DECADÊNCIA ADMINISTRATIVA NA AUTOTUTELA E
APLICAÇÃO DA LEI 9.784/99
Max Möller*
Introdução
O dever de autotutela constitui uma das grandes armas de atuação da
Administração Pública na preservação da legalidade que deve nortear a prática de todos
os seus atos. Entretanto, verifica-se que não é apenas a legalidade o bem jurídico
tutelado nesta prerrogativa da Administração de revisão de seus atos viciados 1, mas uma
série de outros valores constitucionalmente relevantes. Uma ilegalidade pode facilmente
gerar grave ofensa à isonomia no tratamento dos administrados ou servidores, uma vez
que confere a determinado sujeito benefício ilegal que não pode ser concedido aos
demais. Pode afetar, outrossim, a coerência nas manifestações da Administração
Pública, algo diretamente ligado à segurança jurídica. Permite a intensificação do
combate à corrupção (interna e externa), por meio de uma pronta resposta do Poder
Público a desvio que pode ser tanto decorrente de culpa ou dolo de seu próprio corpo,
ou gerado por causa externa à Administração. Enfim, são muitos os bens jurídicos
afetados quando tratamos da convalidação de um ilegalidade envolvendo a ação
administrativa e sua alteração ou recepção pelo ordenamento jurídico, por meio de
institutos jurídicos como a autotutela e decadência, respectivamente.
No sentido da consideração da importância do reconhecimento da chamada
“prescrição administrativa”, assim entendida a restrição decorrente do decurso do tempo
para o exercício da autotutela; é possível notar uma revolução a partir do entendimento
sobre a matéria a partir da edição da Lei n.° 9.784/99, a qual regula o processo
administrativo federal e fixa prazo ordinário de 5 anos para o exercício da autotutela. Na
edição do referido diploma legal é reconhecida a contribuição do administrativista
Almiro do Couto e Silva, principalmente no que se refere a sua preocupação com a
realização do princípio da segurança jurídica ante o dever quase que eterno da
Administração para exercício do poder-dever de autotutela.2
*
1
2
Procurador do Estado do Rio Grande do Sul e doutor em direito pela Universidade de Burgos – Espanha.
Incluam-se aqui também os atos inoportunos e inconvenientes, dos quais não trataremos neste estudo.
Neste sentido, COUTO e SILVA, Almiro do: PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE DA ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA E DA SEGURANÇA JURÍDICA NO ESTADO DE DIREITO CONTEMPORÂNEO, RPGE, Porto
Entretanto, passados alguns anos da edição da referida lei federal, verifica-se que,
diversamente do que buscava a normativa, ainda não há uma regulação muito clara
sobre a matéria; seja no âmbito da legislação de alguns estados, seja na aplicação dos
prazos para exercício da autotutela pelos tribunais. Consequentemente, também a
doutrina resta de alguma forma prejudicada na impossibilidade de detectar, dentro do
sistema, parâmetros claros para aplicação de restrição à autotutela. Da mesma forma,
verifica-se que a preservação da segurança jurídica não pode ser simplificada ao ponto
de que estaria protegida pela mera fixação de prazo exíguo para o reexame de
ilegalidades. Por muitas vezes a manutenção de ilegalidades gera graves e sérios danos a
uma série de princípios constitucionais e, não raro, à própria segurança jurídica.
Dessa forma, é objetivo deste trabalho apresentar algumas considerações acerca
da restrição ao prazo de autotutela, principalmente nos estados em que não prevista em
lei estadual, bem como levantar alguns questionamentos sobre a absolutização da
decadência em detrimento de outros valores constitucionalmente tutelados, o que se
revela através de incoerências na aplicação do instituto.
1. Breve histórico sobre a prescrição administrativa
A matéria relativa à autotutela administrativa, tal como de conhecimento geral,
consiste na capacidade da administração rever os próprios atos, alterando em muitos
casos a situação jurídica de terceiros, através de sua invalidação, quando viciados; ou
pela revogação, em razão de conveniência e oportunidade. Tal poder-dever
administrativo acabou consolidado na Súmula 473 do STF, a qual, pode-se dizer,
constitui um dos marcos do direito administrativo. Conforme o enunciado da súmula:
A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que o tornam
ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência
ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a
Alegre 27(57): 11-31, 2004
Também: O PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA (PROTEÇÃO À CONFIANÇA) NO DIREITO
PÚBLICO BRASILEIRO E O DIREITO DA ADMINISTRAÇAO PUBLICA DE ANULAR SEUS PROPRIOS
ATOS ADMINISTRATIVOS: O PRAZO DECADENCIAL DO ART. 54 DA LEI DO PROCESSO
ADMINISTRATIVO DA UNIÃO (LEI NO 9.784/99).RPGE, Porto Alegre 27(57): 33-75, 2004
apreciação judicial.3
Para tal matéria, a ausência de um prazo para o exercício da autotutela efetivamente
gerava uma insegurança jurídica para os administrados ou servidores públicos, os quais podiam
ver suas situações jurídicas alteradas mesmo que transcorridos largos períodos de tempo.
Outrossim, a concepção já ultrapassada de que qualquer violação ao princípio da legalidade
estrota gerava a nulidade do ato administrativo, permitia que situações consolidadas fossem
revisadas em razão de mero descumprimento de formalidades. Conforme afirma Marçal
JUSTEN FILHO, “não há uma regulação homogênea da matéria no âmbito administrativo,
principalmente no que se refere às nulidades. Outrossim, o que foi produzido sobre nulidades o
foi em um período político e jurídico distinto.” 4 Não é preciso dizer que tal entendimento dava
margem a anulações cuja motivação poderia estar viciada, sujeitando o poder-dever de
autotutela a perseguições políticas ou outros desvios de finalidade.
A partir de uma concepção nova – fortemente influenciada pelo Dr. Almiro do COUTO E
SILVA em artigo sobre a Segurança Jurídica5 – a doutrina administrativa rompe com a ideia de
que no direito público as nulidades seriam sempre insanáveis, em razão de uma aplicação
formal e desatualizada do princípio da legalidade. Pelo contrário, pela presunção de validade de
que gozam os atos administrativos, com mais razões o interesse público poderá determinar a
convalidação ou mesmo a preservação dos efeitos dos atos que contém alguma espécie de vício.
A noção de segurança jurídica, tão utilizada em julgados e em voga no direito atual, tem
sua aplicação – ao menos como origem – na mudança de postura da Administração no que se
refere a tentar mudar sua atitude em relação a atos eivados de nulidades. Sempre que possível
saná-las, é dever da Administração fazê-lo, porquanto assim preserva alguma segurança em
relação a todos os beneficiários daqueles atos que, desde que praticados, gozavam de presunção
de legitimidade.
Na mesma linha, deve ser observado que, conforme a doutrina administrativa sobre
3
4
5
Esta súmula acabou recebendo redação legal, ao ser reproduzida no art. 53 da Lei 9.784/99, que reza: “A
Administração deve anular seus próprios atos, quando eivados de vício de legalidade, e pode revogá-los por
motivo de conveniência ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos.”
JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de direito administrativo. 7ª Ed. Rev. e Atual. Belo Horizonte: Editora Fórum,
2011, p. 393.
PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E DA SEGURANÇA JURÍDICA NO
ESTADO DE DIREITO CONTEMPORÂNEO, RPGE, Porto Alegre 27(57): 11-31, 2004
Também: O PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA (PROTEÇÃO À CONFIANÇA) NO DIREITO
PÚBLICO BRASILEIRO E O DIREITO DA ADMINISTRAÇAO PUBLICA DE ANULAR SEUS PROPRIOS
ATOS ADMINISTRATIVOS: O PRAZO DECADENCIAL DO ART. 54 DA LEI DO PROCESSO
ADMINISTRATIVO DA UNIÃO (LEI NO 9.784/99).RPGE, Porto Alegre 27(57): 33-75, 2004
nulidades, há certo consenso no sentido de que não há apenas uma categoria de vícios que
determinam a anulação de um ato administrativo. Há, isto sim, diversos graus de invalidades. 6
Assim, por uma questão de coerência, parece-nos que da mesma forma que a mera
desconformidade com a lei não gera automaticamente uma invalidade, também não nos parece
correto tratar todos os vícios de modo uniforme para fins de convalidação, inclusive pelo
decurso temporal. Tal entendimento, diga-se, é o adotado pela teoria ge ral das nulidades do
próprio Código Civil, que estabelece prazos prescricionais distintos, dependendo do
vício a ser convalidado.
2. Aplicação da Lei n.° 9.784/99 nos Estados onde não há previsão de prazo
Uma vez afirmados os fundamentos para restrição temporal ao exercício do poderdever de autotutela, garantindo segurança jurídica aos administrados de que não terão
suas situações jurídicas revisadas após largo período de tempo, resta examinar quais os
prazos decadenciais a serem aplicados no direito administrativo para a matéria.
O ponto de partida da sobre a matéria é inegavelmente a previsão do art. 54 da Lei
n. 9.784/99, onde afirmado para o processo administrativo federal, o prazo de 5 anos
para revisão de atos administrativos, seja por vício de legalidade ou por mera
oportunidade. Dispõe a norma que constitui o marco regulatório inicial para qualquer
estudo sobre o tema:
Art. 54. O direito da Administração de anular os atos administrativos de que decorram
efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco anos, contados da data em que foram
praticados, salvo comprovada má-fé.
§ 1o No caso de efeitos patrimoniais contínuos, o prazo de decadência contar-se-á da
percepção do primeiro pagamento.
§ 2o Considera-se exercício do direito de anular qualquer medida de autoridade
administrativa que importe impugnação à validade do ato.
Entretanto, ainda que a questão pareça estar livre de pontos de discussão em relação à
Administração Federal, constitui matéria de grande relevância a aplicação dos preceitos da Lei
6
Sobre o tema a excelente obra de Ricardo Marcondes MARTINS, Efeitos dos vícios do ato administrativo. São
Paulo: Malheiros, 2009.
n. 9.784/99 no âmbito dos demais entes federativos. Principalmente, diga-se, quando ausente
disposição expressa nos ordenamentos estadual ou municipal. Qual será, portanto, o marco
regulatório da decadência do exercício do poder-dever de autotutela quando ausente norma
estadual ou municipal expressa nesse sentido?
Considerando que tal matéria não está dentre as normas de competência exclusiva da
União Federal, em princípio seria viável a quaisquer dos demais entes da federação regular de
forma autônoma o prazo para o exercício da autotutela em relação aos atos que apresentem
vícios.
Na doutrina é possível verificar entendimentos em vários sentidos no que tange ao prazo
para a Administração anular os próprios atos quando eivados de nulidade quando não
considerada, evidentemente, o disposto na Lei n.° 9.784/99. Caso considerado não aplicável a
Lei n. 9.784/99, seriam estas as teorias a serem utilizadas para os demais entes federados.
Como primeiro, pode-se destacar a corrente que afirma a imprescritibilidade da revisão
do ato administrativo. Esta baseia-se no fato da Administração Pública estar fundada nos
princípios da legalidade e do interesse público. Nesse caso, um ato que violasse tanto um quanto
outro seria considerado nulo de pleno direito e, portanto, seria sempre passível de
reconhecimento dessa nulidade, cujos efeitos não são validos, desde o momento em que
produzidos.7
Segundo essa teoria, não seria aplicável a prescritibilidade como regra e a
imprescritibilidade como exceção, pois aqui não estamos tratando direitos, mas de nulidades.
Assim, para as nulidades, a imprescritibilidade é a regra, e somente o legislador poderia
estabelecer exceções, fixando prazos de prescritibilidade.
Há, de outro lado, a tese de que o direito da Administração anular seus próprios atos está
sujeito ao prazo vintenário (hoje decenal) de prescrição. Parte da premissa de que os atos nulos
prescrevem longi temporis, enquanto os anuláveis brevi temporis. Assim, utilizam por analogia
a legislação civil para aplicar os prazos de nulidade. 8
7
8
Dentre os defensores dessa teoria destacam-se Regis Fernandes Oliveira (Ato Administrativo, RT, São Paulo, 2001,
pp. 131/132, Diogo de Figueiredo Moreira Neto (Curso de Direito Administrativo, Forense, Rio de Janeiro, 1999, p.
156) e Odete Medauar (Direito Administrativo Moderno, Revista dos Tribunais, São Paulo, 2001, p. 187). Sobre o
primeiro, diga-se, sustenta não ser caso de prescrição em razão da impropriedade do termo, já que o direito-dever
de revisar os próprios atos quando eivados de nulidade seria caso de impedido pela decadência, jamais pela
prescrição.
Nessa linha a posição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello.
Por fim, tem-se a teoria segundo a qual o prazo para a Administração anular seus próprios
atos quando eivados de nulidade expira em 5 anos. Isso porquanto o fundamento da anulação é a
própria legalidade e o interesse público. Logo, se o particular pode atacar essas mesmas
nulidades tanto por ação popular quanto por ação própria no prazo de prescrição quinquenal (art.
21 da Lei 4.717/65 ou art. 1° do Dec.-Lei n.° 200), não haveria motivos para se conferir prazo
mais dilatado à Administração. Afinal, a legalidade e o interesse público afetados seriam os
mesmos, apenas pendendo para o outro lado.
Entretanto, parece-nos bem claro que a partir da Lei Federal n. 9.784/99, definindo o o
prazo decadencial para a Administração Pública federal, restaram superadas as teorias no
sentido da atemporariedade do exercício da autotutela. Observa-se, ainda, que a discussão sobre
o prazo para exercício da autotutela nos entes federados que não o preveem em legislação
específica parece ter ficado restrita, ao menos no que tange à discussão judicial e doutrinária, à
aplicabilidade da legislação federal na esfera dos entes federados. É o que resta claro, por
exemplo, em posições divergentes no âmbito do Estado do Rio Grande do Sul, conforme
precedentes arrolados abaixo:
APELAÇÃO.
PREVIDENCIÁRIO.
FILHAS
SOLTEIRAS.
AÇÃO
DE
RESTABELECIMENTO DE PENSÃO. 1. INTERPRETAÇÃO DO ARTIGO 73 DA LEI
ESTADUAL 7672/82. DECADÊNCIA ADMINISTRATIVA. OCORRÊNCIA. PRAZO DE
CINCO ANOS PARA A REVISÃO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS. PRINCÍPIO DA
SEGURANÇA JURÍDICA. PREVISÃO NO ARTIGO 54 DA LEI 9784/99. 2. JUROS
LEGAIS. CITAÇÃO APÓS A ENTRADA EM VIGOR DO NOVO CÓDIGO CIVIL. SÃO
DEVIDOS JUROS A CONTAR DA DATA DA CITAÇÃO DO RÉU, NO PATAMAR DE
1% AO MÊS CONFORME PERCENTUAL ESTABELECIDO NO ART. 161, § 1º, DO
CTN. APELAÇÃO DO IPERGS IMPROVIDA. (Apelação Cível Nº 70010698611,
Primeira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Niwton Carpes da Silva,
julgado em 27/04/2005)9
REEXAME NECESSÁRIO. MANDADO DE SEGURANÇA. ADMINISTRATIVO E
CONSTITUCIONAL. SERVIDOR PÚBLICO MUNICIPAL. EFEITO CASCATA.
REVISÃO DE ATOS ADMINISTRATIVOS. PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. Ausência
9
Nessa mesma linha, entendimento do 2° Grupo de Câmaras Cíveis do TJRGS, verbis: MANDADO DE
SEGURANÇA. CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL. SERVIDORES PÚBLICOS
ESTADUAIS.
GRATIFICAÇÃO
DE
RISCO
DE
VIDA.
INCORPORAÇÃO
SOBRE
OS
PROVENTOS/VENCIMENTOS MAIS VANTAGENS PESSOAIS. RETIFICAÇÃO, UNILATERAL, POR PARTE DA
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ESTADUAL. INCIDÊNCIA APENAS SOBRE A PARCELA BÁSICA DAS
REMUNERAÇÕES, CONSOANTE EC N.º 19/98. INCABIMENTO NA ESPÉCIE. OCORRÊNCIA DA
PRESCRIÇÃO ADMINISTRATIVA. TUTELA ANTECIPADA QUE SE CONCEDE PARCIALMENTE. NÃO
COMPROVAÇÃO DA REFERIDA INCORPORÇÃO EM RELAÇÃO A UM DOS IMPETRANTES. TUTELA
ANTECIPADA CONCEDIDA EM PARTE.(...) 6. Não fora por isso, comparativamente, aplica-se a Lei nº
9.784/99, porquanto pondera os princípios da legalidade e da segurança jurídica, impondo prazo decadencial
ao exercício da autotutela da Administração Pública Federal. Bem sabido que o STJ firmou entendimento de
que a Lei 9.784/99 não tem incidência retroativa. Assim, aplicando-se os ditames da lei referida,
comparativamente, prescritos estão os atos, porquanto foram praticados pela Administração Pública no ano
de 2006. 7. Ademais, na hipótese sub judice, a Justiça do caso concreto só será alcançada se aplicado o princípio da
boa-fé objetiva, presente na espécie, e do primado da segurança jurídica, pois não há admitir-se, que após passados
todos esses anos o status quo dos impetrantes sofra modificação. SEGURANÇA CONCEDIDA, EM PARTE. (MS n.
70016647240, Rel. Wellington Pacheco Barros, j. 09/03/2007)
de direito líquido e certo em se considerar a função gratificada incorporada como base de
cálculo para incidência das demais vantagens vencimentais. Ato administrativo concessivo
da incorporação, nos termos do artigo 112 da LCM n.º 004/95, que não lhe assegura a
utilização do valor da FG incorporada como base de cálculo para incidência das demais
vantagens pecuniárias. Afronta à Constituição Federal e, assim, ao princípio da legalidade
(art. 37, caput e inciso XIV, da CF). Cálculo de vantagens remuneratórias adotado
anteriormente pelo Município a vergastar a determinação constitucional encampada com a
EC n 19/98, que vedou o proclamado efeito cascata. Pagamento indevido a ser, ante a
Súmula n.º 473 do STF, revisado e cancelado. Desnecessidade de processo administrativo
para a revisão de ilegalidade no cálculo de vencimentos por inexistir imposição de pena
administrativa. Inaplicabilidade do prazo qüinqüenal de decadência previsto pelo art. 54 da
Lei 9.784/99, que regula os processos administrativos na esfera federal, aos Municípios, em
face da autonomia municipal para legislar acerca das normas aplicáveis aos seus servidores
públicos. Precedentes jurisprudenciais. SENTENÇA REFORMADA EM REEXAME
NECESSÁRIO PARA DENEGAR A SEGURANÇA. (Reexame Necessário Nº
70011535556, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo de Tarso
Vieira Sanseverino, julgado em 14/07/2005)” (Grifei)
Dos exemplos acima trazidos, observa-se que há posturas distintas, uma no sentido da
extensão das regras federais à seara estadual, outra na perspectiva de sua não aplicação em face
do princípio da autonomia federativa. Tal oscilação jurisprudencial é muito bem sintetizada em
manifestação do Procurador de Justiça Eduardo Roth Dalcin, em parecer exarado quando do
julgamento da Apelação Cível nº 70009547621, precedente que representa controvérsia travada
em uma série de processos envolvendo o tema, e cujo teor requer-se vênia para transcrição:
“[...]
Por derradeiro, em razão de tudo o que foi dito acima, seria desnecessário refutar a tese
acolhida na sentença (fl. 95) da ocorrência da decadência prevista no artigo 54 da Lei
Federal n.º 9.784. O magistrado reconheceu a prescrição (rectius: decadência) qüinqüenal
da administração, com base no artigo 54 da Lei Federal n.º 9.784/99, mantendo-se
íntegros os atos administrativos revisados. Esse fundamento não permite o
reconhecimento do direito alegado na medida em que, a regra do artigo 54 da Lei
Federal n.º 9.784/99, que rege o processo administrativo na esfera federal, é inaplicável
às relações jurídicas originárias da seara municipal. Além disso, existe significativa
posição que reconhece a imprescritibilidade da pretensão da Administração Pública para
anular os atos ilegais.
Ademais, o seu artigo 1.º tem o seguinte conteúdo explícito:
Art. 1.º - Esta Lei estabelece normas básicas sobre o processo administrativo no âmbito
da Administração Federal direta e indireta, visando, em especial, à proteção dos direitos
dos administrados e ao melhor cumprimento dos fins da Administração.
No seu preâmbulo registra a sua finalidade e aplicabilidade: Regula o processo
administrativo da Administração Pública Federal.
Em que pese as contribuições relevantíssimas consagradas neste texto legal, a sua
aplicabilidade não pode ser extensiva às demais esferas das administrações estaduais e
municipais, sob pena de ofensa ao próprio pacto federativo consagrado na Constituição
Federal, não obstante alguns de seus dispositivos constituam-se em diretrizes ao direito
administrativo e políticas a toda à administração pública independentemente do seu
âmbito.
Por essa razão tenho como inaplicável a regra do artigo 54 em favor dos servidores
públicos estaduais ou municipais. Assim, no caso concreto, não é de ser admitida a
decadência (ou prescrição aquisitiva qüinqüenal como consignado na sentença) em
favor dos co-autores.
Aliás, esta 3.ª Câmara Cível tem rejeitado a aplicação dessa norma federal nos atos e
processos administrativos produzidos nas esferas estadual e municipal, circunstância que
autoriza a reforma da sentença.
Neste sentido são os seguintes precedentes:
(...)
SERVIDOR PÚBLICO MUNICIPAL. INVALIDAÇÃO DE ATOS ADMINISTRATIVOS.
DESCONTO EM FOLHA DE PAGAMENTO. DIREITO ADQUIRIDO. DECADÊNCIA.
Inaplicabilidade do prazo qüinqüenal de decadência previsto pelo art. 54 da Lei 9.784/99,
que regula os processos administrativos na esfera federal, aos Municípios, em face da
autonomia municipal para legislar acerca das normas aplicáveis aos seus servidores
públicos. Precedentes jurisprudenciais. Correta a atitude do Município em invalidar os
atos administrativos que concederam, ilegalmente, promoções horizontais, forte no
preceito da Súmula 473 do STF. O ato administrativo eivado de nulidade absoluta não gera
direito adquirido. Consoante expressa disposição em lei municipal, é possível a repetição
dos valores pagos indevidamente com desconto em folha, o que não importa em redução de
proventos. RECURSO DOS AUTORES DESPROVIDO. RECURSO DO MUNICÍPIO
PROVIDO. AÇÃO JULGADA IMPROCEDENTE. (APELAÇÃO E REEXAME
NECESSÁRIO Nº 70006061840, TERCEIRA CÂMARA CÍVEL, TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DO RS, RELATOR: PAULO DE TARSO VIEIRA SANSEVERINO, JULGADO EM
25/09/2003).
Assim, tem-se que a disputa está, por um lado, entre a autonomia do ente federado para
regular suas práticas de gestão e, por outro, pela aplicação analógica e subsidiária da legislação
federal.
O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, tem caminhado no sentido de reconhecer a
aplicação analógica do dispositivo federal quando ausente a regulação pelo ente federado:
ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. PENSÃO POR MORTE. FILHA
SOLTEIRA MAIOR DE 21 ANOS. DECADÊNCIA ADMINISTRATIVA. APLICAÇÃO
RETROATIVA. INCIDÊNCIA DA LEI Nº 9.784/99 NO ÂMBITO ESTADUAL.
Sendo o ato que concedeu a pensão anterior à Lei n.º 9.784/99, o prazo qüinqüenal para sua
anulação começa a contar a partir da vigência do mencionado regramento. Possibilidade de
aplicação da Lei 9.784/99 no âmbito estadual. O prazo de 5 anos, estabelecido pela Lei
9.784/99, é contado a partir da edição da referida lei. Agravo regimental desprovido. (AgRg
no AGRAVO DE INSTRUMENTO Nº 683.234 – RS, Rel. Min. José Arnaldo da Fonseca,
2005/0088716-9)
E os argumentos podem ser buscados nas razões de voto da Ministra Laurita Vaz,
relatora do acórdão no RECURSO ESPECIAL Nº 645.856 - RS (2004/0030510-8), o qual se requer
vênia para transcrição:
“Na hipótese em tela, pretende a ora Recorrida manter benefício decorrente de pensão por
morte, recebido desde outubro de 1993 e cancelado administrativamente em janeiro de
2000. (fl. 236)
A questão que se coloca à apreciação cinge-se em saber se aplicável o prazo decadencial de
cinco anos para a Administração Pública Estadual anular seus atos diante da falta de norma
estadual expressa a respeito da matéria.
O Tribunal a quo entendeu que o Instituto de Previdência decaiu de seu direito de rever o
ato que concedeu à Recorrida a referida pensão, porque transcorridos mais de cinco anos de
sua concessão, tendo a Recorrida completado a maioridade civil em 12 de julho de 1988
antes, portanto, do falecimento de seu genitor, (fl. 236)
Consoante a jurisprudência tanto desta Corte quanto do Supremo Tribunal Federal, a
Administração Pública tem o poder-dever de rever seus atos viciados, estando tal
entendimento, inclusive, cristalizado na Súmula n.º 473 da Suprema Corte, nos seguintes
termos:
"A Administração pode anular seus próprios atos, quando eivados de vícios que o tornam
ilegais, porque deles não se originam direitos, ou revogá-los, por motivo de conveniência
ou oportunidade, respeitados os direitos adquiridos, e ressalvada, em todos os casos, a
apreciação judicial."
Todavia, não pode o administrado ficar sujeito indefinidamente ao poder de autotutela
do Estado, sob pena de desestabilizar um dos pilares mestres do Estado Democrático
de Direito, qual seja, o princípio da segurança das relações jurídicas. Assim, no
ordenamento jurídico brasileiro, a prescritibilidade é a regra, e a imprescritibilidade
exceção.
A respeito de tal matéria, louvo-me do magistério de Hely Lopes Meirelles, que com
proficiência assevera:
O princípio da segurança jurídica é considerado como uma das vigas mestras da ordem
jurídica, sendo, segundo J.J. Gomes Canotilho, um dos subprincípios básicos do próprio
conceito do Estado de Direito. Para Almiro do Couto e Silva, um 'dos temas mais
fascinantes do Direito Público neste século é o crescimento da importância do princípio da
segurança jurídica, entendido como princípio da boa-fé dos administrados ou da proteção
da confiança. A ele está visceralmente ligada a exigência de maior estabilidade das
situações jurídicas, mesmo daquelas que na origem apresentam vícios de ilegalidade. A
segurança jurídica é geralmente caracterizada como uma das vigas mestras do Estado de
Direito. É ela, ao lado da legalidade, um dos subprincípios integradores do próprio
conceito de Estado de Direito' A Lei 9.784, de 29.1.99, que 'regula o processo
administrativo no âmbito da Administração Pública Federal' determina a obediência ao
princípio da segurança jurídica (art. 1º) (Direito Administrativo Brasileiro, 27ª edição, São
Paulo, 2002, p. 94/95).
Desse modo, encontra-se desarrazoada a tese da Autarquia Estadual de que na ausência de
norma estadual específica, os atos da administração pública estadual sejam imprescritíveis.
Considerando a prescritibilidade dos atos administrativos como regra, resta definir em que
prazo ela ocorre.
Entendo que na ausência de especificação legal referente ao prazo prescricional para a
Administração Pública Estadual rever seus atos, este deve ocorrer em cinco anos, a
semelhança da prescrição das ações pessoais contra a Fazenda Pública. São estes
também os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello, consoante se verifica do
trecho a seguir transcrito, in verbis :
No passado, (até a 11ª edição deste Curso) sustentávamos que, não havendo especificação
legal dos prazos de prescrição para as situações tais ou quais, deveriam ser decididos por
analogia aos estabelecidos na lei civil, na conformidade do princípio geral que dela
decorre: prazos longos para atos nulos e mais curtos para os anuláveis. Reconsideramos
tal posição. Remeditando sobre a matéria, parece-nos que o correto não é a analogia com
o Direito Civil, posto que, sendo as razões que o informam tão profundamente distintas das
que inspiram as relações de Direito Público, nem mesmo em tema de prescrição caberia
buscar inspiração em tal fonte. Antes dever-se á, pois, indagar do tratamento atribuído ao
tema prescricional ou decadencial em regras genéricas de Direito Público.
Nestas, encontram-se duas orientações com tal caráter:
a) a relativa à prescrição em casos inversos, isto é, prescrição de ações do administrado
contra o Poder Público. Como dantes se viu, o diploma normativo pertinente (Decreto
20.910, de 6.1.32, texto com força de lei, repita-se, pois editado em período no qual o
Poder Legislativo estava absorvido pelo Chefe do Executivo) fixa tal prazo em cinco anos.
Acresça-se que é este também o prazo de que o administrado dispõe para propor ações
populares, consoante o art. 21 da Lei da Ação Popular Constitucional (Lei 4.717, de
29.6.65). Em nenhuma se faz discrímen, para fins de prescrição, entre atos nulos e
anuláveis. O mesmo prazo, embora introduzido por normas espúrias (as citadas medidas
provisórias expendidas fora dos pressupostos constitucionais), também é o previsto para
propositura de ações contra danos causados por pessoa de Direito Público ou de Direito
Privado prestadora de serviços públicos, assim como para as ações de indenização por
apossamento administrativo ou desapropriação indireta ou por danos oriundos de
restrições estabelecidas por atos do Poder Público;
b) a concernente ao prazo de prescrição para o Poder Público cobrar débitos tributários
ou decadencial para constituir o crédito tributário. Está fixado em cinco anos, conforme
há pouco foi mencionado.
Também já foi referido que, a teor da Lei 9.873, de 23.11.99 (resultante da conversão da
Medida Provisória 1.859-17, de 22.10.99), foi fixado em cinco anos o prazo para a
prescrição da ação punitiva da Administração Pública Federal, direta e indireta, no
exercício do poder de polícia, objetivando apurar infração à legislação em vigor, a menos
que esteja em pauta conduta criminosa, hipótese em que vigorará o previsto para ela. É,
outrossim, de cinco anos o prazo para a Administração, por si própria, anular seus atos
inválidos dos quais hajam decorrido efeitos favoráveis ao administrado, salvo comprovada
má-fé (o que, entretanto, faz presumir prazo maior quando houver comprovada má-fé)
consoante dispõe o art. 54 da Lei 9.784, de 29.1.1999, disciplinadora do processo
administrativo.
Também aí não se distingue entre atos nulos e anuláveis. Vê-se, pois, que este prazo de
cinco anos é uma constante nas disposições gerais estatuídas em regras de Direito
Público, quer quando reportadas ao prazo para o administrado agir, quer quando
reportadas ao prazo para a Administração fulminar seus próprios atos. Ademais, salvo
disposição legal explícita, não haveria razão prestante para distinguir entre Administração
e administrados no que concerne ao prazo ao cabo do qual faleceria o direito de
reciprocamente se proporem ações.
Isto posto, estamos em que, faltando regra específica que disponha de modo diverso,
ressalvada a hipótese de comprovada má-fé em uma, outra ou em ambas as partes de
relação jurídica que envolva atos ampliativos de direito dos administrados, o prazo para
a Administração proceder judicialmente contra eles é, como regra, de cinco anos, quer se
trate de atos nulos, quer se trate de atos anuláveis. " (in Curso de Direito Administrativo,
15ª edição refundida, ampliada e atualizada até a Emenda Constitucional n.º 39, de
19.12.2002, São Paulo, 2003, p. 906/907; sem grifo no original.)
Na mesma esteira de pensamento, confira-se, novamente, os ensinamentos do mencionado
doutrinador Hely Lopes Meirelles:
A prescrição administrativa opera a preclusão da oportunidade de atuação do Poder
Público sobre a matéria sujeita à sua apreciação. Não se confunde com a prescrição civil,
nem estende seus efeitos às ações judiciais (v. adiante, item VI), pois é restrita à atividade
interna da Administração, acarretando a perda do direito de anular ato ou contrato
administrativo, e se efetiva no prazo que a norma legal estabelecer. Mas, mesmo na falta
de lei fixadora do prazo prescricional, não pode o servidor público ou o particular ficar
perpetuamente sujeito a sanção administrativa por ato ou fato praticado há muito tempo. A
esse propósito, o STF já decidiu que 'a regra é a prescritibilidade '. Entendemos que,
quando a lei não fixa o prazo da prescrição administrativa, esta deve ocorrer em cinco
anos, à semelhança da prescrição das ações pessoais contra a Fazenda Pública (Dec.
20.910/32), das punições dos profissionais liberais (Lei 6.838/80) e para a cobrança do
crédito tributário (CTN, art. 174). Para os servidores federais a prescrição é de cinco
anos, dois anos e cento e oitenta dias, conforme a gravidade da pena (Lei 8.112/90, art.
142) (ob. cit., p. 650; sem grifo no original.)
A propósito, no mesmo sentido da abalizada doutrina mencionada, são os seguintes
precedentes desta Corte:
"ADMINISTRATIVO. RECURSO ESPECIAL. MANDADO DE SEGURANÇA. PENSÃO
INDEVIDA. INÉRCIA DA ADMINISTRAÇÃO. ANULAÇÃO DO ATO. DECADÊNCIA.
Não pode a Administração Pública, após o lapso temporal de cinco anos, anular ato
administrativo que considera viciado, se o mesmo gerou efeitos no campo de interesse
individual de servidor público ou administrado, incorporando-se ao seu patrimônio
jurídico. Precedentes. Recurso não conhecido." (REsp 515.225/RS, 5ª Turma, rel. Min.
FELIX FISCHER, DJ de 20/10/2003.)
"RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. EXERCÍCIO DA AUTOTUTELA DO
PODER PÚBLICO. PRESCRIÇÃO ADMINISTRATIVA. 1. "Após decorridos 5 (cinco) anos
não pode mais a Administração Pública anular ato administrativo gerador de efeitos no
campo de interesses individuais, por isso que se opera a decadência." (MS nº 6.566/DF,
Relator p/ acórdão Ministro Francisco Peçanha Martins, in DJ 15/5/2000). Precedente da
3ª Seção.
2. Recurso não conhecido." (REsp 219.883/SP, 6ª Turma, rel. Min. HAMILTON
CARVALHIDO, DJ de 04/08/2003.)
PROCESSUAL CIVIL. VIOLAÇÃO À SÚMULA. IMPOSSIBILIDADE DE ANÁLISE EM
SEDE DE RECURSO ESPECIAL. PRESCRIÇÃO ADMINISTRATIVA. ART. 54 DA LEI Nº
9784/99. PRECEDENTES. LEI LOCAL. SÚMULA 280/STF.
I - Verbetes ou enunciados de Tribunais não equivalem à dispositivo de lei federal para fins
de interposição do recurso especial. Precedentes.
II - Nos termos do art. 54 da Lei nº 9784/99, o direito da Administração de anular os atos
administrativos de que decorram efeitos favoráveis para os destinatários decai em cinco
anos, contados da data em que foram praticados, salvo comprovada má-fé. Precedentes.
III - O manejo do recurso especial reclama violação ao texto infraconstitucional federal,
sendo defeso ao Superior Tribunal de Justiça reexaminar a aplicação de legislação local, a
teor do verbete sumular 280-STF.
IV - Agravo interno desprovido." (AgRg no REsp 595.627/RS, 5ª Turma, rel. Min. GILSON
DIPP, DJ de 19/04/2004.)
ADMINISTRATIVO. SERVIDOR PÚBLICO. FILHA SOLTEIRA MAIOR DE 21 ANOS.
DEPENDÊNCIA.
ASSISTÊNCIA
MÉDICO-HOSPITALAR.
INÉRCIA
DA
ADMINISTRAÇÃO. DECADÊNCIA ADMINISTRATIVA.
1. Não pode o administrado ficar sujeito indefinidamente ao poder de autotutela do
Estado, sob pena de desestabilizar um dos pilares mestres do Estado Democrático de
Direito, qual seja, o princípio da segurança das relações jurídicas. Assim, no ordenamento
jurídico brasileiro, a prescritibilidade é a regra, e a imprescritibilidade exceção.
2. Na ausência de lei estadual específica, a Administração Pública Estadual poderá rever
seus próprios atos, quando viciados, desde que observado o prazo decadencial de cinco
anos. Aplicação analógica da Lei n. 9.784/99.
3. Recurso Especial não conhecido." (REsp 628.524/RS, 5ª Turma, de minha relatoria,
julgado em 23.06.04 e ainda pendente de publicação.) No mesmo sentido, confiram-se as
seguintes decisões monocráticas prolatadas por esta Corte em casos idênticos aos dos autos:
REsp 602.415/RS, 6ª Turma, Rel. Min. PAULO MEDINA, DJ de 20.05.2004, REsp
625.511/RS, 5ª Turma, Rel. Min. GILSON DIPP, DJ 28.05.2004, REsp 619.050/RS, 6ª
Turma, Rel. Min. PAULO MEDINA, DJ de 03.06.2004, REsp 630.970/RS, 5ª Turma, Rel.
Min. GILSON DIPP, DJ de 25.05.2004.
Nessa toada, não merece reparos a decisão proferida pelo Tribunal a quo ao estabelecer o
prazo decadencial de cinco anos para a Autarquia rever seus atos, em aplicação analógica
da Lei n.º 9.784/99.
É como voto.
MINISTRA LAURITA VAZ
Relatora”
Das manifestações processuais sintetizadas nas razões de voto acima transcritas,
verifica-se claramente uma tendência jurisprudencial e doutrinária: 1) no sentido de
afastar a imprescritibilidade; 2) no sentido da imposição de prazos decadenciais
razoáveis para a anulação de atos administrativos; 3) na aplicação dos prazos da Lei
9.784/99, para os casos onde ausente o exercício de competência legislativa estadual.10
Não obstante tal tendência, temos que quanto ao terceiro ponto, devem ser feitas
algumas ressalvas em termos de orientação jurídica dos entes federados, uma vez que,
conforme entendemos, na ânsia de fixar prazos razoáveis para conferir um mínimo de
estabilidade contra o poder de revisão da Administração Pública, alguns julgados e
posições acabaram olvidando-se de ponto importante no que tange à decadência do
poder-dever de autotutela; tal como a consideração da gravidade do vício que afeta o
ato.
Não pode ser olvidado quando tratamos de fixação de prazo decadencial que seu
objeto é a convalidação temporal de atos viciados. Isso implica, ao fim e ao cabo, na
própria renúncia ao exercício de poder-dever pelo decurso do tempo. Nessa linha,
equiparar ao mesmo tempo atos com vícios graves e brandos, equivale a tratar da
mesma forma vícios que o ordenamento buscou evitar não apenas pelo previsão
genérica de legalidade, mas por uma série de vedações formais e materiais à edição de
atos administrativos. Assim, além da questão federativa que se coloca, revela-se
altamente questionável a forma utilizada para controle dos vícios mais graves adotada
pela Lei n. 9.784/99, que excepciona o prazo de 5 anos apenas para os casos de
comprovada má-fé.
Assim, estender aos demais entes federados essa opção feita pela União, em nossa
concepção, não constitui a melhor forma de solucionar a questão, principalmente
porquanto entendemos que há uma simplificação exagerada, e que acaba deixando de
tutelar alguns importantes pontos envolvendo a teoria das nulidades e sua aplicação no
direito administrativo.
10 Sobre o problema do conflito de lei federal e nacional ver CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito
Tributário, São Paulo: Saraiva, 1999, p. 55.
3. O problema da má-fé
Ademais dos problemas de escolha pela generalização dos prazos decadenciais,
unificando em um mesmo prazo curto nulidades sanáveis e insanáveis, parece-nos
bastante controversa a opção de relativização deste prazo constante do § 2° do art. 54,
qual seja a “comprovada má-fé”.
Conforme entendemos, a prescrição do poder-dever de autotutela pode gerar uma
série de efeitos, inclusive alguns que não são relativos a um ato apenas, mas que podem
continuar a produzir efeitos por largo lapso temporal. É o que ocorre, por exemplo, com
as prestações continuadas, que podem ser originadas de ato viciado, mas cujos efeitos
podem continuar atuando por gerações. Um ato de aposentadoria viciado, por exemplo,
caso superado o prazo de 5 anos, poderia perpetrar-se não apenas por toda a
aposentadoria do servidor, mas inclusive com pensão que este eventualmente deixasse.
Veja-se que a decadência exige um grande rigor na sua aplicação, pois determina a
negação tanto do direito constitucional de ação, quanto da autotutela. Implicará,
portanto, a partir do implemento de um prazo curto a inviabilidade de tutela jurídica de
bens que podem possuir grande relevância constitucional.
Assim, eleger a comprovada “má-fé” como única forma de excepcionalização do
prazo decadencial curto parece constituir opção demasiado restritiva, permitindo a fácil
“convalidação” temporal de alguns vícios considerados graves. Isso, também, porquanto
o termo “comprovada má-fé”, além de dificultar a ação administrativa, permite um
grande grau de subjetividade não apenas do que vem a ser efetivamente “comprovado”,
mas principalmente do que pode ser caracterizado como “má-fé”.
É evidente que qualquer termo pode provocar dúvidas interpretativas quando
insertos em uma norma. Mesmo os conceitos mais concretos, como “veículo” ou “livro”
podem ser objeto de acirradas discussões, tal como se tem nos conhecidos exemplos de
HART e ÀVILA, respectivamente.11
No caso da “má-fé” as interpretações podem ser ainda muito mais variadas, sendo
praticamente certa a possibilidade de incertezas na aplicação do direito nos casos
concretos, gerando, por consequência, insegurança ao sistema. Isso, diga-se, tanto para a
Administração, que não estará segura sobre a má-fé, quanto para o administrado, que
tampouco estará seguro sobre estar ou não imune ao poder de autotutela.12
Ademais, pode-se agregar à dificuldade de condicionar a não aplicação do prazo
quinquenal à comprovação de má-fé a nossa tradição jurídica que sabidamente não se
preocupa em construir – a partir da consideração de precedentes- a definição de termos
indeterminados a priori. Isso, a toda evidência, aumenta consideravelmente o grau de
subjetivismo – característica marcante de nossa prática jurídica – e, por consequência,
cria um elevado grau de indeterminabilidade do direito. A jurisprudência pátria é
pródiga de exemplos que permitem aferir o grau de subjetivismo e a falta de
uniformidade na definição da “comprovada má-fé” exigida pela Lei n. 9.784/99.
Nesse ponto, destaca-se interessante perspectiva no sentido de que sequer a
oposição ao conceito de boa-fé, muito melhor trabalhado na doutrina, pode servir para a
definição de má-fé. Não há, tanto na doutrina como na jurisprudência, uma definição de
má-fé como antítese de boa-fé.
A tentativa de caracterização da má-fé a partir do conceito de boa-fé objetiva já
foi, por exemplo, afastada pelo Superior Tribunal de Justiça no REsp 18.780/RS. No
caso em questão fora caracterizada pelo Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do
Sul a má-fé na percepção de valores indevidos a partir da não observação de dever geral
de conhecimento sobre situação que é do próprio interesse da parte (boa-fé objetiva).
Entendeu o tribunal que o servidor deveria devolver vencimentos indevidamente
recebidos porquanto violada a boa-fé objetiva, uma vez que a vantagem percebida era
11 No exemplo de Humberto ÁVILA, o autor utiliza as dúvidas em relação ao enquadramento do livro eletrônico na
regra de imunidade prevista no art. 150, VI, d, da Constituição Federal, a qual prevê a imunidade para “livros,
jornais, periódicos e o papel destinado a sua impressão”. (Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos
princípios jurídicos. 4ª ed. São Paulo: Melhoramentos, 2004, p. 39). Já a célebre exemplificação de H.L.A. HART
trata da proibição da entrada de “veículos” em um parque, demonstrando que como “veículos” podem ou não ser
incluídos casos como uma bicicleta, uma ambulância, um caminhão do exército em exposição, etc..
12 Ver TEPEDINO, Gustavo. Temas de Direito Civil. 2ª ed., Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
ilegal e constituía dever deste conhecer não apenas a lei, mas que os valores que lhe
eram alcançados eram indevidamente pagos.13 O Superior Tribunal de Justiça,
entretanto, acabou por reformar o julgado do tribunal gaúcho afirmando a necessidade
de comprovação da má-fé para a retomada de pagamento indevido, porquanto entendeu
necessária a desconstituição da boa-fé subjetiva, provando-se a culpa ou dolo
específicos do agente.14
13 Conforme trecho do acórdão recorrido: “No caso em espécie, não há dúvidas a respeito da carga horária exercida
pela impetrante, que reconhecera à fl. 3, da petição inicial, possuir 62 [...] horas semanais, haja vista a incidência da
gratificação de unidocência, consoante o art. 5º, da Lei n. 8.747/1988. Desse modo, comprovado o excedente ilegal,
correto o ato da Administração que cancelara o pagamento da referida gratificação e implementara os descontos do que
há havia sido pago. […] Ademais, não caracterizada, no caso sub judice, a boa-fé objetiva da impetrante, o que ensejaria
o descabimento do estorno até então efetuado pela autoridade coatora. E nesse sentido, a uma porque não é dado
desconhecer a lei, nos termos do art. 3º, da LICC. E a regra que rege a matéria, art. 4º, da Lei n. 8.112/1985, é bastante
clara ao responder que a carga horária máxima permitida, no cargo de professor estadual, é de 60 [...] horas semanais. E,
a duas, porque é de conhecimento público e notório, entre os profissionais do magistério estadual, que não lhes é
permitido ultrapassar a carga horária estabelecida pela norma referida acima, pelo que não há como reconhecer a boa-fé
objetiva, no caso concreto.” Aliás, a regra da boa-fé objetiva tem sido assentada nas decisões do TJRGS, tal como se
comprova pelo seguinte precedente: MANDADO DE SEGURANÇA. CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E
PROCESSUAL CIVIL. SERVIDORES PÚBLICOS ESTADUAIS. GRATIFICAÇÃO DE RISCO DE VIDA.
INCORPORAÇÃO SOBRE OS PROVENTOS/VENCIMENTOS MAIS VANTAGENS PESSOAIS. RETIFICAÇÃO,
UNILATERAL, POR PARTE DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA ESTADUAL. INCIDÊNCIA APENAS SOBRE A
PARCELA BÁSICA DAS REMUNERAÇÕES, CONSOANTE EC N.º 19/98. INCABIMENTO NA ESPÉCIE.
OCORRÊNCIA DA PRESCRIÇÃO ADMINISTRATIVA. TUTELA ANTECIPADA QUE SE CONCEDE
PARCIALMENTE. NÃO COMPROVAÇÃO DA REFERIDA INCORPORÇÃO EM RELAÇÃO A UM DOS
IMPETRANTES. TUTELA ANTECIPADA CONCEDIDA EM PARTE. 1. É de ser repensado o aspecto da nulidade no
âmbito do Direito Administrativo. Em princípio, o que dificulta o firmar posicionamento a respeito do tema é a ausência
de diploma legal por parte do Estado do Rio Grande do Sul e de alguns Municípios, como já o fizeram vários Estados e
a própria União, cuja disciplina adveio através da Lei n.º 9.784/1999, estabelecendo limites para a aplicação da súmula
473 do Supremo Tribunal Federal, coibindo a anulação de todo e qualquer ato administrativo nulo ao bel prazer da
Administração, impondo, para tanto, limite de tempo e ausência de boa-fé objetiva por parte do administrado
beneficiário do ato considerado nulo. (…) 3. E assim, na medida em que, na seara do moderno Direito da Administração
Pública, quando em conflito com os demais princípios constitucionais e constitucionais administrativos e,
principalmente, o princípio da boa-fé objetiva e o primado da segurança jurídica, tendo em consideração as
circunstâncias do caso concreto, é de ser entendido deva ser ele flexibilizado, como único meio de se atingir a efetiva
realização da Justiça. E, para a aferição do princípio preponderante em cada situação apresentada em juízo, nos casos
em que exsurge o conflito entre princípios, o melhor critério a ser utilizado é o da análise da proporcionalidade e da
razoabilidade. (…) (TJRGS, MS 70016647240, j. 09/03/2007)
14 Conforme o referido julgado: “RECURSO ORDINÁRIO. ADMINISTRATIVO. SERVIDORA PÚBLICA
ESTADUAL. SUPRESSÃO DE VANTAGEM.RESPONSABILIDADE CIVIL SUBJETIVA. EXIGÊNCIA DE
COMPROVAÇÃO DE DOLO OU CULPA. DESCONTOS EM FOLHA DE PAGAMENTO. EQUÍVOCO
COMETIDO PELA ADMINISTRAÇÃO NA CONTAGEM DE TEMPO DE SERVIÇO. COBRANÇA NA VIA
ADMINISTRATIVA. AUTORIZAÇÃO EXPRESSA E FORMAL. MÁ-FÉ. COMPROVAÇÃO. NECESSIDADE.
SERVIDOR PÚBLICO. RESPONSABILIDADE CIVIL POR CONDUTA DOLOSA OU CULPOSA CAUSADORA
DE DANO AO ERÁRIO.
1. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é no sentido de serem indevidos os descontos nos vencimentos do
servidor quando recebidos erroneamente, em virtude de equívoco da Administração
Pública, se não constatada a má-fé do beneficiado.
2. É assente a compreensão de que a obrigação de reparar o dano causado à Administração pelo servidor exige a
comprovação de o agente público ter agido com dolo ou culpa, por tratar-se de responsabilidade subjetiva. Após essa
comprovação, o ressarcimento ao Erário deverá ser buscado pelo ente público mediante ação judicial, não podendo
decorrer somente dos princípios da autotutela e autoexecutoriedade.
3. Recurso em mandado de segurança provido para determinar o descabimento da reposição ao Erário dos valores
recebidos, determinando-se a devolução dos descontos efetuados na remuneração da recorrente.” (RMS n. 18.780-RS,
Outrossim, além
da dificuldade de na conceituação de má-fé para fins de
aplicação do prazo prescricional, é possível encontrar questionamentos até mesmo em
relação a quem é o sujeito da má-fé. Neste caso, pode-se dizer praticamente consolidado
o entendimento de que a má-fé exclusiva do agente público não afeta a boa-fé do
beneficiário para fins do art. 54.15
Diante dos exemplos apresentados, verifica-se a complexidade e a ampla gama de
nuances que permitem uma interpretação variada e, muitas vezes, distinta sobre
normativa aparentemente simples, como parece ser o artigo 54 da Lei n. 9.784/99 em
uma primeira análise. Aqui, diga-se, é perceptível a característica de nosso sistema que
ainda é muito tímido na aceitação do sistema de precedentes, ou mesmo de sua mera
observação como ponto de partida para a argumentação do caso concreto. Daí a
dificuldade do direito pátrio em lidar com conceitos que permitem interpretações
distintas e a dificuldade de vinculação dos julgados aos precedentes.
Nesse contexto, temos que a opção do legislador federal de reduzir toda a gama de
nulidades a um único prazo decadencial e utilizando-se de regulação mais aberta, e com
dependência de termo de difícil acordo semântico, acaba por gerar um elevado grau de
indeterminação para muitos dos casos de aplicação do prazo para exercício da
autotutela. Ademais, generalizou a utilização do prazo quinquenal, independentemente
do grau do vício do ato. Tal opção, conforme entendemos, acaba por afrontar de certa
maneira a previsão do art. 37, § 5°, da Constituição Federal, uma vez que por legislação
federal reduz expressa determinação constitucional, que deveria ser a regra, à condição
de raríssima exceção.
É com base nesses argumentos que entendemos equivocada a utilização de um
critério claramente subjetivo para excepcionalizar o prazo decadencial curto, do que
considerar, tal como o faz toda a teoria das nulidades, o grau do vício como parâmetro
de definição do prazo decadencial.
4. Proposta de associação ao vício do ato. Proporcionalidade e sanabilidade.
Rel Min. Sebastião Reis Júnior, j. 12/04/2012).
15 Resp 47015/SP, DJ 09/12/1997, rel. Min. Adhemar Maciel.
Diante do cenário acima examinado e da discordância com a opção efetuada pela
normativa federal em relação ao prazo decadencial para exercício da autotutela, temos
que o acolhimento da generalização do prazo quinquenal previsto no art. 54 da Lei
9.784/99 deve ser visto com reservas pelos demais entes federativos, principalmente
para os casos onde o objeto da convalidação pelo decurso do tempo sejam atos que
apresentem vícios considerados insanáveis. Em suma, que se atente para a necessidade
de consideração da natureza (gravidade) do vício quando da fixação do prazo
decadencial.
Sobre o tema, deve ser observado que o entendimento sobre a sanabilidade de
vícios do atos administrativos tem evoluído bastante, afastando-se claramente de uma
visão ultrapassada de que em razão da legalidade administrativa, todos os atos
administrativos viciados deveriam ser considerados nulos. Isso não quer dizer,
entretanto, que todos os vícios podem ser colocados no mesmo patamar, contando com o
mesmo prazo para sua “convalidação temporal”.
É admitido, atualmente, até mesmo a convalidação de vícios de competência
(desde que não se trate de competência exclusiva) e de forma (desde que não essencial
ao ato). Nos casos excepcionalizados, conforme entendemos, há uma especial proteção
ao ato que não permitiria a aplicação genérica de um prazo curto de convalidação pelo
tempo, tal como ocorre com a previsão da norma federal e muitos ordenamentos
estaduais que a acompanham.16 Mesmo que se considere pertinente a crítica sobre a falta
de uma consolidada teoria das nulidades no direito administrativo, essa ainda parece
muito mais segura e objetiva que a caracterização da má-fé subjetiva. Isso sem
mencionar uma maior adequação com a teoria geral das nulidades e sua
proporcionalidade em relação à definição de prazo prescricionais, no direito civil, por
exemplo.
Veja-se que o estabelecimento de prazo decadencial constitui verdadeira “renúncia
de direito” por parte a Administração Pública ao exercício do poder-dever de autotutela.
Sendo determinado ato passível de convalidação, ou seja, caso em que a Administração
16 Nesse último caso, diga-se, até mesmo fundada na ameaça de várias posições que expressam a impossibilidade de
outros entes federados fixarem prazo superior ao da Lei n. 9.784/99.
poderia optar por sanar o vício e não o faz; parece perfeitamente possível a adoção do
período estabelecido na lei federal, porquanto estaria agindo através de uma não ação.
Ademais, o reconhecimento do modelo federal traz a segurança da demarcação
clara dos atos de interrupção desse prazo (cf. art. 54, § 2°). É sabido que a invalidação
administrativa, distintamente do direito privado, não demanda a simples manifestação de
vontade, mas decorre de um processo. Assim, é possível que leve tempo para que se
ateste a irregularidade e se opte pela invalidação ao invés da convalidação. Dessa forma,
sempre que fixado prazo decadencial é fundamental a fixação dos correspondentes
marcos de interrupção, a fim de evitar o que se tem observado com a chamada
“prescrição intercorrente” no âmbito do direito tributário, onde criado o prazo pela
jurisprudência sem o estabelecimento dos respectivos marcos interruptivos.
Entretanto, pelo mesmo raciocínio, parece-nos inadequada a generalização de tal
prazo a todos os vícios, como se idênticos fossem. A concepção inicial da ideia de
segurança jurídica no âmbito do direito administrativo é exatamente o de estabelecer
uma prática na qual primeiro se examine a possibilidade de convalidação ou preservação
dos efeitos dos atos administrativos eventualmente viciados.17
Quando lidamos com a gestão do interesse público, temos uma ampla gama de
gestores que lidam com o patrimônio alheio, ou seja, não suportam patrimonialmente as
consequências de seus atos, que são suportados pelo erário. Por isso o redobrado
cuidado que se tem, ou ao menos se deve ter, com as benesses concedidas às custas do
erário.
Dessa forma, deve ser aliado o respeito ao interesse público com a segurança
jurídica, de modo a evitar que atos praticados com vícios não sanáveis sejam
equiparados temporalmente aos vícios sanáveis. No caso, defende-se que tal
entendimento possa ser utilizado não apenas como sugestão para legislação estadual,
mas também como alegação de defesa ante o entendimento de que aplicável o art. 54 da
17 Neste sentido, Jesus Gonzaléz PÉREZ, El principio general de la buena fe em el derecho administrativo, Civitas,
1999, p. 54.
Lei n. 9.784/99 aos entes federados que ainda não possuem regulamentação própria. Isto
porquanto toda a construção jurisprudencial é calcada na segurança jurídica e a distinção
do prazo em razão da sanabilidade do vício, em nossa opinião, nada tem a ver com a
segurança jurídica, mas com a defesa e preservação de elementos essenciais ao ato
administrativo.
Não vemos qualquer problema no reconhecimento do prazo decadencial de 5 anos
para os atos sanáveis, pois estes poderiam ser convalidados pela Administração, caso
quisesse fazê-lo. Pode-se dizer que com o decurso do prazo pode fazê-lo através da
inação (vide exemplo do lançamento por homologação no direito tributário). Entretanto,
quando tais atos não são passíveis de ser convalidados, parece desaconselhável tal
renúncia, até mesmo para impedir a convalidação por inação. São considerados
insanáveis exatamente porque o ordenamento exige uma proteção maior, e somente
poderiam ser convalidados por um decurso do tempo compatível ao das nulidades
absolutas.18
Veja-se que, por tal raciocínio, seria o caso dos atos com vícios de:
1)
competência exclusiva;
2)
forma, quando essencial ao ato.
Assim, na falta de uma sistematização clara sobre os vícios dos atos
administrativos e uma teoria das nulidades no direito atual – pois o que foi produzido
refere-se a um modelo já ultrapassado – a ressalva a esses dois casos, que constituem
unanimidade na doutrina, parece constituir um mínimo de resistência necessária à
tendência jurisprudencial de varrer para debaixo do tapete da prescrição “fraudes”,
18 Há quem defenda, e de forma alguma é nosso caso, que a gravidade do vício estaria condicionada à norma violada.
Assim, um vício à Constituição Federal tornaria um ato inexistente. Os demais demandariam nulidades, sanáveis e
insanáveis. É o caso, por exemplo, de CASSIO BENVENUTTI DE CASTRO (Decadência da potestade
invalidante do ato administrativo. Mimeo, p. 28) o qual sustenta a aplicação do art. 54 tanto aos atos nulos quanto
aos anuláveis, porquanto considera que tais nulidades defendem interesses tutelados infraconstitucionalmente. Para
os inexistentes, ou seja, no caso de violação direta a dispositivo constitucional, a aplicação deve ser casuísta, de
acordo com o caso concreto. Somos absolutamente contra tal posicionamento porquanto passível de gerar ainda
mais subjetivismo. Tudo pode encontrar amparo na norma constitucional. Outrossim, delimitar a matéria na
constituição, além de não ser normal por questões até mesmo de viabilidade, não é indicativo de maior proteção do
sistema, principalmente para fins de anulação do ato.
“simulações” e uma vasta gama de irregularidades, em praticamente todos os campos do
direito, inclusive desconsiderando bens constitucionalmente protegidos.
Tal entendimento, diga-se, ainda que não constitua tese difundida na doutrina, já
foi reconhecida recentemente pelo Superior Tribunal de Justiça, verbis:
ADMINISTRATIVO E PROCESSUAL CIVIL – CONTRATO FIRMADO ENTRE O
MUNICÍPIO DE CAMAÇARI E CONSTRUTORA VIOLAÇÃO DO ART. 535 DO CPC
NÃO CARACTERIZADA – DEFICIÊNCIA NA FUNDAMENTAÇÃO: SÚMULA
284/STF – ATOS ADMINISTRATIVOS NULOS – REVISÃO – ART. 54 DA LEI
9.784/1999 – JURISPRUDÊNCIA DA CORTE ESPECIAL – DECRETAÇÃO DE
NULIDADE DO TERMO DE TRANSAÇÃO – VÍCIO INSANÁVEL – AUSÊNCIA DE
APROVAÇÃO DA CÂMARA MUNICIPAL – AÇÃO DECLARATÓRIA DE
INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO JURÍDICA – IMPRESCRITIBILIDADE –
FUNDAMENTOS DO ACÓRDÃO RECORRIDO INATACADOS – SÚMULA 283/STF.
1. Não há como esta Corte analisar violação do art. 535 do CPC quando o recorrente não
aponta com clareza e precisão as teses sobre as quais o Tribunal de origem teria sido
omisso. Incidência da Súmula 284/STF.
2. A Corte Especial firmou entendimento de que aplica-se o prazo prescricional de cinco
anos, previsto no art. 54 da Lei 9.784/1999, para a Administração revogar seus atos, nos
casos em que lei local não dispuser de forma contrária.
3. Inviável o reconhecimento da prescrição no caso em apreço, em razão da decretação
de nulidade do termo de transação firmado entre o Município de Camaçari e empresa
particular, por vício insanável, relativo à ausência de aprovação da Câmara Municipal
na formação do referido título.
4. A nulidade absoluta insanável é vício que, por sua gravidade, pode ser reconhecido
mesmo após o trânsito em julgado, mediante simples ação declaratória de inexistência
de relação jurídica (querela nullitatis insanabilis), não sujeita a prazo prescricional ou
decadencial e fora das hipóteses taxativas do art. 485 do CPC (ação rescisória).
5. O recorrente não infirma os motivos ensejadores da nulidade do "Termo de Acordo", os
quais são suficientes para manutenção da conclusão adotada no acórdão recorrido.
Incidência da Súmula 283/STF.
6. Recurso especial parcialmente conhecido e não provido.(REsp 1199884 / BA, 2ª Turma, Rel. Min.
Eliana Calmon, j. 24/08/2010, DJ 08/09/2010)
Da mesma forma como não objetamos à adoção do prazo quinquenal para
convalidação temporal de vícios sanáveis, entendemos, como postura de orientação
administrativa correta, insistir na manutenção do poder-dever administrativo do
exercício da autotutela para o caso das nulidades insanáveis, que deve ser regulada, no
mínimo, pelo prazo relativo às nulidades absolutas do direito civil (art. 205 do CC).
Isso, é claro, até que sobrevenha norma estadual regulando definitivamente a matéria.
Dessa forma, entendemos, conjuga-se a necessária proteção do interesse público
com os preceitos de segurança jurídica tão necessários e em voga no direito atual.
Outrossim, considerando que os casos de vícios insanáveis são muito reduzidos, tal
atitude não implicaria em aumento de litigiosidade estatal, mas na defesa necessária de
interesses indisponíveis, tanto que o próprio ordenamento não considera passíveis de
convalidação.
Conclusões
1.
O reconhecimento da necessidade de fixação de prazos decadenciais para
o exercício do poder-dever de autotutela é imperativo lógico do sistema, sendo a
estabilização das relações jurídicas pelo decurso do tempo consequência necessária do
princípio da segurança jurídica.
2.
O marco regulatório inicial para qualquer discussão sobre a matéria é a
opção feita pela Administração federal a partir de previsão expressa do prazo
decadencial como o de 5 anos, pelo art. 54 da Lei n. 9.784/99. Tal dispositivo optou por
desconsiderar a natureza do vício, excepcionalizando-o apenas em casos de comprovada
má-fé do beneficiário.
3.
O Superior Tribunal de Justiça tem acenado claramente pela
aplicabilidade do modelo federal aos demais entes federativos que não possuem
previsão própria.
4.
A opção do modelo federal não se coaduna com a teoria geral das
nulidades, optando pela consideração da mera subjetividade do agente em detrimento da
gravidade do vício que acomete o ato.
5.
Tal opção, além de permitir um exagerado subjetivismo e tratar de forma
idêntica vícios graves e leves, acaba por permitir a “convalidação temporal” por prazo
curto de vícios que seriam insanáveis.
6.
Devem os Estados e Municípios, a fim de evitar repetir a lógica da
Administração federal, editarem suas referidas leis fixando prazos decadenciais e assim
respeitando o princípio da segurança jurídica. Outrossim, os prazos devem guardar
proporção com o vício do ato, respeitando assim a proporcionalidade entre o prazo de
anulação e o bem jurídico ofendido pelo grau do vício do ato administrativo viciado.
7.
Nos casos de vícios insanáveis, entende-se absolutamente questionável a
aplicação do art. 54 ao âmbito estadual e municipal, principalmente por reduzir à
condição de raríssima exceção a regra constitucional insculpida no art. 37, § 5°, da
Constituição Federal.
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