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Esboço II: demarcação da ética husserliana - relação entre o teorético e prático 1
Wellington Trotta *
Resumo: O presente artigo analisa a importância das “investigações éticas” de Husserl à guisa de
suas “investigações lógicas”. Pretende-se, neste texto, compreender a relação que o filósofo faz
entre lógica e ética, e as consequências para o sentido de renovação ética através de uma conversão
pessoal com o intuito de buscar uma vida comunitária, o que se pode chamar de racionalidade.
Palavras-chave: Ética – renovação – conversão – vida ativa – Husserl.
Abstract: This paper analyzes the importance Husserl´s "ethics investigation" , observing
his"logical investigations". It is intended, in this paper, to understand the relationship that the
philosopher makes between logic and ethics, and the consequences for the sense of ethical renewal
through a personal conversion in order to pursue a common life, what people might call rationality.
Keywords: Ethics - renovation - conversion - active life - Husserl.
No pensamento ético 2 de Husserl, existem especificidades que tornam complexa a
tarefa de descrever os elementos que compõem o seu sistema prático, isso pelo fato de que,
o vasto universo de sua obra, ao longo de sua produtiva vivência reflexiva, está em
constante elaboração. Husserl sempre retifica seu pensamento, sobretudo, no que diz
respeito à ética. Contudo, encontra-se algo essencial em sua teorização ética, o que faz de
sua escola um importante sistema de considerações nesse campus, qual seja: a busca de
uma fundamentação teórica para que a ética possa se tonar não só uma disciplina técnica
de natureza prática, mas um sistema rigoroso que forneça conhecimentos para o bom juízo
das ações; além de tomar a alteridade como princípio de si mesmo (HUSSERL, 2001, p.
143-144). Isso está bem claro em suas obras Lineamenti di ética formale de 1908-1914, na
Introduzione all’etica 1920-1924, nos seus cinco ensaios denominados de Renovação,
escritos no período de 1923 a 1924 para a revista japonesa The Kaizo; na Conferência de
Viena em 1935, intitulada A crise da humanidade europeia e a filosofia, e A crise das
ciências europeias e a fenomenologia transcendental de 1936. É importante observar,
ainda, que os textos éticos de 1914 e 1924, só foram publicados a partir dos anos de 1980.
Os textos publicados em vida por Husserl contêm análises sérias e profundas, embora não
estudem os elementos constitutivos do mundo da ciência ética (SEPP, 1995, p. 19).
1
Este artigo, ligeiramente adaptado, é parte do Relatório Pós-Doutoral a ser apresentado ao Programa de PósGraduação em Filosofia do IFCS-UFRJ.
2
“Ao elaborar suas aulas sobre ética, todavia, Husserl não se refere diretamente aos conceitos fundamentais
da fenomenologia daqueles anos em que ele precisava deles. Tanto as Lineamenti di etica formale como a
Introduzione all’etica se dão principalmente no plano da comparação sistemática entre razão prática e razão
lógica. Ambas as lições começam com uma referência explícita às considerações expostas em 1900, no
primeiro volume das Investigações lógicas, em particular nos ‘Prolegómenos à lógica pura’, e Husserl
distingue, cuidadosamente, a relação entre as disciplinas teóricas, normativas e técnicas, tendo em vista a
afirmação da lógica como Wissenschaftslehre” - doutrina das ciências (BUONGIORNO, 2001, p. 33).
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A ética husserliana é constituída por um princípio relevante, o a priori de
inspiração kantiana em se tratando do mundo moral.3 Esse elemento é fulcral na medida
em que se toma a incondicionalidade como instância formuladora de fundamento. Assim,
sendo a consciência o centro doador de sentidos pela intencionalidade, tendo a qualidade
de perceber os significados dos objetos que estão ao seu redor, sejam eles materiais ou
ideias, a consciência, quanto ao agir humano, também é capaz de apreender a natureza
correta das ações.
4
Logo, a ética de Husserl está marcada pelo incondicional, posto pelo
seu imperativo categórico, cujo escopo consiste no seguinte mandamento: “faça em todo o
momento o melhor possível entre o alcançável” (HUSSERL, 2009a, p. 156). 5
Porém, diferentemente de Kant, que subordina o agir aos ditames do imperativo
categórico, sendo o dever elemento central da lei racional que regula as ações longe das
inclinações pautadas por fins sensíveis, Husserl toma a ideia segundo a qual as ações
humanas devem se pautar pelo princípio de que o indivíduo deve agir da melhor forma
possível.
6
Nesse caso, a ética husserliana filia-se à ética do dever, guardando uma
peculiaridade que a distingui da kantiana, isto é, a sua concepção de imperativo que, longe
de ser formal e idealisticamente forjado pelas éticas estoica e cristã-luterana, tem uma
formulação política, a saber: “faça em todo o momento o melhor possível” nas relações
intersubjetivas. Nesse sentido, o imperativo husserliano, ao contrário do categórico, não é
abstrato e volta-se para uma comunidade de indivíduos associados por laços culturais.
3
“A ética husserliana se caracteriza pela retomada do conceito de a priori em assuntos morais [...] A ética é
uma disciplina do agir justo. Ela é prática e teórica a uma só vez, implicando a pessoa como um todo, pois é
o sujeito pessoa que pode ou não passar pela vida como quem decide não só neste ou naquele caso particular,
mas, sobretudo, com vistas à unidade ou coerência de sua existência” (FABRI, 2012, p. 31 e 33).
4
“É, portanto, um erro de princípio pensar que a percepção (e, a sua maneira, toda outra espécie de intuição
da coisa) não tenha acesso à coisa mesma [...] Nos atos intuitivos imediatos, intuímos ‘algo ele mesmo’;
sobre suas apreensões não se constroem apreensões de nível superior, não se tem, pois, consciência de nada
para o qual o intuído poderia operar como ‘signo’ ou como imagem. E por isso mesmo se diz que é intuído
imediatamente como ‘ele mesmo’. Na percepção, esse mesmo ainda é caracterizado de forma peculiar como
ele mesmo em ‘carne e osso’, em contraposição ao que ocorre na recordação ou na livre imaginação, onde
recebe o caráter de algo modificado de um algo ‘vislumbrado’, de um algo presentificado” (HUSSEL, 2006a,
§43, p. 102-103).
5
A Ética pode ser tomada por duas perspectivas: as éticas do fim e do móvel. Esta se define pela análise das
regras elaboradas por um agir em si mesmo, em que o prazer está no móvel do certo pelo correto, isto é, o
prazer como móvel constante e habitual das ações em que se define como objeto da vontade humana em
regras que a dirige. Aquela, a ética dos fins, traça o ideal como objeto do desejo, a noção do bem como
realidade perfeita, definida pelo ideal, uma vez que as regras são derivadas do fim, portanto a felicidade é um
objetivo cuja conduta social é uma dedução da necessária condição racional humana. A ética do fim pode ser
tomada como conhecimento visando os objetivos, ao passo que a ética do móvel é um conhecimento da
conduta humana em si. Na ética dos fins as regras são definidas pelo ideal, assim como as regras da ética do
móvel são alicerçadas pelo agir em si. Pode-se dizer, inicialmente, que Husserl, no seu esforço teórico de
totalidade, apreende dessas escolas elementos naquilo que concerne sua ética: o incondicional voltado para a
comunidade no melhor possível, cuja intenção em agir racional leva o outro como fim racional e político.
6
Segundo Hoyos Vásquez, o ponto crucial da ética husserliana é a analise dos valores, preocupação de
pessoas responsáveis histórica e culturalmente, do ponto de vista pessoal, social e coletivo (2002, p. XI).
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Assim, Husserl, como filósofo da totalidade e da unicidade, é herdeiro das filosofias de
Aristóteles e Kant. Ressalta-se, porém, que é a Kant que Husserl dirige-se como crítica e
assimilação. Portanto, ao examinar as aporias da ética, aprofunda sua axial preocupação: a
rigorosidade científica. Destarte:
O domínio de uma ciência é uma unidade objetiva fechada; não reside no
nosso arbítrio onde e como delimitamos o domínio da verdade. O reino
da verdade dividi-se objetivamente em domínios; a investigação tem de
se orientar segundo essas unidades objetivas e coordenadas em ciências
(HUSSERL, 2005, p. 31).
A pesquisa sobre a ética e seus elementos constitutivos também apresenta os
mesmos problemas de toda ciência, inclusive os da matemática, por exemplo. Se se deseja
que um determinado saber se torne ciência, é preciso ter a noção de que ela é uma unidade
objetiva fechada, ou seja, um domínio de elementos próprios que forjam a necessidade de
buscar a verdade, o desvelamento dos seus significados. Logo, a ética, pensada como
disciplina técnica do agir, é um reino de elementos específicos que não prescinde, tal qual
a lógica, de investigação orientada segundo unidades objetivas. A ética, portanto, tem
dupla acepção: tanto é uma ciência técnica do agir, quanto uma ciência teorética que
dispõe de um conjunto de princípios pelos quais analisa cientificamente as técnicas, o
motivo, a necessidade e a relevância do agir. Assim, Husserl assevera que comecemos: 7
Com o estabelecimento de um princípio da maior importância para a
investigação que se segue, a saber, que toda disciplina normativa e, do
mesmo modo, toda disciplina prática assenta sobre uma ou mais
disciplinas teoréticas, na medida em que as suas regras têm de possuir um
conteúdo teorético separável do pensamento da normatividade (do deverser), conteúdo cuja pesquisa científica compete precisamente àquelas
disciplinas teoréticas (2005, p. 61-62).
O grande objetivo de Husserl, além de outros como teórico da ciência, é descobrir
um conjunto de conceitos que torne a lógica uma mathesis universalis com o propósito de
unificar todas as ciências. Essa preocupação baseia-se na ideia de que não é possível pensar
ou fazer ciência orientada pelas infiltrações advindas do relativismo, ceticismo,
psicologismo etc. Husserl acredita na unidade da ciência, e, para tal, é preciso reconhecer
na lógica o papel de criar condições teóricas para tal fim. Conforme Husserl, portanto,
tanto a lógica como a ética teve, historicamente, o mesmo sentido originário, isto é, tratar
7
“A ciência não pretende nem pode ser o campo de um jogo arquitetônico. A sistemática, própria da ciência
– naturalmente, da ciência correta e genuína - não a inventamos nós, mas reside nas coisas, onde
simplesmente a encontramos ou descobrimos. A ciência pretende ser o meio de conquistar para o nosso saber
o domínio da verdade e, com efeito, na sua máxima extensão possível; mas o domínio da verdade não é um
caos desorganizado, nele impera a unidade da lei; e assim, também a pesquisa e exposição da verdade têm de
ser sistemática, tem de espelhar as suas conexões sistemáticas” (HUSSERL, 2005, p. 40).
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também de problemas práticos: a lógica, como razão judicante do pensar, e a ética, como
razão normativa do agir humano. Esta se volta para as relações humanas, aquela para o
pensamento humano.
Segundo Husserl, Aristóteles, como fundador da lógica, teve o mérito de elaborá-la
com o propósito de forjar as bases metodológicas do conhecimento científico (2009a, p.
26). Sendo assim, a lógica tem sua origem, assim como a ética, no campo da atividade
prática, isto é, na organização do pensamento voltado para as metodologias científicas no
trato da verdade e na elaboração reflexiva do agir, no que se refere ao campo das relações
humanas. Porém, ao contrário de Aristóteles e próximo de Sócrates (EE, 1216b), Husserl
afirma, mutatis mutandis, que o conteúdo teorético é elucidativo na elaboração de juízos
éticos, ao afirmar que para ter “acesso à palavra, a vontade necessita dos atos lógicos, e o
resultado é um juízo de dever, que é precisamente um julgamento e não uma vontade.
Logo, a razão lógica deve, por assim dizer, lançar seu olhar também sobre o âmbito
prático, emprestando a este o olho do intelecto” (2009a, p. 81). Assim, para Fabri, “a
ética formal, do mesmo modo que a lógica formal, deve ser complementada por uma
reflexão de caráter transcendental” (2006, p. 72).
Husserl, mais adiante, nos anos de 1908-1914, após suas Investigações lógicas de
1900-1901, elabora um conjunto de formulações sobre o mundo do agir, guardando o
mesmo problema entre a relação lógica e ética. No seu livro Lineamenti di ética formale Lezioni sull’etica e la teoria dei valori del 1914, o filósofo austríaco afirma o seguinte: 8
Tradicionalmente verdade, bondade e beleza são apresentadas como
ideias filosóficas que, respectivamente, correspondem às disciplinas
filosóficas normativas como lógica, ética e estética. Este paralelismo, que
está baseado em razões de profundidade, mas não suficientemente
esclarecido, envolve significativos problemas filosóficos que agora
queremos aprofundar em nome de uma fundamentação científica da ética,
mas também por um interesse filosófico em geral (2009a, p. 25).
Nesse primeiro momento do percurso das especulações éticas husserlianas,
sobressai-se uma reflexão sobre a situação da ética no concerto da Filosofia, e por que o
seu objeto pode lhe oferecer o status de ciência. Essa preocupação husserliana justifica-se
em virtude de tentar superar o ceticismo e suas variáveis como empirismo, relativismo etc.
8
“Se a ética, este é o fio condutor de nossa análise, não pode ser uma ciência, o projeto fenomenológico em
geral cai porque o projeto de fundamentação científica da ética está, estritamente, vinculado ao
fenomenológico. Ao invés, se a ética pode ser ciência definida, estamos diante de uma nova ideia de ciência,
em que, prevemos a pessoa humana desempenhando um papel definitivamente central. E, de fato, influencia
a ideia de ciência, de forma a torná-la mais próxima do conceito de vocação e história pessoal do eu”
(FERRARELLO, 2010, 37).
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Se a verdade, na esfera do pensamento, torna-se um objeto da lógica, a ética, por sua vez,
constitui-se como ciência rigorosa a partir do seu objeto natureza do agir, que proporciona
um diálogo com outros ramos da Filosofia. Nesse contexto, Husserl, com o propósito de
estabelecer as condições de cientificidade da ética, toma da lógica os seus pressupostos
científicos e os empresta. O projeto de transformar a ética em uma ciência rigorosa
consiste em afastar as opiniões que tanto a prejudicam, que solapam o objetivo de oferecer
à ética o status de ciência que exige análises rigorosas quanto aos seus problemas. A
preocupação husserliana, advinda do seu ensaio Filosofia como ciência de rigor está bem
próximo desse problema, visto que o filósofo deseja banir das “investigações éticas” a
arquitetura da opinião.9 Assim, inspirado por esse problema, Husserl apresenta a bondade
como centro do agir racional. E acrescenta:
Como a lógica formal corresponde um sistema de estruturas fundamentais
da consciência de crença (doxa da consciência, como costumam dizer) e
com isso uma fenomenologia e uma teoria formal do conhecimento, da
mesma forma as coisas são para a axiologia formal e para a prática em
relação à disciplina fenomenológica a que, em princípio, correspondem ou seja, à teoria dos valores e da vontade - e essas palavras são usadas
aqui em um sentido similar à expressão teoria "do conhecimento” (2009a,
p. 26).
Com o intuito de ratificar e ampliar seu entendimento assentado no início de suas
lições de 1914, Husserl esclarece que a ética também tem, por fim, que elaborar uma teoria
dos valores, e para isso deve fundar um conjunto de princípios que lhe dê a mesma
condição oferecida à teoria do conhecimento, isto é, à teoria dos valores, o quer dizer,
fenomenologicamente, examinar a partir do fundamento que propõe à consciência como
doadora de sentidos, nesse caso, uma crítica aos valores constituídos. Outrossim, a teoria
dos valores propugnada por Husserl firma-se como crítica ao entorno humano, cuja saída é
9
Quanto ao fundamento do ato moral, a ética pode ser deontológica ou consequencialista. A ética
deontológica é aquele que defende a concepção segundo a qual o ato moral tem por princípio a intenção da
ação, ou seja, o ato moral deve ser julgado por aquilo que ele se define como centro da intenção de fazer, o
motivo. Por sua vez, a ética demarcada pelo consequencialismo defende a ideia que o valor do ato moral
repousa sobre as consequências da ação. Por exemplo: a mentira, para a ética deontológica de inspiração
kantiana, tem natureza devastadora na ação moral, ao passo que, segundo a ética consequencialista
(utilitarismo), mentir pode ser relevante na medida em que pode se salvar vidas. Se o imperativo categórico
husserliano apela para o melhor dentro do possível das ações, recordando que o homem é um ser
essencialmente racional, pensa-se que a mentira, para Husserl, em si é irracional porque prejudica o caráter
de um valor positivamente bom, como, por outro lado, ela pode ser o melhor possível dentro de um quadro de
ações nobilitantes. Matar alguém é um ato moralmente mau. Contudo, na defesa de grupo de pessoas
indefesas por conta de serem socialmente pacíficas e voltadas para uma vida dócil, pode-se, politicamente,
pegar em armas para defender esse grupo. Exemplo disso foi a resistência francesa ante a invasão da França
por forças nazistas. O heroísmo pode ser esse racionalmente possível. O heroísmo é sempre um agir que
contempla um caráter socialmente bom, isso porque o interesse individual, político, comunitário e racional é
contemplado. Vide o filme O fora da lei de James Edward Grant. Nele se expressa o sentido do herói que usa
da violência para trazer a paz debelada por um bandoleiro.
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lançar mão da epoché com o escopo de suspender as bases do existente. Assume Husserl a
ideia de que a ética deve ser crítica aos valores à medida que os analise cientificamente.
Valendo-se da observação de José Henrique Santos, quanto ao significado da
fenomenologia e aplicada a sua demarcação ética, especificamente, pode-se dizer que ela
mesma não visa à “demonstração ou à prova; não pretende axiomatizar nem hierarquizar
conceitos de forma dedutiva ou indutiva. Seu objeto é mais modesto: trata-se de
evidenciar” (1973, p. 255). Isso significa dizer que é “tornar patente e manifesto o que, na
reflexão natural, assumimos de modo inconsciente e anônimo” (ibidem). Logo, a ética,
como ciência judicante-normativa, ao fundamentar a teoria dos valores do ponto de vista
rigoroso, deve ser um sistema estrutural que possibilite uma análise racional dos valores
postos pelo sujeito no que tange ao mundo moral que, ao contrário do mundo natural, não
pode ser explicado e muito menos interpretado ao modo das ciências fáticas do espírito,
mas descrito pela evidência intuitiva (SANTOS, 1973, 256). Consoante às lições de
1914,10 o texto de Introduzione all’ética de 1924, que, apesar do impacto da Guerra de
1914-1918, ainda guarda a mesma preocupação quanto à relação entre lógica e ética, ao
que destaca o eu como centro.
Estabelecemos o tradicional paralelo da ética com a lógica, o que, de fato,
tem motivações muito profundas na própria razão. Tal como a lógica, a
ética é definida e tratada como uma disciplina técnica; a lógica como
disciplina técnica do pensamento judicante que almeja a verdade, a ética
como disciplina técnica da vontade e do agir (HUSSERL, 2009b, p 3).
Sem entrar no mérito quanto à mudança de posição que Husserl adota entre o texto
de 1914 e o outro de 1924, sobretudo no que diz respeito ao eu, em que a ética científica
não pode ser somente pensada como lógica do sentimento,11 porque nela há os problemas
relacionados aos valores e aos atos práticos e axiológicos (FERRARELLO, 2010, p. 94), a
lógica formal ou pura, também pode ter o seu correlato no mundo quotidiano, isto é, a ética
formal ou pura. Assim, como a lógica normatiza o pensamento na busca da verdade, a ética
como disciplina teórica sobre o agir, busca um critério universal de julgamento sobre as
ações com o propósito de oferecer princípios universais sobre a conduta moral. Ela é
teórica e prática ao mesmo tempo, nisso nota-se a influência kantiana com sua relação
10
“A ética formal, descrita por Husserl nas lições de 1914, é pensada sob o modelo da lógica formal,
delineada nos “Prolegómenos” nas Investigações lógicas. A lógica, nesta obra, é concebida como uma
ciência que se articula sobre três planos: teorético, normativo e técnico, os quais são considerados por
Husserl como distintos e, ao mesmo tempo, ligados entre si” (FERRARELLO, 2010, p. 53).
11
Para Guimarães, o valor é apreendido a partir da intuição emocional e não da explicação lógica. “Os
valores só podem ser percebidos e compreendidos pela via do ‘sentimento, e não do aparato explicativo”
(2013, p. 134).
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puro-prático. Segundo Marcelo Fabri, a incondicionalidade da ética husserliana
caracteriza-se por ter o a priori como condição necessária à superação dos sistemas
relativistas como ceticismo, biologismo, empirismo etc., sem esquecer o mundo sensível
das relações humanas, aquilo que ele chama de situações motivacionais (2012, p. 31).
Então, para Husserl, a ética é a disciplina:
Técnica do agir correto, portanto, um agir correto é aquele que se dirige
para os fins do justo, (ética é) a disciplina das metas que nossas ações
devem legitimamente perseguir [...] Ética é a disciplina técnica que se
refere a este ser absolutamente necessário ou que se refere à reivindicação
absoluta da razão prática (2009b, p. 10-11).
Na ótica husserliana, a ética, como ciência judicante-normativa, tem como
preocupação guiar para o justo e definir o seu significado sem prescrever, no entanto, um
guia de condutas, propensão esta que não mais seria filosofia, ética ou qualquer outro
elemento racional, e iria de encontro à autonomia, ideia fundante do agir.
12
Porém, a
condição de disciplina técnica não faz da ética uma ciência sem conteúdo, pois se nela
existe a incumbência de nortear o agir, deve se valer de elementos teóricos, por isso ela
pertence ao mundo prático-teorético, o que afasta Husserl de Aristóteles e o aproxima de
Kant. Todavia, nos ensaios da Renovação e Crise da humanidade europeia e a filosofia,
Husserl crítica a ética de corte individual de natureza kantiana, pois ao voltar às coisas
mesmas, restaura a reflexão aristotélica sobre o mundo comunitário. A partir dos anos de
1914-1918, por conta da grande guerra, o pensamento ético husserliano volta-se para o
espírito de renovação individual e coletiva do homem, onde a ética, ciência filosófica,
preocupa-se com a vida ativa no cenário quotidiano.13 Porém, “a proposta de uma ética
fenomenológica encontra-se, precisamente, na retomada do conceito de subjetividade [...]
Como ponto de partida para uma contraposição consistente às consequências culturais da
crise da metafísica ocidental” (FABRI, 2007, p. 29).
12
“Afirmar este tipo de ‘primado da ética’ significa, para Husserl, concentrar atenção, antes de tudo, sobre o
agir humano, sobre a prática formal que nos Lineamenti parecia escapar aos contornos de uma verdadeira
compreensão. Isso impõe um repensar do conceito de fundamento que foi originalmente derivado dos
Prolegómenos. Na Introduzione all’etica, de fato, nós não vemos tanto um esforço de fundamento teorético
quanto da reconstrução, mediante uma análise mais histórico-filosófica da gênese e desenvolvimento
conceitual da disciplina ética, que ocupa uma grande parte da obra e parece testemunhar a vontade de
‘exibir’, mais do que explicar ou estabelecer a articulação interna de uma ética entendida como uma prática
racional, e não como uma teoria ética” (BUONGIORNO, 2011, p. 38). Ao contrário, penso que Husserl
sempre se ateve aos estudos sobre ética, o problema é que nunca se domina o impulso da vida e suas tarefas.
13
“A dimensão da motivação que permite a unidade de vida de uma determinada comunidade não elimina
outros planos motivacionais. Não se propõe a eliminação do caráter particular da motivação psicológica ou
moral nem o fim de qualquer dimensão universal da motivação. A subjetividade coletiva global, que abarca
todas as outras, não permite o aniquilamento dessas camadas mais particulares. A coletividade não pressupõe
o desaparecimento do sujeito individual. A subjetividade coletiva, que se estabelece a partir das pessoas
livres no sentido pleno” (CAVALIERE. 2013 p. 404).
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Antes de iniciar o capítulo seguinte, julga-se necessário recapitular o pensamento
ético de Husserl ao longo de sua atividade como filósofo, para depois desenvolver o
problema da ética como ciência da vida ativa. Segundo Hoyos Vásquez, o pensamento
ético do nosso filósofo percorreu três etapas, todas elas especificamente marcadas por
preocupações distintas, e, ao mesmo tempo, ligadas entre si através de elementos teóricos
que surgem como decorrência do processo reflexivo sobre o agir. Conforme o estudioso
colombiano, a primeira etapa, compreendida entre os anos de 1908-1920, é configurada
pela preocupação em refutar as formulações do ceticismo, relativismo etc., defendendo
uma ética de matiz objetivista, ainda influenciada pelos resultados das Investigações
lógicas. Para isso, Husserl despende um esforço teórico gigantesco com a finalidade de
demonstrar que os problemas éticos e, consequentemente axiológicos, podem ser pensados
como juízos objetivos. Aqui a ética é influenciada pela lógica, ou melhor dizendo: assim
como a lógica fundamenta o pensamento científico, a ética consubstanciaria,
objetivamente, o pensamento moral. Pode-se dizer que, assim como a intuição é capaz de
apreender verdades científicas, ela seria também capaz de perceber as verdades do
universo moral (VÁSQUEZ, 2002, p. IX).
A terceira fase, marcada pela publicação da obra Crise das ciências europeias e a
filosofia transcendental em 1936, tem como objeto de preocupação o mundo da vida –
Lebenswelt - que remete à reflexão fenomenológica das vivências para estabelecer o
conteúdo cognitivo dos juízos que compreendem o compromisso valorativo do sujeito em
determinadas situações e motivações no processo de renovação do homem (2002, p. XII).
O mundo da vida como lugar originário, percebe Husserl, foi esquecido por conta das
criações ideais, soterrando a dimensão contundente do espírito que intui valores mais altos.
A revolução científica do século XVII se opõe à concepção de ciência medieval,
combatida a partir da retomada do ideal grego de ciência. Contudo, essa inspiração duraria
pouco tempo até que Galileu e Descartes elaborassem contundentes observações em
contrário ao espírito científico de corte aristotélico. As elaborações galileanas, cartesianas
e. mais tarde. as newtonianas constituem o cerne do pensamento mecanicista que
transformou a ciência em ciência de fatos, e que trouxe imensos problemas ao mundo dos
homens. O fisicalismo retirou de todas as ciências, inclusive as “tardias” ciências humanas,
todas as questões que envolvem o espírito, isto é, ficou fora das questões científicas o
sentido da vida e a natureza do homem. Para Husserl, as ciências no devir se desespiritualizaram, tornando-se apenas ciências de fatos, esquecendo o sentido de si mesmas.
Essa virada deu-se a partir do Renascimento. Se o Renascimento teve o mérito de resgatar
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os significados universais da Filosofia e da Ciência contra a estagnação, os anos
decorrentes empobreceram ambas, tendo no positivismo sua pá de cal, em que tudo ficou
reduzido à esfera da comprovação dos fatos empíricos. Embora Husserl tenha detectado o
problema ao longo de suas pesquisas, somente mais tarde, nos anos de 1930, o filósofo
expõe com clareza conceitual o sintoma da vida europeia que abate as melhores
descobertas do mundo ocidental. Mas é com o espírito de renovação que marca a virada de
uma ética social, política e pessoal. As análises husserlianas dos problemas éticos grifados
nas lições de 1914 e 1924 foram relevantes porque fazem importantes descobertas teóricas
que, a partir de agora, estão a serviço da ética como instância crítica da cultura.
A segunda fase,14 que toca a presente pesquisa, tem como investigação o problema
do homem no mundo, como pessoa, político, enfim, o homem em suas múltiplas
dimensões. Esse período compreende os anos de 1920, que estão materializados nos textos
publicados na revista The Kaizo entre 1923 a 1924. Vale lembrar que, segundo Vásquez,
Husserl preocupa-se com a responsabilidade que o homem tem de repensar os rumos da
cultura europeia, que, historicamente impregnada do espírito racional fornecido pela
filosofia e ciência, ainda não resolveu o conflito oriundo das relações intersubjetivas.
Assim, Husserl retoma o ethos racional dessa cultura como centro da vida ativa. A guerra e
seus horrores, acentua Vásquez, retrata a miséria moral, religiosa e filosófica dessa
humanidade (2002, p. VII-XII).
Renovação é um conjunto de ensaios husserlianos que sintetiza a preocupação de
uma época cujas origens remontam ao mencionado Renascimento, com repercussões
presentes, chamando atenção da atualidade da ética husserliana, por ser relevante à medida
que analisa todas as instâncias da vida comunitária. Husserl, com sua sensibilidade aguda,
soube pensar os principais problemas que rondavam o mundo europeu no pós-guerra e os
primeiros passos dos movimentos autoritários como alternativas políticas aos impasses
criados pelo ideal liberal de homem des-comunitarizado. Esse credo cumpriu generoso
14
“As preocupações éticas em Husserl podem ser agrupadas em três fases. Na primeira, temos uma
focalização mais objetivista, visando cercar o avanço das perspectivas cepticista, psicologista [...] Na segunda
fase, dá-se a transição para uma ética mais subjetiva. É o período pós-guerra. Nesse contexto é que se coloca
a questão de uma ética da responsabilidade [...] O mundo moderno tomou o indivíduo como referência ética
absoluta e, consequentemente, colocou a dimensão da responsabilidade apenas sobre o sujeito isolado. A
constituição da ética moderna se fundamenta no dever do indivíduo. Por isso, temos hoje grande dificuldade
de passar de uma ética individual para uma ética social. A dissociação entre a autorresponsabilidade do
homem individual e seu papel como pessoa, como cidadão e membro de uma humanidade levou, muitas
vezes, a um descrédito em relação às possibilidades de uma renovação das várias comunidades e da própria
humanidade. Imaginou-se que toda a estrutura das organizações sociais, apoiada numa ética individual,
chamando para a responsabilidade o indivíduo ético como membro da sociedade, por si só resolveria todos os
problemas da convivência humana. O sujeito moderno individual, através das obrigações ou do dever-ser,
poderia, segundo essa visão, constituir uma humanidade ética” (CAVALIERE. 2013 p. 406-407).
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papel histórico ao debelar o absolutismo monárquico no início da Idade Moderna. Agora,
alimentado pelo capitalismo que tem o ganho pelo ganho como seu thelos, uma pratica
mercantil que se tornou modelo social, espalha pelo mundo o eu como centro de tudo e o
outro como ameaça, criando o individualismo como valor. Ao contrário, além de ser um
texto de ética e crítica à cultura, Renovação é programa político que apela para educação
racional, instruída pela filosofia e por uma ética pessoal-comunitária. Programa
pedagógico racional que não ignora o sentimento.
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* O autor é Doutor em Filosofia pelo IFCS-UFRJ. Atualmente leciona Filosofia na
UNESA do Campus Cabo Frio, além de fazer parte do NPCJS.
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Esboço II: demarcação da ética husserliana