Maria Angela de C. Gianni
Médica Fisiatra
“ Os homens deveriam saber que do encéfalo, e apenas do encéfalo,vêm
nossos prazeres, alegrias, sorrisos e gracejos, assim como nossas
mágoas, dores, sofrimentos e lágrimas. Por meio dele, em particular, nós
pensamos, vemos, ouvimos e distinguimos o feio do bonito, o prazer do
desprazer... É a mesma coisa que nos torna loucos ou delirantes, que nos
inspira temor e medo, seja durante a noite ou durante o dia, nos torna
sonolentos, gera erros inoportunos, ansiedades sem razão, distrações e
atos contrários aos nossos hábitos. Essas coisas que nós sofremos vêm
todas do encéfalo, quando não está saudável...ou quando sofre qualquer
outra lesão não natural a qual não estava acostumado.”
Hipócrates, séc Va.C.
Qualquer agressão ao SNC
causada por determinado
evento passível de tratamento,
que após o mesmo não está
mais atuante, porém deixa
sequelas, constitui uma LESÃO
ENCEFÁLICA ADQUIRIDA.
Lesão Encefálica Infantil Adquirida (Brain Injury
Association)= lesão pós-natal, não relacionada a eventos do
parto, doenças congênitas, hereditárias ou degenerativas,
do SNC em desenvolvimento.
PC pós-natal = não há limite superior de idade especificado,
presumindo-se que a lesão deva ocorrer antes que a função
afetada tenha se desenvolvido.
LEA = lesão no SNC completamente desenvolvido (após
16a11m).
DESENVOLVIMENTO DO ENCÉFALO PÓS NATAL:
Encéfalo do RN = 100 bilhões de neurônios
25% do tamanho do adulto
5 anos de idade = 90% do tamanho do adulto
Crescimento = mudanças individuais nos neurônios: dendritos se
desenvolvem e ramificam, axônios se desenvolvem,
sinaptogênese se intensifica ( início na 23ª sem IU até
adolescência).
Encéfalo imaturo = número muito maior de sinapses do que
poderá manter. Grande potencial para o desenvolvimento X
conexões redundantes e desnecessárias (“encéfalo ineficiente”).
Porém, há “poda” gradual das sinapses desnecessárias,
permitindo maior eficiência ao funcionamento encefálico.
Estímulo ambiental= fundamental para definir que sinapses
devem ser mantidas.
Lesão nesta fase = danos estruturais e funcionais para o
córtex, com consequências graves para o desenvolvimento
cognitivo.
MIELINIZAÇÃO:
Início cerca de 2 meses antes do nascimento e está concluida
aos 2 anos no tronco encefálico e medula e aos 20 anos no
córtex pré-frontal.
A mielina permite maior velocidade de condução aos
estímulos elétricos.
O tronco encefálico, que controla a respiração e os
batimentos cardíacos, funções “vitais” que precisam estar
“prontas” o mais cedo possível, está completamente
mielinizado precocemente; o córtex, com suas funções mais
“sofisticadas”, leva muito mais tempo para completar esse
processo.
NEUROPLASTICIDADE:
Capacidade dos circuitos neurais se moldarem em resposta aos
estímulos ambientais. Ocorre durante toda a vida, mas é mais
atuante na criança: porém, a criança muito pequena tem a
desvantagem de um encéfalo “pobre” em conteúdo, com poucos
circuitos já estabelecidos; pré-adolescentes e adolescentes
têm a grande maioria dos circuitos corticais bem estabelecidos,
o que auxilia no processo de reabilitação, quando há uma lesão.
Base do aprendizado = define a seleção de conexões sinápticas
que moldam habilidades e comportamentos.
Perante uma lesão, o encéfalo “utiliza” os mecanismos da
neuroplasticidade para se reorganizar.
Reabilitação = estimula essa reorganização = auxilia a moldar
novos circuitos ou resgatar circuitos antigos.
MECANISMOS DE RETORNO NEUROLÓGICO:
1.
Resolução dos mecanismos secundários= adequado aporte de O2,
controle clínico, prevenção de convulsões.
2. Neuro-regeneração= crescimento dendrítico e axonal,
restabelecimento de conexões neurais.
3. Neuroplasticidade*
4. Alterações sinápticas= alterações de neurotransmissores e seus
receptores, perda de estímulos aferentes levando a diminuição
da atividade cerebral como um todo.
5. Substituição funcional=estratégias alternativas para a
realização de determinada tarefa cuja área responsável foi
lesada. Quanto menos especializada a área, maior a chance de
compensação.
6. Reaprendizado funcional=treinamento específico para que novos
circuitos se moldem na aquisição de habilidades e
comportamentos.
ETIOLOGIA DAS LEAs:
CRiANÇA
ADULTO
TCE
1
TCE
2
AVC
4
AVC
1
Anóxia
2
Anóxia
4
Infecção
3
Infecção
3
Tumor
5
Tumor
5
TRAUMATISMO CRÂNIO ENCEFÁLICO :
Força física externa forte o suficiente para causar lesão anatômica
ou comprometimento de couro cabeludo, crânio, meninges e/ou
encéfalo. Pode ser aberto (armas de fogo, armas brancas) ou
fechado ( “Shaken Baby Syndrom”, quedas).
Principal agente de incapacidade adquirida na infância (<5 anos;
adolescência). 2-3M:1F
Mecanismos de lesão: primários = ação direta da força
agressora:fraturas, contusões, lacerações da substância cinzenta,
lesão axonal difusa(coma prolongado e prog. reservado; + em cças por maior rel.
cabeça/corpo,>mielinização e musc. paravert. mais fraca)
secundários = alterações estruturais
encefálicas decorrentes da lesão 1ª + alterações sistêmicas
decorrentes do traumatismo: HIC, lesão hipóxico-isquêmica,
hematomas
Geralmente quadro de politraumatismo. Lesões associadas: LM (510%), lesões nervosas periféricas, fraturas, laceração de vísceras,
etc.
Evolução: de forma geral, crianças apresentam melhor prognóstico
motor que adultos, mas maiores problemas cognitivos e de
comportamento.
Prognóstico:escalas que tentam padronizar fatores preditores,
porém todas têm falhas: Escala de Prognástico de Glasgow, Escala
de Classificação da incapacidade, FIM( específica para adultos), Escala
Rancho Los Amigos.
Quadro clínico das sequelas: extremamente variável, de
acordo com área, local e extensão da lesão, além da idade do
paciente. Podem ocorrer alterações cognitivas, de linguagem,
memória, atenção, raciocínio, capacidade de abstração,
julgamento; perda de habilidades motoras, sensitivas e
perceptivas; déficits no comportamento e no processamento
da informação, além de complicações associadas.
Classificação:
•Leve: “Síndrome pós-concussional” = sem déficit neurológico focal
nem alterações de imagem na TC/RNM. Sintomas mais comuns: cefaléia,
vertigem, fadiga, alterações de memória e irritabilidade; podem desaperecer
poucas semanas após o trauma. Quando crônicos, caracterizam a síndrome,
com déficits cognitivos (atenção/memória) , afetivo-comportamentais
( irritabilidade/depressão/ansiedade) e somáticos(cefaléia/tontura/insônia/fadiga),
que interfere na vida do paciente e exige reabilitação específica.
•Moderado
•Grave
Gravidade ( fase aguda):
Glasgow
Coma
Leve
13-15
>30min
Mod.
9-12
30 min-6h
1-24hs
Grave
3-8
<6hs
1-7d
-
-
1-4sem
-
+ de 4sem
Mto. Grave
Extrema/ grave
-
Amnésia
5-60 min
Escala de níveis cognitivos do Rancho Los Amigos:
I- Não responsivo
II- Resposta generalizada
III- Resposta localizada
IV- Confuso e agitado
V- Confuso e inapropropriado
VI- Confuso e apropriado
VII- Automático e apropriado
VIII- Intencional e apropriado
LESÃO ENCEFÁLICA ADQUIRIDA INFANTIL
etiologia
2002 a 2004 –
232 pac
outros
tumor
vascular
infecção
anóxia
TCE
0
10
20
30
40
50
TCE (98 pac.)
Acidente auto 35,8%
Atropelamento 31,7%
Queda altura 22,5%
Alonso,G., AACD Central. Jul 2005
ENCEFALOPATIA ANÓXICA:
Encéfalo cerca de 2% da massa corpórea
20% do O2 total
25% da glicose total
Falência cárdio-pulmonar 10-15 seg = perda de consciência
5 min= lesão encefálica irreversível
Comprometimento difuso, alguma regiões mais susceptíveis por
demandas metabólicas variáveis( maiores taxas = substância
cinzenta; menores taxas = tronco encefálico).
Causas: quase afogamento, sufocação, corpo estranho em vias
aéreas, choque elétrico seguido de PCR, intoxicação por
monóxido de carbono, lesões traumáticas do sistema
respiratório, complicações anestésicas ou cirúrgicas causando
PCR, PCR secundária a doenças sistêmicas.
Anóxia (49pac.)
Afogamento 34,7%
ACIDENTE VASCULAR ENCEFÁLICO:
OMS = quadro agudo, decorrente de alterações vasculares,
isquêmicas ou hemorrágicas, no SNC, com sinais e sintomas
neurológicos que persistem por mais de 24hs.
Principal causa de incapacidade em pacientes acima de 65 anos.
Isquêmico= 80% dos casos no adulto. Por hipoperfusão
sistêmica, trombose in situ ou embolismo vascular ou cardíaco.
Na criança, são fatores de risco as doenças cardíacas, as
vasculites, a anemia falciforme, as doenças metabólicas, a
sindrome de Moya-Moya.
Hemorrágico= 20% dos casos no adulto, leve predomínio na
criança. Principais causas são as MFs arterio-venosas e os
aneurismas. O maior fator de risco modificável é o tabagismo.
Fatores de risco não modificáveis: idade, sexo
masculino, hereditariedade, raça negra, evento préveo.
Fatores de risco modificáveis: HAS, fibrilação atrial,
doença valvar reumática, miocardiopatia, DM, tabagismo,
obesidade, sedentarismo, obesidade, dislididemias, alcoolismo,
obstrução de carótidas, episódio isquêmico transitório.
CAMPANHAS DE PREVENÇÃO X INCIDÊNCIA
85% casos = > 65 anos
Mortalidade = 25% 1º mês
40% 1º ano
Recorrência = crianças 10%
(40%
adultos 15%
dos sobreviventes com sequelas)
Recuperação:maior nos 1ºs 3-6meses(neuroplasticidade)
Encaminhamento tardio para o CR: 3,3% = 1º mês
49% = até 6 meses
Fatores de Prognóstico: principal = capacidade funcional na
chegada ao CR
Preditores negativos: coma no início, incontinência persistente,
cognitivo pobre, hemiplegia grave, nenhum retorno motor após 1º
mês, déficit visuo-perceptivo, AVC préveo, heminegligencia,
doença CV significativa, lesão cerebral extensa, hemianopsia,
plegia de MS ( fatores muito influenciados por aspectos sócioeconômicos, suporte familiar, acesso à reabilitação, etc.)
Quanto à marcha: pacientes que desenvolvem espasticidade
extensora de MI precocemente deambulam mais cedo.
Experiência da AACD- fatores de pior prognóstico: anosognosia,
déficit de memória de fixação, déficit de iniciativa, déficit visual
grave, falta de suporte familiar.
Particularidades na criança:
2/3 = hemiplegia aguda
Crianças < 2 anos: alterações de comportamento, crises
convulsivas.
Crianças que iniciaram silabação = ausência de emissão de
sons, choro, alterações dos movimentos óculo-cefálicos,
cegueira cortical, letargia e coma nos casos graves.
Hemorrágicos = menor sobrevivência.
Isquêmicos = sequelas mais graves: dificuldades
relacionadas à aquisição do apredizado escolar por falhas
cognitivas, especialmente em habilidades específicas de
leitura, escrita e raciocínio matemático, e também para a
aquisição de linguagem, dependendo da área afetada.
Portanto, a longo prazo, é fundamental a avaliação das
funções corticais superiores, do comportamento e do
aprendizado.
QUADRO CLÍNICO DAS LEAs EM GERAL É
MUITO VARIÁVEL: desde quadros gravíssimos até quase a
normalidade.
• Evolução muito variável, dependente de idade, local da lesão,
extensão, etiologia, etc. Piores sequelas cognitivas para crianças
entre 1 e 5 anos ( auge da sinaptogênese).
• Mudanças clínicas do paciente freqüentes e rápidas, com
recuperação neurológica principalmente nos 1º s meses, até 2
anos; depois podem continuar a acontecer, mas de forma mais
lenta. Algumas alterações aparecem logo após a lesão e logo
desaparecem, outras não desaparecem, e outras ainda só
aparecem tardiamente.
• Áreas lesadas # funções específicas
• Metas de tratamento variam com o tempo = estabelecer
prioridades e flexibilizar objetivos.
RICARDO, TCE, Hemiparesia
espástica D + afasia mista
Richard, TCE, ataxia
global
19/09/07
06/02/08
Moisés, anóxia pós PCR
Luiz, AVE, hemiparesia D + afasia
ALTERAÇÕES NEUROLÓGICAS:
Espasticidade = hipertonia elástica
1.Motoras
Tetraparesia, diparesia,
hemiparesia, dupla
hemiparesia, monoparesia
Paresia=
diminuição ou ausência do movimento ativo
Distonia/coreoatetose=movimentos involuntários
Ataxia=alterações do equilíbrio e coordenação
2. Sensitivo/sensoriais = visual, auditiva, sensibilidade superficial e profunda
3. Fala/linguagem =desordens motoras da fala, desordens cog.-comunicativas...
4. Cognitivas =
memória, organização, execução, raciocínio lógico, abstração
5. Comportamentais= impulsividade, irritabilidade, apatia, isolamento, desmotiv..
6. Psico-afetivas=depressão, ansiedade, transtornos fóbicos, distúrbios do sono...
7. Funções corticais superiores=
apraxias, afasias, agnosias
DISTÚRBIOS ASSOCIADOS:
1.
Neurológicos= convulsões, hidrocefalia, coleções encefálicas crônicas, fístulas
liquóricas, alterações de pares cranianos...
2. Respiratórios=traqueomalácia, estenose de traquéia, paralisia de cordas vocais, BCPs,
atelectasias...
3. Nutricionais/ gastrointestinais=DOF, DRGE, desnutrição, necessidade de via
alternativa para alimentação...
4. Metabólicos= disfunção HH, D insípidus, obesidade, puberdade precoce, amenorréia
secundária, disfunções sexuais...
5. Dermatológicos= úlceras de pressão
6. Músculo-esqueléticos=encurtamentos musculares, deformidades, fraturas,
ossificação heterotópica...
7. Esfincterianos=
incontinência vesical e intestinal por perda da inibição voluntária
(cortical), urgência miccional...
8. Variados= dor por alteração das vias sensitivas e lesão cortical ( “dor central”), dor
secundária a outros distúrbios associados ( sindrome mio-fascial, osteoartrose), ombro
doloroso, quedas...
REABILITAÇÃO: obj= sobrevida,promover saúde e
independência, poupar energia, proporcionar prazer, qualidade de
vida e reintegração à sociedade.
Equipe multidisciplinar= os profissionais devem fazer diagnóstico
preciso das incapacidadesfísicas, cognitivas e comportamentais e ter
percepção das capacidades remanescentes.
Estabilização clínica = a única prioridade em relação à função é a
manutenção da vida. Tão logo esta esteja assegurada, devem-se
iniciar os cuidados que vão permitir, no futuro, que o paciente tenha
o melhor desempenho funcional possível dentro de seu quadro
sequelar.
Precoce = a reabilitação deve começar no evento agudo e ir até o
momento em que se atinja a máxima função possível, independente
do tempo que isso possa demorar.
Individual= o plano de tratamento deve ser flexível e acompanhar as
mudanças do quadro do paciente.
Prevenir/evitar complicações(TVP, úlceras de pressão, deformidades,
iniciar treino esfinc e ortostatismo precoce...), observar aspectos
respiratório/ alimentar/metabólico...
ETAPAS:
(baseadas didaticamente na escala do Rancho Los Amigos)
•Níveis I,II e III= posicionamento, órteses, estímulo sensorial,
orientação à família, ambiente adequado, início precoce por
períodos breves. Aproveitar a neuroplasticidade.
•Níveis IV, V e VI= adequar as respostas do paciente ‘as suas
capacidades atuais, trabalhando especialmente cognitivo e
habilidades funcionais. Manter rotina, orientando paciente no
tempo e espaço, estimulando memória, antecipação e planejamento.
Repetição com variação, atividade significativa direcionada para
metas= estímulo do aprendizado.
•Níveis VII e VIII= trabalhar habilidades mais específicas,
cognitivas e motoras, para “reorganizar o paciente”. Planejamento
motor e qualidade dos movimentos funcionais. Estimular atenção,
planejamento, tomadas de decisão, organização, seqüência,
estratégias para resolução de problemas. Na criança, usar o
brincar com finalidade terapêutica.
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Lesões Encefálicas Adquiridas