EE Coronel Calhau/ EE Orlando Alves Pereira
O ROMANTISMO LITERÁRIO – 1
PROF ÁUREA CHRISTINA R LACERDA
GERAÇÃO
ROMANTISMO NO BRASIL A
PRIMEIRA GERAÇÃO
(GERAÇÃO NACIONALISTA)
A contribuição dos teóricos
europeus, o nacionalismo
ufanista pós-1822 e as viagens
para o exterior de uma jovem
intelectualidade - nascendo daí o
famoso sentimento do exílio fornecem o quadro histórico
onde aponta a primeira geração
romântica. O apogeu da mesma
ocorre entre 1836 e 1851,
quando Gonçalves Dias publica
Últimos cantos, encerrando o
período mais fértil e criativo de
sua carreira.
1. GONÇALVES DE MAGALHÃES (1811-1887)
Obras: Suspiros poéticos e saudades (1836); A confederação dos tamoios (1857)
A Gonçalves de Magalhães coube a precedência cronológica na elaboração de
versos românticos. Suspiros poéticos e saudades é a materialização lírica de
algumas idéias do autor sobre o Romantismo, encarado como possibilidade de
afirmação de uma literatura nacional, na medida em que destruía os artifícios
neoclássicos e propunha a valorização da natureza, do índio e de uma
religiosidade panteísta. No entanto, faltava a Magalhães autêntica emoção
poética para tornar efetivas suas teorias. Em sua obra ele afirma:
Meus versos são suspiros de minha alma
Sem outra lei que o interno sentimento.
Isto, porém, não encontra correspondência nela mesma. Os sentimentos são
apresentados de uma maneira retórica, freqüentemente "despoetizados" por
imagens de mau gosto:
Nas veias o sangue já não me galopa,
em sacros furores nos lábios me fervem;
A lira canora do cisne beócio,
deixei sobre a trípode.
* Canora: sonora, Beócio: ignorante
Durante anos, Gonçalves de Magalhães foi considerado o maior poeta
pátrio. Transformou-se em símbolo oficial da literatura brasileira,
merecendo inclusive grande apreço de D.Pedro II. A confederação dos
tamoios, tentativa de indianismo épico em que a prolixidade* dissolve o
lirismo, significou a crise dessa carreira triunfante.
Submetida à primeira e dura revisão crítica, com José de Alencar
denunciando o artificialismo de sua composição, a obra de Magalhães
começou a ser relegada a um plano secundário. Sob pseudônimo, o
próprio Imperador sai em defesa de seu protegido, mas os argumentos de
Alencar eram irrefutáveis. Restava-lhe a importância histórica, e esta era
incontestável. O Romantismo fora introduzido por ele:
Triste sou como o salgueiro
Solitário junto ao lago
Suspirar, suspirar...Tal é o meu fado!
* Prolixidade: redundância, exagero verbal.
2. GONÇALVES DIAS (1823-1864)
Vida: Filho de um comerciante português e de uma mulata que viviam em
concubinato, Antônio de Gonçalves Dias nasceu em Caxias, no Maranhão.
Quando o menino tinha seis anos, o pai casou-se com uma moça branca e
proibiu o filho de visitar a mãe, que se reencontraria com o filho apenas quinze
anos depois. Antônio cresceu trabalhando como caixeiro na loja do pai e teve
uma boa educação, sendo enviado com quatorze anos para Portugal. A morte
do pai, no mesmo ano, trouxe o rapaz de volta ao Maranhão, porém a
madrasta cumpriu a vontade do marido quanto ao filho e mais uma vez o
futuro poeta foi mandado para Coimbra. No início de 1845, retornou à sua
província natal, já formado em Direito. Sua origem mestiça não era evidente à
primeira vista. A sociedade de São Luís o recebeu bem e ele conheceu então
aquela que - algum tempo depois - seria o grande amor de sua vida, a jovem
Ana Amélia.
Antes da eclosão desse amor extremado, viajou para o Rio de Janeiro, onde
se radicaria. Virou professor de Latim no Colégio Pedro II e lançou, com
notável repercussão, os Primeiros cantos e os Segundos cantos. De imediato,
obteve a proteção imperial, ocupando diversos cargos de importância nas
áreas de pesquisa escolar e de busca de documentos históricos. Em visita ao
Maranhão reencontrou Ana Amélia e a pediu em casamento. A família da
moça recusou o poeta, alegando a sua origem bastarda e mulata.
Exasperado, casou-se com Olímpia Coriolana, provavelmente a primeira
mulher que encontrou depois da recusa e com a qual viveu um casamento
infeliz. Viajou muito pelas províncias do Norte e pela Europa, sempre a
serviço. Afetado pela tuberculose, tentou a cura na França. Desenganado
pelos médicos, retornou num cargueiro que naufragaria, já nas costas do
Maranhão. A única vítima do naufrágio foi o poeta, que contava então
quarenta e um anos de idade.
Obras: Primeiros cantos (1846); Segundos cantos (1848); Sextilhas de frei
Antão (1848); Últimos cantos (1851); Os timbiras (1857).
Gonçalves Dias consolidou o Romantismo no Brasil com uma produção poética
de boa qualidade. Entre os autores do período é o que melhor consegue
equilibrar os temas sentimentais, patrióticos e saudosistas com uma linguagem
harmoniosa e de relativa simplicidade, fugindo tanto da ênfase declamatória
como da vulgaridade. Pode-se dizer que o seu estilo romântico é temperado por
uma certa formação clássica, o que evita os excessos verbais tão comuns aos
poetas que lhe foram contemporâneos. No prefácio do livro de estréia,
Primeiros cantos, ele define a liberdade métrica e a variedade temática que
dominam a sua lírica:
Muitas delas (as poesias) não têm uniformidade nas estrofes, porque menosprezam
regras de mera convenção; adotei todos os ritmos de metrificação portuguesa, e usei
deles como me pareceram melhor com o que eu pretendia exprimir. Não têm unidade de
pensamento entre si, porque foram compostas em épocas diversas - debaixo de céu
diverso - e sob influência de impressões momentâneas.
Sua obra se articula em torno de três assuntos principais:
o índio
a natureza
o amor impossível
O INDIANISMO
A superioridade do autor maranhense sobre outros
escritores indianistas resulta de três fatores:
- maior conhecimento da vida aborígene;
- uso épico e lírico de um índio ainda não
deculturado pelo homem branco;
- esplêndido domínio estilístico, sobretudo na
questão do ritmo e da estrutura melódica.
Vários de seus poemas, que tratam dos primitivos
habitantes, tornam-se antológicos, entre os quais
Marabá, O canto do piaga, Leito de folhas verdes e,
principalmente, I-Juca Pirama.
I-JUCA PIRAMA
Este texto é uma espécie de síntese do indianismo de Gonçalves Dias seja pela
concepção épico-dramática da bravura e da generosidade de tupis e timbiras,
seja pela ruptura, ainda que momentânea, da convencional coragem guerreira,
seja ainda pelo belíssimo jogo de ritmos que ocorre no texto. I-Juca Pirama
significa "aquele que vai morrer" ou "aquele que é digno de ser morto". Em sua
abertura, o poeta apresenta o cenário onde transcorrerá a história:
No meio das tabas de amenos verdores,
Cercadas de troncos - cobertos de flores,
Alteiam-se os tetos de altiva nação. (...)
São todos Timbiras, guerreiros valentes!
Seu nome lá voa na boca das gentes,
Condão de prodígios, de glória e terror!
Em seguida, inicia-se um ritual antropofágico: "Em fundos vasos d'alvacenta
argila / ferve o cauim. / Enchem-se as copas, o prazer começa, / reina o
festim." O jovem prisioneiro tupi, que vai ser devorado, resolve falar antes do
desenlace, e com "triste voz" narra a sua vida desventurada.
Ao metro anterior, de dez sílabas poéticas, plástico e alegre, sucedem-se os
versos de cinco sílabas, curtos, rápidos, sincopados. Estas variações
contínuas indicam que o ritmo varia de uma parte do poema a outra,
traduzindo a multiplicidade de situações do argumento.
Meu canto de morte
Guerreiros, ouvi:
Sou filho das selvas,
Nas selvas cresci;
Guerreiros, descendo
Da tribo tupi
Da tribo pujante,
Que agora anda errante
Por fado inconstante,
Guerreiros, nasci:
Sou bravo, sou forte,
Sou filho do Norte;
Meu canto de morte,
Guerreiros, ouvi.
O índio tupi no seu canto de morte lembra o velho pai, cego e débil, vagando
sozinho, sem amparo pela floresta, e pede para viver:
Deixai-me viver! (...)
Não vil, não ignavo,*
Mas forte, mas bravo,
Serei vosso escravo:
Aqui virei ter.
Guerreiros, não choro;
Do pranto que choro;
Se a vida deploro,
Também sei morrer.
* Ignavo: preguiçoso.
O chefe timbira manda soltá-lo. Não quer "com carne vil enfraquecer os fortes".
Solto, o jovem tupi perambula pela floresta até encontrar o pai. Este, pelo
cheiro das tintas utilizadas no ritual, pelo apalpar do crânio raspado do filho, e
por algumas perguntas sem resposta, desconfia de uma terrível fraqueza
diante dos inimigos. Pede então que o rapaz o leve até a aldeia timbira. Lá
chegando, exige, em nome da honra tupi, que a cerimônia antropofágica ritual
seja completada e que o filho seja morto. Mas o chefe timbira recusa-se,
acusando o guerreiro tupi de ter chorado covardemente diante de toda a aldeia.
Neste momento, o velho cego amaldiçoa o seu descendente:
Tu choraste em presença da morte?
Na presença de estranhos choraste?
Não descende o cobarde do forte;
Pois choraste, meu filho não és!
Possas tu, descendente maldito
De uma tribo de nobres guerreiros,
Implorando cruéis forasteiros,
Seres presa de vis Aimorés. (...)
Sê maldito, e sozinho na terra;
Pois que a tanta vileza chegaste,
Que em presença da morte choraste,
Tu, cobarde, meu filho não és.
Mal termina a maldição, o velho escuta o grito de guerra do filho. Ouvindo o
rumor da batalha, os sons de golpes, o pai percebe que o filho está lutando
para manter a honra tupi, até que o chefe timbira manda seus guerreiros
pararem, pois o jovem inimigo se batia com tamanha coragem que se
mostrava digno do ritual antropofágico. Com lágrimas de alegria o velho tupi
exclama: "Este, sim, que é meu filho muito amado!"
Como chave de ouro do poema, ocorre uma transposição temporal no seu
último canto. O leitor fica sabendo que os acontecimentos dramáticos
vividos pelos dois tupis já tinham ocorrido muito tempo e que tudo aquilo era
matéria evocada pela memória de um velho timbira:
Um velho timbira, coberto de glória,
guardou a memória
do moço guerreiro, do velho Tupi!
E à noite, nas tabas, se alguém duvidava
do que ele contava,
Dizia prudente: - Meninos, eu vi!
A NATUREZA
Enquanto poeta da natureza, Gonçalves Dias canta o mar, o céu, os campos,
as florestas. No entanto, a natureza não tem um valor universal, só
merecendo ser celebrada quando simbolizava seu país. Significativamente,
ele deu a esta parte de sua obra o título de poesias americanas.
Não é de surpreender também que no espetáculo e nos contornos da
natureza brasileira, o poeta se elevasse até Deus. Assim, nacionalismo e
panteísmo se mesclam em sua lírica.
A celebração da natureza entrelaça-se também com o sentimento
saudosista. Gonçalves Dias é um homem nostálgico que lembra a infância,
os amores idos e vividos e, antes de mais nada, um homem que, na Europa,
sentira-se exilado. Por isso, a memória a todo momento o arrasta até a terra
natal. E a pátria aparece sempre como natureza: palmeiras, céu, estrelas,
várzeas, bosques e o indefectível sabiá.
Canção do exílio sintetiza genialmente esta identificação entre o país
e sua expressão física. Desde o seu surgimento, tornou-se o poema
mais conhecido do Brasil e, por derivação, o mais imitado e o mais
parodiado. Talvez seja o nosso verdadeiro hino nacional.
Contudo, se observamos este texto clássico, poderíamos argumentar
que mesmo em Portugal, (onde o poema é escrito, no ano de 1843)
há árvores e aves, bosques e várzeas. Aliás, em todos os países há
uma natureza interessante a ser cantada. Mas, para Gonçalves Dias,
é só na moldura do solo pátrio, que a natureza (brasileira) adquire um
maior valor, um valor que em nenhum outro lugar ela pode ter.
Estamos diante da essência do ufanismo romântico: minha pátria é a
melhor. Por outro lado, trata-se de uma verdade humana definitiva:
qualquer indivíduo no exílio - independente da terra natal ser boa ou
ruim - sempre guardará por ela uma amorosa e obstinada saudade.
Assim, não é de estranhar que Canção do exílio se transformasse no
nosso poema:
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar - sozinho, à noite Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar - sozinho, à noite
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá."
Mário Quintana
Minha terra não tem palmeiras...
E em vez de um mero sabiá,
Cantam aves invisíveis
Nas palmeiras que não há.
Oswald de Andrade
Não permita Deus que eu morra
Sem que volte pra São Paulo
Sem que veja a Rua 15
E o progresso de São Paulo.
Murilo Mendes
Minha tem macieiras da Califórnia
Onde cantam gaturamos de Veneza
(...)
Ai quem me dera chupar uma carambola de
verdade
E ouvir um sabiá com certidão de idade!
Casimiro de Abreu
Eu nasci além dos mares:
Os meus lares,
Meus amores ficam lá!
- Onde canta nos retiros
Seus suspiros,
Suspiros o sabiá!
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar - sozinho, à noite Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar - sozinho, à noite
Mais prazer encontro eu lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que desfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá."
Carlos Drummond de Andrade:
Um sabiá
Na palmeira, longe.
Estas aves cantam
Um outro canto
(...)
Só, na noite,
Seria feliz:
Um sabiá
Na palmeira, longe.
Joaquim Osório Duque Estrada
Do que a terra mais garrida
Teus risonhos, lindos campos têm
mais flores,
Nossos bosques têm mais vida
Nossa vida, no teu seio, mais
amores.
José Paulo Paes
Canção do Exílio Facilitada
Lá? Ah...
Vida...
Palmeira...
Sabiá...
Cá? Bah!
O AMOR IMPOSSÍVEL
A lírica amorosa de Gonçalves Dias é
marcada pelo sofrimento. Em seus
poemas, o amor raramente se realiza, é
sempre ilusão perdida, impossibilidade vital
de relacionamento. Entre a esperança e a
vivência, entre a intenção e o gesto estão
os abismos da experiência concreta. E a
experiência concreta remete para o
fracasso. "Cismar venturas e só topar
friezas", eis a delimitação desse
posicionamento. Em outro de seus versos,
um dos mais desencantados, ele desabafa:
"Amor! delírio - engano".
Apaixonar-se é, pois, predispor-se à
angústia e à solidão. O poeta confessa sua
afetividade, suplica a paixão da mulher,
mas não obtém resposta. Resta-lhe, pois, o
desespero. Em poemas como Se se morre
de amor, conseguiu dar dignidade a esse
sofrimento:
Se se morre de amor! - Não, não se morre,
Quando é fascinação que nos surpreende
De ruidoso sarau entre os festejos;
Quando luzes, calor, orquestra e flores
Assomos de prazer nos raiam n'alma (...)
Simpáticas feições, cintura breve,
Graciosa postura, porte airoso*
Uma fita, uma flor entre os cabelos,
Um quê mal definido acaso podem
Num engano d'amor arrebatar-nos.
Mas isso amor não é, isso é delírio,
Devaneio, ilusão que se esvanece
Ao som final da orquestra, ao derradeiro
Clarão, que as luzes no morrer despedem:
Se outro nome lhe dão, se amor o chamam,
D'amor igual ninguém sucumbe à perda.
Amor é vida; é ter constantemente
Alma, sentidos, coração - abertos
Ao grande, ao belo; é ser capaz d'extremos,
D'altas vitudes, té capaz de crimes!
Compreender o infinito, a imensidade,
E a natureza e Deus; gostar dos campos,
D'aves, flores, murmúrios solitários;
Buscar tristeza, a soledade, o ermo,
E ter o coração em riso e festa.
Isso é amor, e desse amor se morre! (...)
Amá-la, sem ousar dizer que amamos,
E, temendo roçar os seus vestidos,
Arder por afogá-la em mil abraços:
Isso é amor, e desse amor se morre!"
*Airoso: esbeleto, elegante
OBRAS INDIANISTAS
A SEGUNDA GERAÇÃO ROMÂNTICA
A SEGUNDA GERAÇÃO
INDIVIDUALISTA, ULTRA-ROMÂNTICA ou GERAÇÃO DO MAL DO SÉCULO
Esta geração surgiu na década de 1850, quando o
nacionalismo e o indianismo deixavam de fascinar a
juventude e iniciava-se o longo processo de
estabilidade do II Império. Por outro lado, o
desenvolvimento urbano, o nascimento de uma vida
acadêmica em São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e
Recife e, até mesmo, uma relativa sofisticação dos
estratos médios e superiores da estrutura social
brasileira possibilitaram a criação de uma lírica voltada
quase que exclusivamente para a confissão e o
extravasamento íntimo.
A nova geração foi influenciada pelo inglês Byron e pelo
francês Musset, autores ultra-românticos que haviam se
tornado os modelos universais de rebeldia moral, de
recusa à insipidez da vida cotidiana e de busca de
novas formas de sensualidade e de afeto. De sua
imitação, resultou, quase sempre, o pastiche.
Até sociedades satânicas, a exemplo das existentes na Europa, foram
fundadas. Os adolescentes que as compunham viviam pretensas orgias e
dissipações fantasiosas, que resultavam da leitura e das imaginações
pervertidas. Na verdade, a pobreza do meio e a rigidez patriarcal impediam
que este satanismo tivesse qualquer importância no contexto estético e
ideológico brasileiro.
Outro fato sempre lembrado desta geração é a dramática coincidência de
quase todos os seus integrantes morrerem na faixa dos vinte e poucos anos.
Versos soltos e alguns poemas parecem alimentar a suspeita de que esses
jovens cultivavam idéias suicidas. No entanto, todos eles - à parte o caso
mais complexo de Álvares de Azevedo - foram vitimados por doenças então
incuráveis e manifestaram grande horror perante a morte. Não se sustenta,
portanto, a idéia de um suicídio coletivo geracional.
Álvares de Azevedo
Vida: Nasceu na cidade de São Paulo e era descendente de duas ilustres
famílias. O pai ocupara importantes cargos públicos (juiz de direito; chefe de
polícia, deputado geral), tanto na capital paulista quanto no Rio de Janeiro,
para onde se transferira com a família, passando a residir em Niterói. Toda a
formação básica e secundária de Manuel Antônio Álvares de Azevedo foi feita
na capital do Império. Em 1848, ele voltou a São Paulo para cursar a
Faculdade de Direito, participando ativamente da vida acadêmica e literária de
seu tempo. Revelou-se um aluno brilhante e um colega estimado, mas o
caráter provinciano da Paulicéia, a mediocridade de sua vida social e a
incapacidade do poeta de estabelecer um relacionamento amoroso concreto o
tornaram bastante infeliz. Sentia saudades de casa, especialmente da mãe e
da irmã, e a exemplo de seus companheiros de curso consumia-se na leitura
dos autores malditos do Romantismo europeu. Este desnível entre as vidas
intensas dos europeus e a pobreza de experiências dos universitários de São
Paulo certamente o atormentava. Ele, porém, não se tornou um alienado das
coisas locais. Numa sociedade acadêmica, que reunia os colegas, proferiu duro
discurso contra a educação pública no Brasil, dizendo que ela era "um
escárneo", em particular "a instrução primária para as classes baixas".
Nas férias longas, entre o ano letivo de 1849 e 1850, os
familiares repararam no caráter acabrunhado e melancólico
do "Maneco". A leitura desenfreada dos ultra-românticos, a
solidão e o desejo insatisfeito pareciam deprimi-lo,
aproximando-o de inclinações mórbidas. No início de 1852,
a tísica se manifestou. Como disse um de seus biógrafos:
"O infeliz byroniano que durante anos declamara versos
macabros por mero esnobismo via com horror chegar a sua
morte." Neste momento dramático, escreveu alguns de seus
poemas mais desesperados. Em seguida, após curta
passagem pelo campo, na fazenda de um tio, pareceu se
recuperar, chegando a pedir transferência de Faculdade - de
São Paulo para Olinda, onde o clima seria mais propício à
tuberculose - mas uma queda de cavalo afetou-lhe a região
ilíaca. Os médicos resolveram operá-lo, obviamente sem
anestesia. Ele suportou as dores, porém tudo foi inútil: a
tísica havia destruído as imunidades de seu organismo.
Poucos dias depois morreu. Era abril de 1852 e faltavam
cinco meses para que completasse vinte e um anos de
idade. Nenhum de seus livros tinha sido publicado. E a
"glória que pressinto em meu futuro" , como ele diz em um
de seus poemas, viria após o falecimento.
Obras: Lira dos vinte anos (poemas - 1853), Noite na taverna (contos 1855), O conde Lopo (poema - 1886), Macário (poema dramático - 1855).
A obra de Álvares de Azevedo, fortemente autobiográfica, traz a marca da
adolescência, mas de uma adolescência tão dilacerada e conflituosa que
acaba por representar a experiência mais pungente do Romantismo
brasileiro, tanto do ponto de vista pessoal quanto do ponto de vista poético.
Incansável leitor, surpreendentemente culto, o jovem paulista viveu a
contradição entre o saber livresco e os seus limites existenciais. Sua
alternativa é o fingimento: "Finge um formidável conhecimento da vida", diz
dele Mário de Andrade. Em muitos poemas expressa essa "pose de
cinismo" que nasce, simultaneamente, da imitação dos ultra-românticos
europeus e da fantasia delirante. Por sorte, no seu universo lírico, os temas
se ampliam, superando o artificialismo byroniano, o que lhe assegura um
lugar privilegiado na história literária do período.
Quatro são os seus temas preferidos:
o amor
a morte
o tédio
o humor prosaico
O AMOR
É a parte menos convincente de sua lírica. A máscara satânica que tenta usar
peca pela falsidade. As orgias em que submerge, os vícios que o escravizam e
as dissipações que o arrastam para o lodo hoje provocam o riso do leitor. E
não apenas porque o jovem escritor tenha ficado, de fato, virgem dessas
vivências tresloucadas, mas porque - em seus poemas de "crimes morais e
maldições" - poucos versos têm poder de persuasão e quase nada inquieta ou
sobressalta. Veja-se o tom falso deste excerto:
E por te amar, por teu desdém, perdi-me...
Tresnoitei-me em orgias, macilento,
Brindei, blasfemo, ao vício, e da minh'alma
Tentei me suicidar, no esquecimento!
Amor e medo
No entanto, como bem observou Mário de Andrade, o autor de Lira dos
vinte anos (esse Dom Juan das aparências) acaba sendo traído pela
própria interioridade. O grande devasso, o amante cínico, revela
inconscientemente um medo obscuro das relações amorosas.
Este medo se traduz, por exemplo, através da imagem da mulher
adormecida. Numa série de poemas, a preparação erótica e a vontade
sexual do adolescente se frustram, pois ele não quer acordar ("profanar") o
objeto de seu desejo:
Ó minha amante, minha doce virgem,
Eu não te profanei, e dormes pura
No sono do mistério, qual na vida,
Podes sonhar ainda na ventura.
Em Soneto, um de seus textos melhor elaborados, Álvares de Azevedo
descreve o sono da amada e cria sutil atmosfera que passa da idealização à
sensualidade:
Pálida à luz da lâmpada sombria,
Sobre o leito de flores reclinada,
Como a lua por noite embalsamada,
Entre nuvens de amor ela dormia!
Era a virgem do mar! na escuma fria
Pela maré das águas embalada...
-- Era um anjo entre nuvens d' alvorada
Que em sonhos se banhava e se esquecia!
Era mais bela! o seio palpitando...
Negros olhos, as pálpebras abrindo...
Formas nuas no leito resvalando...
Diante disso, desse "seio palpitando", dessas "formas nuas no leito
resvalando" o que faz o poeta? Atira-se sobre a encantadora como um lobo
cheio de volúpia? Não; a timidez entrava o erotismo e ele simplesmente opta
por ficar sorrindo e chorando pelo seu "anjo":
Não te rias de mim, meu anjo lindo!
Por ti - as noites eu velei chorando,
Por ti - nos sonhos morrerei sorrindo!
Aliás, em vários momentos, quando o amor parece a ponto de se concretizar,
o escritor prefere dormir, desmaiar ou morrer: "Na tua cheirosa trança / Quero
sonhar e dormir!"; "Ah! volta inda uma vez! foi só contigo / Que à noite, de
ventura eu desmaiava"; "E no teu seio ser feliz morrendo!"; "E morra no teu
seio o meu viver!" No poema Tereza, chega a confessar explicitamente o seu
medo:
Não acordes tão cedo! enquanto dormes
Eu posso dar-te beijos em segredo...
Mas, quando nos teus olhos raia a vida,
Não ouso te fitar...eu tenho medo!
De acordo com Mário de Andrade, algumas das dificuldades de
Álvares de Azevedo com o amor nascem da velha dicotomia entre o
sexo e o sentimento. A impossibilidade de unir alma e carne segundo a tradição cultural então vigente - exaspera-o. Não existe
mulher que possa corresponder às duas exigências. Há aquelas
para o amor e há outras para os instintos. As primeiras, donzelas
virginais, são - no dizer do crítico - "inatingíveis". As segundas,
anjos caídos que cedem a pureza de seus corpos, são
"desprezíveis". E assim o poeta permanece dilacerado: à sua
timidez soma-se a ausência de uma mulher capaz de satisfazê-lo
física e espiritualmente.
A MORTE
Quando trata da morte - o aspecto mais conhecido de sua obra - pode-se
perceber com clareza as qualidades expressivas do artista. Ela é um tema
constante. O poeta a antevê, a profetiza para si próprio, não pode esquecêla. De certa maneira, fez uma opção por ela - diferentemente de outros
companheiros de geração que se desesperam ao perceber o fim - quis
morrer aos vinte anos, entregar-se à "leviana prostituta", como se vê neste
fragmento de Hinos do Profeta:
A morte, leviana prostituta,
Não distingue os amantes!....
Eu, pobre sonhador! eu, terra inculta
Onde não fecundou-se uma semente,
Convosco dormirei...
Mesmo assim, há desespero e angústia nessa entrega. Ele lembra as
coisas que vai perder, os afetos, o futuro. Lamenta-se por isso. Por outro
lado, a morte é a possibilidade de resolução de sua crise, de suas dores. Se
eu morresse amanhã cristaliza esta ambigüidade amarga:
Se eu morresse amanhã, viria ao menos
Fechar meus olhos minha triste irmã;
Minha mãe de saudades morreria
Se eu morresse amanhã!
Quanta glória pressinto em meu futuro!
Que aurora de porvir e que manhã!
Eu perdera chorando essas coroas
Se eu morresse amanhã!
Que sol! que céu azul! que doce n'alva
Acorda a natureza mais louçã*!
Não me batera tanto amor no peito
Se eu morresse amanhã!
Mas essa dor da vida que devora
A ânsia de glória, o dolorido afã*...
A dor no peito emudecera ao menos
Se eu morresse amanhã!"
Louçã: graciosa, encantadora
Afã: vontade, ânsia
No poema Lembrança de morrer, Álvares de Azevedo dá instruções sobre o
seu túmulo e sua lápide:
Quando em meu peito rebentar-se a fibra,
Que o espírito enlaça à dor vivente,
Não derramem por mim nem uma lágrima
Em pálpebra demente.
E nem desfolhem na matéria impura
A flor do vale que adormece ao vento:
Não quero que uma nota de alegria
Se cale por meu triste passamento. (...)
Descansem o meu leito solitário
Na floresta dos homens esquecida,
À sombra de uma cruz, e escrevam nela
- Foi poeta, sonhou e amou na vida.
O TÉDIO
Na segunda parte de Lira dos vinte anos, as fantasias eróticas, a avidez pelo
amor, os artifícios byronianos e mesmo a obsessão pela morte, cedem lugar
a uma espécie de cansaço existencial, o tédio.
O tédio, ou "mal du siècle", para os românticos europeus, era uma espécie
de cinismo e enfado de quem tudo viveu, tudo experimentou: sexo, bebidas,
ópio, transgressões. Mais tarde, Baudelaire diria que lera todos os livros,
amara todas as mulheres mas que sua carne permanecia triste. Esta é a
definição mais perfeita do mal do século.
Já no caso de Álvares de Azevedo, o tédio resultava da falta de vivências a
que a cidade de São Paulo o condenava. Era uma cidadezinha provinciana,
medíocre, de insípida vida noturna, sem horizontes para um rapaz sonhador.
Quase a pique de "suicidar-se de spleen", o poeta atenua os excessos ultraromânticos descendo do sublime, da atmosfera rarefeita e terrível das
grandes paixões, e entrando na verdade de suas coisas íntimas, expõe a
subjetividade sem véus imaginários. E assim, descobrimos, por fim, o que ele
realmente pensava e quem realmente ele era: um jovem tímido, inexperiente
e sequioso de amor:
Passei como Dom Juan entre as donzelas,
Suspirei as canções mais doloridas
E ninguém me escutou...
Oh! nunca à virgem flor das faces belas
Sorvi o mel nas longas despedidas...
Meu Deus! ninguém me amou!
Poucas vezes, na literatura brasileira, as confissões de um adolescente
adquiriram tanto frescor, beleza e emoção. Esta alma solitária e impotente
debateu-se entre o tédio, que o arrastava para a realidade e os ideais,
que precisava para sobreviver, como vemos nestes fragmentos de Idéias
íntimas, talvez o mais sedutor de seus poemas:
Vou ficando blasé*, passeio os dias
Pelo meu corredor, sem companheiro,
Sem ler, nem poetar... Vivo fumando.
Minha casa não tem menores névoas
Que as deste céu de inverno...Solitário,
Passo as noites aqui e os dias longos.
Dei-me agora ao charuto em corpo e alma; (...)
Não passeio a cavalo e não namoro.
Reina a desordem pela sala antiga,
Desce a teia de aranha as bambinelas*
À estante pulvurenta*. A roupa, os livros
Sobre as cadeiras poucas se confundem.
Marca a folha do Fausto um colarinho (...)
E resta agora aquela vaga sombra na parede
- Fantasma de carvão e pó cerúleo* Tão vaga, tão extinta e fumarenta
Como de um sonho o recordar incerto.
O pobre leito meu, desfeito ainda,
A febre aponta da noturna insônia.
Aqui lânguido à noite debati-me
Em vãos delírios anelando um beijo...(...)
Foram sonhos contudo. A minha vida
Se esgota em ilusões. (...)
Oh! ter vinte anos sem gozar de leve
A ventura de uma alma de donzela!
E sem na vida ter sentido nunca
Na suave atração de um róseo corpo
Meus olhos turvos se fechar de gozo! (...)
Meu pobre leito! eu amo-te contudo!
Aqui levei sonhando noites belas,
As longas horas olvidei libando*
Ardentes gotas de licor doirado.
Esqueci-as no fumo, na leitura
Das páginas lascivas do romance...(...)
E a mente errante devaneia em mundos
Que esmalta a fantasia! Oh! quantas vezes
Do levante no sol entre odaliscas,
Momentos não passei que valem vidas!
Quanta música ouvi que me encantava!
Quantas virgens amei! (...)
Parece que chorei...Sinto na face
Uma perdida lágrima rolando...
Satã leve a tristeza! Olá, meu pajem,
Derrama no meu copo as gotas últimas
Dessa garrafa negra...
Eia! bebamos!
És o sangue do gênio, o puro néctar
Que as almas de poeta diviniza,
O condão que abre o mundo das magias!
Vem fogoso cognac! É só contigo
Que sinto-me viver.(...)
E eu me esquecia...
Faz-se noite; traz o fogo e dois charutos
E na mesa do estudo acende a lâmpada...
* Blasé: entediado.
* Bambinelas: cortinas.
* Pulvurenta: empoeirada.
* Cerúleo: da cor do céu.
* Libando: bebendo.
O HUMOR PROSAICO
Um dos traços mais surpreendentes de Álvares de Azevedo é a ironia,
resultante da descoberta do risível nas coisas prosaicas. Sem qualquer
exacerbação sentimental, o poeta olha para tudo aquilo que o cerca e
penetra humoristicamente no cotidiano.
Nenhum romântico antes ou depois dele conseguiu efeitos tão engraçados e
inesperados. No mais das vezes, a ironia tem rara fineza. Em Spleen e
charutos, obra composta por seis poemas, o humor prima pela sutileza,
como nesta estrofe de Solidão:
Ó lua, ó lua bela dos amores,
Se tu és moça e tens um peito amigo,
Não me deixes assim dormir solteiro,
À meia-noite vem cear comigo.
PROSA E DRAMA
Em Macário, Álvares de Azevedo intentou criar uma obra dramática em
prosa. São cinco cenas de qualidade variável e pouco propícias à
encenação. Na peça, um jovem, Macário, viajando rumo a cidade de
São Paulo, onde vai estudar, pára numa estalagem no meio do caminho
e faz amizade com um desconhecido mais velho, que é nada menos
que o próprio Satã. Ambos iniciam então uma série de diálogos nos
quais refletem cinicamente (em especial o diabo) sobre o sentido da
vida, da morte, do amor e do sexo.
Na segunda cena, quando abandonam a estalagem e marcham para
São Paulo, ocorre o melhor momento da peça, pois Satã faz análises
hilariantes da realidade paulistana. Observe-se este diálogo entre o
estudante e o demônio:
Macário:Por acaso há mulheres ali? (Em São Paulo)
Satã: Mulheres, padres, soldados e estudantes. (...) Para falar mais claro as
mulheres são lascivas, os padres dissolutos, os soldados ébrios, os
estudantes vadios. Isso salvo honrosas exceções, por exemplo, de amanhã
em diante tu.
Macário: Esta cidade deveria ter o teu nome.
Satã: Tem o de um santo: é quase o mesmo. Não é o hábito que faz o
monge. Demais essa terra é devassa como uma cidade, insípida como uma
vila e pobre como uma aldeia. (...) Até as calçadas...
Macário: Que têm?
Satã: São intransitáveis. Parecem encastoadas* as tais pedras. As calçadas
do inferno são mil vezes melhores. Mas o pior da história é que as beatas e
os cônegos cada vez que saem, a cada topada, blasfemam tanto com o
rosário na mão que já estou enjoado.
* Encastoadas: embutidas.
Na terceira cena, na casa de Satã, já na cidade, a temática concentra-se na
questão do amor, visto como ilusão e sentimento ligado à morte. Na cena
seguinte, Macário acorda de novo na pensão, como quem acordasse de um
longo sonho, porém marcas chamuscadas no assoalho sugerem a passagem
real do diabo.
A segunda parte da peça é assinalada pela presença de um personagem
angelical (a antítese de Satã) chamado Penseroso. O artificialismo dos
diálogos e a desarticulação das cenas tornam essa parte muito inferior à
primeira. Quase no final, o puro Penseroso morre e Macário volta a se ligar
com Satã, que então conduz o rapaz a uma orgia. Não para participar da
mesma e sim para observá-la. E o que o demônio descortina para Macário
parece ser o início de Noite na taverna:
Macário: Onde me levas?
Satan: A uma orgia. Vais ler uma página da vida; cheia de sangue e vinho que importa? (...) Paremos aqui. Espia nessa janela.
Macário: Eu vejo-os. É uma sala fumacenta. À roda da mesa estão sentados
cinco homens ébrios. Os mais revolvem-se no chão. Dormem ali mulheres
desgrenhadas... umas lívidas, outras vermelhas... Que noite!
Satã: Que vida! Não é assim? Pois bem, escuta, Macário. Há homens para
quem essa vida é mais suave que a outra. O vinho é como o ópio, é o Letes*
do esquecimento... A embriaguez é como a morte...
Macário: Cala-te. Ouçamos.
Noites na Taverna
Se fôssemos cobrar verossimilhança dos contos que
compõem o livro Noite na taverna, certamente riríamos
desses sete rapazes que bebem, fumam, gritam, e enquanto a fumaça se mistura com os eflúvios da
cerveja e do conhaque - narram histórias de suas vidas
orgíacas e criminosas. Há algo de falsidade (e mesmo
de bobagem pueril) nas cenas de necrofilia, incesto,
canibalismo, assassinato e violação de todos os
códigos morais que eles vão contando, falsamente
horrorizados com o seu próprio desregramento. No
entanto, apesar de sua total improbabilidade, esses
relatos cínicos ainda hoje exercem uma sedução nos
leitores, especialmente os mais jovens, mostrando que
não se deve cobrar dos contos realismo e sim aquilo
que eles representam simbolicamente. Tendências
góticas? A partir do final do século XVIII e durante todo
o Romantismo se desenvolveu um tipo de narrativa
que ficou conhecida como gótico. Walnice Nogueira
Galvão delimitou-o assim:
O gótico invoca as potências das trevas e exerce o ocultismo, a feitiçaria, a
missa negra, a necrofilia, o culto ao demônio. Num clima onírico sepulcral
predominam o informe, o inquietante. Compõem o cenário o castelo malassombrado, o cemitério, as ruínas, a bruma, entre as imagens dos mundos
ínferos, tais como a masmorra, o porão, o túmulo. Pouco se disfarçam a
sedução da morte e do aniquilamento. A prosa tempestuosa mimetiza as
pulsões e projeções do inconsciente, às voltas com a atração pelo sacrilégio
e pela profanação.
Ora, nos relatos curtos de Álvares de Azevedo predominam a concepção
noturna da existência, a atração pela morte, o amoralismo com que se trai e
se mata, além de compulsões incestuosas e necrófilas. Ou seja, elementos
do gótico. O resultado é a criação de um mundo de sombras, onde indivíduos
- torturados por impulsos proibidos - praticam ações que revelam o lado sujo
e perverso de suas almas.
Talvez Álvares de Azevedo quisesse indagar, como disse Antonio Candido através de suas histórias macabras, perversas e até mesmo risíveis - sobre
os limites da crueldade e das possibilidades diabólicas do ser humano. Tudo
isso o aproxima do gótico e dá certa consistência aos contos que assim
ultrapassam a dimensão da falsidade melodramática* e transformam-se em
opressivo pesadelo. Como exemplo, podemos lembrar um desses relatos.
•Melodramática: que apresenta exagero sentimental e gosto pelo patético.
Obs: O nome gótico veio do primeiro romance desta tendência: O castelo
de Otranto, de Horace Walpole, cujo enredo (cheio de mistério e terror) se
desenvolve em um velho castelo gótico. Entre os autores que seguiram esta
linha encontramos Mary Shelley, com Frankenstein e Bram Stoker, com
Drácula. Também há fortes traços góticos nas obras de Edgar Allan Poe e de
Lord Byron.
CASIMIRO DE ABREU
Vida: Filho de um rico comerciante português e de
mãe brasileira, Casimiro de Abreu nasceu em Barra de
São João, no estado do Rio de Janeiro, tendo passado
a infância numa fazenda, de onde sairia apenas para
realizar seus estudos primários em Nova Friburgo.
Enviado à capital do Império pelo pai, a fim de praticar
o comércio, mostrou-se pouco apto à profissão. O pai
não desistiu e com o mesmo objetivo o enviou para
Lisboa. Casimiro tinha então quatorze anos. Após
quatro anos em Portugal, retornou ao Brasil,
entregando-se a uma vida boêmia, sem contudo largar
do comércio. A publicação de Primaveras o consagrou
nacionalmente, um ano antes de sua morte. Já
idolatrado pelo público da época, descobriu que
estava tuberculoso, vindo a falecer quase que
imediatamente, antes de completar o seu vigésimosegundo aniversário.
Obra: Primaveras (1850).
Subjetivista como Álvares de Azevedo, Casimiro de Abreu substitui as
conotações dolorosas que aquele confere à adolescência por uma visão
graciosa e deslumbrada dos tempos juvenis. Se, para o autor de Lira dos
vinte anos, a mocidade é um processo noturno de vigílias e tensões, se,
para ele, "tristes são os destinos deste século", para Casimiro de Abreu a
mesma mocidade é "a primavera da vida", processo diurno, sempre
associado a namoricos, jardins com bananeiras, borboletas e salões de
baile onde se flerta ao som de valsas langorosas.
De certa forma, sua lírica corresponde ao romance de Joaquim Manuel
de Macedo, seja na temática, seja na simplicidade da linguagem. É uma
poesia espontânea. E não raro esta espontaneidade - reforçada pelo
estilo singelo e pela atmosfera musical - cria o encantamento no leitor,
independentemente da visível superficialidade dos versos.
A rigor, o livro Primaveras articula-se em torno de três temas básicos:
o lirismo amoroso
a saudade da pátria e da infância
a tristeza da vida
A SAUDADE DA PÁTRIA E DA INFÂNCIA
Vivendo três anos em Portugal, onde elaborou boa parte de Primaveras,
Casimiro de Abreu desenvolveu o sentimento de exílio, que tanto perseguia os
românticos. Inspirado em Gonçalves Dias, escreveu uma série de poemas
impregnados de nostalgia da terra natal, denominados Canções do exílio.
Neles, contudo, não chega a alcançar o nível de seu modelo.
No entanto, não é apenas a saudade do Brasil e a correspondente sensação
de estar exilado que anima a sua lírica. O que o consagrou foi a nostalgia
(tipicamente romântica) daquelas realidades pessoais que ficam para trás: a
mãe, a irmã, o lar, a infância. Tornou-se, por excelência, o poeta da "aurora da
vida", do tempo perdido, das emoções da meninice. Mesmo sabendo que a
infância não significa o paraíso, sucumbiu à doçura dessas lembranças.
À parte isso, o poeta atrai o leitor com o ritmo fácil, a singeleza do
pensamento, a ausência de abstrações, o caráter recitativo e o tratamento
sentimental que empresta ao tema, garantindo a eternidade de pelo menos um
poema, Meus oito anos:
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
Oh! dias da minha infância!
Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã.
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!
Como são belos os dias
Do despontar da existência!
- Respira a alma inocência
Como perfumes a flor;
O mar é - lago sereno,
O céu - um manto azulado,
O mundo - um sonho dourado,
A vida - um hino d'amor!
Livre filho das montanhas,
Oh! Que saudades que tenho
Eu ia bem satisfeito,
Da aurora de minha vida (...)
De camisa aberto ao peito,
- Pés descalços, braços nus Correndo pelas campinas
À roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!
Que auroras, que sol, que vida,
Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d'estrelas,
A terra de aromas cheia,
As ondas beijando a areia
E a lua beijando o mar!
Naqueles tempos ditosos
Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo,
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!
A TRISTEZA DA VIDA
No final de uma vida breve, pressentindo a morte, o poeta aprofunda o
sentimento de tristeza - já presente em seus textos saudosistas, até
transformá-lo num sentimento quase desesperado de impotência
perante o destino, conforme se pode verificar em Livro negro, composto
por doze poemas doloridos. Deles, o mais significativo é Minha alma é
triste:
Minha alma é triste como a rola aflita
Que o bosque acorda desde o albor da aurora
E em doce arrulo que o soluço imita
O morto esposo gemedora chora.
E, como rola que perdeu o esposo,
Minh'alma chora as ilusões perdidas
E no seu livro de fanado gozo
Relê as folhas que já foram lidas."
Casimiro escreveu também um texto para teatro, Camões e Jau.
Montada em Lisboa, em 1856, às custas do pai, resultou em grande
malogro, nada acrescentando à sua obra.
FAGUNDES VARELA (1841-1875)
Vida: Luís Nicolau Fagundes Varela nasceu em Rio
Claro, Rio de Janeiro. Era filho de fazendeiros e viveu
um período no ambiente rural que mais tarde
descreveria em seus versos. O pai era magistrado e
político da província e a família teve de mudar-se
muitas vezes. A infância de Fagundes Varela foi
marcada por essas alterações contínuas de domicílio.
Bastante jovem, matriculou-se na Faculdade de Direito,
em São Paulo. Lá entrou na vida boêmia, "como um
Byron exasperado", sempre envolvido em bebedeiras,
pequenos escândalos e muitas dificuldades
financeiras. Acabou se casando com uma artista de
circo e com ele teve um filho, que logo morreria e que
constituiria a inspiração de Cântico do Calvário.
Vida: Luís Nicolau Fagundes Varela nasceu em Rio Claro, Rio de Janeiro.
Era filho de fazendeiros e viveu um período no ambiente rural que mais
tarde descreveria em seus versos. O pai era magistrado e político da
província e a família teve de mudar-se muitas vezes. A infância de Fagundes
Varela foi marcada por essas alterações contínuas de domicílio. Bastante
jovem, matriculou-se na Faculdade de Direito, em São Paulo. Lá entrou na
vida boêmia, "como um Byron exasperado", sempre envolvido em
bebedeiras, pequenos escândalos e muitas dificuldades financeiras. Acabou
se casando com uma artista de circo e com ele teve um filho, que logo
morreria e que constituiria a inspiração de Cântico do Calvário.
Fracassando o seu casamento, transferiu-se para o Recife a fim de
continuar seus estudos jurídicos. A morte de sua mulher - que ficara no Sul o trouxe de volta para a Faculdade de Direito de São Paulo. No entanto,
nunca acabou o curso. Atormentado pelo álcool e por problemas
emocionais, retornou para a fazenda dos pais. Era visto nas fazendas
próximas, caminhando sem destino, quase sempre bêbado. Em 1869,
casou-se outra vez e passou a morar em Niterói, sem que tivesse se curado
do alcoolismo. Em 1875, foi vitimado por um derrame. O surpreendente é
que nessas condições de vida (no dizer de um crítico, Varela teve a biografia
mais "romântica" de todo o nosso Romantismo) ele ainda tenha deixado
uma obra literária relativamente significativa.
Obras principais: Noturnas (1861); Vozes da América (1864); Cantos e
fantasias (1865); Cantos meridionais (1869); Anchieta ou o Evangelho nas
selvas (1875).
O crítico Alfredo Bosi afirma que Fagundes Varela é o epígono* por
excelência da poesia romântica. Isto é, um poeta que segue outros, sem
alcançar uma temática e uma expressão próprias. Outro crítico, José
Veríssimo, resumiu a obra do escritor numa frase implacável: "Deixa-nos a
impressão do já lido."
No seu livro de estréia, Noturnas, é possível identificar-se o lirismo
byroniano, à moda de Álvares de Azevedo, ou o lirismo meigo, à moda de
Casimiro de Abreu. Até o tema do índio, à la Gonçalves Dias, - que já
caíra em desuso - é retomado em Anchieta ou o Evangelho nas selvas.
Chega, inclusive, a antecipar o condoreirismo, apresentando uma visão
abolicionista em poemas como Mauro, o escravo, de 1864. Na maior parte
de seus escritos, porém, falta originalidade.
*Epígono: discípulo, seguidor menor de um grande artista menor.
A POESIA SERTANEJA
Apesar disso, mesmo os críticos mais implacáveis de Varela reconhecem os
momentos felizes de sua obra. É o caso de alguns poemas constituídos por
pequenos flagrantes da natureza e da vida campestre, elaborados numa
linguagem coloquial e sugestiva. Como nenhum outro romântico, conheceu
a fundo o universo rural brasileiro. Suas descrições parecem captar as
cores, os cheiros e os sons do cotidiano do interior, como neste fragmento
de A roça:
O balanço da rede, o bom fogo
Sob um teto de humilde sapé;
As palestras, os lundus, a viola,
O cigarro, a modinha, o café;
E depois um sorrir de roceira,
Meigos gestos, requebros de amor;
Seios nus, braços nus, tranças soltas,
Moles falas, idade de flor; (...)
Na observação de um crítico, é só no campo que Varela se sente à vontade,
pois está longe da degradação dos vícios urbanos. Em contato com a vida
rural, sua expressão poética adquire a originalidade que lhe falta no resto dos
textos. Os versos singelos e musicais evocam a todo instante a flora e a
fauna sertanejas, como em A flor do maracujá:
Pelas rosas, pelos lírios,
Pelas abelhas, sinhá,
Pelas notas mais chorosas
Do canto do sabiá
Pelo cálice de angústias
Da flor do maracujá!(...)
Por tudo o que o céu revela!
Por tudo o que a terra dá
Eu te juro que minh'alma
De tua alma escrava está!...
Guarda contigo este emblema
Da flor do maracujá. (...)
No poema As letras, que refere o velho hábito interiorano de gravar o
nome da amada no tronco de árvores, o poeta faz uma encantadora
reflexão sobre a passagem do tempo, sobre a saudade mesclada com o
desejo de reencontro, e sobre as ilusões que se perdem:
Na tênue casca de verde arbusto
Gravei teu nome, depois parti;
Foram-se os anos, foram-se os meses,
Foram-se os dias, acho-me aqui.
Mas ai! o arbusto se fez tão alto,
Teu nome erguendo, que mais não vi!
E nessas letras que aos céus subiam
Meus belos sonhos de amor perdi.
JUNQUEIRA FREIRE (1832-1855)
Vida: Nasceu em Salvador. Seus estudos primários
foram irregulares, por motivos de saúde, e aos
dezenove anos (provavelmente desgostoso com a
conduta desregrada do pai) ingressou no mosteiro de
São Bento, na capital baiana. Um ano depois - e sem
verdadeira vocação religiosa - tornou-se noviço, com o
nome de Frei Luís de Santa Escolástica Junqueira
Freire. Permaneceu no mosteiro até 1854, não
escondendo o amargor e o ressentimento que a vida
religiosa lhe despertava. Conseguindo deixar o
seminário, voltou para casa materna. Problemas
cardíacos que vinham desde a infância provocam a
sua morte no ano seguinte. Não completara ainda
vinte e três anos de idade.
Obra: Inspirações do claustro (1855)
A poesia de Junqueira Freire é totalmente autobiográfica e talvez seja isso o
que mantenha o interesse pela mesma. Procurando num mosteiro a saída
para os seus problemas pessoais (sobretudo uma espécie de atração pela
morte que o angustiava), o poeta viu malograrem as suas ilusões. A vida
clerical lhe pareceu terrível. A partir dessa experiência, ele escreveu
Inspirações do claustro, cujo valor reside mais no aspecto documental de uma
situação humana do que, propriamente, no seu significado literário. Os versos
abaixo indicam o seu desengano:
Mas eu não tive os dias de ventura
Dos sonhos que sonhei:
Mas eu não tive o plácido sossego
Que tanto procurei.(...)
Tive as paixões que a solidão formava
Crescendo-me no peito
Tive, em lugar de rosas que esperava,
Espinhos no meu leito.
A TERCEIRA GERAÇÃO: CONDOREIRA
O fim da década de 60 assinalou o início de uma crise que atingiu a classe
dominante, composta por senhores rurais e grupos de exportadores. As
primeiras indústrias, o encarecimento do escravo como mão-de-obra e a
utilização de imigrantes nas fazendas de café de São Paulo indicavam
mudanças na ordem econômica.
Por esta época, começaram a se manifestar as primeiras fraturas na até
então sólida visão das elites dirigentes. O nacionalismo ufanista começou a
ser questionado. Estudantes de Direito, intelectuais da classe média urbana,
escritores, jornalistas e militares se davam conta da existência de uma
considerável distância entre os interesses escravocratas e monarquistas dos
proprietários de terras e os interesses do resto da população. Foi então que a
literatura assumiu uma função crítica.
Antônio de Castro Alves superou o extremado individualismo dos poetas
anteriores, dando ao Romantismo um sentido social e revolucionário que o
aproxima do Realismo. O padrão poético já não é Chateaubriand ou Byron,
mas sim o francês Vitor Hugo, burguês progressista, cantor da liberdade e do
futuro.
CASTRO ALVES
Vida: Descendente de uma família tradicional e
poderosa do interior baiano - seu pai era médico,
formado na Europa - Antônio de Castro Alves
nasceu na Fazenda das Cabeceiras, perto da
cidade de Curralinho. Quando tinha sete anos, a
família mudou-se para Salvador. Lá estudou no
Colégio Abílio, que revolucionara o ensino brasileiro
pela eliminação dos castigos físicos aplicados aos
alunos. Em 1858, morreu-lhe a mãe. Seu irmão
mais velho, José Antônio, ficou muito abalado,
suicidando-se alguns anos depois. Mas já no início
de 1862, Castro Alves estava no Recife, fazendo os
preparatórios para a Faculdade de Direito, ainda
em companhia do irmão. Conheceu então a famosa
atriz portuguesa Eugênia Câmara, de quem se
tornou amante aos dezenove anos. Na Faculdade,
parecia mais interessado em agitar idéias
abolicionistas e republicanas e produzir versos (que
obtinham grande repercussão entre os colegas) do
que propriamente estudar leis.
Após concluir um drama em prosa, Gonzaga, especialmente composto para
Eugênia Câmara, seguiu com a atriz rumo a Salvador. Ali os dois
receberam espetacular consagração com a estréia da peça no Teatro São
João. Estando ele disposto a retornar ao curso de Direito, viajaram para
São Paulo, antes parando dois meses no Rio de Janeiro, onde foram
celebrados por José de Alencar e Machado de Assis. A temporada paulista
durou apenas um ano. O nome de Castro Alves tornara-se uma legenda:
ótimo declamador de seus próprios poemas, recitou O navio negreiro e
Vozes d'África sob a ovação dos estudantes. Um colega escreveu que
Castro Alves "era grande e belo como um deus de Homero". Sua vida
afetiva, no entanto, entrou em crise pelas constantes traições à orgulhosa
Eugênia Câmara. Ela terminou por abandoná-lo definitivamente. Para
esquecer a ruptura, o poeta começou a se dedicar à caça, ferindo-se
casualmente no pé, que infeccionou. Levado para o Rio, foi submetido a
uma amputação sem anestesia. Depois disso, debilitado, retornou à Bahia,
onde viveu por pouco mais de um ano, até que sobreveio a tuberculose
fatal. Morreu em fevereiro de 1871, antes de completar vinte e quatro anos.
Obras: Espumas Flutuantes (1870); A cachoeira de Paulo Afonso (1876);
Os escravos (1883); Gonzaga ou A Revolução de Minas (drama - 1875).
Sua obra se abre em duas direções:
Poesia social - causas liberais e humanitárias.
Poesia lírica - natureza e amor sensual.
POESIA SOCIAL
Castro Alves é um caso típico do intelectual convertido em
homem de ação. Não apenas realizou uma poesia humanitária,
como participou ativamente de toda a propaganda abolicionista
e republicana. Esse engajamento político muitas vezes prejudica
a sua literatura - que se torna mais denúncia do que arte embora tal problema seja secundário diante da generosidade
social do poeta.
O jovem baiano tinha consciência de sua posição e de sua
situação de letrado, e do papel que poderia exercer dentro da
sociedade. Compreendia o significado da educação num país
constituído por analfabetos, e foi o primeiro dos grandes
românticos a valorizar a imprensa, o livro e a instrução,
conforme diz no poema O livro e a América:
Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n'alma
É germe - que faz a palma,
É chuva - que faz o mar.
Castro Alves cantou todas as causas libertárias - a poesia como arma de
combate a serviço da justiça e da igualdade - mas o que ficou na memória
popular são os seus poemas abolicionistas.
A base econômica da sociedade agrária brasileira, na década de 1860,
ainda era o escravo, porém as pressões internacionais, somadas às críticas
das classes urbanas nacionais e à perspicácia de certos proprietários - que
viam a escravidão como anti-econômica - possibilitaram o surgimento das
primeiras vozes contestadoras. Castro Alves será a encarnação mais
retumbante desse protesto.
O condoreirismo
Os seus poemas sociais são conhecidos também como condoreiros. "A
praça, a praça é do povo, assim como o céu é do condor" - escreve num
de seus primeiros trabalhos. É uma metáfora exuberante: o condor voa
altaneiro e livre por sobre os Andes. Como exuberantes, indignados e
patéticos são parte considerável de seus versos. Ele quer inebriar os
jovens liberais com a força bombástica de um discurso metrificado. Quer
comover e convencer. Por isso, nem sempre se contenta em dizer o
essencial. Acaba caindo na retórica, provocada pelo excesso verbal, por
antíteses e hipérboles* em demasia e por várias imagens de mau gosto.
É possível, no entanto, compreender que o tom oratório dessas
composições tinham uma finalidade pedagógica: feitas para serem
declamadas em público, elas deviam se parecer a um discurso que
conscientizasse as massas. Daí sua redundância e sua ênfase
emocional. Mesmo assim, em vários textos condoreiros, o poeta atingiu
uma eloquência pura, vibrátil, "de poderosa sugestão visual e impressão
auditiva".
O navio negreiro e Vozes d'África se constituem nos mais soberbos
monumentos de poesia social do século XIX. E ainda que a escravidão
tenha acabado, e este tema não pertença mais a experiência atual, é
impossível ao leitor ficar indiferente diante de tamanha densidade
dramática.
* Hipérbole: figura do exagero
O navio negreiro, cujo título geral é Tragédia no mar, começa com uma longa
e belíssima descrição do oceano, até que o poeta, postado nas alturas, avista
um barco que parece navegar alegremente. Então o poeta solicita ao albatroz
("águia do oceano") que lhe dê suas asas para se aproximar da embarcação.
Ao mergulhar por sobre o navio, descobre a realidade em todo o seu horror.
As cenas que se sucedem são impressionantes: a violência opressiva dos
traficantes; as apóstrofes* exasperadas do poeta, tanto a Deus quanto às
forças mais grandiosas da natureza; o repúdio à bandeira nacional que cobre
tanta iniqüidade; e, por fim, o apelo aos heróis do Novo Mundo para que dêem
um basta à espantosa tragédia: Era um sonho dantesco...O tombadilho
Que das luzernas* avermelha o brilho,
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros...estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite
Horrendos a dançar...
Negras mulheres suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães.
Outras, moças... mas nuas, espantadas
No turbilhão de espectros arrastadas
Em ânsia e mágoa vãs.
E ri-se a orquestra, irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doidas espirais...
Se o velho arqueja... se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala
E voa mais e mais...
Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali ...
Um de raiva delira, outro enlouquece...
Outro, que de martírios embrutece,
Cantando, geme e ri...
No entanto o capitão manda a manobra...
E após, fitando o céu que se desdobra
Tão puro sobre o mar,
Diz, do fumo entre os densos nevoeiros:
"Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar." (...)
Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus...
Ó mar! por que não apagas
Com a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noite! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão! (...)
E existe um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e covardia!...
E deixa-a transformar nessa festa
Em manto impuro de bacante* fria!...
Meu Deus! Meu Deus! mas que bandeira é esta
Que impudente* na gávea tripudia?! ...
Silêncio!... Musa! Chora, chora tanto,
Que o pavilhão se lave no teu pranto...
Auriverde pendão* de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra,
E as promessas divinas da esperança...
Tu, que da liberdade após a guerra
Foste hasteado dos heróis na lança,
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!... (...)
...Mas é infâmia demais... Da etérea plaga*
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo...
Andrada! arranca este pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta de teus mares!"
* Apóstrofe: interpelação direta a alguém
* Luzernas: clarões
* Bacante: mulher devassa
* Impudente: sem pudor
* Pendão: bandeira
* Plaga: região, país
OUTROS POEMAS
Curioso é o poema narrativo A cachoeira de Paulo Afonso, composto por
uma série de quadros, onde se fundem o lírico e o social. É a história de
amor entre dois escravos, Lucas e Maria, que termina com o suicídio de
ambos na cachoeira. Uma história melodramática, mas pontilhada de
excepcionais descrições da natureza brasileira, como esse Crepúsculo
sertanejo:
A tarde morria. Nas águas barrentas
As sombras das margens deitavam-se longas!
Na esguia atalaia* das árvores secas
Ouvia-se um triste chorar de arapongas.
A tarde morria! Mais funda nas águas
Lavava-se a galha do escuro ingazeiro...
Ao fresco arrepio dos ventos cortantes
Em músico estalo rangia o coqueiro. (...)
A tarde morria! Dos ramos, das lascas,
Das pedras, do líquen, das heras, dos cardos*
As trevas rasteiras com o ventre por terra
Saíam, quais negros, cruéis leopardos.
Somente por vezes, dos jungles* das bordas,
Dos golfos enormes daquela paragem,
Erguia a cabeça, surpreso, inquieto,
Coberto de limos - um touro selvagem.
Cardo: planta espinhosa, Jungle: mata espinhosa
Um Verdadeiro Defensor dos Escravos?
Nas últimas décadas, tornou-se moda acusar Castro Alves de ter apenas
piedade do escravo e de não vê-lo integrado no processo produtivo. Sendo
assim, seu condoreirismo estaria impregnado dos preconceitos da burguesia
branca contra o negro. Tal visão é ridícula. Basta atentarmos para poemas
como Saudação a Palmares e Bandido Negro. No último, há inclusive um
refrão verdadeiramente revolucionário para uma época em que o escravo que
levantasse o braço contra o seu senhor era punido com ferocidade:
Cai, orvalho de sangue do escravo,
Cai, orvalho, na face do algoz.
Cresce, cresce, seara vermelha,
Cresce, cresce, vingança feroz.
POESIA LÍRICA: O AMOR SENSUAL
O lirismo amoroso de Castro Alves distingue-se das
concepções dominantes na poesia romântica brasileira. Ao
contrário de Gonçalves Dias, não considera o amor como
impossível de ser realizado. Tampouco encobre a
sensualidade, como Casimiro de Abreu. Muito menos
apresenta a relação física como perversão fantasiosa, a
exemplo de Álvares de Azevedo. Em Castro Alves, as
ligações sentimentais são apresentadas de uma maneira
viril, sensual e calorosa.
Mário de Andrade observou que tanto o homem quanto o
artista alcançam a plena realização sexual. Disso resulta
uma lírica original por explorar o erotismo sem subterfúgios e
sem culpa.
Ninguém como Castro Alves sabe cantar as excelências das
uniões corpóreas, ninguém como ele sabe falar de homens e
mulheres reais. Até mesmo sua linguagem - freqüentemente
retórica ao tratar de temas condoreiros - torna-se simples e
coloquial na poesia amorosa.
A partir de um esplêndido domínio da metáfora, o poeta cria
imagens de rara beleza e intenso sentido de plasticidade,
conforme se pode observar em versos como: "Sob a chuva
noturna dos cabelos..." Ou: "Minha Maria é morena / Como
as tardes de verão." Ou ainda, referindo-se a uma de suas
amadas: "Lírio do vale oriental, brilhante! / Estrela vésper do
pastor errante!" Encantador e de singelo erotismo é o poema
Adormecida, onde galhos e ramos assediam amorosamente
a jovem que dorme numa rede:
Uma noite, eu me lembro... Ela dormia
Numa rede encostada molemente...
Quase aberto o roupão...solto o cabelo
E o pé descalço do tapete rente.(...)
De um jasmineiro os galhos encurvados,
Indiscretos entravam pela sala,
E de leve oscilando ao tom das auras*,
Iam na face trêmulos - beijá-la
Era um quadro celeste!... A cada afago
Mesmo em sonhos a moça estremecia...
Quando ela serenava... a flor beijava-a ...
Quando ela ia beijar-lhe... a flor fugia... (...)
* Aura: vento brando.
Em Os anjos da meia-noite, o poeta inventa a imagem quase surrealista de
um seio solto a flutuar:
Como o gênio da noite que desta desata
O véu de rendas sobre a espádua nua,
Ela solta os cabelos...Bate a lua
Nas alvas dobras de um lençol de prata...
O seio virginal que a mão recata,
Embalde o prende a mão...cresce, flutua... (...)
O POETA E A MORTE
Antes de sua doença, Castro Alves já experimentara o velho tema romântico da
morte na juventude e o triste lamento que esta intuição do fim nele despertava.
O abismo entre os seus sonhos e a sombria realidade que impede a realização
dos mesmos aparece em Mocidade e Morte, um de seus poemas fundamentais
e, além de tudo, profético, conforme se pode ver nas primeiras estrofes:
Oh! Eu quero viver, beber perfumes
Na flor silvestre, que embalsama os ares;
Ver minha alma adejar* pelo infinito,
Qual branca vela n'amplidão dos mares.
No seio da mulher há tanto aroma...
Nos seus beijos de fogo há tanta vida...
- Árabe errante, vou dormir à tarde
À sombra fresca da palmeira erguida.
Mas uma voz responde-me sombria:
Terás o sono sob a lájea* fria.
Adejar: esvoaçar
Lájea: pedra do túmulo
SOUSÂNDRADE (1833-1902)
Vida: Joaquim de Sousa Andrade nasceu em Alcântara, Maranhão. De família
abonada, viajou muito desde jovem, percorrendo inúmeros países europeus.
Formou-se em Letras pela Sorbonne. Depois faz o curso de Engenharia. Em
1870, conheceu várias repúblicas latinoamericanas. A partir de 1871, fixou
residência em Nova Iorque, onde mandou imprimir suas Obras poéticas. ....
Em 1884, lançou a versão definitiva de seu O Guesa, obra radical e
renovadora. Morreu abandonado e com fama de louco.
Obras: Obras poéticas e O Guesa
Considerado em sua época um escritor extravagante, Sousândrade acaba
reabilitado pela vanguarda paulistana (os concretistas) como um caso de
"antecipação genial" da livre expressão modernista.
Criador de uma linguagem dominada pela elipse, por orações reduzidas e
fusões vocabulares, foge do discurso derramado dos românticos. Seu aspecto
inovador inclui também o uso de latinismos (palavras latinas), helenismos
(palavras gregas), arcaísmos (palavras fora de uso) e outras invenções
pessoais: metáforas complexas e aliterações, onomatopéias e criações
gráficas, etc. Trata-se de um poeta experimental, que surge como um corpo
estranho dentro de sua época literária.
O sol ao pôr-do-sol (triste soslaio!)...o arroio
Em pedras estendido, em seus soluços
Desmaia o céu d'estrelas arenoso
E o lago anila seus lençóis d'espelho...
Era a Ilha do Sol, sempre florida
Ferrete-azul, o céu, brando o ar pureza
E as vias-lácteas sendas odorantes
Alvas, tão alvas!... Sonoros mares, a onda
d'esmeralda
Pelo areal rolando luminosa...
As velas todas-chamas aclaram todo o ar.
O GUESA
Sua obra mais perturbadora é O Guesa, poema em treze cantos, dos quais
quatro ficaram inacabados. A base do poema é a lenda indígena do Guesa
Errante. O personagem Guesa é uma criança roubada aos pais pelo deus
do Sol e educado no templo da divindade até os 10 anos, sendo
sacrificado aos 15 anos, após longa peregrinação pela "estrada do Suna".
Na condição de poeta maldito, Sousândrade identifica seu destino pessoal
com o do jovem índio. Porém, no plano histórico-social, o poeta vê no
drama de Guesa o mesmo dos povos aborígenes da América, condenando
as formas de opressão dos colonialistas e defendendo uma república
utópica.
Cosmopolita, o escritor deixou quadros curiosos como a descrição do
Inferno de Wall Street, onde vê o capitalismo como doença.
Observe-se, por outro lado, que os seus achados poéticos mais felizes
coexistem com trechos ininteligíveis, retóricos e pretensiosos.
O ROMANCE ROMÂNTICOI - ORIGENS
Os romances dos autores românticos europeus como Victor Hugo,
Alexandre Dumas, Walter Scott e outros tornaram-se populares no Brasil
através de sua publicação em jornais, depois de 1830, criando no público o
gosto por um gênero ainda desconhecido entre nós.
Tanto na Europa quanto nas traduções brasileiras, essas narrativas eram
primeiramente publicadas na imprensa, na forma de capítulos diários ou
semanais, aumentando de maneira extraordinária a tiragem dos periódicos.
Os leitores não escondiam seu entusiasmo pelo desenvolvimento das
histórias, seduzidos pela sucessão de acontecimentos trepidantes, pelas
emoções desenfreadas, pela linguagem acessível e pela ausência de
qualquer abstração intelectual.
Tais romances receberam o nome de folhetins. Ao escrever um folhetim, o
artista submetia-se às exigências do público leitor e dos diretores de jornais.
O francês Eugène Sue chegou a ressuscitar um personagem porque os
leitores não haviam se conformado com sua morte. Ou seja, o que
determinava o desenvolvimento e o desfecho de uma narrativa era o gosto
popular. Desta forma, ao criar um folhetim o escritor se sujeitava aos valores
culturais e ideológicos do público, que desejava histórias melodramáticas e
alienadas da realidade.
Por razões econômicas, quase todos os ficcionistas do período passaram a
produzir primeiro para a imprensa. Mesmo alguns dos maiores novelistas do
século XIX, como Dostoievski e Machado de Assis, se viram compelidos a
lançar suas obras em fascículos. Todavia, eles não aceitavam a concepção
folhetinesca da narrativa, mantendo sua independência estética. Outros,
mais interessados na venda e na popularidade subordinavam seus textos à
estrutura típica do folhetim, que é a seguinte:
Harmonia
· felicidade
· ordem social
burguesa
Desarmonia
· conflito
· desordem
· crise da
sociedade
burguesa
Harmonia final
· reestabeleciment
o da felicidade
· reordenação
definitiva da
sociedade
burguesa, com o
triunfo de seus
valores
Com o tempo, os ficcionistas passaram a utilizar uma série de truques
narrativos, repetidos até a exaustão. Exemplo disso são os conflitos mais
óbvios e recorrentes, vividos pelos protagonistas, e suas soluções quase
sempre idênticas:
· a falta de dinheiro - o pobre casa com a rica e vice-versa, movido
apenas pelo amor; ou um deles recebe grande herança de parente
desconhecido, etc.
· a ausência de identidade - aparecem amuletos, retratos, objetos ou
sinais corporais que provam o que se deseja provar, geralmente a origem
nobre ou burguesa de um plebeu.
· a inexistência de testemunhos - surgem personagens, muitas vezes
vindos das sombras, que ouvem conversações secretas ou recebem
confissões proibidas, e que então confirmam uma identidade perdida ou
inculpam alguém por um crime cometido.
Como regra geral, no último capítulo, após intensos tormentos, maldade e
desolação, os obstáculos são removidos e o amor vence. Em vários
romances, contudo, a ordem social é mais forte que a paixão e os
amantes acabam destruídos pelas conveniências e pelos preconceitos.
De qualquer maneira, o final de um folhetim tem sempre um caráter
apoteótico e desmedido, seja na felicidade, seja na dor.
O sucesso do folhetim europeu, em jornais brasileiros, foi resultado da
emergência de um novo público leitor, composto basicamente por estudantes e
mulheres. Era um público urbano, mas não raro procedente do campo: em
geral, filhos e esposas de senhores rurais que haviam se estabelecido na
Corte, depois da Independência.
As mensagens sentimentais libertadoras dos folhetins serviram como uma luva
às necessidades daquela gente asfixiada pelas regras intolerantes de uma
sociedade economicamente agrária e culturalmente arcaica. E isso estimulou o
aparecimento de vulgares adaptações dos relatos românticos, feitas por
escritores de segunda categoria. Teixeira e Sousa, em 1843, publicou O filho
do pescador, tornando-se o pioneiro desse subgênero.
No entanto, em 1844, veio à luz A moreninha, de Joaquim Manuel de
Macedo. Pelo enredo melhor articulado, pelo registro do ambiente carioca e
pela sutil harmonização entre amor juvenil e preceitos conservadores, esta
narrativa ultrapassava a dimensão de simples cópia de folhetins europeus. Sob
certos aspectos, estava nascendo o romance brasileiro.
OS ROMANCISTAS ROMÂNTICOS
JOAQUIM MANUEL DE MACEDO (1820-1882)
Vida: Nasceu em Itaboraí (RJ), filho de uma família de posses.
Jovem ainda, formou-se em Medicina, a qual não praticaria,
seduzido pela carreira literária, pelo magistério (foi preceptor dos
filhos da princesa Isabel e professor de História no colégio Pedro
II) e pela política (tornou-se deputado pelo Partido Liberal em
várias legislaturas), além de fazer constantes incursões pelo
jornalismo. Foi o primeiro escritor brasileiro a conhecer grande
popularidade, deixando uma obra bastante vasta de mais de
quarenta títulos. Morreu no Rio de Janeiro.
Obras principais: A moreninha (1844); O moço loiro (1845);
Memórias do sobrinho de meu tio(1867); A luneta mágica (1869)
A importância de Joaquim Manuel de Macedo resulta de uma
percepção do próprio escritor: o público leitor nacional,
centralizado na capital federal e devorador de folhetins europeus,
estava disposto a aceitar um romance adaptado a cenários
brasileiros, desde que a conservado o modelo de enredo das
narrativas inglesas e francesas.
Além disso, o escritor deu-se conta de que precisava vencer a barreira
moral - imposta pela estrutura patriarcalista - que não via com bons olhos a
explosão de sentimentos naquelas histórias que afirmavam o direito da
paixão sobre a obediência e sobre a hierarquia social. A adaptação que
Macedo fez, portanto, era uma necessidade, podendo ser assim resumida:
Romance brasileiro=
(Romance romântico europeu + cenários brasileiros + valores patriarcais)
O produto desse esforço foram relatos desprovidos de grande valor
artístico, mas que possibilitavam ao leitor várias identificações. Tropeçavase a todo instante em ruas, praças, praias e outras paisagens conhecidas.
Aqui e ali, sob algum disfarce, topava-se com uma figura típica da
sociedade carioca (fluminense, se dizia então). Um nome era lembrado, um
costume coletivo evidenciado, de tal forma que a alegria do reconhecimento
tornava-se contínua - como se, atualmente, alguém descobrisse o seu
mundo e a si próprio num filme ou numa telenovela.
Outro fator de identificação resulta do processo de abrandamento do folhetim
europeu. Embora o tema predileto de Macedo fosse o amor, as aventuras
sentimentais que imaginou não possuíam nem a violência nem o velado
amoralismo das histórias dos romances europeus de então. Afinal, aqui era o
Brasil, país em que a burguesia não tinha expressão e a ideologia patriarcal
dominava completamente os espíritos.
Afetos sim, mas afetos mantidos nos limites do decoro, para não ferir os
leitores, nem com a tragédia, nem com a revolta. Mais açúcar do que sangue.
Em vez de paixões intempestivas, respeitáveis namoros que, passando pelo
noivado, terminam obviamente no casamento.
Não por casualidade, na obra de Macedo os impulsos íntimos dos enamorados
sempre se enquadram nas normas da família patriarcal. Nada de vulcões, nada
de protestos, nada de desrespeito. O universo pré-capitalista brasileiro ainda
não podia conviver com a liberdade sentimental. Até os vilões sabem adaptarse às conveniências sociais. Como disse um crítico, só praticam a vilania na
medida em que o enredo assim o exige. Quer dizer, o mundo narrativo de
Macedo não tem abismos.
Por isso, não devemos procurar no simpático "Dr. Macedinho" (assim o
tratavam) reflexões adultas ou conflitos comovedores. Tudo nele é
relativamente raso. Satisfaz-se com o que vê e vê apenas as aparências. E,
enquanto colecionador de aparências, é um cronista razoável dos hábitos, da
moda, dos tiques e - num certo sentido - da mediocridade das classes altas e
médias urbanas, retratadas numa ótica bastante ingênua.
A importância histórica O crítico Antônio Candido diz, com ironia, que
Macedo parece ceder "a um irresistível impulso de tagarelice". Tagarelice
comprovada na quantidade de sua produção: em pouco mais de trinta anos de
carreira, escreveu dezoito romances, quinze peças de teatro, dois livros de
poemas e sete volumes de variedades. Mesmo assim, forneceu as bases para
a criação do romance brasileiro. Ao focalizar os costumes patriarcais,
inventariou as dificuldades e os fuxicos próprios dos afetos juvenis,
invariavelmente centrados no namoro e na promessa de casamento, e acabou
mostrando (sem teor crítico), a pequenez de nossa vida urbana.
Acima de tudo, a sua importância na história literária advém do fato de
conquistar os leitores para uma ficção voltada para temas e cenários locais,
abrindo caminho a escritores de maior significado.
A Moreninha até hoje é a sua obra mais conhecida. Apesar da superficialidade
da trama, há no texto um tom alegre e descompromissado.
A MORENINHA
Resumo
O estudante Filipe convida seu amigo e também estudante, Augusto, para
um fim de semana em sua casa, na ilha de Paquetá. Augusto é famoso
pela inconstância em relação à namoradas. Filipe aposta que desta vez
ele se apaixonará por uma de suas primas. Na ilha, Augusto descobre a
adolescente Carolina (a Moreninha), irmã de Filipe, que lhe desperta
sentimentos contraditórios.
Em seguida, defendendo-se da acusação de leviano com as donzelas,
explica a dona Ana, avó da jovem, o motivo de sua volubilidade. Quando
tinha treze anos estava brincando na praia com uma linda e desconhecida
menina. Na ocasião, aparecera um rapazinho, dizendo que o pai estava
prestes a morrer. As crianças visitam o moribundo e, constatando a
pobreza da família, dão-lhe o dinheiro que possuíam. O doente pede um
objeto pessoal de cada um: Augusto entrega-lhe o camafeu da gravata, a
garota um anel. Os objetos são embrulhados em pedaços de pano e
cosidos por sua esposa. Depois, o moribundo entrega a cada um a jóia do
outro, dizendo que eles se amariam e no futuro se tornariam marido e
mulher. Portanto, o rapaz ficara preso a esta promessa juvenil.
O jogo entre o juramento do passado e o amor do presente - pois,
obviamente, Augusto acaba gostando de Carolina - se alterna com
brincadeiras marotas, erotismo negaceado, vinganças adolescentes,
bilhetes secretos, problemas nos estudos, proibições paternas, etc. Tudo é
bastante pueril e inocente, embora se possa perceber nessa ciranda de
namoricos um retrato aproximado dos folguedos sentimentais permitidos na
época. No fim da narrativa, Carolina entrega a Augusto o pacotinho
contendo o camafeu: ela era a menina da praia. Assim, o namoro pode ser
concretizado, sem que o estudante quebre a promessa feita cinco anos
antes.
JOSÉ DE ALENCAR (1829-1877)
Vida: Filho de tradicional família da elite cearense, José Martiniano de
Alencar nasceu em Mecejana, no interior do Ceará. Seu pai, homem culto,
liberal extremado, participou de várias revoluções, como a chefiada por
Frei Caneca, em 1817, e a Confederação do Equador, em 1824, exercendo
também cargos políticos importantes, como o de senador do Império. O
menino viveu, portanto, em um ambiente familiar intelectualizado e
favorável à formação cultural. Tinha nove anos quando se mudou com os
pais para a Corte (Rio de Janeiro), onde fez seus estudos primários,
seguindo depois para São Paulo com o objetivo de concluir o secundário e
matricular-se em Direito, curso no qual se formou em 1851, com vinte e
dois anos de idade.
De volta à Corte, trabalhou como advogado e jornalista. Em 1856, sob
pseudônimo de Ig, teceu duras críticas ao poema Confederação dos
tamoios, de Gonçalves de Magalhães, que, por seu turno, foi defendido
pelo próprio Imperador, também sob pseudônimo. No mesmo ano, Alencar
publicou seu romance de estréia, Cinco minutos. Em 1857, lançou no jornal
O Diário do Rio de Janeiro, sob a forma de capítulos, o folhetim O guarani,
que teve uma repercussão jamais conhecida por qualquer outro escritor até
então no país. Com trinta e cinco anos, casou-se com a sobrinha do
Almirante Cochrane, herói da Independência. O casal teve quatro filhos.
Obras principais:
Romances urbanos: Cinco minutos (1856); A viuvinha
(1857); Lucíola (1862); Diva (1864); A pata da gazela (1870);
Sonhos d'ouro (1872); Senhora (1875); Encarnação (1877).
Romances regionalistas ou sertanistas: O gaúcho (1870);
O tronco do ipê (1871); Til (1872); O sertanejo (1875);
Romances históricos: As minas de prata (1862); Alfarrábios
(1873); A guerra dos mascates (1873)
Romances indianistas: O guarani (1857); Iracema (1865);
Ubirajara (1874)
Estas categorias comprovam a amplitude geográfica, histórica
e social do projeto literário de José de Alencar. Sua ambição
era desmedida: cogitou fazer aqui o que Balzac fizera na
França, ou seja, um painel gigantesco dos múltiplos aspectos
da realidade nacional. Quis construir o romance brasileiro, a
partir de um projeto que abrangesse a totalidade da nação,
tanto na sua diversidade física-geográfica quanto em seus
aspectos sócio-culturais; tanto em suas origens históricas
gloriosas quanto nos mitos dos heróis fundadores da
nacionalidade.
Regiões, história, costumes e mitos: eis a sua fórmula.
A LITERATURA COMO ALMA DA PÁTRIA
Em conseqüência, a idéia chave para a compreensão da obra de Alencar
talvez esteja na sua célebre frase: "A literatura nacional que outra coisa é
senão a alma da pátria?" Ou seja, cabe ao texto literário expressar a nação.
Ele é o espelho no qual os brasileiros devem reconhecer-se como povo e
como unidade cultural e territorial. Nele, os leitores desse país jovem, (que
ainda não tivera nem sua geografia, nem sua alma, nem seus costumes
registrados) poderiam encontrar uma identidade, uma auto-imagem
favorável.
A LINGUAGEM BRASILEIRA
Mais tarde, Alencar percebeu que, para criar de fato o romance nacional
não bastava apenas o uso explícito da temática brasileira e "cor local". Era
preciso também tomar posição diante da questão da linguagem. Romper
com os cânones estilísticos da literatura portuguesa passou a ser, para ele,
um imperativo. Sem essa ruptura não se fundaria uma estética
verdadeiramente autóctone. Por isso, ele foi atacado sistematicamente por
gramáticos e escritores portugueses.
O esforço máximo de Alencar em torno da criação dessa linguagem brasileira
ocorreu em Iracema. Entre os aspectos mais significativos que ali encontramos
destacam-se:
- A utilização de períodos curtos, sintéticos, vinculando a prosa à concisão
expressiva da poesia lírica. A isso se acrescenta a intensa musicalidade e o
ritmo inovador da frase. Justifica-se assim a designação da narrativa como um
"verdadeiro poema em prosa".
- Um estilo que se vale de inumeráveis comparações e metáforas, usadas na
narração, nas descrições e nos diálogos. O estilo metafórico representaria uma
espécie de tradução para o vernáculo nacional das formas básicas de
expressão indígena, centrada em analogias e referências ao mundo natural.
- As comparações sempre vinculadas a elementos da paisagem física e animal
do ambiente tropical brasileiro, sublinhando a dicção nacionalista do escritor.
- O uso permanente de vocábulos indígenas, obrigando o autor a explicá-los
através de numerosas notas ao pé de página.
UM PAINEL INCOMPLETO DO PAÍS
Na celebração exaltada do nacional está a grandeza, mas também o
principal problema do espelho alencariano. O Brasil que ele mostra tende
à idealização da realidade humana e social. É um espelho opaco, que
não reflete nem as mazelas da escravidão nem a brutalidade das
camadas senhoriais. Reflete quase tão somente as luzes fulgurantes do
trópico, e o destemor, a generosidade e o altruísmo de sua gente.
Assim, as imagens que aparecem nos romances de Alencar, em regra,
são positivas e idealizadas. Elas transmitem uma certa sensação de
irrealidade e, às vezes, nos parecem retorcidas e falsas. Correspondem
menos aos fundamentos românticos da época e mais à necessidade das
elites letradas apresentarem o país sob uma ótica benigna e
autoelogiosa. Mesmo assim, em várias obras, o autor cearense consegue
ultrapassar os limites ideológicos que o aprisionavam à sua época,
revelando qualidades de grande ficcionista.
ROMANCES URBANOS
Numa Corte em que a imitação de costumes europeus convivia com a
mediocridade da vida cotidiana, Alencar percebeu a existência de uma
tensão: "a luta entre o espírito local (rasteiro, provinciano, patriarcal) e a
invasão da cultura estrangeira (modismos românticos, paixões extremadas,
etc.) ", como bem observa Roberto Schwarz.
O Rio de Janeiro - na metade do século XIX - era uma capital limitada e
pouco cosmopolita e, portanto, insuficiente para um romancista seduzido
pela idéia de grandeza. O autor cearense viu-se, pois, obrigado a inventar
histórias complicadas, conversões mirabolantes, renúncias sublimes,
amores violentos, etc., para sobrepô-los à pobreza humana e intelectual da
sociedade brasileira de então.
Alencar tenta retratar este conflito entre a vulgaridade nativa e o
sublime universo romântico. Contudo, suas narrativas acabam não se
definindo entre a estrutura do folhetim e a percepção pré-realista do
universo urbano brasileiro. São tão contraditórias quanto a realidade
que procuram refletir.
Assim, em muitas de suas ficções, o aspecto folhetinesco supera
completamente o registro da existência comum, do que resulta o
aspecto quase inverossímil de personagens e acontecimentos. No
entanto, duas narrativas permaneceram como modelares e ainda hoje
merecem ser lidas, seja por sua relativa complexidade psicológica, seja
pela novidade de incorporarem a questão econômica aos
relacionamentos afetivos.
Nestes relatos, Alencar - além de traçar alguns de seus melhores
"perfis femininos" - relaciona o drama dos indivíduos com o organismo
social. Em Lucíola a impossibilidade de união entre dois grupos sociais
distintos, o popular e o senhorial. Em Senhora o casamento por
interesse, um dos poucos instrumentos de ascensão na sociedade
brasileira da época.
LUCÍOLA
Resumo
Paulo, jovem bacharel pernambucano, escreve cartas à senhora G. M.,
para narrar-lhe a história de seu relacionamento com uma cortesã, já que
o assunto não poderia ser exposto oralmente, dada a presença da neta
da destinatária, uma moça inocente de apenas dezesseis anos. Nestas
cartas conta que, recém chegado de Olinda, conhecera uma jovem e bela
mulher, Lúcia, apaixonando-se à primeira vista por ela. Só mais tarde um
amigo iria informá-lo de que Lúcia exercia a alta prostituição, sendo
famosa por certas excentricidades, como vender todas as jóias que
recebia de presente e jamais aceitar ser a amante exclusiva de alguém.
Já abalado com a terrível revelação, Paulo se deprime ainda mais ao
presenciar o espetáculo que Lúcia promove na casa de Sá, um homem
dado a orgias. Lúcia exibe-se nua sobre uma mesa, imitando as cenas
libertinas dos quadros que decoram as paredes da casa. Paulo sente, ao
mesmo tempo, raiva, piedade e paixão pela cortesã mas, ao sair para o
jardim da casa, reencontra-a e obtém da mesma a promessa de nunca
mais repetir a cena. Em seguida, os dois declaram-se apaixonados e
terminam se amando sobre a relva.
A partir de então, Lúcia abandona a profissão e Paulo passa a sustentá-la
em nível modesto. O relacionamento entre os dois , entretanto, continua
muito complicado. O rapaz percebe-se fraco para enfrentar as pressões da
sociedade e a jovem, por seu turno, não se considera merecedora de tal
afeto, vendo objetivamente os terríveis impedimentos sociais colocados
diante de ambos.
Após uma injustificada crise de ciúmes de Paulo, Lúcia enfim conta-lhe
sua vida anterior, revelando que se prostituíra para ajudar sua família, de
classe média, mas duramente empobrecida durante uma epidemia de
febre amarela. Expulsa de casa pelo pai, trocara mais tarde seu verdadeiro
nome, Maria da Glória, pelo de Lúcia, nome de uma amiga sua, morta de
tuberculose. Depois de passar um ano na Europa, retornara ao Brasil,
descobrindo que seus pais já tinham falecido. Internara, então, sua última
parente, a irmã Ana, num colégio e seguira a profissão de cortesã.
Tempos depois, abandonando a prostituição, Lúcia busca Ana no
internato e as irmãs passam a viver juntas. Paulo tenta novamente
conquistar o amor da jovem, mas esta - embora correspondendo aos
sentimentos do rapaz - recusa-se ao relacionamento, alegando que para
destruir a sua condição de prostituta, precisava renunciar inclusive a
seus sentimentos. Em seguida, pede a Paulo que se case com a irmã,
porém este, desesperado, se nega a realizar o pedido. Subitamente,
Lúcia desmaia, revelando-se a sua gravidez: estava esperando um filho
do amante. O feto, contudo, morre no ventre materno. Dias depois,
Lúcia faz Paulo jurar que seria um legítimo pai para Ana, e , em
seguida, também morre.
Ao encerrar a correspondência dirigida à senhora G. M., Paulo informalhe que - conforme a promessa - servira de pai para Ana, que se casara.
ROMANCES INDIANISTAS
Os romances de temática indianista são três: O guarani (que Alencar
preferia classificar como romance histórico), Iracema e Ubirajara. Todos
apresentam um mesmo substrato estético e ideológico:
· Forte influência de relatos de Chateaubriand (Atala) e, em especial, de
Fenimore Cooper (O último dos moicanos), embora Alencar tivesse
consciência de que suas obras eram diferentes, conforme ele próprio
afirmou:
Cooper considera o indígena do ponto de vista social, e na descrição dos
seus costumes foi realista; apresentou-o sob o aspecto vulgar.
N´O Guarani é um ideal que o escritor intenta poetizar, despindo-o da crosta
grosseira de que o envolveram os cronistas, e arrancando-o ao ridículo que
sobre ele projetam os restos embrutecidos da quase extinta raça.
· A ação narrativa transcorre no passado remoto: O guarani e Iracema, no
século XVII, e Ubirajara no período anterior ao descobrimento.
· A apresentação de heróis inteiriços e modelares. Se o romancista chegou
de fato a estudar certas particularidades da cultura indígena, a exemplo da
língua, dos valores religiosos e de alguns costumes, os personagens destas
obras, em sua psicologia e em suas ações, são verdadeiros cavaleiros
medievais, perdidos em bravias florestas, com um destino épico a cumprir.
· Acima de tudo, os índios são os heróis da nascente nacionalidade póscolonial. Através desses guerreiros audaciosos e sem mácula (Peri, Jaguarê,
Poti) e dessa mulher disposta a qualquer sacrifício (Iracema), os leitores do
século XIX podiamm se orgulhar de suas supostas origens americanas e de
sua ancestral nobreza.
· A poetização da vida aborígene, em contraponto - na sagaz observação de
Nelson Werneck Sodré - com o silêncio absoluto sobre o papel do negro na
formação social brasileira. Da mesma forma que a Independência não incluiu
a abolição da escravatura em seu processo, os artistas da primeira geração
romântica a ignoraram o problema dos negros. Assim, a temática indianista
desempenhou o papel de compensação às misérias do presente histórico
desses escritores.
· Por outro lado e paradoxalmente - como mostrou Alfredo Bosi - não foi o
índio rebelde o celebrado por Alencar mas sim o índio que "entrou em íntima
comunhão com o colonizador". Esta conciliação - diz o crítico - "violava
abertamente a história da ocupação portuguesa", feita, como todos sabemos,
de violência e destruição dos primitivos habitantes. Por isso, a exaltação dos
índios ocorre somente quando os mesmos perdem a sua identidade e os seus
valores, integrando-se (sempre na condição de súditos) à cultura dos
conquistadores brancos. No caso de Iracema, soma-se ainda o viés patriarcal
da época no elogio do comportamento da indígena feito de submissão,
conformismo e renúncia.
· Tanto O guarani quanto Iracema podem ser designados como romances
fundadores, ou seja, obras ficcionais que representam metaforicamente o
início de um mundo e / ou de uma raça. No primeiro esta intenção é mais ou
menos velada, embora a hipotética sobrevivência do casal Peri-Ceci, no final
do romance, expresse (como mito) a fusão étnica que alicerçaria o novo país.
Já em Iracema (anagrama de América) esta junção simbólica entre
conquistadores e conquistados é explícita. Desta forma, Moacir, o filho da
índia com o português Martim Soares expressa, simbolicamente, o início da
raça cearense.
· No seu conjunto, os romances de temática indígena de José de Alencar
apresentam méritos inegáveis. Iracema resiste à passagem do tempo pela
espetacular força de seu estilo poético. Ubirajara - o único relato em que não
ocorre o encontro do branco com o índio - apresenta uma trama envolvente,
repleta de aventuras e de observações curiosas sobre os costumes nativos.
Mesmo O guarani - em que pese sua falsidade social e psicológica - tem um
enredo trepidante que deixa o leitor quase sem fôlego.
O GUARANI
Resumo
No início do século XVII, um dos fundadores do Rio de Janeiro, o fidalgo
português D. Antônio de Mariz, em protesto contra a dominação espanhola
(1580-1640), estabelece-se em plena floresta, construindo um verdadeiro
solar medieval junto a um rochedo inexpugnável. Vive com sua mulher, o
filho, D. Diogo, a filha, Cecília e uma mestiça, Isabel, apresentada como
sobrinha, mas que na realidade é sua filha natural. Junto à casa dos Mariz,
vive um bando de mais ou menos quarenta aventureiros. Estes homens
entram no sertão, fazendo o contrabando de ouro e pedras preciosas e
deixando um percentual para D. Antônio.
Logo em seguida à chegada da nobre família portuguesa, um jovem e
hercúleo cacique, Peri, salva Cecília de enorme pedra prestes a desabar
sobre ela. Ao receber o agradecimento dos brancos pelo gesto, (exceto da
mulher de D. Antônio, que abomina índios), Peri abandona sua tribo e passa
a viver junto a eles, numa pequena choupana. Desta maneira, o indígena
confirma uma visão que tivera com Nossa Senhora, a qual lhe ordenara que
a servisse. E Cecília (a quem Peri chama de Ceci) tinha as mesmas feições
da Virgem Maria. Era a ela, portanto, que o índio devia obediência e
proteção.
Em princípio, Ceci manifesta um pouco de medo e repugnância pelo guarani.
Este, entre outras façanhas, captura uma onça viva para mostrá-la a sua Iara
(senhora). Também desce ao fundo de um penhasco, tomado por répteis e
cascavéis, para apanhar um estojo com uma jóia da heroína. Apoiada pelo pai,
que percebera a nobreza do índio ("É um cavalheiro europeu no corpo de um
selvagem"), a jovem começa a simpatizar com seu estranho protetor.
Entre os aventureiros que vivem sob a égide dos Mariz, dois merecem
destaque. Álvaro de Sá, rapaz de impulsos nobres e gestos superiores e que
ama respeitosamente Ceci, embora, por seu turno, seja amado por Isabel. E o
antigo frade carmelita, Angelo di Lucca - hoje Loredano - que abandonara o
hábito depois de se apossar de um mapa de riquíssimas minas de prata,
pertencente a um moribundo. Homem cruel e decidido, quer, antes de alcançar
as hipotéticas minas, possuir Ceci, pela qual professa um desejo animalesco.
Simultaneamente, por um terrível equívoco (que aliás não lhe causa nenhum
trauma), D. Diogo, o filho de D. Antônio, mata a filha do cacique dos aimorés,
pensando se tratar de um animal. Os aimorés ("povo sem pátria e sem religião")
querem vingança, exigindo em troca a vida da doce Ceci. Desejada
impuramente por Loredano e perseguida pelos ferozes aimorés, quem poderia
salvá-la de tantas adversidades?
Peri revela então a extensão de sua fidelidade aos portugueses. À medida em
que centenas de aimorés iniciam o cerco final ao casarão, o herói desobedecendo a sua "senhora" - parte para o acampamento dos inimigos e
após derrubar vários deles, é preso e levado para o ritual antropofágico. Na
hora da cerimônia, ingere poderosa dose de curare, um veneno terrível. Assim,
quando os selvagens o devorassem, morreriam todos. Desta forma, Peri
propõe o genocídio dos índios para que os brancos continuassem a viver
livremente.
No entanto, quando o veneno já corrói as entranhas do bravo guerreiro, Álvaro
de Sá irrompe de surpresa no acampamento, com alguns amigos, e o resgata.
Peri volta para Ceci mais morto do que vivo, mas a heroína do romance (já se
sentido afetivamente ligada ao índio) exige que ele tente se salvar.
Cambaleante, Peri vaga pela floresta até encontrar o antídoto para o curare.
Quanto ao pérfido ex-padre, Loredano, acaba sendo desmascarado pelo herói,
do mesmo modo que os seus principais asseclas. No final da narrativa, por
causa de seus crimes e de sua monstruosidade moral, arderá em uma
fogueira.
O cerco dos aimorés torna-se cada vez mais terrível. Álvaro morre ao buscar
víveres na floresta, confessando antes à Isabel que lhe retribuía a paixão. Peri
consegue recuperar o corpo do rapaz. Desesperada, Isabel pede que o índio o
deposite em seu quarto. Depois, fecha todas as frestas do quarto e asfixia-se
com a fumaça de resinas aromáticas, morrendo por amor, na cena mais bela
do romance.
Sem alternativa de resistência, D. Antônio chama o índio e diz que, se este
se tornasse cristão, lhe confiaria a filha para que tentasse levá-la à
civilização. O herói responde: "Peri quer ser cristão!", e ajoelha-se diante do
fidalgo que o batiza.
Enquanto as flechas incendiárias dos aimorés transformam a casa-forte num
inferno, Peri pula o precipício - que cercava o casarão - com o auxílio de um
galho de árvore, levando Ceci adormecida por uma bebida soporífera.
Rapidamente alcança o rio Paquequer onde escondera uma canoa. Ouve-se
uma grande explosão: D. Antônio colocara fogo no paiol e todos, os
remanescentes brancos e centenas de aimorés desaparecem, numa
espécie de apocalipse.
Ao acordar, Ceci chora muito a morte dos parentes e diz querer o índio para
sempre a seu lado, na cidade. Peri rejeita a idéia de morar na civilização,
porém a jovem não pode mais viver sem ele e, aproveitando-se de uma
parada para descanso, corta as amarras da canoa.
Estão agora sozinhos, e como Adão e Eva, no começo do mundo, prontos
para o amor. Eis quando uma grande enxurrada os surpreende (Alencar
está atento aos preconceitos de seus leitores). O casal refugia-se em cima
de uma palmeira, mas as águas continuam subindo. Em um último gesto
heróico, Peri arranca a palmeira (incluindo raízes e tudo), transformando-a
em canoa. O índio e a jovem branca são arrastados, então, pela correnteza.
Em direção ao quê? Da morte? Do início da felicidade conjugal? Da simbólica
construção de um novo mundo nos trópicos? O que acontece após o grande
dilúvio? O leitor que decida. Observe-se a antológica cena final do romance:
Então passou-se sobre esse vasto deserto d'água e céu uma cena estupenda,
heróica, sobre-humana; um espetáculo grandioso, uma sublime loucura.
Peri alucinado suspendeu-se aos cipós que se entrelaçavam pelos ramos das
árvores já cobertas d'água, e com esforço desesperado, cingindo o tronco da
palmeira nos seus braços hirtos, abalou-o até as raízes.
Três vezes os seus músculos de aço, estorcendo-se, inclinaram a haste
robusta; e três vezes o seu corpo vergou, cedendo à retração violenta da
árvore, que voltara ao lugar que a natureza lhe havia marcado.
Luta terrível, espantosa, louca, desvairada; luta da vida contra a matéria; luta
do homem contra a terra; luta da força contra a imobilidade.
Houve um momento de repouso em que o homem, concentrando todo o seu
poder, estorceu distensão horrível.
Ambos, árvore e homem, embalançaram-se no seio das águas: a haste
oscilou; as raízes desprenderam-se da terra já minada profundamente pela
torrente.
A cúpula da palmeira, embalançando-se graciosamente, resvalou pela flor
d'água como um ninho de garças ou alguma ilha flutuante, formada pelas
vegetações aquáticas.
Peri estava de novo sentado junto de sua senhora quase inanimada; e,
tomando-a nos braços, disse-lhe com um acento de ventura suprema:
- Tu viverás!...
Cecília abriu os olhos e, vendo seu amigo junto dela, ouvindo ainda suas
palavras, sentiu o enlevo que deve ser o gozo da vida eterna.
-- Sim?...murmurou ela; viveremos!...lá no céu, no seio de Deus, junto daqueles
que amamos! (...) Sobre aquele azul que tu vês, continuou ela, Deus mora no
seu trono, rodeado dos que o adoram. Nós iremos lá, Peri! Tu viverás com tua
irmã, sempre!...
Ela embebeu os olhos nos olhos de seu amigo, e lânguida reclinou a loura
fronte.
O hálito ardente de Peri bafejou-lhe a face.
Fez-se no semblante da virgem um ninho de castos rubores e lânguidos
sorrisos: os lábios abriram como as asas purpúreas de um beijo soltando o vôo.
A palmeira arrastada pela torrente impetuosa fugia...
E sumiu-se no horizonte...
IRACEMA
Nos primórdios da colonização, o português Martim Soares, perdido na mata,
encontra abrigo junto ao pajé dos tabajaras, Araquém. A filha deste, Iracema,
apesar de ser uma espécie de sacerdotisa, se apaixona pelo branco e o
protege das investidas do guerreiro Irapuã, terminando por fugir com Martim
para o lado dos potiguaras, chefiados por Poti. Esses, ao contrário dos
tabajaras, eram aliados dos portugueses. Iracema e Martim vivem o amor nas
florestas e praias do Ceará. A guerra dos tabajaras e os franceses afasta
Martim e seu amigo, Poti, de Iracema. Ao regressar, encontra a índia às portas
da morte, ainda que tenha gerado uma criança, filho de Martim, Moacir, cujo
nome significa o filho do sofrimento. Iracema, exaurida, morre e o branco leva a
criança rumo à civilização.
Veja-se o exemplo dos múltiplos recursos líricos e rítmicos que presidem a
linguagem de Iracema. A começar pela chegada do barco de Martim:
Verdes mares bravios de minha terra natal, onde canta a jandaia nas frondes
da carnaúba;
Verdes mares, que brilhais como líquida esmeralda aos raios do sol nascente,
perlongando as alvas praias ensombradas de coqueiros;
Serenai, verdes mares, e alisai docemente a vaga impetuosa, para que o barco
aventureiro manso resvale à flor das águas.
Onde vai aflouta jangada, que deixa rápida a costa cearense, aberta ao fresco
terrala grande vela?
Onde vai como branca alcíone buscando o rochedo pátrio nas solidões do oceano?
Ou, ainda, a famosa descrição metafórica da heroína:
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da
graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque
como seu hálito perfumado.
ROMANCES HISTÓRICOS
A exemplo dos romances indianistas, dos quais são muito próximos, os romances
históricos apresentam como características:
- A ação localizada no passado colonial
- Uma intenção simbólica, pois devem, no plano literário, representar poeticamente
(isto é, miticamente), as nossas origens e a nossa formação como povo. Porém, em
geral, o relato histórico romântico (Walter Scott, Alenxandre Dumas) tende a
sublinhar apenas um conjunto de peripécias escassamente verossímeis, deixando
os fatos sociais e concretos do passado em segundo plano. Alencar não foge à
regra
- Assim, os episódios "históricos" que sustentam vagamente os romances
alencarianos (a descoberta de minas, a guerra dos Mascates, etc.) não passam de
pretexto para as mais frenéticas e improváveis aventuras.
ROMANCES REGIONALISTAS (OU SERTANISTAS OU DE TEMÁTICA
RURAL)
Os chamados romances regionalistas ou sertanistas (na verdade, romances
de temática rural) parecem, à primeira vista, nascer da nostalgia do autor em
relação ao rústico mundo interiorano, onde passara a infância, conforme se
pode observar nesta passagem de O sertanejo:
Quando te tornarei a ver, sertão da minha terra, que atravessei há muitos
anos, na aurora serena e feliz da minha infância? Quando tornarei a respirar
tuas auras impregnadas de perfumes agrestes, nas quais o homem comunga
a seiva dessa natureza possante?
Contudo, são razões de ordem ideológica que predominam na elaboração
destas narrativas. No prefácio de um romance urbano, Sonhos d'ouro, Alencar
explica o que pretendia ao revelar o interior do País:
Onde não se propaga com rapidez a luz da civilização que de repente cambia
a cor local, encontra-se ainda em sua pureza original, sem mescla, esse viver
singelo de nosso país, tradições, costumes e linguagem, com um sainete* todo
brasileiro.
Desta afirmativa e da leitura dos quatro romances sertanistas (O sertanejo, O
gaúcho, O tronco do ipê e Til) pode-se chegar a duas conclusões:
a) A condição brasileira (isto é, o cerne da nação), na sua forma mais pura e
singela, localiza-se no mundo rural.
b) A extensão geográfica dos romances (do sertão ao sul do país, passando por
fazendas fluminenses) indica que a ânsia de Alencar em abranger o núcleo
básico do território nacional corresponde ao desejo das elites imperiais (das
quais o autor é o principal intérprete) em integrar todas as regiões ao corpo de
uma nação centralizada e unificada. **
Significativo sob este ângulo é o elogio, em O gaúcho, da pretensa dimensão
monarquista e anti-separatista dos chefes da Revolução Farroupilha.
Ora, como o autor está interessado em mostrar, acima de tudo, a unidade do
país, os aspectos originais da vida regional reduzem-se a algumas descrições
poéticas da natureza, a alguns costumes típicos e à capacidade heróica
/aventureira dos protagonistas, os quais parecem representar, de maneira mais
ou menos primitiva, à bravura e a generosidade do homem rural brasileiro.
Ao se tornar o porta-voz artístico da unificação nacional, Alencar acaba
tendendo a uma literatura que apenas celebra os encantos rurais, sem analisálos, enquanto no plano do enredo a estrutura convencional de folhetim impõe-se
completamente.
Observe-se ainda que a linguagem mantém o padrão culto urbano, pouco
valorizando as particularidades lingüísticas de cada região enfocada.
* Sainete: gosto, sabor.
As estruturas do folhetim, o predomínio da ação sobre os caracteres, o
nacionalismo ufanista e a visão idealizada da existência - que compõem a
obra de Alencar - não fascinam mais os leitores. Sob este ângulo, seus
romances pertencem a outra época, desgastaram-se com o passar do tempo e
oferecem dificuldades de leitura, sobretudo aos jovens. Não obstante, por
várias razões, o autor cearense continua tendo uma importância histórica
extraordinária:
· Consolidou o romance brasileiro ao escrever movido por um sentimento de
missão patriótica (durante toda a sua carreira, parece que nada mais quis
senão descobrir a essência da nacionalidade.)
· Discutiu incessantemente a questão da autonomia de nossa literatura,
procurando eliminar as influências portuguesas sobre a mesma (ainda que às
vezes caísse em padrões franceses e ingleses).
· Preocupou-se em construir um painel, o mais abrangente possível, da
realidade brasileira. Seu esforço de totalização fracassou, é verdade. Contudo,
a idéia de um romance, ou de um conjunto de romances, capazes de
representar a nação (ou o povo) ainda encontraria eco nos escritores do
século XX, como Mário de Andrade, Antônio Callado e João Ubaldo Ribeiro,
entre outros.
· Foi o primeiro ficcionista a perceber a vastidão e a diversidade do país,
intuindo algumas especificidades regionais e abrindo um filão (a narrativa de
temática rural) que continua presente na ficção contemporânea.
· Nos momentos mais felizes (Iracema, Senhora e Lucíola), alcançou a análise
psicológica, quase à maneira realista, além de mostrar o peso da sociedade nas
relações pessoais.
· Problematizou a questão da língua brasileira e ele próprio criou uma
linguagem literária original, muitas vezes de grande densidade poética.
· Em muitos de seus romances demonstrou um esforço estético, uma "vontade
de forma", uma capacidade de elaboração artística que não encontramos em
nenhum outro prosador do período.
Por todos estes motivos, José de Alencar pode ser considerado o fundador do
romance brasileiro.
OUTROS SERTANISTAS (OU REGIONALISTAS)
Os romances de temática rural de José de Alencar abriram um rico veio para o
surgimento de um grupo de romancistas também denominados sertanistas (ou
regionalistas). São escritores preocupados em revelar o Brasil agrário,
distanciado do litoral, com seus costumes específicos e seus protagonistas que
oscilam entre a ingenuidade psicológica e a prepotência patriarcal.
O ponto de partida dessa literatura é geralmente uma visão nacionalista,
mesclada à estrutura narrativa do folhetim e à busca de certa autenticidade
poética ou documental na fixação da vida interiorana. Há uma intenção realista,
inclusive, mas é um realismo que se detém em exterioridades: descrições da
natureza, algo do acento lingüístico, dos costumes e dos valores morais da
região. Esta procura da realidade concreta é prejudicada, no entanto pela
construção totalmente romântica e melodramática dos personagens.
1. BERNARDO GUIMARÃES (1825-1884)
Vida: Nasceu em Ouro Preto, onde passou a infância e
os primórdios da adolescência, indo depois para São
Paulo estudar Direito. Foi colega de Álvares de Azevedo
e na faculdade tinha fama de boêmio e satírico, tendo
inclusive produzido uma lírica (Cantos da solidão)
identificada com o satanismo byroniano e com
humorismo. Também escreveu poemas pornográficos
que obtiveram muito sucesso na época Foi nomeado
juiz no interior de Goiás, onde mostrou seu lado boêmio
até ser exonerado da função. Passou rapidamente pelo
Rio de Janeiro, voltou a Ouro Preto, casou-se e se
tornou professor secundário. A publicação de A escrava
Isaura, em 1875, garantiu-lhe prestígio nacional, a
ponto do próprio Imperador visitá-lo na antiga capital
mineira. Morreu aos cinqüenta e nove anos.
Obras principais O ermitão do Muquém (1864); O
garimpeiro (1872); O seminarista (1872); A escrava
Isaura (1875).
Nenhum autor expressou tão amplamente a tendência sertanista como
Bernardo Guimarães. Vivendo, alguns anos, no interior (oeste de Minas e sul
de Goiás), conheceu-o bem, descrevendo-o com certa minúcia e com um estilo
mais ou menos trivial, pontilhado por algumas falas pitorescas da região.
A exemplo dos demais ficcionistas de temática rural, suas narrativas variam
entre um modesto realismo e o melodrama romântico mais inverossímil. Quando
a primeira tendência domina, ele escreve um romance aceitável, O seminarista;
quando o folhetim impera, seus relatos tornam-se risíveis, caso de O garimpeiro
e A escrava Isaura.
A ESCRAVA ISAURA
Este é um dos livros cuja importância se situa fora da literatura, pela incrível
recepção que obteve e por sua importância na luta abolicionista.. Milhares de
brasileiros se comoveram com as desventuras da escrava submetida à perfídia
de seu dono e engrossaram o grupo dos que defendiam o fim da escravatura.
Até porque Bernardo Guimarães soube impregnar de denúncia social o mais
elementar uso dos arquétipos do Bem e do Mal, que sempre fascinam o grande
público.
Resumo
Isaura é filha de uma escrava e de um feitor português de uma enorme
fazenda, no interior do Rio de Janeiro. Após a morte da mãe, a menina é
adotada pela fazendeira que a trata como se fosse sua própria filha. Vem daí
a esmerada educação da escrava que conversa sobre todos os assuntos,
toca piano, canta e sabe línguas estrangeiras. Ainda por cima, é branca.
Paradoxalmente branca:
Acha-se ali sozinha e sentada ao piano uma bela e nobre figura de moça (...)
A tez é como marfim do teclado, alva que não deslumbra, embaçada por uma
nuança delicada, que não sabereis dizer se é leve palidez ou cor-de-rosa
desmaiada...
No entanto, com a morte da fazendeira, Leôncio, seu filho, assume a
propriedade e começa a perseguir obsessivamente Isaura, assediando-a
com propostas indecorosas. O pai da escrava, que agora trabalhava em
outra fazenda, sabedor da situação, rapta a filha e ambos vão morar no
Recife. Isaura adota o nome de Elvira. Um pernambucano riquíssimo,
Álvaro, a vê e se apaixona loucamente por ela. Mas, no primeiro baile a que
vão juntos, Elvira é desmascarada e sua condição de escrava fugida vem à
tona.
Álvaro e Leôncio enfrentam-se pela posse da moça, porém esta acaba
voltando á fazenda como cativa, embora resistindo a todo o assédio do cruel
fazendeiro. Este então promete libertá-la desde que ela casasse com o
jardineiro, um ser monstruoso, "cabeludo como um urso e feio como um
macaco". Na hora do casamento, ocorre a surpresa final: Álvaro aparece na
fazenda, dizendo que havia comprado todos os bens que Leôncio penhorara
por estar enredado em dívidas. Entre esses bens estavam todos os
escravos, inclusive a linda Isaura, que evidentemente vai se casar com
Álvaro. Neste momento, Leôncio sai da sala e se suicida, encerrando a
narrativa com o mais desbragado final feliz .
VISCONDE DE TAUNAY (1843-1899)
Vida: Alfredo d'Escragnolle-Taunay nasceu no Rio de Janeiro, no
seio de uma família aristocrática e dada às artes. Seu avô
paterno, Nicolau Antônio, viera da França para fundar a Academia
de Belas Artes do Rio de janeiro. Seu pai, o também pintor Félix
Taunay, tornara-se preceptor de d. Pedro II. Induzido pelos
familiares a abraçar a carreira das armas, Alfredo cursou
engenharia na Escola Militar e como segundo tenente participou
da expedição que tentou repelir os paraguaios que dominavam o
sul da província de Mato Grosso. A derrota militar que se seguiu,
ocasionada pela falta de víveres e pelo cólera, seria retratado de
forma pungente em A retirada de Laguna, relato escrito em
francês, já que o futuro visconde era bilíngüe.
Finda a Guerra do Paraguai tornou-se professor de geologia da
Escola Militar. Em 1872, publicou Inocência, espécie de Romeu e
Julieta sertanejo, certamente a sua principal obra. Foi nomeado
presidente da província de Santa Catarina e depois presidente do
Paraná. Em 1886, alcançou o Senado, mas por fidelidade ao
Imperador, abandonou a política após a proclamação da
República. Diabético, morreu na capital federal com cinqüenta e
seis anos incompletos.
Obras principais A retirada da Laguna (1871); Inocência (1872).
Visconde de Taunay é o mais interessante dos ficcionistas do
sertanismo romântico, embora tenha publicado apenas um
romance dentro da referida linhagem.
3. FRANKLIN TÁVORA (1842-1888)
Vida: Nasceu em Baturité, no interior do Ceará. Formou-se
em Direito, na célebre Faculdade do Recife. Em 1874
mudou-se para o Rio de Janeiro e ingressou na vida
burocrática onde desempenhou funções mais ou menos
modestas. O gosto pela história acabou levando-o ao
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Morreu na
pobreza aos quarenta e seis anos.
Obras principais O Cabeleira (1876); O matuto (1878);
Lourenço (1881).
Em Franklin Távora, o regionalismo mais do que o assunto
é polêmica, conforme se vê no prefácio de O Cabeleira:
As letras têm, como a política, um certo caráter geográfico;
mais no Norte, porém, do que no Sul, abundam os
elementos para a formação de uma literatura propriamente
brasileira, filha da terra. A razão é óbvia: o Norte ainda não
foi invadido como está sendo o Sul de dia em dia pelo
estrangeiro. (...)
Temos o dever de levantar ainda com luta e esforço os nobres foros dessa
região, exumar seus tipos legendários, fazer conhecidos seus nomes, suas
lendas, sua poesias máscula, nova, vívida e louçã...
Os desígnios do romancista não se realizaram, no entanto. No caso de seu
relato mais conhecido, O Cabeleira, a intenção de realismo esgota-se na
reconstituição do ambiente e na escolha de uma história de cangaço,
ocorrida objetivamente no século XVIII. Nem o assunto nem a distância
histórica garantiram verossimilhança à narrativa, perturbada pela
contradição permanente dos sertanistas românticos: observações realistas
dentro de um arcabouço exagerado e melodramático de folhetim.
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Romantismo, Estudo Geral