre regras e princípios: Autor: Joseph Esser. Tese central:
Esser entende que as regras se estruturam segundo a fórmula da hipótese/conseqüência
(se é A, B deve ser), ao passo que os princípios forneceriam subsídios, orientações,
diretrizes para a aplicação das regras. Crítica: Esser se equivoca ao sugerir que o
aspecto morfológico, ou seja, a estrutura formal do princípio ou da regra, seria
determinante na definição de sua função jurídica.
[2] Segundo o próprio Hart: “O remédio para cada um destes defeitos principais, nesta
forma mais simples de estrutura social, consiste em complementar as regras primárias
de obrigação com regras secundárias, as quais são regras de diferente espécie.” (Hart. p.
103)
[3] Um exemplo típico desta dificuldade argumentativa encontrada pelo positivismo é o
artigo 4o da Lei de Introdução ao Código Civil. O referido artigo estabelece que
quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e
os princípios gerais de direito. Trata-se da positivação de uma verdadeira válvula de
escape hermenêutica, na qual o jurista poderia se recorrer no caso de lacuna legal. O
interessante é notar que, na visão de autores clássicos do Direito Civil, o artigo 4o da
LICC apresenta uma ordem lógica e, portanto, os princípios seriam os últimos recursos
no processo de integração do Direito.
[4] Na obra, Dworkin desenvolve seus argumentos a partir do estudos de dois casos: o
caso Riggs vs. Palmer e, logo em seguida, o caso Henningsen vs. Bloomfield, no qual a
4254
fabricante de automóveis buscava estabelecer – por meio de contrato – cláusula de
limitação da sua responsabilidade civil em casos de acidentes.
[5] Apesar de Dworkin afirmar expressamente que a distinção entre regras e princípios
se concretize no plano da “lógica de aplicação”, parece-nos que o autor – sutilmente –
vislumbra a possibilidade de se diferenciar regras e princípios a partir de critérios
semânticos. Vejamos uma passagem da obra na qual o autor busca diferenciar regras e
princípios pela simples análise do texto: “Consequentemente, os tribunais devem
examinar minuciosamente os contratos de compra e venda para ver se os interesses do
consumidor e do público estão sendo tratados com ‘equidade’ (e) ‘Existe algum
princípio que seja mais familiar ou mais firmemente inscrito anglo-americano do que na
doutrina basilar de que os tribunais não se permitirão ser usados como instrumentos de
iniqüidade e injustiça?’ (f) ‘Mais especificamente, os tribunais em geral recusam a
prestar-se a garantir a execução de uma ‘barganha’ na qual uma parte aproveitou-se
injustamente das necessidades econômicas das outras...Os padrões especificados nessas
citações não do tipo que tomamos como regras jurídicas. Parecem muito diferentes de
proposições como ‘A máxima velocidade legalmente permitida na auto-estrada é de
noventa quilômetros por hora’ ou ‘Um testamento é inválido a menos que assinado por
três testemunhas’. Eles são diferentes porque são princípios e não regras jurídicas”.
(2002; 39) Grifo nosso.
[6] Ao descrever a lógica de aplicação dos princípios, o texto de Dworkin não é tão
claro e preciso como sua definição da lógica de regras (tudo ou nada). Nossa concisa
definição da lógica de aplicação dos princípios foi retirada das afirmações do autor nas
páginas: 36, 41 e 42 da obra “Levando os direitos à Serio”, publicada em 2002.
4255
Download

4235 direito econômico e pós-positivismo: o diálogo