P á g i n a | 80 Esboço II: demarcação da ética husserliana - relação entre o teorético e prático 1 Wellington Trotta * Resumo: O presente artigo analisa a importância das “investigações éticas” de Husserl à guisa de suas “investigações lógicas”. Pretende-se, neste texto, compreender a relação que o filósofo faz entre lógica e ética, e as consequências para o sentido de renovação ética através de uma conversão pessoal com o intuito de buscar uma vida comunitária, o que se pode chamar de racionalidade. Palavras-chave: Ética – renovação – conversão – vida ativa – Husserl. Abstract: This paper analyzes the importance Husserl´s "ethics investigation" , observing his"logical investigations". It is intended, in this paper, to understand the relationship that the philosopher makes between logic and ethics, and the consequences for the sense of ethical renewal through a personal conversion in order to pursue a common life, what people might call rationality. Keywords: Ethics - renovation - conversion - active life - Husserl. No pensamento ético 2 de Husserl, existem especificidades que tornam complexa a tarefa de descrever os elementos que compõem o seu sistema prático, isso pelo fato de que, o vasto universo de sua obra, ao longo de sua produtiva vivência reflexiva, está em constante elaboração. Husserl sempre retifica seu pensamento, sobretudo, no que diz respeito à ética. Contudo, encontra-se algo essencial em sua teorização ética, o que faz de sua escola um importante sistema de considerações nesse campus, qual seja: a busca de uma fundamentação teórica para que a ética possa se tonar não só uma disciplina técnica de natureza prática, mas um sistema rigoroso que forneça conhecimentos para o bom juízo das ações; além de tomar a alteridade como princípio de si mesmo (HUSSERL, 2001, p. 143-144). Isso está bem claro em suas obras Lineamenti di ética formale de 1908-1914, na Introduzione all’etica 1920-1924, nos seus cinco ensaios denominados de Renovação, escritos no período de 1923 a 1924 para a revista japonesa The Kaizo; na Conferência de Viena em 1935, intitulada A crise da humanidade europeia e a filosofia, e A crise das ciências europeias e a fenomenologia transcendental de 1936. É importante observar, ainda, que os textos éticos de 1914 e 1924, só foram publicados a partir dos anos de 1980. Os textos publicados em vida por Husserl contêm análises sérias e profundas, embora não estudem os elementos constitutivos do mundo da ciência ética (SEPP, 1995, p. 19). 1 Este artigo, ligeiramente adaptado, é parte do Relatório Pós-Doutoral a ser apresentado ao Programa de PósGraduação em Filosofia do IFCS-UFRJ. 2 “Ao elaborar suas aulas sobre ética, todavia, Husserl não se refere diretamente aos conceitos fundamentais da fenomenologia daqueles anos em que ele precisava deles. Tanto as Lineamenti di etica formale como a Introduzione all’etica se dão principalmente no plano da comparação sistemática entre razão prática e razão lógica. Ambas as lições começam com uma referência explícita às considerações expostas em 1900, no primeiro volume das Investigações lógicas, em particular nos ‘Prolegómenos à lógica pura’, e Husserl distingue, cuidadosamente, a relação entre as disciplinas teóricas, normativas e técnicas, tendo em vista a afirmação da lógica como Wissenschaftslehre” - doutrina das ciências (BUONGIORNO, 2001, p. 33). Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 01, nº 02, 2014, pp. 80-90, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 81 A ética husserliana é constituída por um princípio relevante, o a priori de inspiração kantiana em se tratando do mundo moral.3 Esse elemento é fulcral na medida em que se toma a incondicionalidade como instância formuladora de fundamento. Assim, sendo a consciência o centro doador de sentidos pela intencionalidade, tendo a qualidade de perceber os significados dos objetos que estão ao seu redor, sejam eles materiais ou ideias, a consciência, quanto ao agir humano, também é capaz de apreender a natureza correta das ações. 4 Logo, a ética de Husserl está marcada pelo incondicional, posto pelo seu imperativo categórico, cujo escopo consiste no seguinte mandamento: “faça em todo o momento o melhor possível entre o alcançável” (HUSSERL, 2009a, p. 156). 5 Porém, diferentemente de Kant, que subordina o agir aos ditames do imperativo categórico, sendo o dever elemento central da lei racional que regula as ações longe das inclinações pautadas por fins sensíveis, Husserl toma a ideia segundo a qual as ações humanas devem se pautar pelo princípio de que o indivíduo deve agir da melhor forma possível. 6 Nesse caso, a ética husserliana filia-se à ética do dever, guardando uma peculiaridade que a distingui da kantiana, isto é, a sua concepção de imperativo que, longe de ser formal e idealisticamente forjado pelas éticas estoica e cristã-luterana, tem uma formulação política, a saber: “faça em todo o momento o melhor possível” nas relações intersubjetivas. Nesse sentido, o imperativo husserliano, ao contrário do categórico, não é abstrato e volta-se para uma comunidade de indivíduos associados por laços culturais. 3 “A ética husserliana se caracteriza pela retomada do conceito de a priori em assuntos morais [...] A ética é uma disciplina do agir justo. Ela é prática e teórica a uma só vez, implicando a pessoa como um todo, pois é o sujeito pessoa que pode ou não passar pela vida como quem decide não só neste ou naquele caso particular, mas, sobretudo, com vistas à unidade ou coerência de sua existência” (FABRI, 2012, p. 31 e 33). 4 “É, portanto, um erro de princípio pensar que a percepção (e, a sua maneira, toda outra espécie de intuição da coisa) não tenha acesso à coisa mesma [...] Nos atos intuitivos imediatos, intuímos ‘algo ele mesmo’; sobre suas apreensões não se constroem apreensões de nível superior, não se tem, pois, consciência de nada para o qual o intuído poderia operar como ‘signo’ ou como imagem. E por isso mesmo se diz que é intuído imediatamente como ‘ele mesmo’. Na percepção, esse mesmo ainda é caracterizado de forma peculiar como ele mesmo em ‘carne e osso’, em contraposição ao que ocorre na recordação ou na livre imaginação, onde recebe o caráter de algo modificado de um algo ‘vislumbrado’, de um algo presentificado” (HUSSEL, 2006a, §43, p. 102-103). 5 A Ética pode ser tomada por duas perspectivas: as éticas do fim e do móvel. Esta se define pela análise das regras elaboradas por um agir em si mesmo, em que o prazer está no móvel do certo pelo correto, isto é, o prazer como móvel constante e habitual das ações em que se define como objeto da vontade humana em regras que a dirige. Aquela, a ética dos fins, traça o ideal como objeto do desejo, a noção do bem como realidade perfeita, definida pelo ideal, uma vez que as regras são derivadas do fim, portanto a felicidade é um objetivo cuja conduta social é uma dedução da necessária condição racional humana. A ética do fim pode ser tomada como conhecimento visando os objetivos, ao passo que a ética do móvel é um conhecimento da conduta humana em si. Na ética dos fins as regras são definidas pelo ideal, assim como as regras da ética do móvel são alicerçadas pelo agir em si. Pode-se dizer, inicialmente, que Husserl, no seu esforço teórico de totalidade, apreende dessas escolas elementos naquilo que concerne sua ética: o incondicional voltado para a comunidade no melhor possível, cuja intenção em agir racional leva o outro como fim racional e político. 6 Segundo Hoyos Vásquez, o ponto crucial da ética husserliana é a analise dos valores, preocupação de pessoas responsáveis histórica e culturalmente, do ponto de vista pessoal, social e coletivo (2002, p. XI). Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 01, nº 02, 2014, pp. 80-90, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 82 Assim, Husserl, como filósofo da totalidade e da unicidade, é herdeiro das filosofias de Aristóteles e Kant. Ressalta-se, porém, que é a Kant que Husserl dirige-se como crítica e assimilação. Portanto, ao examinar as aporias da ética, aprofunda sua axial preocupação: a rigorosidade científica. Destarte: O domínio de uma ciência é uma unidade objetiva fechada; não reside no nosso arbítrio onde e como delimitamos o domínio da verdade. O reino da verdade dividi-se objetivamente em domínios; a investigação tem de se orientar segundo essas unidades objetivas e coordenadas em ciências (HUSSERL, 2005, p. 31). A pesquisa sobre a ética e seus elementos constitutivos também apresenta os mesmos problemas de toda ciência, inclusive os da matemática, por exemplo. Se se deseja que um determinado saber se torne ciência, é preciso ter a noção de que ela é uma unidade objetiva fechada, ou seja, um domínio de elementos próprios que forjam a necessidade de buscar a verdade, o desvelamento dos seus significados. Logo, a ética, pensada como disciplina técnica do agir, é um reino de elementos específicos que não prescinde, tal qual a lógica, de investigação orientada segundo unidades objetivas. A ética, portanto, tem dupla acepção: tanto é uma ciência técnica do agir, quanto uma ciência teorética que dispõe de um conjunto de princípios pelos quais analisa cientificamente as técnicas, o motivo, a necessidade e a relevância do agir. Assim, Husserl assevera que comecemos: 7 Com o estabelecimento de um princípio da maior importância para a investigação que se segue, a saber, que toda disciplina normativa e, do mesmo modo, toda disciplina prática assenta sobre uma ou mais disciplinas teoréticas, na medida em que as suas regras têm de possuir um conteúdo teorético separável do pensamento da normatividade (do deverser), conteúdo cuja pesquisa científica compete precisamente àquelas disciplinas teoréticas (2005, p. 61-62). O grande objetivo de Husserl, além de outros como teórico da ciência, é descobrir um conjunto de conceitos que torne a lógica uma mathesis universalis com o propósito de unificar todas as ciências. Essa preocupação baseia-se na ideia de que não é possível pensar ou fazer ciência orientada pelas infiltrações advindas do relativismo, ceticismo, psicologismo etc. Husserl acredita na unidade da ciência, e, para tal, é preciso reconhecer na lógica o papel de criar condições teóricas para tal fim. Conforme Husserl, portanto, tanto a lógica como a ética teve, historicamente, o mesmo sentido originário, isto é, tratar 7 “A ciência não pretende nem pode ser o campo de um jogo arquitetônico. A sistemática, própria da ciência – naturalmente, da ciência correta e genuína - não a inventamos nós, mas reside nas coisas, onde simplesmente a encontramos ou descobrimos. A ciência pretende ser o meio de conquistar para o nosso saber o domínio da verdade e, com efeito, na sua máxima extensão possível; mas o domínio da verdade não é um caos desorganizado, nele impera a unidade da lei; e assim, também a pesquisa e exposição da verdade têm de ser sistemática, tem de espelhar as suas conexões sistemáticas” (HUSSERL, 2005, p. 40). Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 01, nº 02, 2014, pp. 80-90, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 83 também de problemas práticos: a lógica, como razão judicante do pensar, e a ética, como razão normativa do agir humano. Esta se volta para as relações humanas, aquela para o pensamento humano. Segundo Husserl, Aristóteles, como fundador da lógica, teve o mérito de elaborá-la com o propósito de forjar as bases metodológicas do conhecimento científico (2009a, p. 26). Sendo assim, a lógica tem sua origem, assim como a ética, no campo da atividade prática, isto é, na organização do pensamento voltado para as metodologias científicas no trato da verdade e na elaboração reflexiva do agir, no que se refere ao campo das relações humanas. Porém, ao contrário de Aristóteles e próximo de Sócrates (EE, 1216b), Husserl afirma, mutatis mutandis, que o conteúdo teorético é elucidativo na elaboração de juízos éticos, ao afirmar que para ter “acesso à palavra, a vontade necessita dos atos lógicos, e o resultado é um juízo de dever, que é precisamente um julgamento e não uma vontade. Logo, a razão lógica deve, por assim dizer, lançar seu olhar também sobre o âmbito prático, emprestando a este o olho do intelecto” (2009a, p. 81). Assim, para Fabri, “a ética formal, do mesmo modo que a lógica formal, deve ser complementada por uma reflexão de caráter transcendental” (2006, p. 72). Husserl, mais adiante, nos anos de 1908-1914, após suas Investigações lógicas de 1900-1901, elabora um conjunto de formulações sobre o mundo do agir, guardando o mesmo problema entre a relação lógica e ética. No seu livro Lineamenti di ética formale Lezioni sull’etica e la teoria dei valori del 1914, o filósofo austríaco afirma o seguinte: 8 Tradicionalmente verdade, bondade e beleza são apresentadas como ideias filosóficas que, respectivamente, correspondem às disciplinas filosóficas normativas como lógica, ética e estética. Este paralelismo, que está baseado em razões de profundidade, mas não suficientemente esclarecido, envolve significativos problemas filosóficos que agora queremos aprofundar em nome de uma fundamentação científica da ética, mas também por um interesse filosófico em geral (2009a, p. 25). Nesse primeiro momento do percurso das especulações éticas husserlianas, sobressai-se uma reflexão sobre a situação da ética no concerto da Filosofia, e por que o seu objeto pode lhe oferecer o status de ciência. Essa preocupação husserliana justifica-se em virtude de tentar superar o ceticismo e suas variáveis como empirismo, relativismo etc. 8 “Se a ética, este é o fio condutor de nossa análise, não pode ser uma ciência, o projeto fenomenológico em geral cai porque o projeto de fundamentação científica da ética está, estritamente, vinculado ao fenomenológico. Ao invés, se a ética pode ser ciência definida, estamos diante de uma nova ideia de ciência, em que, prevemos a pessoa humana desempenhando um papel definitivamente central. E, de fato, influencia a ideia de ciência, de forma a torná-la mais próxima do conceito de vocação e história pessoal do eu” (FERRARELLO, 2010, 37). Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 01, nº 02, 2014, pp. 80-90, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 84 Se a verdade, na esfera do pensamento, torna-se um objeto da lógica, a ética, por sua vez, constitui-se como ciência rigorosa a partir do seu objeto natureza do agir, que proporciona um diálogo com outros ramos da Filosofia. Nesse contexto, Husserl, com o propósito de estabelecer as condições de cientificidade da ética, toma da lógica os seus pressupostos científicos e os empresta. O projeto de transformar a ética em uma ciência rigorosa consiste em afastar as opiniões que tanto a prejudicam, que solapam o objetivo de oferecer à ética o status de ciência que exige análises rigorosas quanto aos seus problemas. A preocupação husserliana, advinda do seu ensaio Filosofia como ciência de rigor está bem próximo desse problema, visto que o filósofo deseja banir das “investigações éticas” a arquitetura da opinião.9 Assim, inspirado por esse problema, Husserl apresenta a bondade como centro do agir racional. E acrescenta: Como a lógica formal corresponde um sistema de estruturas fundamentais da consciência de crença (doxa da consciência, como costumam dizer) e com isso uma fenomenologia e uma teoria formal do conhecimento, da mesma forma as coisas são para a axiologia formal e para a prática em relação à disciplina fenomenológica a que, em princípio, correspondem ou seja, à teoria dos valores e da vontade - e essas palavras são usadas aqui em um sentido similar à expressão teoria "do conhecimento” (2009a, p. 26). Com o intuito de ratificar e ampliar seu entendimento assentado no início de suas lições de 1914, Husserl esclarece que a ética também tem, por fim, que elaborar uma teoria dos valores, e para isso deve fundar um conjunto de princípios que lhe dê a mesma condição oferecida à teoria do conhecimento, isto é, à teoria dos valores, o quer dizer, fenomenologicamente, examinar a partir do fundamento que propõe à consciência como doadora de sentidos, nesse caso, uma crítica aos valores constituídos. Outrossim, a teoria dos valores propugnada por Husserl firma-se como crítica ao entorno humano, cuja saída é 9 Quanto ao fundamento do ato moral, a ética pode ser deontológica ou consequencialista. A ética deontológica é aquele que defende a concepção segundo a qual o ato moral tem por princípio a intenção da ação, ou seja, o ato moral deve ser julgado por aquilo que ele se define como centro da intenção de fazer, o motivo. Por sua vez, a ética demarcada pelo consequencialismo defende a ideia que o valor do ato moral repousa sobre as consequências da ação. Por exemplo: a mentira, para a ética deontológica de inspiração kantiana, tem natureza devastadora na ação moral, ao passo que, segundo a ética consequencialista (utilitarismo), mentir pode ser relevante na medida em que pode se salvar vidas. Se o imperativo categórico husserliano apela para o melhor dentro do possível das ações, recordando que o homem é um ser essencialmente racional, pensa-se que a mentira, para Husserl, em si é irracional porque prejudica o caráter de um valor positivamente bom, como, por outro lado, ela pode ser o melhor possível dentro de um quadro de ações nobilitantes. Matar alguém é um ato moralmente mau. Contudo, na defesa de grupo de pessoas indefesas por conta de serem socialmente pacíficas e voltadas para uma vida dócil, pode-se, politicamente, pegar em armas para defender esse grupo. Exemplo disso foi a resistência francesa ante a invasão da França por forças nazistas. O heroísmo pode ser esse racionalmente possível. O heroísmo é sempre um agir que contempla um caráter socialmente bom, isso porque o interesse individual, político, comunitário e racional é contemplado. Vide o filme O fora da lei de James Edward Grant. Nele se expressa o sentido do herói que usa da violência para trazer a paz debelada por um bandoleiro. Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 01, nº 02, 2014, pp. 80-90, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 85 lançar mão da epoché com o escopo de suspender as bases do existente. Assume Husserl a ideia de que a ética deve ser crítica aos valores à medida que os analise cientificamente. Valendo-se da observação de José Henrique Santos, quanto ao significado da fenomenologia e aplicada a sua demarcação ética, especificamente, pode-se dizer que ela mesma não visa à “demonstração ou à prova; não pretende axiomatizar nem hierarquizar conceitos de forma dedutiva ou indutiva. Seu objeto é mais modesto: trata-se de evidenciar” (1973, p. 255). Isso significa dizer que é “tornar patente e manifesto o que, na reflexão natural, assumimos de modo inconsciente e anônimo” (ibidem). Logo, a ética, como ciência judicante-normativa, ao fundamentar a teoria dos valores do ponto de vista rigoroso, deve ser um sistema estrutural que possibilite uma análise racional dos valores postos pelo sujeito no que tange ao mundo moral que, ao contrário do mundo natural, não pode ser explicado e muito menos interpretado ao modo das ciências fáticas do espírito, mas descrito pela evidência intuitiva (SANTOS, 1973, 256). Consoante às lições de 1914,10 o texto de Introduzione all’ética de 1924, que, apesar do impacto da Guerra de 1914-1918, ainda guarda a mesma preocupação quanto à relação entre lógica e ética, ao que destaca o eu como centro. Estabelecemos o tradicional paralelo da ética com a lógica, o que, de fato, tem motivações muito profundas na própria razão. Tal como a lógica, a ética é definida e tratada como uma disciplina técnica; a lógica como disciplina técnica do pensamento judicante que almeja a verdade, a ética como disciplina técnica da vontade e do agir (HUSSERL, 2009b, p 3). Sem entrar no mérito quanto à mudança de posição que Husserl adota entre o texto de 1914 e o outro de 1924, sobretudo no que diz respeito ao eu, em que a ética científica não pode ser somente pensada como lógica do sentimento,11 porque nela há os problemas relacionados aos valores e aos atos práticos e axiológicos (FERRARELLO, 2010, p. 94), a lógica formal ou pura, também pode ter o seu correlato no mundo quotidiano, isto é, a ética formal ou pura. Assim, como a lógica normatiza o pensamento na busca da verdade, a ética como disciplina teórica sobre o agir, busca um critério universal de julgamento sobre as ações com o propósito de oferecer princípios universais sobre a conduta moral. Ela é teórica e prática ao mesmo tempo, nisso nota-se a influência kantiana com sua relação 10 “A ética formal, descrita por Husserl nas lições de 1914, é pensada sob o modelo da lógica formal, delineada nos “Prolegómenos” nas Investigações lógicas. A lógica, nesta obra, é concebida como uma ciência que se articula sobre três planos: teorético, normativo e técnico, os quais são considerados por Husserl como distintos e, ao mesmo tempo, ligados entre si” (FERRARELLO, 2010, p. 53). 11 Para Guimarães, o valor é apreendido a partir da intuição emocional e não da explicação lógica. “Os valores só podem ser percebidos e compreendidos pela via do ‘sentimento, e não do aparato explicativo” (2013, p. 134). Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 01, nº 02, 2014, pp. 80-90, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 86 puro-prático. Segundo Marcelo Fabri, a incondicionalidade da ética husserliana caracteriza-se por ter o a priori como condição necessária à superação dos sistemas relativistas como ceticismo, biologismo, empirismo etc., sem esquecer o mundo sensível das relações humanas, aquilo que ele chama de situações motivacionais (2012, p. 31). Então, para Husserl, a ética é a disciplina: Técnica do agir correto, portanto, um agir correto é aquele que se dirige para os fins do justo, (ética é) a disciplina das metas que nossas ações devem legitimamente perseguir [...] Ética é a disciplina técnica que se refere a este ser absolutamente necessário ou que se refere à reivindicação absoluta da razão prática (2009b, p. 10-11). Na ótica husserliana, a ética, como ciência judicante-normativa, tem como preocupação guiar para o justo e definir o seu significado sem prescrever, no entanto, um guia de condutas, propensão esta que não mais seria filosofia, ética ou qualquer outro elemento racional, e iria de encontro à autonomia, ideia fundante do agir. 12 Porém, a condição de disciplina técnica não faz da ética uma ciência sem conteúdo, pois se nela existe a incumbência de nortear o agir, deve se valer de elementos teóricos, por isso ela pertence ao mundo prático-teorético, o que afasta Husserl de Aristóteles e o aproxima de Kant. Todavia, nos ensaios da Renovação e Crise da humanidade europeia e a filosofia, Husserl crítica a ética de corte individual de natureza kantiana, pois ao voltar às coisas mesmas, restaura a reflexão aristotélica sobre o mundo comunitário. A partir dos anos de 1914-1918, por conta da grande guerra, o pensamento ético husserliano volta-se para o espírito de renovação individual e coletiva do homem, onde a ética, ciência filosófica, preocupa-se com a vida ativa no cenário quotidiano.13 Porém, “a proposta de uma ética fenomenológica encontra-se, precisamente, na retomada do conceito de subjetividade [...] Como ponto de partida para uma contraposição consistente às consequências culturais da crise da metafísica ocidental” (FABRI, 2007, p. 29). 12 “Afirmar este tipo de ‘primado da ética’ significa, para Husserl, concentrar atenção, antes de tudo, sobre o agir humano, sobre a prática formal que nos Lineamenti parecia escapar aos contornos de uma verdadeira compreensão. Isso impõe um repensar do conceito de fundamento que foi originalmente derivado dos Prolegómenos. Na Introduzione all’etica, de fato, nós não vemos tanto um esforço de fundamento teorético quanto da reconstrução, mediante uma análise mais histórico-filosófica da gênese e desenvolvimento conceitual da disciplina ética, que ocupa uma grande parte da obra e parece testemunhar a vontade de ‘exibir’, mais do que explicar ou estabelecer a articulação interna de uma ética entendida como uma prática racional, e não como uma teoria ética” (BUONGIORNO, 2011, p. 38). Ao contrário, penso que Husserl sempre se ateve aos estudos sobre ética, o problema é que nunca se domina o impulso da vida e suas tarefas. 13 “A dimensão da motivação que permite a unidade de vida de uma determinada comunidade não elimina outros planos motivacionais. Não se propõe a eliminação do caráter particular da motivação psicológica ou moral nem o fim de qualquer dimensão universal da motivação. A subjetividade coletiva global, que abarca todas as outras, não permite o aniquilamento dessas camadas mais particulares. A coletividade não pressupõe o desaparecimento do sujeito individual. A subjetividade coletiva, que se estabelece a partir das pessoas livres no sentido pleno” (CAVALIERE. 2013 p. 404). Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 01, nº 02, 2014, pp. 80-90, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 87 Antes de iniciar o capítulo seguinte, julga-se necessário recapitular o pensamento ético de Husserl ao longo de sua atividade como filósofo, para depois desenvolver o problema da ética como ciência da vida ativa. Segundo Hoyos Vásquez, o pensamento ético do nosso filósofo percorreu três etapas, todas elas especificamente marcadas por preocupações distintas, e, ao mesmo tempo, ligadas entre si através de elementos teóricos que surgem como decorrência do processo reflexivo sobre o agir. Conforme o estudioso colombiano, a primeira etapa, compreendida entre os anos de 1908-1920, é configurada pela preocupação em refutar as formulações do ceticismo, relativismo etc., defendendo uma ética de matiz objetivista, ainda influenciada pelos resultados das Investigações lógicas. Para isso, Husserl despende um esforço teórico gigantesco com a finalidade de demonstrar que os problemas éticos e, consequentemente axiológicos, podem ser pensados como juízos objetivos. Aqui a ética é influenciada pela lógica, ou melhor dizendo: assim como a lógica fundamenta o pensamento científico, a ética consubstanciaria, objetivamente, o pensamento moral. Pode-se dizer que, assim como a intuição é capaz de apreender verdades científicas, ela seria também capaz de perceber as verdades do universo moral (VÁSQUEZ, 2002, p. IX). A terceira fase, marcada pela publicação da obra Crise das ciências europeias e a filosofia transcendental em 1936, tem como objeto de preocupação o mundo da vida – Lebenswelt - que remete à reflexão fenomenológica das vivências para estabelecer o conteúdo cognitivo dos juízos que compreendem o compromisso valorativo do sujeito em determinadas situações e motivações no processo de renovação do homem (2002, p. XII). O mundo da vida como lugar originário, percebe Husserl, foi esquecido por conta das criações ideais, soterrando a dimensão contundente do espírito que intui valores mais altos. A revolução científica do século XVII se opõe à concepção de ciência medieval, combatida a partir da retomada do ideal grego de ciência. Contudo, essa inspiração duraria pouco tempo até que Galileu e Descartes elaborassem contundentes observações em contrário ao espírito científico de corte aristotélico. As elaborações galileanas, cartesianas e. mais tarde. as newtonianas constituem o cerne do pensamento mecanicista que transformou a ciência em ciência de fatos, e que trouxe imensos problemas ao mundo dos homens. O fisicalismo retirou de todas as ciências, inclusive as “tardias” ciências humanas, todas as questões que envolvem o espírito, isto é, ficou fora das questões científicas o sentido da vida e a natureza do homem. Para Husserl, as ciências no devir se desespiritualizaram, tornando-se apenas ciências de fatos, esquecendo o sentido de si mesmas. Essa virada deu-se a partir do Renascimento. Se o Renascimento teve o mérito de resgatar Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 01, nº 02, 2014, pp. 80-90, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 88 os significados universais da Filosofia e da Ciência contra a estagnação, os anos decorrentes empobreceram ambas, tendo no positivismo sua pá de cal, em que tudo ficou reduzido à esfera da comprovação dos fatos empíricos. Embora Husserl tenha detectado o problema ao longo de suas pesquisas, somente mais tarde, nos anos de 1930, o filósofo expõe com clareza conceitual o sintoma da vida europeia que abate as melhores descobertas do mundo ocidental. Mas é com o espírito de renovação que marca a virada de uma ética social, política e pessoal. As análises husserlianas dos problemas éticos grifados nas lições de 1914 e 1924 foram relevantes porque fazem importantes descobertas teóricas que, a partir de agora, estão a serviço da ética como instância crítica da cultura. A segunda fase,14 que toca a presente pesquisa, tem como investigação o problema do homem no mundo, como pessoa, político, enfim, o homem em suas múltiplas dimensões. Esse período compreende os anos de 1920, que estão materializados nos textos publicados na revista The Kaizo entre 1923 a 1924. Vale lembrar que, segundo Vásquez, Husserl preocupa-se com a responsabilidade que o homem tem de repensar os rumos da cultura europeia, que, historicamente impregnada do espírito racional fornecido pela filosofia e ciência, ainda não resolveu o conflito oriundo das relações intersubjetivas. Assim, Husserl retoma o ethos racional dessa cultura como centro da vida ativa. A guerra e seus horrores, acentua Vásquez, retrata a miséria moral, religiosa e filosófica dessa humanidade (2002, p. VII-XII). Renovação é um conjunto de ensaios husserlianos que sintetiza a preocupação de uma época cujas origens remontam ao mencionado Renascimento, com repercussões presentes, chamando atenção da atualidade da ética husserliana, por ser relevante à medida que analisa todas as instâncias da vida comunitária. Husserl, com sua sensibilidade aguda, soube pensar os principais problemas que rondavam o mundo europeu no pós-guerra e os primeiros passos dos movimentos autoritários como alternativas políticas aos impasses criados pelo ideal liberal de homem des-comunitarizado. Esse credo cumpriu generoso 14 “As preocupações éticas em Husserl podem ser agrupadas em três fases. Na primeira, temos uma focalização mais objetivista, visando cercar o avanço das perspectivas cepticista, psicologista [...] Na segunda fase, dá-se a transição para uma ética mais subjetiva. É o período pós-guerra. Nesse contexto é que se coloca a questão de uma ética da responsabilidade [...] O mundo moderno tomou o indivíduo como referência ética absoluta e, consequentemente, colocou a dimensão da responsabilidade apenas sobre o sujeito isolado. A constituição da ética moderna se fundamenta no dever do indivíduo. Por isso, temos hoje grande dificuldade de passar de uma ética individual para uma ética social. A dissociação entre a autorresponsabilidade do homem individual e seu papel como pessoa, como cidadão e membro de uma humanidade levou, muitas vezes, a um descrédito em relação às possibilidades de uma renovação das várias comunidades e da própria humanidade. Imaginou-se que toda a estrutura das organizações sociais, apoiada numa ética individual, chamando para a responsabilidade o indivíduo ético como membro da sociedade, por si só resolveria todos os problemas da convivência humana. O sujeito moderno individual, através das obrigações ou do dever-ser, poderia, segundo essa visão, constituir uma humanidade ética” (CAVALIERE. 2013 p. 406-407). Revista Transdisciplinar Logos e Veritas, Vol. 01, nº 02, 2014, pp. 80-90, ISSN 2318-9614 P á g i n a | 89 papel histórico ao debelar o absolutismo monárquico no início da Idade Moderna. Agora, alimentado pelo capitalismo que tem o ganho pelo ganho como seu thelos, uma pratica mercantil que se tornou modelo social, espalha pelo mundo o eu como centro de tudo e o outro como ameaça, criando o individualismo como valor. Ao contrário, além de ser um texto de ética e crítica à cultura, Renovação é programa político que apela para educação racional, instruída pela filosofia e por uma ética pessoal-comunitária. Programa pedagógico racional que não ignora o sentimento. Referências Bibliográficas ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. SP: Martins Fontes, 2007. Tradução de Alfredo Bosi e Ivone Castilho Banedetti. BUONGIORNO, Federica. Fondazione dell’etica e materia del dovere in Edmund Husserl. Revista Internazionale di Filosofia e Psicologia. Vol. 2 (2011), n. 1, pp. 32-40 CAVALIERI, Edebrande. Via a-teia para Deus e a ética teleológica a partir de Edmund Husserl. Vitória: EDUFES, 2013. FABRI, Marcelo. A atualidade da ética husserliana. 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