EE Coronel Calhau/ EE Orlando Alves Pereira O ROMANTISMO LITERÁRIO – 1 PROF ÁUREA CHRISTINA R LACERDA GERAÇÃO ROMANTISMO NO BRASIL A PRIMEIRA GERAÇÃO (GERAÇÃO NACIONALISTA) A contribuição dos teóricos europeus, o nacionalismo ufanista pós-1822 e as viagens para o exterior de uma jovem intelectualidade - nascendo daí o famoso sentimento do exílio fornecem o quadro histórico onde aponta a primeira geração romântica. O apogeu da mesma ocorre entre 1836 e 1851, quando Gonçalves Dias publica Últimos cantos, encerrando o período mais fértil e criativo de sua carreira. 1. GONÇALVES DE MAGALHÃES (1811-1887) Obras: Suspiros poéticos e saudades (1836); A confederação dos tamoios (1857) A Gonçalves de Magalhães coube a precedência cronológica na elaboração de versos românticos. Suspiros poéticos e saudades é a materialização lírica de algumas idéias do autor sobre o Romantismo, encarado como possibilidade de afirmação de uma literatura nacional, na medida em que destruía os artifícios neoclássicos e propunha a valorização da natureza, do índio e de uma religiosidade panteísta. No entanto, faltava a Magalhães autêntica emoção poética para tornar efetivas suas teorias. Em sua obra ele afirma: Meus versos são suspiros de minha alma Sem outra lei que o interno sentimento. Isto, porém, não encontra correspondência nela mesma. Os sentimentos são apresentados de uma maneira retórica, freqüentemente "despoetizados" por imagens de mau gosto: Nas veias o sangue já não me galopa, em sacros furores nos lábios me fervem; A lira canora do cisne beócio, deixei sobre a trípode. * Canora: sonora, Beócio: ignorante Durante anos, Gonçalves de Magalhães foi considerado o maior poeta pátrio. Transformou-se em símbolo oficial da literatura brasileira, merecendo inclusive grande apreço de D.Pedro II. A confederação dos tamoios, tentativa de indianismo épico em que a prolixidade* dissolve o lirismo, significou a crise dessa carreira triunfante. Submetida à primeira e dura revisão crítica, com José de Alencar denunciando o artificialismo de sua composição, a obra de Magalhães começou a ser relegada a um plano secundário. Sob pseudônimo, o próprio Imperador sai em defesa de seu protegido, mas os argumentos de Alencar eram irrefutáveis. Restava-lhe a importância histórica, e esta era incontestável. O Romantismo fora introduzido por ele: Triste sou como o salgueiro Solitário junto ao lago Suspirar, suspirar...Tal é o meu fado! * Prolixidade: redundância, exagero verbal. 2. GONÇALVES DIAS (1823-1864) Vida: Filho de um comerciante português e de uma mulata que viviam em concubinato, Antônio de Gonçalves Dias nasceu em Caxias, no Maranhão. Quando o menino tinha seis anos, o pai casou-se com uma moça branca e proibiu o filho de visitar a mãe, que se reencontraria com o filho apenas quinze anos depois. Antônio cresceu trabalhando como caixeiro na loja do pai e teve uma boa educação, sendo enviado com quatorze anos para Portugal. A morte do pai, no mesmo ano, trouxe o rapaz de volta ao Maranhão, porém a madrasta cumpriu a vontade do marido quanto ao filho e mais uma vez o futuro poeta foi mandado para Coimbra. No início de 1845, retornou à sua província natal, já formado em Direito. Sua origem mestiça não era evidente à primeira vista. A sociedade de São Luís o recebeu bem e ele conheceu então aquela que - algum tempo depois - seria o grande amor de sua vida, a jovem Ana Amélia. Antes da eclosão desse amor extremado, viajou para o Rio de Janeiro, onde se radicaria. Virou professor de Latim no Colégio Pedro II e lançou, com notável repercussão, os Primeiros cantos e os Segundos cantos. De imediato, obteve a proteção imperial, ocupando diversos cargos de importância nas áreas de pesquisa escolar e de busca de documentos históricos. Em visita ao Maranhão reencontrou Ana Amélia e a pediu em casamento. A família da moça recusou o poeta, alegando a sua origem bastarda e mulata. Exasperado, casou-se com Olímpia Coriolana, provavelmente a primeira mulher que encontrou depois da recusa e com a qual viveu um casamento infeliz. Viajou muito pelas províncias do Norte e pela Europa, sempre a serviço. Afetado pela tuberculose, tentou a cura na França. Desenganado pelos médicos, retornou num cargueiro que naufragaria, já nas costas do Maranhão. A única vítima do naufrágio foi o poeta, que contava então quarenta e um anos de idade. Obras: Primeiros cantos (1846); Segundos cantos (1848); Sextilhas de frei Antão (1848); Últimos cantos (1851); Os timbiras (1857). Gonçalves Dias consolidou o Romantismo no Brasil com uma produção poética de boa qualidade. Entre os autores do período é o que melhor consegue equilibrar os temas sentimentais, patrióticos e saudosistas com uma linguagem harmoniosa e de relativa simplicidade, fugindo tanto da ênfase declamatória como da vulgaridade. Pode-se dizer que o seu estilo romântico é temperado por uma certa formação clássica, o que evita os excessos verbais tão comuns aos poetas que lhe foram contemporâneos. No prefácio do livro de estréia, Primeiros cantos, ele define a liberdade métrica e a variedade temática que dominam a sua lírica: Muitas delas (as poesias) não têm uniformidade nas estrofes, porque menosprezam regras de mera convenção; adotei todos os ritmos de metrificação portuguesa, e usei deles como me pareceram melhor com o que eu pretendia exprimir. Não têm unidade de pensamento entre si, porque foram compostas em épocas diversas - debaixo de céu diverso - e sob influência de impressões momentâneas. Sua obra se articula em torno de três assuntos principais: o índio a natureza o amor impossível O INDIANISMO A superioridade do autor maranhense sobre outros escritores indianistas resulta de três fatores: - maior conhecimento da vida aborígene; - uso épico e lírico de um índio ainda não deculturado pelo homem branco; - esplêndido domínio estilístico, sobretudo na questão do ritmo e da estrutura melódica. Vários de seus poemas, que tratam dos primitivos habitantes, tornam-se antológicos, entre os quais Marabá, O canto do piaga, Leito de folhas verdes e, principalmente, I-Juca Pirama. I-JUCA PIRAMA Este texto é uma espécie de síntese do indianismo de Gonçalves Dias seja pela concepção épico-dramática da bravura e da generosidade de tupis e timbiras, seja pela ruptura, ainda que momentânea, da convencional coragem guerreira, seja ainda pelo belíssimo jogo de ritmos que ocorre no texto. I-Juca Pirama significa "aquele que vai morrer" ou "aquele que é digno de ser morto". Em sua abertura, o poeta apresenta o cenário onde transcorrerá a história: No meio das tabas de amenos verdores, Cercadas de troncos - cobertos de flores, Alteiam-se os tetos de altiva nação. (...) São todos Timbiras, guerreiros valentes! Seu nome lá voa na boca das gentes, Condão de prodígios, de glória e terror! Em seguida, inicia-se um ritual antropofágico: "Em fundos vasos d'alvacenta argila / ferve o cauim. / Enchem-se as copas, o prazer começa, / reina o festim." O jovem prisioneiro tupi, que vai ser devorado, resolve falar antes do desenlace, e com "triste voz" narra a sua vida desventurada. Ao metro anterior, de dez sílabas poéticas, plástico e alegre, sucedem-se os versos de cinco sílabas, curtos, rápidos, sincopados. Estas variações contínuas indicam que o ritmo varia de uma parte do poema a outra, traduzindo a multiplicidade de situações do argumento. Meu canto de morte Guerreiros, ouvi: Sou filho das selvas, Nas selvas cresci; Guerreiros, descendo Da tribo tupi Da tribo pujante, Que agora anda errante Por fado inconstante, Guerreiros, nasci: Sou bravo, sou forte, Sou filho do Norte; Meu canto de morte, Guerreiros, ouvi. O índio tupi no seu canto de morte lembra o velho pai, cego e débil, vagando sozinho, sem amparo pela floresta, e pede para viver: Deixai-me viver! (...) Não vil, não ignavo,* Mas forte, mas bravo, Serei vosso escravo: Aqui virei ter. Guerreiros, não choro; Do pranto que choro; Se a vida deploro, Também sei morrer. * Ignavo: preguiçoso. O chefe timbira manda soltá-lo. Não quer "com carne vil enfraquecer os fortes". Solto, o jovem tupi perambula pela floresta até encontrar o pai. Este, pelo cheiro das tintas utilizadas no ritual, pelo apalpar do crânio raspado do filho, e por algumas perguntas sem resposta, desconfia de uma terrível fraqueza diante dos inimigos. Pede então que o rapaz o leve até a aldeia timbira. Lá chegando, exige, em nome da honra tupi, que a cerimônia antropofágica ritual seja completada e que o filho seja morto. Mas o chefe timbira recusa-se, acusando o guerreiro tupi de ter chorado covardemente diante de toda a aldeia. Neste momento, o velho cego amaldiçoa o seu descendente: Tu choraste em presença da morte? Na presença de estranhos choraste? Não descende o cobarde do forte; Pois choraste, meu filho não és! Possas tu, descendente maldito De uma tribo de nobres guerreiros, Implorando cruéis forasteiros, Seres presa de vis Aimorés. (...) Sê maldito, e sozinho na terra; Pois que a tanta vileza chegaste, Que em presença da morte choraste, Tu, cobarde, meu filho não és. Mal termina a maldição, o velho escuta o grito de guerra do filho. Ouvindo o rumor da batalha, os sons de golpes, o pai percebe que o filho está lutando para manter a honra tupi, até que o chefe timbira manda seus guerreiros pararem, pois o jovem inimigo se batia com tamanha coragem que se mostrava digno do ritual antropofágico. Com lágrimas de alegria o velho tupi exclama: "Este, sim, que é meu filho muito amado!" Como chave de ouro do poema, ocorre uma transposição temporal no seu último canto. O leitor fica sabendo que os acontecimentos dramáticos vividos pelos dois tupis já tinham ocorrido muito tempo e que tudo aquilo era matéria evocada pela memória de um velho timbira: Um velho timbira, coberto de glória, guardou a memória do moço guerreiro, do velho Tupi! E à noite, nas tabas, se alguém duvidava do que ele contava, Dizia prudente: - Meninos, eu vi! A NATUREZA Enquanto poeta da natureza, Gonçalves Dias canta o mar, o céu, os campos, as florestas. No entanto, a natureza não tem um valor universal, só merecendo ser celebrada quando simbolizava seu país. Significativamente, ele deu a esta parte de sua obra o título de poesias americanas. Não é de surpreender também que no espetáculo e nos contornos da natureza brasileira, o poeta se elevasse até Deus. Assim, nacionalismo e panteísmo se mesclam em sua lírica. A celebração da natureza entrelaça-se também com o sentimento saudosista. Gonçalves Dias é um homem nostálgico que lembra a infância, os amores idos e vividos e, antes de mais nada, um homem que, na Europa, sentira-se exilado. Por isso, a memória a todo momento o arrasta até a terra natal. E a pátria aparece sempre como natureza: palmeiras, céu, estrelas, várzeas, bosques e o indefectível sabiá. Canção do exílio sintetiza genialmente esta identificação entre o país e sua expressão física. Desde o seu surgimento, tornou-se o poema mais conhecido do Brasil e, por derivação, o mais imitado e o mais parodiado. Talvez seja o nosso verdadeiro hino nacional. Contudo, se observamos este texto clássico, poderíamos argumentar que mesmo em Portugal, (onde o poema é escrito, no ano de 1843) há árvores e aves, bosques e várzeas. Aliás, em todos os países há uma natureza interessante a ser cantada. Mas, para Gonçalves Dias, é só na moldura do solo pátrio, que a natureza (brasileira) adquire um maior valor, um valor que em nenhum outro lugar ela pode ter. Estamos diante da essência do ufanismo romântico: minha pátria é a melhor. Por outro lado, trata-se de uma verdade humana definitiva: qualquer indivíduo no exílio - independente da terra natal ser boa ou ruim - sempre guardará por ela uma amorosa e obstinada saudade. Assim, não é de estranhar que Canção do exílio se transformasse no nosso poema: Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores. Em cismar - sozinho, à noite Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar - sozinho, à noite Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu'inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá." Mário Quintana Minha terra não tem palmeiras... E em vez de um mero sabiá, Cantam aves invisíveis Nas palmeiras que não há. Oswald de Andrade Não permita Deus que eu morra Sem que volte pra São Paulo Sem que veja a Rua 15 E o progresso de São Paulo. Murilo Mendes Minha tem macieiras da Califórnia Onde cantam gaturamos de Veneza (...) Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade E ouvir um sabiá com certidão de idade! Casimiro de Abreu Eu nasci além dos mares: Os meus lares, Meus amores ficam lá! - Onde canta nos retiros Seus suspiros, Suspiros o sabiá! Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá; As aves, que aqui gorjeiam, Não gorjeiam como lá. Nosso céu tem mais estrelas, Nossas várzeas têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida, Nossa vida mais amores. Em cismar - sozinho, à noite Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Minha terra tem primores, Que tais não encontro eu cá; Em cismar - sozinho, à noite Mais prazer encontro eu lá; Minha terra tem palmeiras, Onde canta o Sabiá. Não permita Deus que eu morra, Sem que eu volte para lá; Sem que desfrute os primores Que não encontro por cá; Sem qu'inda aviste as palmeiras, Onde canta o Sabiá." Carlos Drummond de Andrade: Um sabiá Na palmeira, longe. Estas aves cantam Um outro canto (...) Só, na noite, Seria feliz: Um sabiá Na palmeira, longe. Joaquim Osório Duque Estrada Do que a terra mais garrida Teus risonhos, lindos campos têm mais flores, Nossos bosques têm mais vida Nossa vida, no teu seio, mais amores. José Paulo Paes Canção do Exílio Facilitada Lá? Ah... Vida... Palmeira... Sabiá... Cá? Bah! O AMOR IMPOSSÍVEL A lírica amorosa de Gonçalves Dias é marcada pelo sofrimento. Em seus poemas, o amor raramente se realiza, é sempre ilusão perdida, impossibilidade vital de relacionamento. Entre a esperança e a vivência, entre a intenção e o gesto estão os abismos da experiência concreta. E a experiência concreta remete para o fracasso. "Cismar venturas e só topar friezas", eis a delimitação desse posicionamento. Em outro de seus versos, um dos mais desencantados, ele desabafa: "Amor! delírio - engano". Apaixonar-se é, pois, predispor-se à angústia e à solidão. O poeta confessa sua afetividade, suplica a paixão da mulher, mas não obtém resposta. Resta-lhe, pois, o desespero. Em poemas como Se se morre de amor, conseguiu dar dignidade a esse sofrimento: Se se morre de amor! - Não, não se morre, Quando é fascinação que nos surpreende De ruidoso sarau entre os festejos; Quando luzes, calor, orquestra e flores Assomos de prazer nos raiam n'alma (...) Simpáticas feições, cintura breve, Graciosa postura, porte airoso* Uma fita, uma flor entre os cabelos, Um quê mal definido acaso podem Num engano d'amor arrebatar-nos. Mas isso amor não é, isso é delírio, Devaneio, ilusão que se esvanece Ao som final da orquestra, ao derradeiro Clarão, que as luzes no morrer despedem: Se outro nome lhe dão, se amor o chamam, D'amor igual ninguém sucumbe à perda. Amor é vida; é ter constantemente Alma, sentidos, coração - abertos Ao grande, ao belo; é ser capaz d'extremos, D'altas vitudes, té capaz de crimes! Compreender o infinito, a imensidade, E a natureza e Deus; gostar dos campos, D'aves, flores, murmúrios solitários; Buscar tristeza, a soledade, o ermo, E ter o coração em riso e festa. Isso é amor, e desse amor se morre! (...) Amá-la, sem ousar dizer que amamos, E, temendo roçar os seus vestidos, Arder por afogá-la em mil abraços: Isso é amor, e desse amor se morre!" *Airoso: esbeleto, elegante OBRAS INDIANISTAS A SEGUNDA GERAÇÃO ROMÂNTICA A SEGUNDA GERAÇÃO INDIVIDUALISTA, ULTRA-ROMÂNTICA ou GERAÇÃO DO MAL DO SÉCULO Esta geração surgiu na década de 1850, quando o nacionalismo e o indianismo deixavam de fascinar a juventude e iniciava-se o longo processo de estabilidade do II Império. Por outro lado, o desenvolvimento urbano, o nascimento de uma vida acadêmica em São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife e, até mesmo, uma relativa sofisticação dos estratos médios e superiores da estrutura social brasileira possibilitaram a criação de uma lírica voltada quase que exclusivamente para a confissão e o extravasamento íntimo. A nova geração foi influenciada pelo inglês Byron e pelo francês Musset, autores ultra-românticos que haviam se tornado os modelos universais de rebeldia moral, de recusa à insipidez da vida cotidiana e de busca de novas formas de sensualidade e de afeto. De sua imitação, resultou, quase sempre, o pastiche. Até sociedades satânicas, a exemplo das existentes na Europa, foram fundadas. Os adolescentes que as compunham viviam pretensas orgias e dissipações fantasiosas, que resultavam da leitura e das imaginações pervertidas. Na verdade, a pobreza do meio e a rigidez patriarcal impediam que este satanismo tivesse qualquer importância no contexto estético e ideológico brasileiro. Outro fato sempre lembrado desta geração é a dramática coincidência de quase todos os seus integrantes morrerem na faixa dos vinte e poucos anos. Versos soltos e alguns poemas parecem alimentar a suspeita de que esses jovens cultivavam idéias suicidas. No entanto, todos eles - à parte o caso mais complexo de Álvares de Azevedo - foram vitimados por doenças então incuráveis e manifestaram grande horror perante a morte. Não se sustenta, portanto, a idéia de um suicídio coletivo geracional. Álvares de Azevedo Vida: Nasceu na cidade de São Paulo e era descendente de duas ilustres famílias. O pai ocupara importantes cargos públicos (juiz de direito; chefe de polícia, deputado geral), tanto na capital paulista quanto no Rio de Janeiro, para onde se transferira com a família, passando a residir em Niterói. Toda a formação básica e secundária de Manuel Antônio Álvares de Azevedo foi feita na capital do Império. Em 1848, ele voltou a São Paulo para cursar a Faculdade de Direito, participando ativamente da vida acadêmica e literária de seu tempo. Revelou-se um aluno brilhante e um colega estimado, mas o caráter provinciano da Paulicéia, a mediocridade de sua vida social e a incapacidade do poeta de estabelecer um relacionamento amoroso concreto o tornaram bastante infeliz. Sentia saudades de casa, especialmente da mãe e da irmã, e a exemplo de seus companheiros de curso consumia-se na leitura dos autores malditos do Romantismo europeu. Este desnível entre as vidas intensas dos europeus e a pobreza de experiências dos universitários de São Paulo certamente o atormentava. Ele, porém, não se tornou um alienado das coisas locais. Numa sociedade acadêmica, que reunia os colegas, proferiu duro discurso contra a educação pública no Brasil, dizendo que ela era "um escárneo", em particular "a instrução primária para as classes baixas". Nas férias longas, entre o ano letivo de 1849 e 1850, os familiares repararam no caráter acabrunhado e melancólico do "Maneco". A leitura desenfreada dos ultra-românticos, a solidão e o desejo insatisfeito pareciam deprimi-lo, aproximando-o de inclinações mórbidas. No início de 1852, a tísica se manifestou. Como disse um de seus biógrafos: "O infeliz byroniano que durante anos declamara versos macabros por mero esnobismo via com horror chegar a sua morte." Neste momento dramático, escreveu alguns de seus poemas mais desesperados. Em seguida, após curta passagem pelo campo, na fazenda de um tio, pareceu se recuperar, chegando a pedir transferência de Faculdade - de São Paulo para Olinda, onde o clima seria mais propício à tuberculose - mas uma queda de cavalo afetou-lhe a região ilíaca. Os médicos resolveram operá-lo, obviamente sem anestesia. Ele suportou as dores, porém tudo foi inútil: a tísica havia destruído as imunidades de seu organismo. Poucos dias depois morreu. Era abril de 1852 e faltavam cinco meses para que completasse vinte e um anos de idade. Nenhum de seus livros tinha sido publicado. E a "glória que pressinto em meu futuro" , como ele diz em um de seus poemas, viria após o falecimento. Obras: Lira dos vinte anos (poemas - 1853), Noite na taverna (contos 1855), O conde Lopo (poema - 1886), Macário (poema dramático - 1855). A obra de Álvares de Azevedo, fortemente autobiográfica, traz a marca da adolescência, mas de uma adolescência tão dilacerada e conflituosa que acaba por representar a experiência mais pungente do Romantismo brasileiro, tanto do ponto de vista pessoal quanto do ponto de vista poético. Incansável leitor, surpreendentemente culto, o jovem paulista viveu a contradição entre o saber livresco e os seus limites existenciais. Sua alternativa é o fingimento: "Finge um formidável conhecimento da vida", diz dele Mário de Andrade. Em muitos poemas expressa essa "pose de cinismo" que nasce, simultaneamente, da imitação dos ultra-românticos europeus e da fantasia delirante. Por sorte, no seu universo lírico, os temas se ampliam, superando o artificialismo byroniano, o que lhe assegura um lugar privilegiado na história literária do período. Quatro são os seus temas preferidos: o amor a morte o tédio o humor prosaico O AMOR É a parte menos convincente de sua lírica. A máscara satânica que tenta usar peca pela falsidade. As orgias em que submerge, os vícios que o escravizam e as dissipações que o arrastam para o lodo hoje provocam o riso do leitor. E não apenas porque o jovem escritor tenha ficado, de fato, virgem dessas vivências tresloucadas, mas porque - em seus poemas de "crimes morais e maldições" - poucos versos têm poder de persuasão e quase nada inquieta ou sobressalta. Veja-se o tom falso deste excerto: E por te amar, por teu desdém, perdi-me... Tresnoitei-me em orgias, macilento, Brindei, blasfemo, ao vício, e da minh'alma Tentei me suicidar, no esquecimento! Amor e medo No entanto, como bem observou Mário de Andrade, o autor de Lira dos vinte anos (esse Dom Juan das aparências) acaba sendo traído pela própria interioridade. O grande devasso, o amante cínico, revela inconscientemente um medo obscuro das relações amorosas. Este medo se traduz, por exemplo, através da imagem da mulher adormecida. Numa série de poemas, a preparação erótica e a vontade sexual do adolescente se frustram, pois ele não quer acordar ("profanar") o objeto de seu desejo: Ó minha amante, minha doce virgem, Eu não te profanei, e dormes pura No sono do mistério, qual na vida, Podes sonhar ainda na ventura. Em Soneto, um de seus textos melhor elaborados, Álvares de Azevedo descreve o sono da amada e cria sutil atmosfera que passa da idealização à sensualidade: Pálida à luz da lâmpada sombria, Sobre o leito de flores reclinada, Como a lua por noite embalsamada, Entre nuvens de amor ela dormia! Era a virgem do mar! na escuma fria Pela maré das águas embalada... -- Era um anjo entre nuvens d' alvorada Que em sonhos se banhava e se esquecia! Era mais bela! o seio palpitando... Negros olhos, as pálpebras abrindo... Formas nuas no leito resvalando... Diante disso, desse "seio palpitando", dessas "formas nuas no leito resvalando" o que faz o poeta? Atira-se sobre a encantadora como um lobo cheio de volúpia? Não; a timidez entrava o erotismo e ele simplesmente opta por ficar sorrindo e chorando pelo seu "anjo": Não te rias de mim, meu anjo lindo! Por ti - as noites eu velei chorando, Por ti - nos sonhos morrerei sorrindo! Aliás, em vários momentos, quando o amor parece a ponto de se concretizar, o escritor prefere dormir, desmaiar ou morrer: "Na tua cheirosa trança / Quero sonhar e dormir!"; "Ah! volta inda uma vez! foi só contigo / Que à noite, de ventura eu desmaiava"; "E no teu seio ser feliz morrendo!"; "E morra no teu seio o meu viver!" No poema Tereza, chega a confessar explicitamente o seu medo: Não acordes tão cedo! enquanto dormes Eu posso dar-te beijos em segredo... Mas, quando nos teus olhos raia a vida, Não ouso te fitar...eu tenho medo! De acordo com Mário de Andrade, algumas das dificuldades de Álvares de Azevedo com o amor nascem da velha dicotomia entre o sexo e o sentimento. A impossibilidade de unir alma e carne segundo a tradição cultural então vigente - exaspera-o. Não existe mulher que possa corresponder às duas exigências. Há aquelas para o amor e há outras para os instintos. As primeiras, donzelas virginais, são - no dizer do crítico - "inatingíveis". As segundas, anjos caídos que cedem a pureza de seus corpos, são "desprezíveis". E assim o poeta permanece dilacerado: à sua timidez soma-se a ausência de uma mulher capaz de satisfazê-lo física e espiritualmente. A MORTE Quando trata da morte - o aspecto mais conhecido de sua obra - pode-se perceber com clareza as qualidades expressivas do artista. Ela é um tema constante. O poeta a antevê, a profetiza para si próprio, não pode esquecêla. De certa maneira, fez uma opção por ela - diferentemente de outros companheiros de geração que se desesperam ao perceber o fim - quis morrer aos vinte anos, entregar-se à "leviana prostituta", como se vê neste fragmento de Hinos do Profeta: A morte, leviana prostituta, Não distingue os amantes!.... Eu, pobre sonhador! eu, terra inculta Onde não fecundou-se uma semente, Convosco dormirei... Mesmo assim, há desespero e angústia nessa entrega. Ele lembra as coisas que vai perder, os afetos, o futuro. Lamenta-se por isso. Por outro lado, a morte é a possibilidade de resolução de sua crise, de suas dores. Se eu morresse amanhã cristaliza esta ambigüidade amarga: Se eu morresse amanhã, viria ao menos Fechar meus olhos minha triste irmã; Minha mãe de saudades morreria Se eu morresse amanhã! Quanta glória pressinto em meu futuro! Que aurora de porvir e que manhã! Eu perdera chorando essas coroas Se eu morresse amanhã! Que sol! que céu azul! que doce n'alva Acorda a natureza mais louçã*! Não me batera tanto amor no peito Se eu morresse amanhã! Mas essa dor da vida que devora A ânsia de glória, o dolorido afã*... A dor no peito emudecera ao menos Se eu morresse amanhã!" Louçã: graciosa, encantadora Afã: vontade, ânsia No poema Lembrança de morrer, Álvares de Azevedo dá instruções sobre o seu túmulo e sua lápide: Quando em meu peito rebentar-se a fibra, Que o espírito enlaça à dor vivente, Não derramem por mim nem uma lágrima Em pálpebra demente. E nem desfolhem na matéria impura A flor do vale que adormece ao vento: Não quero que uma nota de alegria Se cale por meu triste passamento. (...) Descansem o meu leito solitário Na floresta dos homens esquecida, À sombra de uma cruz, e escrevam nela - Foi poeta, sonhou e amou na vida. O TÉDIO Na segunda parte de Lira dos vinte anos, as fantasias eróticas, a avidez pelo amor, os artifícios byronianos e mesmo a obsessão pela morte, cedem lugar a uma espécie de cansaço existencial, o tédio. O tédio, ou "mal du siècle", para os românticos europeus, era uma espécie de cinismo e enfado de quem tudo viveu, tudo experimentou: sexo, bebidas, ópio, transgressões. Mais tarde, Baudelaire diria que lera todos os livros, amara todas as mulheres mas que sua carne permanecia triste. Esta é a definição mais perfeita do mal do século. Já no caso de Álvares de Azevedo, o tédio resultava da falta de vivências a que a cidade de São Paulo o condenava. Era uma cidadezinha provinciana, medíocre, de insípida vida noturna, sem horizontes para um rapaz sonhador. Quase a pique de "suicidar-se de spleen", o poeta atenua os excessos ultraromânticos descendo do sublime, da atmosfera rarefeita e terrível das grandes paixões, e entrando na verdade de suas coisas íntimas, expõe a subjetividade sem véus imaginários. E assim, descobrimos, por fim, o que ele realmente pensava e quem realmente ele era: um jovem tímido, inexperiente e sequioso de amor: Passei como Dom Juan entre as donzelas, Suspirei as canções mais doloridas E ninguém me escutou... Oh! nunca à virgem flor das faces belas Sorvi o mel nas longas despedidas... Meu Deus! ninguém me amou! Poucas vezes, na literatura brasileira, as confissões de um adolescente adquiriram tanto frescor, beleza e emoção. Esta alma solitária e impotente debateu-se entre o tédio, que o arrastava para a realidade e os ideais, que precisava para sobreviver, como vemos nestes fragmentos de Idéias íntimas, talvez o mais sedutor de seus poemas: Vou ficando blasé*, passeio os dias Pelo meu corredor, sem companheiro, Sem ler, nem poetar... Vivo fumando. Minha casa não tem menores névoas Que as deste céu de inverno...Solitário, Passo as noites aqui e os dias longos. Dei-me agora ao charuto em corpo e alma; (...) Não passeio a cavalo e não namoro. Reina a desordem pela sala antiga, Desce a teia de aranha as bambinelas* À estante pulvurenta*. A roupa, os livros Sobre as cadeiras poucas se confundem. Marca a folha do Fausto um colarinho (...) E resta agora aquela vaga sombra na parede - Fantasma de carvão e pó cerúleo* Tão vaga, tão extinta e fumarenta Como de um sonho o recordar incerto. O pobre leito meu, desfeito ainda, A febre aponta da noturna insônia. Aqui lânguido à noite debati-me Em vãos delírios anelando um beijo...(...) Foram sonhos contudo. A minha vida Se esgota em ilusões. (...) Oh! ter vinte anos sem gozar de leve A ventura de uma alma de donzela! E sem na vida ter sentido nunca Na suave atração de um róseo corpo Meus olhos turvos se fechar de gozo! (...) Meu pobre leito! eu amo-te contudo! Aqui levei sonhando noites belas, As longas horas olvidei libando* Ardentes gotas de licor doirado. Esqueci-as no fumo, na leitura Das páginas lascivas do romance...(...) E a mente errante devaneia em mundos Que esmalta a fantasia! Oh! quantas vezes Do levante no sol entre odaliscas, Momentos não passei que valem vidas! Quanta música ouvi que me encantava! Quantas virgens amei! (...) Parece que chorei...Sinto na face Uma perdida lágrima rolando... Satã leve a tristeza! Olá, meu pajem, Derrama no meu copo as gotas últimas Dessa garrafa negra... Eia! bebamos! És o sangue do gênio, o puro néctar Que as almas de poeta diviniza, O condão que abre o mundo das magias! Vem fogoso cognac! É só contigo Que sinto-me viver.(...) E eu me esquecia... Faz-se noite; traz o fogo e dois charutos E na mesa do estudo acende a lâmpada... * Blasé: entediado. * Bambinelas: cortinas. * Pulvurenta: empoeirada. * Cerúleo: da cor do céu. * Libando: bebendo. O HUMOR PROSAICO Um dos traços mais surpreendentes de Álvares de Azevedo é a ironia, resultante da descoberta do risível nas coisas prosaicas. Sem qualquer exacerbação sentimental, o poeta olha para tudo aquilo que o cerca e penetra humoristicamente no cotidiano. Nenhum romântico antes ou depois dele conseguiu efeitos tão engraçados e inesperados. No mais das vezes, a ironia tem rara fineza. Em Spleen e charutos, obra composta por seis poemas, o humor prima pela sutileza, como nesta estrofe de Solidão: Ó lua, ó lua bela dos amores, Se tu és moça e tens um peito amigo, Não me deixes assim dormir solteiro, À meia-noite vem cear comigo. PROSA E DRAMA Em Macário, Álvares de Azevedo intentou criar uma obra dramática em prosa. São cinco cenas de qualidade variável e pouco propícias à encenação. Na peça, um jovem, Macário, viajando rumo a cidade de São Paulo, onde vai estudar, pára numa estalagem no meio do caminho e faz amizade com um desconhecido mais velho, que é nada menos que o próprio Satã. Ambos iniciam então uma série de diálogos nos quais refletem cinicamente (em especial o diabo) sobre o sentido da vida, da morte, do amor e do sexo. Na segunda cena, quando abandonam a estalagem e marcham para São Paulo, ocorre o melhor momento da peça, pois Satã faz análises hilariantes da realidade paulistana. Observe-se este diálogo entre o estudante e o demônio: Macário:Por acaso há mulheres ali? (Em São Paulo) Satã: Mulheres, padres, soldados e estudantes. (...) Para falar mais claro as mulheres são lascivas, os padres dissolutos, os soldados ébrios, os estudantes vadios. Isso salvo honrosas exceções, por exemplo, de amanhã em diante tu. Macário: Esta cidade deveria ter o teu nome. Satã: Tem o de um santo: é quase o mesmo. Não é o hábito que faz o monge. Demais essa terra é devassa como uma cidade, insípida como uma vila e pobre como uma aldeia. (...) Até as calçadas... Macário: Que têm? Satã: São intransitáveis. Parecem encastoadas* as tais pedras. As calçadas do inferno são mil vezes melhores. Mas o pior da história é que as beatas e os cônegos cada vez que saem, a cada topada, blasfemam tanto com o rosário na mão que já estou enjoado. * Encastoadas: embutidas. Na terceira cena, na casa de Satã, já na cidade, a temática concentra-se na questão do amor, visto como ilusão e sentimento ligado à morte. Na cena seguinte, Macário acorda de novo na pensão, como quem acordasse de um longo sonho, porém marcas chamuscadas no assoalho sugerem a passagem real do diabo. A segunda parte da peça é assinalada pela presença de um personagem angelical (a antítese de Satã) chamado Penseroso. O artificialismo dos diálogos e a desarticulação das cenas tornam essa parte muito inferior à primeira. Quase no final, o puro Penseroso morre e Macário volta a se ligar com Satã, que então conduz o rapaz a uma orgia. Não para participar da mesma e sim para observá-la. E o que o demônio descortina para Macário parece ser o início de Noite na taverna: Macário: Onde me levas? Satan: A uma orgia. Vais ler uma página da vida; cheia de sangue e vinho que importa? (...) Paremos aqui. Espia nessa janela. Macário: Eu vejo-os. É uma sala fumacenta. À roda da mesa estão sentados cinco homens ébrios. Os mais revolvem-se no chão. Dormem ali mulheres desgrenhadas... umas lívidas, outras vermelhas... Que noite! Satã: Que vida! Não é assim? Pois bem, escuta, Macário. Há homens para quem essa vida é mais suave que a outra. O vinho é como o ópio, é o Letes* do esquecimento... A embriaguez é como a morte... Macário: Cala-te. Ouçamos. Noites na Taverna Se fôssemos cobrar verossimilhança dos contos que compõem o livro Noite na taverna, certamente riríamos desses sete rapazes que bebem, fumam, gritam, e enquanto a fumaça se mistura com os eflúvios da cerveja e do conhaque - narram histórias de suas vidas orgíacas e criminosas. Há algo de falsidade (e mesmo de bobagem pueril) nas cenas de necrofilia, incesto, canibalismo, assassinato e violação de todos os códigos morais que eles vão contando, falsamente horrorizados com o seu próprio desregramento. No entanto, apesar de sua total improbabilidade, esses relatos cínicos ainda hoje exercem uma sedução nos leitores, especialmente os mais jovens, mostrando que não se deve cobrar dos contos realismo e sim aquilo que eles representam simbolicamente. Tendências góticas? A partir do final do século XVIII e durante todo o Romantismo se desenvolveu um tipo de narrativa que ficou conhecida como gótico. Walnice Nogueira Galvão delimitou-o assim: O gótico invoca as potências das trevas e exerce o ocultismo, a feitiçaria, a missa negra, a necrofilia, o culto ao demônio. Num clima onírico sepulcral predominam o informe, o inquietante. Compõem o cenário o castelo malassombrado, o cemitério, as ruínas, a bruma, entre as imagens dos mundos ínferos, tais como a masmorra, o porão, o túmulo. Pouco se disfarçam a sedução da morte e do aniquilamento. A prosa tempestuosa mimetiza as pulsões e projeções do inconsciente, às voltas com a atração pelo sacrilégio e pela profanação. Ora, nos relatos curtos de Álvares de Azevedo predominam a concepção noturna da existência, a atração pela morte, o amoralismo com que se trai e se mata, além de compulsões incestuosas e necrófilas. Ou seja, elementos do gótico. O resultado é a criação de um mundo de sombras, onde indivíduos - torturados por impulsos proibidos - praticam ações que revelam o lado sujo e perverso de suas almas. Talvez Álvares de Azevedo quisesse indagar, como disse Antonio Candido através de suas histórias macabras, perversas e até mesmo risíveis - sobre os limites da crueldade e das possibilidades diabólicas do ser humano. Tudo isso o aproxima do gótico e dá certa consistência aos contos que assim ultrapassam a dimensão da falsidade melodramática* e transformam-se em opressivo pesadelo. Como exemplo, podemos lembrar um desses relatos. •Melodramática: que apresenta exagero sentimental e gosto pelo patético. Obs: O nome gótico veio do primeiro romance desta tendência: O castelo de Otranto, de Horace Walpole, cujo enredo (cheio de mistério e terror) se desenvolve em um velho castelo gótico. Entre os autores que seguiram esta linha encontramos Mary Shelley, com Frankenstein e Bram Stoker, com Drácula. Também há fortes traços góticos nas obras de Edgar Allan Poe e de Lord Byron. CASIMIRO DE ABREU Vida: Filho de um rico comerciante português e de mãe brasileira, Casimiro de Abreu nasceu em Barra de São João, no estado do Rio de Janeiro, tendo passado a infância numa fazenda, de onde sairia apenas para realizar seus estudos primários em Nova Friburgo. Enviado à capital do Império pelo pai, a fim de praticar o comércio, mostrou-se pouco apto à profissão. O pai não desistiu e com o mesmo objetivo o enviou para Lisboa. Casimiro tinha então quatorze anos. Após quatro anos em Portugal, retornou ao Brasil, entregando-se a uma vida boêmia, sem contudo largar do comércio. A publicação de Primaveras o consagrou nacionalmente, um ano antes de sua morte. Já idolatrado pelo público da época, descobriu que estava tuberculoso, vindo a falecer quase que imediatamente, antes de completar o seu vigésimosegundo aniversário. Obra: Primaveras (1850). Subjetivista como Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu substitui as conotações dolorosas que aquele confere à adolescência por uma visão graciosa e deslumbrada dos tempos juvenis. Se, para o autor de Lira dos vinte anos, a mocidade é um processo noturno de vigílias e tensões, se, para ele, "tristes são os destinos deste século", para Casimiro de Abreu a mesma mocidade é "a primavera da vida", processo diurno, sempre associado a namoricos, jardins com bananeiras, borboletas e salões de baile onde se flerta ao som de valsas langorosas. De certa forma, sua lírica corresponde ao romance de Joaquim Manuel de Macedo, seja na temática, seja na simplicidade da linguagem. É uma poesia espontânea. E não raro esta espontaneidade - reforçada pelo estilo singelo e pela atmosfera musical - cria o encantamento no leitor, independentemente da visível superficialidade dos versos. A rigor, o livro Primaveras articula-se em torno de três temas básicos: o lirismo amoroso a saudade da pátria e da infância a tristeza da vida A SAUDADE DA PÁTRIA E DA INFÂNCIA Vivendo três anos em Portugal, onde elaborou boa parte de Primaveras, Casimiro de Abreu desenvolveu o sentimento de exílio, que tanto perseguia os românticos. Inspirado em Gonçalves Dias, escreveu uma série de poemas impregnados de nostalgia da terra natal, denominados Canções do exílio. Neles, contudo, não chega a alcançar o nível de seu modelo. No entanto, não é apenas a saudade do Brasil e a correspondente sensação de estar exilado que anima a sua lírica. O que o consagrou foi a nostalgia (tipicamente romântica) daquelas realidades pessoais que ficam para trás: a mãe, a irmã, o lar, a infância. Tornou-se, por excelência, o poeta da "aurora da vida", do tempo perdido, das emoções da meninice. Mesmo sabendo que a infância não significa o paraíso, sucumbiu à doçura dessas lembranças. À parte isso, o poeta atrai o leitor com o ritmo fácil, a singeleza do pensamento, a ausência de abstrações, o caráter recitativo e o tratamento sentimental que empresta ao tema, garantindo a eternidade de pelo menos um poema, Meus oito anos: Oh! que saudades que tenho Da aurora da minha vida, Da minha infância querida Que os anos não trazem mais! Que amor, que sonhos, que flores, Naquelas tardes fagueiras À sombra das bananeiras, Debaixo dos laranjais! Oh! dias da minha infância! Oh! meu céu de primavera! Que doce a vida não era Nessa risonha manhã. Em vez das mágoas de agora, Eu tinha nessas delícias De minha mãe as carícias E beijos de minha irmã! Como são belos os dias Do despontar da existência! - Respira a alma inocência Como perfumes a flor; O mar é - lago sereno, O céu - um manto azulado, O mundo - um sonho dourado, A vida - um hino d'amor! Livre filho das montanhas, Oh! Que saudades que tenho Eu ia bem satisfeito, Da aurora de minha vida (...) De camisa aberto ao peito, - Pés descalços, braços nus Correndo pelas campinas À roda das cachoeiras, Atrás das asas ligeiras Das borboletas azuis! Que auroras, que sol, que vida, Que noites de melodia Naquela doce alegria, Naquele ingênuo folgar! O céu bordado d'estrelas, A terra de aromas cheia, As ondas beijando a areia E a lua beijando o mar! Naqueles tempos ditosos Ia colher as pitangas, Trepava a tirar as mangas, Brincava à beira do mar; Rezava às Ave-Marias, Achava o céu sempre lindo, Adormecia sorrindo E despertava a cantar! A TRISTEZA DA VIDA No final de uma vida breve, pressentindo a morte, o poeta aprofunda o sentimento de tristeza - já presente em seus textos saudosistas, até transformá-lo num sentimento quase desesperado de impotência perante o destino, conforme se pode verificar em Livro negro, composto por doze poemas doloridos. Deles, o mais significativo é Minha alma é triste: Minha alma é triste como a rola aflita Que o bosque acorda desde o albor da aurora E em doce arrulo que o soluço imita O morto esposo gemedora chora. E, como rola que perdeu o esposo, Minh'alma chora as ilusões perdidas E no seu livro de fanado gozo Relê as folhas que já foram lidas." Casimiro escreveu também um texto para teatro, Camões e Jau. Montada em Lisboa, em 1856, às custas do pai, resultou em grande malogro, nada acrescentando à sua obra. FAGUNDES VARELA (1841-1875) Vida: Luís Nicolau Fagundes Varela nasceu em Rio Claro, Rio de Janeiro. Era filho de fazendeiros e viveu um período no ambiente rural que mais tarde descreveria em seus versos. O pai era magistrado e político da província e a família teve de mudar-se muitas vezes. A infância de Fagundes Varela foi marcada por essas alterações contínuas de domicílio. Bastante jovem, matriculou-se na Faculdade de Direito, em São Paulo. Lá entrou na vida boêmia, "como um Byron exasperado", sempre envolvido em bebedeiras, pequenos escândalos e muitas dificuldades financeiras. Acabou se casando com uma artista de circo e com ele teve um filho, que logo morreria e que constituiria a inspiração de Cântico do Calvário. Vida: Luís Nicolau Fagundes Varela nasceu em Rio Claro, Rio de Janeiro. Era filho de fazendeiros e viveu um período no ambiente rural que mais tarde descreveria em seus versos. O pai era magistrado e político da província e a família teve de mudar-se muitas vezes. A infância de Fagundes Varela foi marcada por essas alterações contínuas de domicílio. Bastante jovem, matriculou-se na Faculdade de Direito, em São Paulo. Lá entrou na vida boêmia, "como um Byron exasperado", sempre envolvido em bebedeiras, pequenos escândalos e muitas dificuldades financeiras. Acabou se casando com uma artista de circo e com ele teve um filho, que logo morreria e que constituiria a inspiração de Cântico do Calvário. Fracassando o seu casamento, transferiu-se para o Recife a fim de continuar seus estudos jurídicos. A morte de sua mulher - que ficara no Sul o trouxe de volta para a Faculdade de Direito de São Paulo. No entanto, nunca acabou o curso. Atormentado pelo álcool e por problemas emocionais, retornou para a fazenda dos pais. Era visto nas fazendas próximas, caminhando sem destino, quase sempre bêbado. Em 1869, casou-se outra vez e passou a morar em Niterói, sem que tivesse se curado do alcoolismo. Em 1875, foi vitimado por um derrame. O surpreendente é que nessas condições de vida (no dizer de um crítico, Varela teve a biografia mais "romântica" de todo o nosso Romantismo) ele ainda tenha deixado uma obra literária relativamente significativa. Obras principais: Noturnas (1861); Vozes da América (1864); Cantos e fantasias (1865); Cantos meridionais (1869); Anchieta ou o Evangelho nas selvas (1875). O crítico Alfredo Bosi afirma que Fagundes Varela é o epígono* por excelência da poesia romântica. Isto é, um poeta que segue outros, sem alcançar uma temática e uma expressão próprias. Outro crítico, José Veríssimo, resumiu a obra do escritor numa frase implacável: "Deixa-nos a impressão do já lido." No seu livro de estréia, Noturnas, é possível identificar-se o lirismo byroniano, à moda de Álvares de Azevedo, ou o lirismo meigo, à moda de Casimiro de Abreu. Até o tema do índio, à la Gonçalves Dias, - que já caíra em desuso - é retomado em Anchieta ou o Evangelho nas selvas. Chega, inclusive, a antecipar o condoreirismo, apresentando uma visão abolicionista em poemas como Mauro, o escravo, de 1864. Na maior parte de seus escritos, porém, falta originalidade. *Epígono: discípulo, seguidor menor de um grande artista menor. A POESIA SERTANEJA Apesar disso, mesmo os críticos mais implacáveis de Varela reconhecem os momentos felizes de sua obra. É o caso de alguns poemas constituídos por pequenos flagrantes da natureza e da vida campestre, elaborados numa linguagem coloquial e sugestiva. Como nenhum outro romântico, conheceu a fundo o universo rural brasileiro. Suas descrições parecem captar as cores, os cheiros e os sons do cotidiano do interior, como neste fragmento de A roça: O balanço da rede, o bom fogo Sob um teto de humilde sapé; As palestras, os lundus, a viola, O cigarro, a modinha, o café; E depois um sorrir de roceira, Meigos gestos, requebros de amor; Seios nus, braços nus, tranças soltas, Moles falas, idade de flor; (...) Na observação de um crítico, é só no campo que Varela se sente à vontade, pois está longe da degradação dos vícios urbanos. Em contato com a vida rural, sua expressão poética adquire a originalidade que lhe falta no resto dos textos. Os versos singelos e musicais evocam a todo instante a flora e a fauna sertanejas, como em A flor do maracujá: Pelas rosas, pelos lírios, Pelas abelhas, sinhá, Pelas notas mais chorosas Do canto do sabiá Pelo cálice de angústias Da flor do maracujá!(...) Por tudo o que o céu revela! Por tudo o que a terra dá Eu te juro que minh'alma De tua alma escrava está!... Guarda contigo este emblema Da flor do maracujá. (...) No poema As letras, que refere o velho hábito interiorano de gravar o nome da amada no tronco de árvores, o poeta faz uma encantadora reflexão sobre a passagem do tempo, sobre a saudade mesclada com o desejo de reencontro, e sobre as ilusões que se perdem: Na tênue casca de verde arbusto Gravei teu nome, depois parti; Foram-se os anos, foram-se os meses, Foram-se os dias, acho-me aqui. Mas ai! o arbusto se fez tão alto, Teu nome erguendo, que mais não vi! E nessas letras que aos céus subiam Meus belos sonhos de amor perdi. JUNQUEIRA FREIRE (1832-1855) Vida: Nasceu em Salvador. Seus estudos primários foram irregulares, por motivos de saúde, e aos dezenove anos (provavelmente desgostoso com a conduta desregrada do pai) ingressou no mosteiro de São Bento, na capital baiana. Um ano depois - e sem verdadeira vocação religiosa - tornou-se noviço, com o nome de Frei Luís de Santa Escolástica Junqueira Freire. Permaneceu no mosteiro até 1854, não escondendo o amargor e o ressentimento que a vida religiosa lhe despertava. Conseguindo deixar o seminário, voltou para casa materna. Problemas cardíacos que vinham desde a infância provocam a sua morte no ano seguinte. Não completara ainda vinte e três anos de idade. Obra: Inspirações do claustro (1855) A poesia de Junqueira Freire é totalmente autobiográfica e talvez seja isso o que mantenha o interesse pela mesma. Procurando num mosteiro a saída para os seus problemas pessoais (sobretudo uma espécie de atração pela morte que o angustiava), o poeta viu malograrem as suas ilusões. A vida clerical lhe pareceu terrível. A partir dessa experiência, ele escreveu Inspirações do claustro, cujo valor reside mais no aspecto documental de uma situação humana do que, propriamente, no seu significado literário. Os versos abaixo indicam o seu desengano: Mas eu não tive os dias de ventura Dos sonhos que sonhei: Mas eu não tive o plácido sossego Que tanto procurei.(...) Tive as paixões que a solidão formava Crescendo-me no peito Tive, em lugar de rosas que esperava, Espinhos no meu leito. A TERCEIRA GERAÇÃO: CONDOREIRA O fim da década de 60 assinalou o início de uma crise que atingiu a classe dominante, composta por senhores rurais e grupos de exportadores. As primeiras indústrias, o encarecimento do escravo como mão-de-obra e a utilização de imigrantes nas fazendas de café de São Paulo indicavam mudanças na ordem econômica. Por esta época, começaram a se manifestar as primeiras fraturas na até então sólida visão das elites dirigentes. O nacionalismo ufanista começou a ser questionado. Estudantes de Direito, intelectuais da classe média urbana, escritores, jornalistas e militares se davam conta da existência de uma considerável distância entre os interesses escravocratas e monarquistas dos proprietários de terras e os interesses do resto da população. Foi então que a literatura assumiu uma função crítica. Antônio de Castro Alves superou o extremado individualismo dos poetas anteriores, dando ao Romantismo um sentido social e revolucionário que o aproxima do Realismo. O padrão poético já não é Chateaubriand ou Byron, mas sim o francês Vitor Hugo, burguês progressista, cantor da liberdade e do futuro. CASTRO ALVES Vida: Descendente de uma família tradicional e poderosa do interior baiano - seu pai era médico, formado na Europa - Antônio de Castro Alves nasceu na Fazenda das Cabeceiras, perto da cidade de Curralinho. Quando tinha sete anos, a família mudou-se para Salvador. Lá estudou no Colégio Abílio, que revolucionara o ensino brasileiro pela eliminação dos castigos físicos aplicados aos alunos. Em 1858, morreu-lhe a mãe. Seu irmão mais velho, José Antônio, ficou muito abalado, suicidando-se alguns anos depois. Mas já no início de 1862, Castro Alves estava no Recife, fazendo os preparatórios para a Faculdade de Direito, ainda em companhia do irmão. Conheceu então a famosa atriz portuguesa Eugênia Câmara, de quem se tornou amante aos dezenove anos. Na Faculdade, parecia mais interessado em agitar idéias abolicionistas e republicanas e produzir versos (que obtinham grande repercussão entre os colegas) do que propriamente estudar leis. Após concluir um drama em prosa, Gonzaga, especialmente composto para Eugênia Câmara, seguiu com a atriz rumo a Salvador. Ali os dois receberam espetacular consagração com a estréia da peça no Teatro São João. Estando ele disposto a retornar ao curso de Direito, viajaram para São Paulo, antes parando dois meses no Rio de Janeiro, onde foram celebrados por José de Alencar e Machado de Assis. A temporada paulista durou apenas um ano. O nome de Castro Alves tornara-se uma legenda: ótimo declamador de seus próprios poemas, recitou O navio negreiro e Vozes d'África sob a ovação dos estudantes. Um colega escreveu que Castro Alves "era grande e belo como um deus de Homero". Sua vida afetiva, no entanto, entrou em crise pelas constantes traições à orgulhosa Eugênia Câmara. Ela terminou por abandoná-lo definitivamente. Para esquecer a ruptura, o poeta começou a se dedicar à caça, ferindo-se casualmente no pé, que infeccionou. Levado para o Rio, foi submetido a uma amputação sem anestesia. Depois disso, debilitado, retornou à Bahia, onde viveu por pouco mais de um ano, até que sobreveio a tuberculose fatal. Morreu em fevereiro de 1871, antes de completar vinte e quatro anos. Obras: Espumas Flutuantes (1870); A cachoeira de Paulo Afonso (1876); Os escravos (1883); Gonzaga ou A Revolução de Minas (drama - 1875). Sua obra se abre em duas direções: Poesia social - causas liberais e humanitárias. Poesia lírica - natureza e amor sensual. POESIA SOCIAL Castro Alves é um caso típico do intelectual convertido em homem de ação. Não apenas realizou uma poesia humanitária, como participou ativamente de toda a propaganda abolicionista e republicana. Esse engajamento político muitas vezes prejudica a sua literatura - que se torna mais denúncia do que arte embora tal problema seja secundário diante da generosidade social do poeta. O jovem baiano tinha consciência de sua posição e de sua situação de letrado, e do papel que poderia exercer dentro da sociedade. Compreendia o significado da educação num país constituído por analfabetos, e foi o primeiro dos grandes românticos a valorizar a imprensa, o livro e a instrução, conforme diz no poema O livro e a América: Oh! Bendito o que semeia Livros... livros à mão cheia... E manda o povo pensar! O livro caindo n'alma É germe - que faz a palma, É chuva - que faz o mar. Castro Alves cantou todas as causas libertárias - a poesia como arma de combate a serviço da justiça e da igualdade - mas o que ficou na memória popular são os seus poemas abolicionistas. A base econômica da sociedade agrária brasileira, na década de 1860, ainda era o escravo, porém as pressões internacionais, somadas às críticas das classes urbanas nacionais e à perspicácia de certos proprietários - que viam a escravidão como anti-econômica - possibilitaram o surgimento das primeiras vozes contestadoras. Castro Alves será a encarnação mais retumbante desse protesto. O condoreirismo Os seus poemas sociais são conhecidos também como condoreiros. "A praça, a praça é do povo, assim como o céu é do condor" - escreve num de seus primeiros trabalhos. É uma metáfora exuberante: o condor voa altaneiro e livre por sobre os Andes. Como exuberantes, indignados e patéticos são parte considerável de seus versos. Ele quer inebriar os jovens liberais com a força bombástica de um discurso metrificado. Quer comover e convencer. Por isso, nem sempre se contenta em dizer o essencial. Acaba caindo na retórica, provocada pelo excesso verbal, por antíteses e hipérboles* em demasia e por várias imagens de mau gosto. É possível, no entanto, compreender que o tom oratório dessas composições tinham uma finalidade pedagógica: feitas para serem declamadas em público, elas deviam se parecer a um discurso que conscientizasse as massas. Daí sua redundância e sua ênfase emocional. Mesmo assim, em vários textos condoreiros, o poeta atingiu uma eloquência pura, vibrátil, "de poderosa sugestão visual e impressão auditiva". O navio negreiro e Vozes d'África se constituem nos mais soberbos monumentos de poesia social do século XIX. E ainda que a escravidão tenha acabado, e este tema não pertença mais a experiência atual, é impossível ao leitor ficar indiferente diante de tamanha densidade dramática. * Hipérbole: figura do exagero O navio negreiro, cujo título geral é Tragédia no mar, começa com uma longa e belíssima descrição do oceano, até que o poeta, postado nas alturas, avista um barco que parece navegar alegremente. Então o poeta solicita ao albatroz ("águia do oceano") que lhe dê suas asas para se aproximar da embarcação. Ao mergulhar por sobre o navio, descobre a realidade em todo o seu horror. As cenas que se sucedem são impressionantes: a violência opressiva dos traficantes; as apóstrofes* exasperadas do poeta, tanto a Deus quanto às forças mais grandiosas da natureza; o repúdio à bandeira nacional que cobre tanta iniqüidade; e, por fim, o apelo aos heróis do Novo Mundo para que dêem um basta à espantosa tragédia: Era um sonho dantesco...O tombadilho Que das luzernas* avermelha o brilho, Em sangue a se banhar. Tinir de ferros...estalar de açoite... Legiões de homens negros como a noite Horrendos a dançar... Negras mulheres suspendendo às tetas Magras crianças, cujas bocas pretas Rega o sangue das mães. Outras, moças... mas nuas, espantadas No turbilhão de espectros arrastadas Em ânsia e mágoa vãs. E ri-se a orquestra, irônica, estridente... E da ronda fantástica a serpente Faz doidas espirais... Se o velho arqueja... se no chão resvala, Ouvem-se gritos... o chicote estala E voa mais e mais... Presa nos elos de uma só cadeia, A multidão faminta cambaleia, E chora e dança ali ... Um de raiva delira, outro enlouquece... Outro, que de martírios embrutece, Cantando, geme e ri... No entanto o capitão manda a manobra... E após, fitando o céu que se desdobra Tão puro sobre o mar, Diz, do fumo entre os densos nevoeiros: "Vibrai rijo o chicote, marinheiros! Fazei-os mais dançar." (...) Senhor Deus dos desgraçados! Dizei-me vós, Senhor Deus! Se é loucura... se é verdade Tanto horror perante os céus... Ó mar! por que não apagas Com a esponja de tuas vagas De teu manto este borrão?... Astros! noite! tempestades! Rolai das imensidades! Varrei os mares, tufão! (...) E existe um povo que a bandeira empresta P'ra cobrir tanta infâmia e covardia!... E deixa-a transformar nessa festa Em manto impuro de bacante* fria!... Meu Deus! Meu Deus! mas que bandeira é esta Que impudente* na gávea tripudia?! ... Silêncio!... Musa! Chora, chora tanto, Que o pavilhão se lave no teu pranto... Auriverde pendão* de minha terra, Que a brisa do Brasil beija e balança, Estandarte que a luz do sol encerra, E as promessas divinas da esperança... Tu, que da liberdade após a guerra Foste hasteado dos heróis na lança, Antes te houvessem roto na batalha, Que servires a um povo de mortalha!... (...) ...Mas é infâmia demais... Da etérea plaga* Levantai-vos, heróis do Novo Mundo... Andrada! arranca este pendão dos ares! Colombo! fecha a porta de teus mares!" * Apóstrofe: interpelação direta a alguém * Luzernas: clarões * Bacante: mulher devassa * Impudente: sem pudor * Pendão: bandeira * Plaga: região, país OUTROS POEMAS Curioso é o poema narrativo A cachoeira de Paulo Afonso, composto por uma série de quadros, onde se fundem o lírico e o social. É a história de amor entre dois escravos, Lucas e Maria, que termina com o suicídio de ambos na cachoeira. Uma história melodramática, mas pontilhada de excepcionais descrições da natureza brasileira, como esse Crepúsculo sertanejo: A tarde morria. Nas águas barrentas As sombras das margens deitavam-se longas! Na esguia atalaia* das árvores secas Ouvia-se um triste chorar de arapongas. A tarde morria! Mais funda nas águas Lavava-se a galha do escuro ingazeiro... Ao fresco arrepio dos ventos cortantes Em músico estalo rangia o coqueiro. (...) A tarde morria! Dos ramos, das lascas, Das pedras, do líquen, das heras, dos cardos* As trevas rasteiras com o ventre por terra Saíam, quais negros, cruéis leopardos. Somente por vezes, dos jungles* das bordas, Dos golfos enormes daquela paragem, Erguia a cabeça, surpreso, inquieto, Coberto de limos - um touro selvagem. Cardo: planta espinhosa, Jungle: mata espinhosa Um Verdadeiro Defensor dos Escravos? Nas últimas décadas, tornou-se moda acusar Castro Alves de ter apenas piedade do escravo e de não vê-lo integrado no processo produtivo. Sendo assim, seu condoreirismo estaria impregnado dos preconceitos da burguesia branca contra o negro. Tal visão é ridícula. Basta atentarmos para poemas como Saudação a Palmares e Bandido Negro. No último, há inclusive um refrão verdadeiramente revolucionário para uma época em que o escravo que levantasse o braço contra o seu senhor era punido com ferocidade: Cai, orvalho de sangue do escravo, Cai, orvalho, na face do algoz. Cresce, cresce, seara vermelha, Cresce, cresce, vingança feroz. POESIA LÍRICA: O AMOR SENSUAL O lirismo amoroso de Castro Alves distingue-se das concepções dominantes na poesia romântica brasileira. Ao contrário de Gonçalves Dias, não considera o amor como impossível de ser realizado. Tampouco encobre a sensualidade, como Casimiro de Abreu. Muito menos apresenta a relação física como perversão fantasiosa, a exemplo de Álvares de Azevedo. Em Castro Alves, as ligações sentimentais são apresentadas de uma maneira viril, sensual e calorosa. Mário de Andrade observou que tanto o homem quanto o artista alcançam a plena realização sexual. Disso resulta uma lírica original por explorar o erotismo sem subterfúgios e sem culpa. Ninguém como Castro Alves sabe cantar as excelências das uniões corpóreas, ninguém como ele sabe falar de homens e mulheres reais. Até mesmo sua linguagem - freqüentemente retórica ao tratar de temas condoreiros - torna-se simples e coloquial na poesia amorosa. A partir de um esplêndido domínio da metáfora, o poeta cria imagens de rara beleza e intenso sentido de plasticidade, conforme se pode observar em versos como: "Sob a chuva noturna dos cabelos..." Ou: "Minha Maria é morena / Como as tardes de verão." Ou ainda, referindo-se a uma de suas amadas: "Lírio do vale oriental, brilhante! / Estrela vésper do pastor errante!" Encantador e de singelo erotismo é o poema Adormecida, onde galhos e ramos assediam amorosamente a jovem que dorme numa rede: Uma noite, eu me lembro... Ela dormia Numa rede encostada molemente... Quase aberto o roupão...solto o cabelo E o pé descalço do tapete rente.(...) De um jasmineiro os galhos encurvados, Indiscretos entravam pela sala, E de leve oscilando ao tom das auras*, Iam na face trêmulos - beijá-la Era um quadro celeste!... A cada afago Mesmo em sonhos a moça estremecia... Quando ela serenava... a flor beijava-a ... Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia... (...) * Aura: vento brando. Em Os anjos da meia-noite, o poeta inventa a imagem quase surrealista de um seio solto a flutuar: Como o gênio da noite que desta desata O véu de rendas sobre a espádua nua, Ela solta os cabelos...Bate a lua Nas alvas dobras de um lençol de prata... O seio virginal que a mão recata, Embalde o prende a mão...cresce, flutua... (...) O POETA E A MORTE Antes de sua doença, Castro Alves já experimentara o velho tema romântico da morte na juventude e o triste lamento que esta intuição do fim nele despertava. O abismo entre os seus sonhos e a sombria realidade que impede a realização dos mesmos aparece em Mocidade e Morte, um de seus poemas fundamentais e, além de tudo, profético, conforme se pode ver nas primeiras estrofes: Oh! Eu quero viver, beber perfumes Na flor silvestre, que embalsama os ares; Ver minha alma adejar* pelo infinito, Qual branca vela n'amplidão dos mares. No seio da mulher há tanto aroma... Nos seus beijos de fogo há tanta vida... - Árabe errante, vou dormir à tarde À sombra fresca da palmeira erguida. Mas uma voz responde-me sombria: Terás o sono sob a lájea* fria. Adejar: esvoaçar Lájea: pedra do túmulo SOUSÂNDRADE (1833-1902) Vida: Joaquim de Sousa Andrade nasceu em Alcântara, Maranhão. De família abonada, viajou muito desde jovem, percorrendo inúmeros países europeus. Formou-se em Letras pela Sorbonne. Depois faz o curso de Engenharia. Em 1870, conheceu várias repúblicas latinoamericanas. A partir de 1871, fixou residência em Nova Iorque, onde mandou imprimir suas Obras poéticas. .... Em 1884, lançou a versão definitiva de seu O Guesa, obra radical e renovadora. Morreu abandonado e com fama de louco. Obras: Obras poéticas e O Guesa Considerado em sua época um escritor extravagante, Sousândrade acaba reabilitado pela vanguarda paulistana (os concretistas) como um caso de "antecipação genial" da livre expressão modernista. Criador de uma linguagem dominada pela elipse, por orações reduzidas e fusões vocabulares, foge do discurso derramado dos românticos. Seu aspecto inovador inclui também o uso de latinismos (palavras latinas), helenismos (palavras gregas), arcaísmos (palavras fora de uso) e outras invenções pessoais: metáforas complexas e aliterações, onomatopéias e criações gráficas, etc. Trata-se de um poeta experimental, que surge como um corpo estranho dentro de sua época literária. O sol ao pôr-do-sol (triste soslaio!)...o arroio Em pedras estendido, em seus soluços Desmaia o céu d'estrelas arenoso E o lago anila seus lençóis d'espelho... Era a Ilha do Sol, sempre florida Ferrete-azul, o céu, brando o ar pureza E as vias-lácteas sendas odorantes Alvas, tão alvas!... Sonoros mares, a onda d'esmeralda Pelo areal rolando luminosa... As velas todas-chamas aclaram todo o ar. O GUESA Sua obra mais perturbadora é O Guesa, poema em treze cantos, dos quais quatro ficaram inacabados. A base do poema é a lenda indígena do Guesa Errante. O personagem Guesa é uma criança roubada aos pais pelo deus do Sol e educado no templo da divindade até os 10 anos, sendo sacrificado aos 15 anos, após longa peregrinação pela "estrada do Suna". Na condição de poeta maldito, Sousândrade identifica seu destino pessoal com o do jovem índio. Porém, no plano histórico-social, o poeta vê no drama de Guesa o mesmo dos povos aborígenes da América, condenando as formas de opressão dos colonialistas e defendendo uma república utópica. Cosmopolita, o escritor deixou quadros curiosos como a descrição do Inferno de Wall Street, onde vê o capitalismo como doença. Observe-se, por outro lado, que os seus achados poéticos mais felizes coexistem com trechos ininteligíveis, retóricos e pretensiosos. O ROMANCE ROMÂNTICOI - ORIGENS Os romances dos autores românticos europeus como Victor Hugo, Alexandre Dumas, Walter Scott e outros tornaram-se populares no Brasil através de sua publicação em jornais, depois de 1830, criando no público o gosto por um gênero ainda desconhecido entre nós. Tanto na Europa quanto nas traduções brasileiras, essas narrativas eram primeiramente publicadas na imprensa, na forma de capítulos diários ou semanais, aumentando de maneira extraordinária a tiragem dos periódicos. Os leitores não escondiam seu entusiasmo pelo desenvolvimento das histórias, seduzidos pela sucessão de acontecimentos trepidantes, pelas emoções desenfreadas, pela linguagem acessível e pela ausência de qualquer abstração intelectual. Tais romances receberam o nome de folhetins. Ao escrever um folhetim, o artista submetia-se às exigências do público leitor e dos diretores de jornais. O francês Eugène Sue chegou a ressuscitar um personagem porque os leitores não haviam se conformado com sua morte. Ou seja, o que determinava o desenvolvimento e o desfecho de uma narrativa era o gosto popular. Desta forma, ao criar um folhetim o escritor se sujeitava aos valores culturais e ideológicos do público, que desejava histórias melodramáticas e alienadas da realidade. Por razões econômicas, quase todos os ficcionistas do período passaram a produzir primeiro para a imprensa. Mesmo alguns dos maiores novelistas do século XIX, como Dostoievski e Machado de Assis, se viram compelidos a lançar suas obras em fascículos. Todavia, eles não aceitavam a concepção folhetinesca da narrativa, mantendo sua independência estética. Outros, mais interessados na venda e na popularidade subordinavam seus textos à estrutura típica do folhetim, que é a seguinte: Harmonia · felicidade · ordem social burguesa Desarmonia · conflito · desordem · crise da sociedade burguesa Harmonia final · reestabeleciment o da felicidade · reordenação definitiva da sociedade burguesa, com o triunfo de seus valores Com o tempo, os ficcionistas passaram a utilizar uma série de truques narrativos, repetidos até a exaustão. Exemplo disso são os conflitos mais óbvios e recorrentes, vividos pelos protagonistas, e suas soluções quase sempre idênticas: · a falta de dinheiro - o pobre casa com a rica e vice-versa, movido apenas pelo amor; ou um deles recebe grande herança de parente desconhecido, etc. · a ausência de identidade - aparecem amuletos, retratos, objetos ou sinais corporais que provam o que se deseja provar, geralmente a origem nobre ou burguesa de um plebeu. · a inexistência de testemunhos - surgem personagens, muitas vezes vindos das sombras, que ouvem conversações secretas ou recebem confissões proibidas, e que então confirmam uma identidade perdida ou inculpam alguém por um crime cometido. Como regra geral, no último capítulo, após intensos tormentos, maldade e desolação, os obstáculos são removidos e o amor vence. Em vários romances, contudo, a ordem social é mais forte que a paixão e os amantes acabam destruídos pelas conveniências e pelos preconceitos. De qualquer maneira, o final de um folhetim tem sempre um caráter apoteótico e desmedido, seja na felicidade, seja na dor. O sucesso do folhetim europeu, em jornais brasileiros, foi resultado da emergência de um novo público leitor, composto basicamente por estudantes e mulheres. Era um público urbano, mas não raro procedente do campo: em geral, filhos e esposas de senhores rurais que haviam se estabelecido na Corte, depois da Independência. As mensagens sentimentais libertadoras dos folhetins serviram como uma luva às necessidades daquela gente asfixiada pelas regras intolerantes de uma sociedade economicamente agrária e culturalmente arcaica. E isso estimulou o aparecimento de vulgares adaptações dos relatos românticos, feitas por escritores de segunda categoria. Teixeira e Sousa, em 1843, publicou O filho do pescador, tornando-se o pioneiro desse subgênero. No entanto, em 1844, veio à luz A moreninha, de Joaquim Manuel de Macedo. Pelo enredo melhor articulado, pelo registro do ambiente carioca e pela sutil harmonização entre amor juvenil e preceitos conservadores, esta narrativa ultrapassava a dimensão de simples cópia de folhetins europeus. Sob certos aspectos, estava nascendo o romance brasileiro. OS ROMANCISTAS ROMÂNTICOS JOAQUIM MANUEL DE MACEDO (1820-1882) Vida: Nasceu em Itaboraí (RJ), filho de uma família de posses. Jovem ainda, formou-se em Medicina, a qual não praticaria, seduzido pela carreira literária, pelo magistério (foi preceptor dos filhos da princesa Isabel e professor de História no colégio Pedro II) e pela política (tornou-se deputado pelo Partido Liberal em várias legislaturas), além de fazer constantes incursões pelo jornalismo. Foi o primeiro escritor brasileiro a conhecer grande popularidade, deixando uma obra bastante vasta de mais de quarenta títulos. Morreu no Rio de Janeiro. Obras principais: A moreninha (1844); O moço loiro (1845); Memórias do sobrinho de meu tio(1867); A luneta mágica (1869) A importância de Joaquim Manuel de Macedo resulta de uma percepção do próprio escritor: o público leitor nacional, centralizado na capital federal e devorador de folhetins europeus, estava disposto a aceitar um romance adaptado a cenários brasileiros, desde que a conservado o modelo de enredo das narrativas inglesas e francesas. Além disso, o escritor deu-se conta de que precisava vencer a barreira moral - imposta pela estrutura patriarcalista - que não via com bons olhos a explosão de sentimentos naquelas histórias que afirmavam o direito da paixão sobre a obediência e sobre a hierarquia social. A adaptação que Macedo fez, portanto, era uma necessidade, podendo ser assim resumida: Romance brasileiro= (Romance romântico europeu + cenários brasileiros + valores patriarcais) O produto desse esforço foram relatos desprovidos de grande valor artístico, mas que possibilitavam ao leitor várias identificações. Tropeçavase a todo instante em ruas, praças, praias e outras paisagens conhecidas. Aqui e ali, sob algum disfarce, topava-se com uma figura típica da sociedade carioca (fluminense, se dizia então). Um nome era lembrado, um costume coletivo evidenciado, de tal forma que a alegria do reconhecimento tornava-se contínua - como se, atualmente, alguém descobrisse o seu mundo e a si próprio num filme ou numa telenovela. Outro fator de identificação resulta do processo de abrandamento do folhetim europeu. Embora o tema predileto de Macedo fosse o amor, as aventuras sentimentais que imaginou não possuíam nem a violência nem o velado amoralismo das histórias dos romances europeus de então. Afinal, aqui era o Brasil, país em que a burguesia não tinha expressão e a ideologia patriarcal dominava completamente os espíritos. Afetos sim, mas afetos mantidos nos limites do decoro, para não ferir os leitores, nem com a tragédia, nem com a revolta. Mais açúcar do que sangue. Em vez de paixões intempestivas, respeitáveis namoros que, passando pelo noivado, terminam obviamente no casamento. Não por casualidade, na obra de Macedo os impulsos íntimos dos enamorados sempre se enquadram nas normas da família patriarcal. Nada de vulcões, nada de protestos, nada de desrespeito. O universo pré-capitalista brasileiro ainda não podia conviver com a liberdade sentimental. Até os vilões sabem adaptarse às conveniências sociais. Como disse um crítico, só praticam a vilania na medida em que o enredo assim o exige. Quer dizer, o mundo narrativo de Macedo não tem abismos. Por isso, não devemos procurar no simpático "Dr. Macedinho" (assim o tratavam) reflexões adultas ou conflitos comovedores. Tudo nele é relativamente raso. Satisfaz-se com o que vê e vê apenas as aparências. E, enquanto colecionador de aparências, é um cronista razoável dos hábitos, da moda, dos tiques e - num certo sentido - da mediocridade das classes altas e médias urbanas, retratadas numa ótica bastante ingênua. A importância histórica O crítico Antônio Candido diz, com ironia, que Macedo parece ceder "a um irresistível impulso de tagarelice". Tagarelice comprovada na quantidade de sua produção: em pouco mais de trinta anos de carreira, escreveu dezoito romances, quinze peças de teatro, dois livros de poemas e sete volumes de variedades. Mesmo assim, forneceu as bases para a criação do romance brasileiro. Ao focalizar os costumes patriarcais, inventariou as dificuldades e os fuxicos próprios dos afetos juvenis, invariavelmente centrados no namoro e na promessa de casamento, e acabou mostrando (sem teor crítico), a pequenez de nossa vida urbana. Acima de tudo, a sua importância na história literária advém do fato de conquistar os leitores para uma ficção voltada para temas e cenários locais, abrindo caminho a escritores de maior significado. A Moreninha até hoje é a sua obra mais conhecida. Apesar da superficialidade da trama, há no texto um tom alegre e descompromissado. A MORENINHA Resumo O estudante Filipe convida seu amigo e também estudante, Augusto, para um fim de semana em sua casa, na ilha de Paquetá. Augusto é famoso pela inconstância em relação à namoradas. Filipe aposta que desta vez ele se apaixonará por uma de suas primas. Na ilha, Augusto descobre a adolescente Carolina (a Moreninha), irmã de Filipe, que lhe desperta sentimentos contraditórios. Em seguida, defendendo-se da acusação de leviano com as donzelas, explica a dona Ana, avó da jovem, o motivo de sua volubilidade. Quando tinha treze anos estava brincando na praia com uma linda e desconhecida menina. Na ocasião, aparecera um rapazinho, dizendo que o pai estava prestes a morrer. As crianças visitam o moribundo e, constatando a pobreza da família, dão-lhe o dinheiro que possuíam. O doente pede um objeto pessoal de cada um: Augusto entrega-lhe o camafeu da gravata, a garota um anel. Os objetos são embrulhados em pedaços de pano e cosidos por sua esposa. Depois, o moribundo entrega a cada um a jóia do outro, dizendo que eles se amariam e no futuro se tornariam marido e mulher. Portanto, o rapaz ficara preso a esta promessa juvenil. O jogo entre o juramento do passado e o amor do presente - pois, obviamente, Augusto acaba gostando de Carolina - se alterna com brincadeiras marotas, erotismo negaceado, vinganças adolescentes, bilhetes secretos, problemas nos estudos, proibições paternas, etc. Tudo é bastante pueril e inocente, embora se possa perceber nessa ciranda de namoricos um retrato aproximado dos folguedos sentimentais permitidos na época. No fim da narrativa, Carolina entrega a Augusto o pacotinho contendo o camafeu: ela era a menina da praia. Assim, o namoro pode ser concretizado, sem que o estudante quebre a promessa feita cinco anos antes. JOSÉ DE ALENCAR (1829-1877) Vida: Filho de tradicional família da elite cearense, José Martiniano de Alencar nasceu em Mecejana, no interior do Ceará. Seu pai, homem culto, liberal extremado, participou de várias revoluções, como a chefiada por Frei Caneca, em 1817, e a Confederação do Equador, em 1824, exercendo também cargos políticos importantes, como o de senador do Império. O menino viveu, portanto, em um ambiente familiar intelectualizado e favorável à formação cultural. Tinha nove anos quando se mudou com os pais para a Corte (Rio de Janeiro), onde fez seus estudos primários, seguindo depois para São Paulo com o objetivo de concluir o secundário e matricular-se em Direito, curso no qual se formou em 1851, com vinte e dois anos de idade. De volta à Corte, trabalhou como advogado e jornalista. Em 1856, sob pseudônimo de Ig, teceu duras críticas ao poema Confederação dos tamoios, de Gonçalves de Magalhães, que, por seu turno, foi defendido pelo próprio Imperador, também sob pseudônimo. No mesmo ano, Alencar publicou seu romance de estréia, Cinco minutos. Em 1857, lançou no jornal O Diário do Rio de Janeiro, sob a forma de capítulos, o folhetim O guarani, que teve uma repercussão jamais conhecida por qualquer outro escritor até então no país. Com trinta e cinco anos, casou-se com a sobrinha do Almirante Cochrane, herói da Independência. O casal teve quatro filhos. Obras principais: Romances urbanos: Cinco minutos (1856); A viuvinha (1857); Lucíola (1862); Diva (1864); A pata da gazela (1870); Sonhos d'ouro (1872); Senhora (1875); Encarnação (1877). Romances regionalistas ou sertanistas: O gaúcho (1870); O tronco do ipê (1871); Til (1872); O sertanejo (1875); Romances históricos: As minas de prata (1862); Alfarrábios (1873); A guerra dos mascates (1873) Romances indianistas: O guarani (1857); Iracema (1865); Ubirajara (1874) Estas categorias comprovam a amplitude geográfica, histórica e social do projeto literário de José de Alencar. Sua ambição era desmedida: cogitou fazer aqui o que Balzac fizera na França, ou seja, um painel gigantesco dos múltiplos aspectos da realidade nacional. Quis construir o romance brasileiro, a partir de um projeto que abrangesse a totalidade da nação, tanto na sua diversidade física-geográfica quanto em seus aspectos sócio-culturais; tanto em suas origens históricas gloriosas quanto nos mitos dos heróis fundadores da nacionalidade. Regiões, história, costumes e mitos: eis a sua fórmula. A LITERATURA COMO ALMA DA PÁTRIA Em conseqüência, a idéia chave para a compreensão da obra de Alencar talvez esteja na sua célebre frase: "A literatura nacional que outra coisa é senão a alma da pátria?" Ou seja, cabe ao texto literário expressar a nação. Ele é o espelho no qual os brasileiros devem reconhecer-se como povo e como unidade cultural e territorial. Nele, os leitores desse país jovem, (que ainda não tivera nem sua geografia, nem sua alma, nem seus costumes registrados) poderiam encontrar uma identidade, uma auto-imagem favorável. A LINGUAGEM BRASILEIRA Mais tarde, Alencar percebeu que, para criar de fato o romance nacional não bastava apenas o uso explícito da temática brasileira e "cor local". Era preciso também tomar posição diante da questão da linguagem. Romper com os cânones estilísticos da literatura portuguesa passou a ser, para ele, um imperativo. Sem essa ruptura não se fundaria uma estética verdadeiramente autóctone. Por isso, ele foi atacado sistematicamente por gramáticos e escritores portugueses. O esforço máximo de Alencar em torno da criação dessa linguagem brasileira ocorreu em Iracema. Entre os aspectos mais significativos que ali encontramos destacam-se: - A utilização de períodos curtos, sintéticos, vinculando a prosa à concisão expressiva da poesia lírica. A isso se acrescenta a intensa musicalidade e o ritmo inovador da frase. Justifica-se assim a designação da narrativa como um "verdadeiro poema em prosa". - Um estilo que se vale de inumeráveis comparações e metáforas, usadas na narração, nas descrições e nos diálogos. O estilo metafórico representaria uma espécie de tradução para o vernáculo nacional das formas básicas de expressão indígena, centrada em analogias e referências ao mundo natural. - As comparações sempre vinculadas a elementos da paisagem física e animal do ambiente tropical brasileiro, sublinhando a dicção nacionalista do escritor. - O uso permanente de vocábulos indígenas, obrigando o autor a explicá-los através de numerosas notas ao pé de página. UM PAINEL INCOMPLETO DO PAÍS Na celebração exaltada do nacional está a grandeza, mas também o principal problema do espelho alencariano. O Brasil que ele mostra tende à idealização da realidade humana e social. É um espelho opaco, que não reflete nem as mazelas da escravidão nem a brutalidade das camadas senhoriais. Reflete quase tão somente as luzes fulgurantes do trópico, e o destemor, a generosidade e o altruísmo de sua gente. Assim, as imagens que aparecem nos romances de Alencar, em regra, são positivas e idealizadas. Elas transmitem uma certa sensação de irrealidade e, às vezes, nos parecem retorcidas e falsas. Correspondem menos aos fundamentos românticos da época e mais à necessidade das elites letradas apresentarem o país sob uma ótica benigna e autoelogiosa. Mesmo assim, em várias obras, o autor cearense consegue ultrapassar os limites ideológicos que o aprisionavam à sua época, revelando qualidades de grande ficcionista. ROMANCES URBANOS Numa Corte em que a imitação de costumes europeus convivia com a mediocridade da vida cotidiana, Alencar percebeu a existência de uma tensão: "a luta entre o espírito local (rasteiro, provinciano, patriarcal) e a invasão da cultura estrangeira (modismos românticos, paixões extremadas, etc.) ", como bem observa Roberto Schwarz. O Rio de Janeiro - na metade do século XIX - era uma capital limitada e pouco cosmopolita e, portanto, insuficiente para um romancista seduzido pela idéia de grandeza. O autor cearense viu-se, pois, obrigado a inventar histórias complicadas, conversões mirabolantes, renúncias sublimes, amores violentos, etc., para sobrepô-los à pobreza humana e intelectual da sociedade brasileira de então. Alencar tenta retratar este conflito entre a vulgaridade nativa e o sublime universo romântico. Contudo, suas narrativas acabam não se definindo entre a estrutura do folhetim e a percepção pré-realista do universo urbano brasileiro. São tão contraditórias quanto a realidade que procuram refletir. Assim, em muitas de suas ficções, o aspecto folhetinesco supera completamente o registro da existência comum, do que resulta o aspecto quase inverossímil de personagens e acontecimentos. No entanto, duas narrativas permaneceram como modelares e ainda hoje merecem ser lidas, seja por sua relativa complexidade psicológica, seja pela novidade de incorporarem a questão econômica aos relacionamentos afetivos. Nestes relatos, Alencar - além de traçar alguns de seus melhores "perfis femininos" - relaciona o drama dos indivíduos com o organismo social. Em Lucíola a impossibilidade de união entre dois grupos sociais distintos, o popular e o senhorial. Em Senhora o casamento por interesse, um dos poucos instrumentos de ascensão na sociedade brasileira da época. LUCÍOLA Resumo Paulo, jovem bacharel pernambucano, escreve cartas à senhora G. M., para narrar-lhe a história de seu relacionamento com uma cortesã, já que o assunto não poderia ser exposto oralmente, dada a presença da neta da destinatária, uma moça inocente de apenas dezesseis anos. Nestas cartas conta que, recém chegado de Olinda, conhecera uma jovem e bela mulher, Lúcia, apaixonando-se à primeira vista por ela. Só mais tarde um amigo iria informá-lo de que Lúcia exercia a alta prostituição, sendo famosa por certas excentricidades, como vender todas as jóias que recebia de presente e jamais aceitar ser a amante exclusiva de alguém. Já abalado com a terrível revelação, Paulo se deprime ainda mais ao presenciar o espetáculo que Lúcia promove na casa de Sá, um homem dado a orgias. Lúcia exibe-se nua sobre uma mesa, imitando as cenas libertinas dos quadros que decoram as paredes da casa. Paulo sente, ao mesmo tempo, raiva, piedade e paixão pela cortesã mas, ao sair para o jardim da casa, reencontra-a e obtém da mesma a promessa de nunca mais repetir a cena. Em seguida, os dois declaram-se apaixonados e terminam se amando sobre a relva. A partir de então, Lúcia abandona a profissão e Paulo passa a sustentá-la em nível modesto. O relacionamento entre os dois , entretanto, continua muito complicado. O rapaz percebe-se fraco para enfrentar as pressões da sociedade e a jovem, por seu turno, não se considera merecedora de tal afeto, vendo objetivamente os terríveis impedimentos sociais colocados diante de ambos. Após uma injustificada crise de ciúmes de Paulo, Lúcia enfim conta-lhe sua vida anterior, revelando que se prostituíra para ajudar sua família, de classe média, mas duramente empobrecida durante uma epidemia de febre amarela. Expulsa de casa pelo pai, trocara mais tarde seu verdadeiro nome, Maria da Glória, pelo de Lúcia, nome de uma amiga sua, morta de tuberculose. Depois de passar um ano na Europa, retornara ao Brasil, descobrindo que seus pais já tinham falecido. Internara, então, sua última parente, a irmã Ana, num colégio e seguira a profissão de cortesã. Tempos depois, abandonando a prostituição, Lúcia busca Ana no internato e as irmãs passam a viver juntas. Paulo tenta novamente conquistar o amor da jovem, mas esta - embora correspondendo aos sentimentos do rapaz - recusa-se ao relacionamento, alegando que para destruir a sua condição de prostituta, precisava renunciar inclusive a seus sentimentos. Em seguida, pede a Paulo que se case com a irmã, porém este, desesperado, se nega a realizar o pedido. Subitamente, Lúcia desmaia, revelando-se a sua gravidez: estava esperando um filho do amante. O feto, contudo, morre no ventre materno. Dias depois, Lúcia faz Paulo jurar que seria um legítimo pai para Ana, e , em seguida, também morre. Ao encerrar a correspondência dirigida à senhora G. M., Paulo informalhe que - conforme a promessa - servira de pai para Ana, que se casara. ROMANCES INDIANISTAS Os romances de temática indianista são três: O guarani (que Alencar preferia classificar como romance histórico), Iracema e Ubirajara. Todos apresentam um mesmo substrato estético e ideológico: · Forte influência de relatos de Chateaubriand (Atala) e, em especial, de Fenimore Cooper (O último dos moicanos), embora Alencar tivesse consciência de que suas obras eram diferentes, conforme ele próprio afirmou: Cooper considera o indígena do ponto de vista social, e na descrição dos seus costumes foi realista; apresentou-o sob o aspecto vulgar. N´O Guarani é um ideal que o escritor intenta poetizar, despindo-o da crosta grosseira de que o envolveram os cronistas, e arrancando-o ao ridículo que sobre ele projetam os restos embrutecidos da quase extinta raça. · A ação narrativa transcorre no passado remoto: O guarani e Iracema, no século XVII, e Ubirajara no período anterior ao descobrimento. · A apresentação de heróis inteiriços e modelares. Se o romancista chegou de fato a estudar certas particularidades da cultura indígena, a exemplo da língua, dos valores religiosos e de alguns costumes, os personagens destas obras, em sua psicologia e em suas ações, são verdadeiros cavaleiros medievais, perdidos em bravias florestas, com um destino épico a cumprir. · Acima de tudo, os índios são os heróis da nascente nacionalidade póscolonial. Através desses guerreiros audaciosos e sem mácula (Peri, Jaguarê, Poti) e dessa mulher disposta a qualquer sacrifício (Iracema), os leitores do século XIX podiamm se orgulhar de suas supostas origens americanas e de sua ancestral nobreza. · A poetização da vida aborígene, em contraponto - na sagaz observação de Nelson Werneck Sodré - com o silêncio absoluto sobre o papel do negro na formação social brasileira. Da mesma forma que a Independência não incluiu a abolição da escravatura em seu processo, os artistas da primeira geração romântica a ignoraram o problema dos negros. Assim, a temática indianista desempenhou o papel de compensação às misérias do presente histórico desses escritores. · Por outro lado e paradoxalmente - como mostrou Alfredo Bosi - não foi o índio rebelde o celebrado por Alencar mas sim o índio que "entrou em íntima comunhão com o colonizador". Esta conciliação - diz o crítico - "violava abertamente a história da ocupação portuguesa", feita, como todos sabemos, de violência e destruição dos primitivos habitantes. Por isso, a exaltação dos índios ocorre somente quando os mesmos perdem a sua identidade e os seus valores, integrando-se (sempre na condição de súditos) à cultura dos conquistadores brancos. No caso de Iracema, soma-se ainda o viés patriarcal da época no elogio do comportamento da indígena feito de submissão, conformismo e renúncia. · Tanto O guarani quanto Iracema podem ser designados como romances fundadores, ou seja, obras ficcionais que representam metaforicamente o início de um mundo e / ou de uma raça. No primeiro esta intenção é mais ou menos velada, embora a hipotética sobrevivência do casal Peri-Ceci, no final do romance, expresse (como mito) a fusão étnica que alicerçaria o novo país. Já em Iracema (anagrama de América) esta junção simbólica entre conquistadores e conquistados é explícita. Desta forma, Moacir, o filho da índia com o português Martim Soares expressa, simbolicamente, o início da raça cearense. · No seu conjunto, os romances de temática indígena de José de Alencar apresentam méritos inegáveis. Iracema resiste à passagem do tempo pela espetacular força de seu estilo poético. Ubirajara - o único relato em que não ocorre o encontro do branco com o índio - apresenta uma trama envolvente, repleta de aventuras e de observações curiosas sobre os costumes nativos. Mesmo O guarani - em que pese sua falsidade social e psicológica - tem um enredo trepidante que deixa o leitor quase sem fôlego. O GUARANI Resumo No início do século XVII, um dos fundadores do Rio de Janeiro, o fidalgo português D. Antônio de Mariz, em protesto contra a dominação espanhola (1580-1640), estabelece-se em plena floresta, construindo um verdadeiro solar medieval junto a um rochedo inexpugnável. Vive com sua mulher, o filho, D. Diogo, a filha, Cecília e uma mestiça, Isabel, apresentada como sobrinha, mas que na realidade é sua filha natural. Junto à casa dos Mariz, vive um bando de mais ou menos quarenta aventureiros. Estes homens entram no sertão, fazendo o contrabando de ouro e pedras preciosas e deixando um percentual para D. Antônio. Logo em seguida à chegada da nobre família portuguesa, um jovem e hercúleo cacique, Peri, salva Cecília de enorme pedra prestes a desabar sobre ela. Ao receber o agradecimento dos brancos pelo gesto, (exceto da mulher de D. Antônio, que abomina índios), Peri abandona sua tribo e passa a viver junto a eles, numa pequena choupana. Desta maneira, o indígena confirma uma visão que tivera com Nossa Senhora, a qual lhe ordenara que a servisse. E Cecília (a quem Peri chama de Ceci) tinha as mesmas feições da Virgem Maria. Era a ela, portanto, que o índio devia obediência e proteção. Em princípio, Ceci manifesta um pouco de medo e repugnância pelo guarani. Este, entre outras façanhas, captura uma onça viva para mostrá-la a sua Iara (senhora). Também desce ao fundo de um penhasco, tomado por répteis e cascavéis, para apanhar um estojo com uma jóia da heroína. Apoiada pelo pai, que percebera a nobreza do índio ("É um cavalheiro europeu no corpo de um selvagem"), a jovem começa a simpatizar com seu estranho protetor. Entre os aventureiros que vivem sob a égide dos Mariz, dois merecem destaque. Álvaro de Sá, rapaz de impulsos nobres e gestos superiores e que ama respeitosamente Ceci, embora, por seu turno, seja amado por Isabel. E o antigo frade carmelita, Angelo di Lucca - hoje Loredano - que abandonara o hábito depois de se apossar de um mapa de riquíssimas minas de prata, pertencente a um moribundo. Homem cruel e decidido, quer, antes de alcançar as hipotéticas minas, possuir Ceci, pela qual professa um desejo animalesco. Simultaneamente, por um terrível equívoco (que aliás não lhe causa nenhum trauma), D. Diogo, o filho de D. Antônio, mata a filha do cacique dos aimorés, pensando se tratar de um animal. Os aimorés ("povo sem pátria e sem religião") querem vingança, exigindo em troca a vida da doce Ceci. Desejada impuramente por Loredano e perseguida pelos ferozes aimorés, quem poderia salvá-la de tantas adversidades? Peri revela então a extensão de sua fidelidade aos portugueses. À medida em que centenas de aimorés iniciam o cerco final ao casarão, o herói desobedecendo a sua "senhora" - parte para o acampamento dos inimigos e após derrubar vários deles, é preso e levado para o ritual antropofágico. Na hora da cerimônia, ingere poderosa dose de curare, um veneno terrível. Assim, quando os selvagens o devorassem, morreriam todos. Desta forma, Peri propõe o genocídio dos índios para que os brancos continuassem a viver livremente. No entanto, quando o veneno já corrói as entranhas do bravo guerreiro, Álvaro de Sá irrompe de surpresa no acampamento, com alguns amigos, e o resgata. Peri volta para Ceci mais morto do que vivo, mas a heroína do romance (já se sentido afetivamente ligada ao índio) exige que ele tente se salvar. Cambaleante, Peri vaga pela floresta até encontrar o antídoto para o curare. Quanto ao pérfido ex-padre, Loredano, acaba sendo desmascarado pelo herói, do mesmo modo que os seus principais asseclas. No final da narrativa, por causa de seus crimes e de sua monstruosidade moral, arderá em uma fogueira. O cerco dos aimorés torna-se cada vez mais terrível. Álvaro morre ao buscar víveres na floresta, confessando antes à Isabel que lhe retribuía a paixão. Peri consegue recuperar o corpo do rapaz. Desesperada, Isabel pede que o índio o deposite em seu quarto. Depois, fecha todas as frestas do quarto e asfixia-se com a fumaça de resinas aromáticas, morrendo por amor, na cena mais bela do romance. Sem alternativa de resistência, D. Antônio chama o índio e diz que, se este se tornasse cristão, lhe confiaria a filha para que tentasse levá-la à civilização. O herói responde: "Peri quer ser cristão!", e ajoelha-se diante do fidalgo que o batiza. Enquanto as flechas incendiárias dos aimorés transformam a casa-forte num inferno, Peri pula o precipício - que cercava o casarão - com o auxílio de um galho de árvore, levando Ceci adormecida por uma bebida soporífera. Rapidamente alcança o rio Paquequer onde escondera uma canoa. Ouve-se uma grande explosão: D. Antônio colocara fogo no paiol e todos, os remanescentes brancos e centenas de aimorés desaparecem, numa espécie de apocalipse. Ao acordar, Ceci chora muito a morte dos parentes e diz querer o índio para sempre a seu lado, na cidade. Peri rejeita a idéia de morar na civilização, porém a jovem não pode mais viver sem ele e, aproveitando-se de uma parada para descanso, corta as amarras da canoa. Estão agora sozinhos, e como Adão e Eva, no começo do mundo, prontos para o amor. Eis quando uma grande enxurrada os surpreende (Alencar está atento aos preconceitos de seus leitores). O casal refugia-se em cima de uma palmeira, mas as águas continuam subindo. Em um último gesto heróico, Peri arranca a palmeira (incluindo raízes e tudo), transformando-a em canoa. O índio e a jovem branca são arrastados, então, pela correnteza. Em direção ao quê? Da morte? Do início da felicidade conjugal? Da simbólica construção de um novo mundo nos trópicos? O que acontece após o grande dilúvio? O leitor que decida. Observe-se a antológica cena final do romance: Então passou-se sobre esse vasto deserto d'água e céu uma cena estupenda, heróica, sobre-humana; um espetáculo grandioso, uma sublime loucura. Peri alucinado suspendeu-se aos cipós que se entrelaçavam pelos ramos das árvores já cobertas d'água, e com esforço desesperado, cingindo o tronco da palmeira nos seus braços hirtos, abalou-o até as raízes. Três vezes os seus músculos de aço, estorcendo-se, inclinaram a haste robusta; e três vezes o seu corpo vergou, cedendo à retração violenta da árvore, que voltara ao lugar que a natureza lhe havia marcado. Luta terrível, espantosa, louca, desvairada; luta da vida contra a matéria; luta do homem contra a terra; luta da força contra a imobilidade. Houve um momento de repouso em que o homem, concentrando todo o seu poder, estorceu distensão horrível. Ambos, árvore e homem, embalançaram-se no seio das águas: a haste oscilou; as raízes desprenderam-se da terra já minada profundamente pela torrente. A cúpula da palmeira, embalançando-se graciosamente, resvalou pela flor d'água como um ninho de garças ou alguma ilha flutuante, formada pelas vegetações aquáticas. Peri estava de novo sentado junto de sua senhora quase inanimada; e, tomando-a nos braços, disse-lhe com um acento de ventura suprema: - Tu viverás!... Cecília abriu os olhos e, vendo seu amigo junto dela, ouvindo ainda suas palavras, sentiu o enlevo que deve ser o gozo da vida eterna. -- Sim?...murmurou ela; viveremos!...lá no céu, no seio de Deus, junto daqueles que amamos! (...) Sobre aquele azul que tu vês, continuou ela, Deus mora no seu trono, rodeado dos que o adoram. Nós iremos lá, Peri! Tu viverás com tua irmã, sempre!... Ela embebeu os olhos nos olhos de seu amigo, e lânguida reclinou a loura fronte. O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face. Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores e lânguidos sorrisos: os lábios abriram como as asas purpúreas de um beijo soltando o vôo. A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia... E sumiu-se no horizonte... IRACEMA Nos primórdios da colonização, o português Martim Soares, perdido na mata, encontra abrigo junto ao pajé dos tabajaras, Araquém. A filha deste, Iracema, apesar de ser uma espécie de sacerdotisa, se apaixona pelo branco e o protege das investidas do guerreiro Irapuã, terminando por fugir com Martim para o lado dos potiguaras, chefiados por Poti. Esses, ao contrário dos tabajaras, eram aliados dos portugueses. Iracema e Martim vivem o amor nas florestas e praias do Ceará. A guerra dos tabajaras e os franceses afasta Martim e seu amigo, Poti, de Iracema. Ao regressar, encontra a índia às portas da morte, ainda que tenha gerado uma criança, filho de Martim, Moacir, cujo nome significa o filho do sofrimento. Iracema, exaurida, morre e o branco leva a criança rumo à civilização. Veja-se o exemplo dos múltiplos recursos líricos e rítmicos que presidem a linguagem de Iracema. A começar pela chegada do barco de Martim: Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes da carnaúba; Verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente, perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros; Serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa, para que o barco aventureiro manso resvale à flor das águas. Onde vai aflouta jangada, que deixa rápida a costa cearense, aberta ao fresco terrala grande vela? Onde vai como branca alcíone buscando o rochedo pátrio nas solidões do oceano? Ou, ainda, a famosa descrição metafórica da heroína: Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema. Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira. O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado. ROMANCES HISTÓRICOS A exemplo dos romances indianistas, dos quais são muito próximos, os romances históricos apresentam como características: - A ação localizada no passado colonial - Uma intenção simbólica, pois devem, no plano literário, representar poeticamente (isto é, miticamente), as nossas origens e a nossa formação como povo. Porém, em geral, o relato histórico romântico (Walter Scott, Alenxandre Dumas) tende a sublinhar apenas um conjunto de peripécias escassamente verossímeis, deixando os fatos sociais e concretos do passado em segundo plano. Alencar não foge à regra - Assim, os episódios "históricos" que sustentam vagamente os romances alencarianos (a descoberta de minas, a guerra dos Mascates, etc.) não passam de pretexto para as mais frenéticas e improváveis aventuras. ROMANCES REGIONALISTAS (OU SERTANISTAS OU DE TEMÁTICA RURAL) Os chamados romances regionalistas ou sertanistas (na verdade, romances de temática rural) parecem, à primeira vista, nascer da nostalgia do autor em relação ao rústico mundo interiorano, onde passara a infância, conforme se pode observar nesta passagem de O sertanejo: Quando te tornarei a ver, sertão da minha terra, que atravessei há muitos anos, na aurora serena e feliz da minha infância? Quando tornarei a respirar tuas auras impregnadas de perfumes agrestes, nas quais o homem comunga a seiva dessa natureza possante? Contudo, são razões de ordem ideológica que predominam na elaboração destas narrativas. No prefácio de um romance urbano, Sonhos d'ouro, Alencar explica o que pretendia ao revelar o interior do País: Onde não se propaga com rapidez a luz da civilização que de repente cambia a cor local, encontra-se ainda em sua pureza original, sem mescla, esse viver singelo de nosso país, tradições, costumes e linguagem, com um sainete* todo brasileiro. Desta afirmativa e da leitura dos quatro romances sertanistas (O sertanejo, O gaúcho, O tronco do ipê e Til) pode-se chegar a duas conclusões: a) A condição brasileira (isto é, o cerne da nação), na sua forma mais pura e singela, localiza-se no mundo rural. b) A extensão geográfica dos romances (do sertão ao sul do país, passando por fazendas fluminenses) indica que a ânsia de Alencar em abranger o núcleo básico do território nacional corresponde ao desejo das elites imperiais (das quais o autor é o principal intérprete) em integrar todas as regiões ao corpo de uma nação centralizada e unificada. ** Significativo sob este ângulo é o elogio, em O gaúcho, da pretensa dimensão monarquista e anti-separatista dos chefes da Revolução Farroupilha. Ora, como o autor está interessado em mostrar, acima de tudo, a unidade do país, os aspectos originais da vida regional reduzem-se a algumas descrições poéticas da natureza, a alguns costumes típicos e à capacidade heróica /aventureira dos protagonistas, os quais parecem representar, de maneira mais ou menos primitiva, à bravura e a generosidade do homem rural brasileiro. Ao se tornar o porta-voz artístico da unificação nacional, Alencar acaba tendendo a uma literatura que apenas celebra os encantos rurais, sem analisálos, enquanto no plano do enredo a estrutura convencional de folhetim impõe-se completamente. Observe-se ainda que a linguagem mantém o padrão culto urbano, pouco valorizando as particularidades lingüísticas de cada região enfocada. * Sainete: gosto, sabor. As estruturas do folhetim, o predomínio da ação sobre os caracteres, o nacionalismo ufanista e a visão idealizada da existência - que compõem a obra de Alencar - não fascinam mais os leitores. Sob este ângulo, seus romances pertencem a outra época, desgastaram-se com o passar do tempo e oferecem dificuldades de leitura, sobretudo aos jovens. Não obstante, por várias razões, o autor cearense continua tendo uma importância histórica extraordinária: · Consolidou o romance brasileiro ao escrever movido por um sentimento de missão patriótica (durante toda a sua carreira, parece que nada mais quis senão descobrir a essência da nacionalidade.) · Discutiu incessantemente a questão da autonomia de nossa literatura, procurando eliminar as influências portuguesas sobre a mesma (ainda que às vezes caísse em padrões franceses e ingleses). · Preocupou-se em construir um painel, o mais abrangente possível, da realidade brasileira. Seu esforço de totalização fracassou, é verdade. Contudo, a idéia de um romance, ou de um conjunto de romances, capazes de representar a nação (ou o povo) ainda encontraria eco nos escritores do século XX, como Mário de Andrade, Antônio Callado e João Ubaldo Ribeiro, entre outros. · Foi o primeiro ficcionista a perceber a vastidão e a diversidade do país, intuindo algumas especificidades regionais e abrindo um filão (a narrativa de temática rural) que continua presente na ficção contemporânea. · Nos momentos mais felizes (Iracema, Senhora e Lucíola), alcançou a análise psicológica, quase à maneira realista, além de mostrar o peso da sociedade nas relações pessoais. · Problematizou a questão da língua brasileira e ele próprio criou uma linguagem literária original, muitas vezes de grande densidade poética. · Em muitos de seus romances demonstrou um esforço estético, uma "vontade de forma", uma capacidade de elaboração artística que não encontramos em nenhum outro prosador do período. Por todos estes motivos, José de Alencar pode ser considerado o fundador do romance brasileiro. OUTROS SERTANISTAS (OU REGIONALISTAS) Os romances de temática rural de José de Alencar abriram um rico veio para o surgimento de um grupo de romancistas também denominados sertanistas (ou regionalistas). São escritores preocupados em revelar o Brasil agrário, distanciado do litoral, com seus costumes específicos e seus protagonistas que oscilam entre a ingenuidade psicológica e a prepotência patriarcal. O ponto de partida dessa literatura é geralmente uma visão nacionalista, mesclada à estrutura narrativa do folhetim e à busca de certa autenticidade poética ou documental na fixação da vida interiorana. Há uma intenção realista, inclusive, mas é um realismo que se detém em exterioridades: descrições da natureza, algo do acento lingüístico, dos costumes e dos valores morais da região. Esta procura da realidade concreta é prejudicada, no entanto pela construção totalmente romântica e melodramática dos personagens. 1. BERNARDO GUIMARÃES (1825-1884) Vida: Nasceu em Ouro Preto, onde passou a infância e os primórdios da adolescência, indo depois para São Paulo estudar Direito. Foi colega de Álvares de Azevedo e na faculdade tinha fama de boêmio e satírico, tendo inclusive produzido uma lírica (Cantos da solidão) identificada com o satanismo byroniano e com humorismo. Também escreveu poemas pornográficos que obtiveram muito sucesso na época Foi nomeado juiz no interior de Goiás, onde mostrou seu lado boêmio até ser exonerado da função. Passou rapidamente pelo Rio de Janeiro, voltou a Ouro Preto, casou-se e se tornou professor secundário. A publicação de A escrava Isaura, em 1875, garantiu-lhe prestígio nacional, a ponto do próprio Imperador visitá-lo na antiga capital mineira. Morreu aos cinqüenta e nove anos. Obras principais O ermitão do Muquém (1864); O garimpeiro (1872); O seminarista (1872); A escrava Isaura (1875). Nenhum autor expressou tão amplamente a tendência sertanista como Bernardo Guimarães. Vivendo, alguns anos, no interior (oeste de Minas e sul de Goiás), conheceu-o bem, descrevendo-o com certa minúcia e com um estilo mais ou menos trivial, pontilhado por algumas falas pitorescas da região. A exemplo dos demais ficcionistas de temática rural, suas narrativas variam entre um modesto realismo e o melodrama romântico mais inverossímil. Quando a primeira tendência domina, ele escreve um romance aceitável, O seminarista; quando o folhetim impera, seus relatos tornam-se risíveis, caso de O garimpeiro e A escrava Isaura. A ESCRAVA ISAURA Este é um dos livros cuja importância se situa fora da literatura, pela incrível recepção que obteve e por sua importância na luta abolicionista.. Milhares de brasileiros se comoveram com as desventuras da escrava submetida à perfídia de seu dono e engrossaram o grupo dos que defendiam o fim da escravatura. Até porque Bernardo Guimarães soube impregnar de denúncia social o mais elementar uso dos arquétipos do Bem e do Mal, que sempre fascinam o grande público. Resumo Isaura é filha de uma escrava e de um feitor português de uma enorme fazenda, no interior do Rio de Janeiro. Após a morte da mãe, a menina é adotada pela fazendeira que a trata como se fosse sua própria filha. Vem daí a esmerada educação da escrava que conversa sobre todos os assuntos, toca piano, canta e sabe línguas estrangeiras. Ainda por cima, é branca. Paradoxalmente branca: Acha-se ali sozinha e sentada ao piano uma bela e nobre figura de moça (...) A tez é como marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma nuança delicada, que não sabereis dizer se é leve palidez ou cor-de-rosa desmaiada... No entanto, com a morte da fazendeira, Leôncio, seu filho, assume a propriedade e começa a perseguir obsessivamente Isaura, assediando-a com propostas indecorosas. O pai da escrava, que agora trabalhava em outra fazenda, sabedor da situação, rapta a filha e ambos vão morar no Recife. Isaura adota o nome de Elvira. Um pernambucano riquíssimo, Álvaro, a vê e se apaixona loucamente por ela. Mas, no primeiro baile a que vão juntos, Elvira é desmascarada e sua condição de escrava fugida vem à tona. Álvaro e Leôncio enfrentam-se pela posse da moça, porém esta acaba voltando á fazenda como cativa, embora resistindo a todo o assédio do cruel fazendeiro. Este então promete libertá-la desde que ela casasse com o jardineiro, um ser monstruoso, "cabeludo como um urso e feio como um macaco". Na hora do casamento, ocorre a surpresa final: Álvaro aparece na fazenda, dizendo que havia comprado todos os bens que Leôncio penhorara por estar enredado em dívidas. Entre esses bens estavam todos os escravos, inclusive a linda Isaura, que evidentemente vai se casar com Álvaro. Neste momento, Leôncio sai da sala e se suicida, encerrando a narrativa com o mais desbragado final feliz . VISCONDE DE TAUNAY (1843-1899) Vida: Alfredo d'Escragnolle-Taunay nasceu no Rio de Janeiro, no seio de uma família aristocrática e dada às artes. Seu avô paterno, Nicolau Antônio, viera da França para fundar a Academia de Belas Artes do Rio de janeiro. Seu pai, o também pintor Félix Taunay, tornara-se preceptor de d. Pedro II. Induzido pelos familiares a abraçar a carreira das armas, Alfredo cursou engenharia na Escola Militar e como segundo tenente participou da expedição que tentou repelir os paraguaios que dominavam o sul da província de Mato Grosso. A derrota militar que se seguiu, ocasionada pela falta de víveres e pelo cólera, seria retratado de forma pungente em A retirada de Laguna, relato escrito em francês, já que o futuro visconde era bilíngüe. Finda a Guerra do Paraguai tornou-se professor de geologia da Escola Militar. Em 1872, publicou Inocência, espécie de Romeu e Julieta sertanejo, certamente a sua principal obra. Foi nomeado presidente da província de Santa Catarina e depois presidente do Paraná. Em 1886, alcançou o Senado, mas por fidelidade ao Imperador, abandonou a política após a proclamação da República. Diabético, morreu na capital federal com cinqüenta e seis anos incompletos. Obras principais A retirada da Laguna (1871); Inocência (1872). Visconde de Taunay é o mais interessante dos ficcionistas do sertanismo romântico, embora tenha publicado apenas um romance dentro da referida linhagem. 3. FRANKLIN TÁVORA (1842-1888) Vida: Nasceu em Baturité, no interior do Ceará. Formou-se em Direito, na célebre Faculdade do Recife. Em 1874 mudou-se para o Rio de Janeiro e ingressou na vida burocrática onde desempenhou funções mais ou menos modestas. O gosto pela história acabou levando-o ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Morreu na pobreza aos quarenta e seis anos. Obras principais O Cabeleira (1876); O matuto (1878); Lourenço (1881). Em Franklin Távora, o regionalismo mais do que o assunto é polêmica, conforme se vê no prefácio de O Cabeleira: As letras têm, como a política, um certo caráter geográfico; mais no Norte, porém, do que no Sul, abundam os elementos para a formação de uma literatura propriamente brasileira, filha da terra. A razão é óbvia: o Norte ainda não foi invadido como está sendo o Sul de dia em dia pelo estrangeiro. (...) Temos o dever de levantar ainda com luta e esforço os nobres foros dessa região, exumar seus tipos legendários, fazer conhecidos seus nomes, suas lendas, sua poesias máscula, nova, vívida e louçã... Os desígnios do romancista não se realizaram, no entanto. No caso de seu relato mais conhecido, O Cabeleira, a intenção de realismo esgota-se na reconstituição do ambiente e na escolha de uma história de cangaço, ocorrida objetivamente no século XVIII. Nem o assunto nem a distância histórica garantiram verossimilhança à narrativa, perturbada pela contradição permanente dos sertanistas românticos: observações realistas dentro de um arcabouço exagerado e melodramático de folhetim.