BOLETIM CEDES – JULHO-AGOSTO 2015 – ISSN 1982-1522
Diálogo institucional?
Igor Suzano Machado *
Há algumas semanas, estive num congresso em que se discutiu a ideia de "diálogo
institucional" como possível abordagem analítica e normativa sobre o controle de
constitucionalidade das leis pelo Judiciário. Salvo engano, os mais importantes defensores da
tese, no Brasil, são os professores Conrado Hübner Mendes e Virgílio Afonso da Silva. Sob esse
prisma, nem Judiciário, nem Legislativo teriam a última palavra sobre o controle de
constitucionalidade, já que um sempre pode reagir à decisão do outro. Questionei o que
ganharíamos num suposto diálogo institucional em que o Congresso reagisse à tese do Supremo
Tribunal Federal de que não se pode criminalizar o aborto de anencéfalo ou que se deve aceitar a
união homoafetiva, inserindo normas contrárias a estas decisões, por exemplo, em estatutos do
nascituro e da família. Segundo minha interlocutora, a decisão do STF imporia ao Congresso um
“ônus argumentativo”, para aprovar uma medida que contrariasse o conteúdo de suas decisões.
Saindo da discussão abstrata, viu-se que, recentemente, a Câmara dos Deputados reagiu à
maioria formada no STF em torno da tese de que empresas não possuem direitos políticos e,
portanto, não podem financiar campanhas políticas. Contra o entendimento consolidado no STF,
a Câmara colocou em votação emenda que garantiria a presença, no texto constitucional, do
direito das empresas de fazerem tais doações. Nesse caso, houve algum "ônus argumentativo"
nesse diálogo? A tese que estava conseguindo maioria no STF foi desconstruída por meio de
argumentos contrários? Ao que tudo indica, o que aconteceu não foi exatamente um diálogo
caracterizado pelo contraponto de argumentos, mas sim a simples ação e reação, com o cru
exercício do poder. Analiticamente, portanto, acredito que tal "diálogo" pode se tornar mero
eufemismo para a disputa de poder (1). Já normativamente, entendo que o risco é colocar num
horizonte de expectativas algo que não nos traz ganhos nem de racionalidade, nem de
legitimidade no processo legislativo (2). Quanto ao primeiro ponto (1), em excelente entrevista
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Doutor em Sociologia, IESP-UERJ. Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de
Viçosa (UFV).
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ao site da Sociedade brasileira de Direito Público, o próprio Conrado Hübner Mendes reage a
este tipo de crítica dizendo que, segundo alguns críticos:
“diálogo” seria um termo inadequado para caracterizar a interação, uma visão cor-derosa e distorcida que esconderia a dimensão do conflito entre os poderes. Conforme tal
crítica, os poderes não estariam conversando, ou respeitosamente dialogando, mas
brigando, disputando espaços etc. Eu acho que essa objeção é plausível, mas meramente
terminológica. Talvez a palavra diálogo não seja, mesmo, a melhor. Acredito que ela
conserve, porém, um ideal normativo interessante, que destaca a relevância de que os
poderes levem os respectivos argumentos a sério, de que tentem se engajar num tipo de
comunicação que não se confunda com uma mera disputa adversarial, ou com uma
conversa de surdos, na qual somente falam, mas não escutam. 1
Do ponto de vista factual, realmente, não há como negar que os poderes interagem,
reagindo às decisões uns dos outros. Contudo, de acordo com a entrevista, a escolha do termo
diálogo para escrever essa interação, não teria a ver, portanto, apenas com este dado factual, mas
com tratar tal dado factual sob um prisma normativo, enquanto algo que deve se realizar num
certo sentido e não em outro. Isto é, ainda que essa interação envolva disputas de poder, ter como
pano de fundo a ideia de diálogo, implica que, não obstantes tais desvios, essa interação guarda
uma dimensão virtuosa, caso seja, de fato, um diálogo visando o mútuo esclarecimento. Esta
visão normativa, que nos leva ao segundo ponto (2), contrariaria frontalmente, outra visão
normativa a respeito do controle de constitucionalidade das leis bastante poderosa e influente: a
visão do jurista norte-americano Ronald Dworkin. Segundo Dworkin, questões de princípio
devem ser resolvidas por instituições livres de pressões majoritárias – ainda que não
necessariamente formada por juízes. Nesse caso, em uma decisão acerca do exercício de um
direito fundamental, quem deveria ter a palavra final sobre o assunto seria uma corte
constitucional e não um parlamento.
No entanto, há outra visão normativa acerca da relação entre política e direito bastante
influente, tanto no campo do direito, quanto da política e da sociologia, que aparentemente vai ao
encontro da proposta de diálogo constitucional: a visão de Jürgen Habermas. De acordo com o
monumental arcabouço teórico construído pelo pensador alemão, especialmente em sua Teoria
do Agir Comunicativo, o diálogo entre pessoas interessadas no mútuo consentimento guarda em
si uma racionalidade intrínseca, que, inclusive, permite a discussão racional acerca de valores e
normas, algo excluído do tratamento preponderante da razão pelas ciências sociais, focado, desde
1
Disponível em: http://www.sbdp.org.br/observatorio_ver.php?idConteudo=12 Acesso em 16/7/2015.
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Weber, em sua vertente instrumental. Sob este ponto de vista, como argumentam os defensores
do diálogo institucional, a ideia de diálogo traria racionalidade ao processo. Essa convergência
entre a ideia de diálogo institucional e as ideias de Habermas, no entanto, é meramente aparente.
Isto porque na obra de Habermas, este diálogo não acontece entre instituições, mas sim
entre indivíduos. Isto não é mero detalhe, tendo em vista a importante distinção que o autor faz
entre o mundo sistêmico e o mundo da vida. Os sistemas econômico e político se comunicam por
mediações não verbais, a saber, o dinheiro e o poder. Diferentemente das comunicações verbais,
dinheiro poder não se abrem à crítica e, portanto, não permitem o diálogo. É por isso que, ao
derivar de sua teoria sociológica um conjunto de diretrizes políticas, Habermas irá apostar em
uma esfera pública, que não se confunde com a burocracia administrativa, como locus
privilegiado do debate e cerne da democracia, ainda que, obviamente, o aparato burocráticoadministrativo ainda seja vital para a concretização dos resultados de tal debate. Nesse caso,
pode-se supor que dificilmente um diálogo entre instituições trará ganhos de racionalidade, tendo
em vista que o circuito de comunicação interno dessas instituições será perpassado pelo medium
não comunicativo do poder, ainda que, com tais instituições envolvendo pessoas, esses ganhos
possam ocorrer de forma marginal. Já no que tange à legitimidade, não haveria ganhos, ao não se
exigir qualquer referência ao que acontece fora das instituições burocrático-administrativas, não
ocorrendo a importante dinâmica democrática que Habermas chamou de “sitiamento” do Estado
pelos fluxos comunicativos oriundos da sociedade civil.
Trouxe à tona as ideias de Dworkin e Habermas não apenas pela sua inegável influência
intelectual, mas também por caracterizarem as instituições jurídicas sempre dentro de um
contexto mais amplo, seja moral, no caso do primeiro, ou social, no caso do segundo. Por isso
considero que as perspectivas normativas de Dworkin e Habermas ainda estão alguns passos à
frente da ideia do diálogo institucional, sendo mais sensíveis a uma ideia de democracia que
ultrapassa o aspecto meramente institucional, pensando as instituições políticas democráticas
numa perspectiva ampliada. No caso do primeiro, a funcionalidade das instituições democráticas
não se encerra nelas mesmas, pois a correção das normas reside em sua coerência interna e não
na manifestação da vontade de um conjunto de parlamentares ou juízes. Assim, o ganho de
qualidade nas manifestações de tais agentes políticos não teria nada a ver com a reação de um
grupo à manifestação do outro, mas de sua aproximação de uma correção normativa inscrita nos
princípios morais compartilhados pela comunidade política, para a qual, segundo Dworkin, um
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diálogo entre juízes e filósofos políticos talvez fosse mais produtivo. Já no caso do segundo, o
importante seria a reação de ambos os poderes à deliberação de pessoas dotadas de autonomia
pública e privada, ocorrido numa esfera pública livre das amarras institucionais e da necessidade
de se chegar a uma decisão vinculante. Nesse caso, ao contrário do diálogo interinstitucional,
haveria ganho real não só de racionalidade, mas também de legitimidade, tendo em vista a
efetivação não da disputa de poder entre instituições, mas da opinião esclarecida do verdadeiro
componente popular do chamado governo do povo.
Ou seja, ao olharmos de volta para o caso em que o Congresso Nacional reage à decisão
do STF de que a doação de empresas para campanhas eleitorais é inconstitucional, emendando a
constituição para que tais doações se tornem explicitamente constitucionais, sob o ponto de vista
da teoria do diálogo institucional, podemos considerar que houve um ganho, já que a decisão do
Congresso seria mais racional que a do STF, por estar em diálogo com ela. Já sob o ponto de
vista de uma perspectiva dworkiniana, se se trata, de fato, de uma discussão concernente a
direitos políticos, temos o mero atraso, já que uma decisão que deveria ser tomada pela corte, foi
tomada pelo Congresso e precisaria voltar a ser tomada pela corte posteriormente. Contudo, se se
trata de uma discussão que diz respeito apenas a preferências políticas, que não deveria ser
decidida por um tribunal, temos que o ganho não se deve ao diálogo, mas apenas ao fato de a
decisão agora ser tomada pela instituição na qual deveria ter sido tomada desde o início. Por fim,
se analisarmos a questão sob o ponto de vista habermasiano, o diálogo entre Legislativo e
Judiciário é o menos importante, sendo fundamental saber se se está ou garantindo a
possibilidade do livre diálogo na sociedade civil, ou garantindo o cumprimento dos resultados
desse livre diálogo, o que, no primeiro caso, tende a ser feito no Judiciário e, no segundo, no
Legislativo.
Tanto no caso de Dworkin, quanto no de Habermas, a avaliação da correção da decisão
tomada não tem fundamento na forma como uma instituição reage à outra, mas como qualquer
uma das duas, ou as duas, reagem a princípios morais corretos ou à deliberação pública ocorrida
fora das fronteiras do Estado. Se a democracia é mais do que um conjunto de instituições, sendo
um ideal que deve moldar tais instituições, entendo que tais perspectivas, menos interessadas em
como as instituições interagem entre si, do que em como elas refletem critérios de correção que
as ultrapassam, oferecem melhores componentes normativos para avaliarmos o funcionamento
concreto de nossa democracia. No caso específico em pauta, isto é, o embate entre Legislativo e
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Judiciário a respeito do financiamento de campanhas políticas por empresas, isto quer dizer que a
decisão correta sobre o tema não teria a ver com quantos poderes participam dela, mas sim com
sua aproximação de um ideal de democracia mais inclusivo e respeitador das liberdades políticas
e civis.
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