CARTOGRAFANDO RECONTEXTUALIZAÇÕES PEDAGÓGICAS NO
ENSINO DO DIREITO: COMUNIDADES QUILOMBOLAS E PLURALISMO
JURÍDICO
Ana Clara Correa Henning (Ms Educação - UFPel,
mestranda Direito - PUCRS e Professora do Curso de
Direito da Faculdade Anhanguera de Pelotas)
CAPES e FUNADESP
PALAVRAS-CHAVE: Cartografia. Recontextualização Pedagógica. Ensino Jurídico.
Comunidades Quilombolas.
Introdução
Cartografar:
representar
territorialidades.
Pedagógicas,
antropológicas,
econômicas, históricas, filosóficas. E também jurídicas, sob a perspectiva de que o
direito possui uma dimensão simbólica, que constitui e é constituída. Proponho, aqui,
que a maneira pela qual apreendemos determinado sistema jurídico, o método ou
métodos que aplicamos em nosso quotidiano para compreendê-lo, traduzem-se em
mapas que são, ao mesmo tempo, resultado de um certo pensamento e
instrumentos de produção desse mesmo pensamento.
Nessa esteira, a concepção moderna do direito está historicamente
condicionada a um paradigma advindo do embate entre a dogmática cristã e a
racionalidade de pensamento, construído entre os séculos XVI e XIX. O século XVIII,
especialmente, presenciou uma profunda mudança epistemológica em nossa maneira
de construir ciência, cujo método de investigação produzia verdades, garantia
certezas e impunha a neutralidade do pesquisador. Daí a percepção jurídicopositivista sobre a norma estatal: regramentos indiscutíveis, cuja aplicação é
realizada por um intérprete neutro, seguro de seu raciocínio lógico formal.
Essa maneira de representar o direito subjaz ao seu ensino tradicional, em
especial aquele desenvolvido pelas academias. Ele estabelece saberes legítimos,
reconhecendo-os nas fontes jurídicas oficiais e centralizando-os na figura do
professor. Este, detentor do conhecimento, frequentemente desconsidera qualquer
tipo de regra que não aquela estatal, preferencialmente escrita e coercitiva.
Hoje, entende-se necessário repensar o formalismo daí resultante, a fim de
enriquecer a compreensão do direito e de seu ensino com o reconhecimento de
inúmeras variáveis. Cada vez mais, atentamos para a coexistência de diferentes
culturas, para a necessidade de convivência harmônica entre pessoas e grupos
sociais. O direito - como artefato social que é – advém de relações de poder local e
historicamente situadas. Reconhecer este substrato é considerar as múltiplas
realidades que contribuem para a sua formação.
A importância do estudo do tema, assim, uma dimensão transdisciplinar,
reunindo diversas áreas do saber tais como: educação, direito, antropologia,
sociologia, história, filosofia, economia, entre outras indicações possíveis. A proposta
aqui é a de que são possíveis modificações em nossa epistemologia jurídica,
percebendo o direito de maneira mais aberta a outros conhecimentos que não
apenas aqueles advindos da estrita aplicação da letra da lei. A cultura jurídica, por
tanto tempo moldada por critérios eurocêntricos, hoje começa a levar em
consideração práticas e realidades diferenciadas.
Por outro lado, a necessidade de conjugarmos a teoria com a prática abre
inúmeras possibilidades, tal como a experiência etnográfica em comunidades
quilombolas objetivando cartografar a forma como tais agrupamentos sociais
elaboram e organizam seu próprio direito e de que maneira este é ensinado entre
seus membros. Os dados auferidos podem contribuir para uma recontextualização de
nossas práticas educativas, de conteúdos ministrados, alcançando, mesmo, a
concretização curricular em parceria com as próprias comunidades e nossos
discentes.
Necessário, portanto, pensar em uma nova forma de conceituar o direito e de
ensiná-lo, mais flexível e compreensível para os cidadãos. No final de tudo, o que
buscamos é a compreensão maior de que a vida não pode ser desperdiçada na
estagnação, na rigidez de pensamento, na indiferença quanto ao resto de nós.
Acredito firmemente que é para isto que o ensino jurídico deve se voltar. E me
identifico com Murilo Mendes, quando se compara a uma “chama com dois olhos
andando, sempre em transformação” (MENDES, 2001, p. 69).
Desenvolvimento
Mapas possuem a finalidade de auxiliar o viajante a encontrar os lugares que
procura. Traçam caminhos, apontam obstáculos, indicam distâncias. Enfrentam um
dilema vital, que é o da impossibilidade, por um lado, de espelhar o território com
absoluta fidelidade e, por outro, trazer elementos suficientes para guiar o raciocínio
do interessado até o destino pretendido. Pressupõem escolhas, portanto:
Os mapas, junto a qualquer cultura, sempre foram, são e serão formas de
saber socialmente construído [...]. São imagens carregadas de julgamentos
de valor. Não há nada de inerte e passivo em seus registros. Como
linguagem, os mapas conjugam-se com a prática histórica, podendo revelar
diferentes visões de mundo. Carregam, outrossim, um simbolismo que pode
estar associado ao conteúdo neles apresentado. Constituem um saber que é
produto social, ficando atrelado aos processos de poder (MARTINELLI, 2009,
p. 08).
Ao observar um mapa cartográfico, percebe-se que da escala1 eleita para a
representação do território sob estudo depende a maior ou menor apreensão dos
detalhes relativos ao objeto. Isso porque ela é “[...] a relação constante que existe
entre as distâncias lineares medidas sobre o mapa e as distâncias lineares
correspondentes, medidas sobre o terreno” (JOLY, 1990, p. 20). Acidentes
geográficos, por exemplo, podem nem constar na carta devido ao tamanho menor
da escala utilizada. Assim, quanto menor a escala, menor a constatação de
peculiaridades, uma vez que, a fim de abarcar toda a face da terra, é necessário
diminuir o tamanho dos continentes, para que caibam na representação pictória.
Compara-se, aqui, essa representação gráfica à percepção que, muitas vezes,
temos de um agrupamento social: as relações ali desenvolvidas tendem a nos
parecer homogêneas, e falamos, por exemplo, em sociedade brasileira, em
1
A escala denominada numérica é representada por uma fração assim estruturada: a) numerador,
que é a medida no mapa (por exemplo, 1) e b) denominador, a medida do terreno (por exemplo,
50.000. A fração é a de 1/50.000. Isso demonstra que cada 1mm (um milímetro) do mapa
corresponde a 50.000 mm (cinquenta mil milímetros) ou 50 m (cinquenta metros) do terreno. Dessa
forma, a escala é menor quanto maior o denominador (JOLY, 1990).
pensamento científico ou em sistema jurídico como se tais construções não
albergassem a miríade de conflitos e composições que, na verdade, possuem. Não a
cultura e a história de um grupo determinado, nem o pensamento científico
ocidental, ou uma interpretação diferenciada do direito (SANTOS, 2001). Mas
afirmações que abarcam todo o fenômeno, reduzindo-o a características inconsúteis:
claras, completas, coerentes.
Nessa representação cartográfica resultante de uma escala menor, a episteme
jurídica formal, advinda do pensamento moderno, percebe o sistema jurídico como
um produto final senão perfeito, pelo menos com segurança e homogeneidade
suficiente para pôr-se acima de meras dissonâncias eventuais. Sua estruturação,
forjada pelo movimento iluminista (séc. XVIII) não é neutra, mas construída através
de um método de percepção historicamente situado (GADAMER, 2008), de acordo
com o entendimento de seus observadores/projetistas.
Essa pretensão de completude, exatidão e certeza baseia-se em uma
metodologia asséptica de elaboração das normas jurídicas (FACCHINI NETO, 2010),
típico da visão das ciências tal como a encontrada na modernidade. A racionalidade,
a liberdade e a igualdade formais legitimam o distanciamento entre o direito e seu
substrato social (HESPANHA, 2003), impondo-lhe uma representação auto-referente:
não há elementos fora do sistema estatal que interfiram na compreensão da ciência
jurídica (PASQUALINI, 1999; PERLINGIERI, 2008). Assim, deduz-se:
[...] as normas jurídicas e a sua aplicação exclusivamente a partir do
sistema, dos conceitos e dos princípios doutrinais da ciência jurídica, sem
conceder a valores ou objectivos extra-jurídicos (por exemplo religiosos,
sociais ou científicos) a possibilidade de confirmar ou infirmar as soluções
jurídicas (WIEACKER, 1967, p. 492).
A essa projeção do sistema jurídico - positivismo jurídico - possui, para Bobbio
(1995), as seguintes características gerais: a) direito, sempre estatal, é fato e não
valor; b) necessidade de coação uma vez que a norma é imposta pela força; c) lei é,
preeminentemente, a fonte do direito; d) norma é um comando à ação humana; e) e
está inserida em um sistema normativo completo e coerente, que organiza a
sociedade: coerente, pois não coexistem normas antinômicas em seu interior e
completo, pois não há lacunas legais, podendo o jurista resolver a questão por
alguma norma já prevista; f) o método da ciência jurídica impõe uma interpretação
mecanicista, onde predomina a subsunção; g) o direito impõe a absoluta obediência
à lei.
Recorrente a fundamentação teórica na neutralidade científica e na
unidisciplinaridade, que adquirem um caráter epistemológico na Teoria Pura do
Direito (KELSEN, 1996): estudo exclusivo da norma, sem interferências indevidas de
outros conhecimentos, em uma análise técnica formal. Assim, a validade da regra,
para a teoria do formalismo jurídico, é diferente do valor que possa conter, a tal
ponto que, confirmada a sua correta localização normativa na pirâmide hieráquicaformal, “a escravidão será considerada um instituto jurídico como qualquer outro,
mesmo que dela se possa dar uma valoração negativa” (BOBBIO, 1995, p. 136).
Cabe, neste momento, trazer a contribuição do sociólogo da educação Basil
Bernstein (1996), em sua análise sobre relações de poder. Elas determinam a
classificação (diferenciação) externa entre grupos e interna em um grupo
determinado: quanto mais forte a classificação, mais individualizados os elementos
entre si, os quais existem de maneira independente, de acordo com suas
especificidades, como o que segue:
Se as categorias [...] são especializadas, então cada categoria
necessariamente tem sua própria identidade específica e suas próprias
fronteiras específicas. O caráter especial, específico, de cada categoria é
criado, mantido e reproduzido apenas se as relações entre as categorias,
das quais uma dada categoria faz parte, são conservadas. O que deve ser
conservado? O isolamento entre as categorias. É a intensidade do
isolamento que cria um espaço no qual uma categoria pode se
tornar específica. Se uma categoria quiser aumentar sua especificidade,
ela tem que se apropriar dos meios de produzir o isolamento necessário,
que é a condição prévia para adquirir sua especificidade. Quanto mais
forte o isolamento entre categorias, mais forte será a fronteira
entre uma categoria e outra e mais definido o espaço que qualquer
categoria ocupa em relação a qual ela é especializada (itálico no
original; grifei em negrito) (BERNSTEIN, 1996, p. 42).
Percebe-se, assim, que para a modernidade, a ciência jurídica detém uma
forte classificação frente às demais ciências. História, antropologia, economia e
filosofia, para citar alguns exemplos, encontram-se individualizadas em relação a
categoria jurídica, cada qual com sua voz, apartada das demais. Da mesma forma,
os saberes denominados eruditos e populares. Se observarmos o interior do
ordenamento jurídico moderno, perceberemos que existe uma forte relação de
poder/classificação entre diferentes classes de conhecimentos e de direitos.
Essa regulação da distribuição de poder é perpetrada de diversas formas
dentro das academias de direito. Existem, segundo Aline Kipper (2000), basicamente
três características do modelo tradicional do ensino jurídico: a descontextualização, o
dogmatismo e a unidisciplinaridade. Os conteúdos ministrados não possuem conexão
com a realidade prática e cotidiana, tanto da sociedade quanto dos alunos, que os
recebem como verdades incontestes. A abstração do conhecimento da concretude da
vida impede a compreensão real do objeto estudado, restando apenas a teorização,
sob o domínio do professor. A cultura erudita e acadêmica, portanto, ocupa posição
de destaque, sendo, na maioria das vezes, o único discurso legítimo.
A figura do professor é a detentora do saber específico do seu componente
curricular. Este é considerado individualmente, sem existir o indispensável diálogo
entre os diversos conhecimentos, jurídicos ou não. Decorre daí o reforço realizado
pelo ensino jurídico da condição de alienação do aluno, a sua desconexão com o
substrato material da sociedade e a conseqüente falta de identificação com os
conteúdos estudados, a dificuldade do desenvolvimento autônomo do raciocínio, a
quase inexistência da crítica ao conceito de direito.
É importante, igualmente, levar em consideração o que Boaventura de Sousa
Santos denomina de vozes ausentes (SANTOS, 2001). No currículo do ensino
jurídico, elas podem ser compreendidas sob duas modalidades: a primeira abrange
as vozes efetivamente não incluídas, tais como aquelas oriundas das diversas
comunidades existentes em nossa sociedade e de suas normas jurídicas localmente
produzidas. A segunda modalidade corresponde àquelas vozes recontextualizadas
sob a hegemonia cultural, tornando-se meras representações descaracterizadas de si
mesmas. Assim, os direitos relacionados às mulheres e o direito de proteção contra o
racismo, por exemplo.
No que diz respeito ao pluralismo jurídico, a diversidade de regramentos
existentes no interior de comunidades, elaborados a partir das experiências e
dificuldades locais, nos faz ampliar o conceito de direito, ultrapassando as fronteiras
impostas pelo sistema jurídico estatal, excluindo, assim, a tradicional concepção do
direito como artefato exclusivo do Estado. Do contrário:
[...] tal posicionamento equivale a deduzir todo Direito de certas normas,
que supostamente o exprimem, como quem dissesse que açúcar “é” aquilo
que achamos numa lata com a etiqueta açúcar, ainda que um gaiato lá
tenha colocado pó-de-arroz ou um perverso tenha enchido o recipiente com
arsênico (LYRA FILHO, 2006, p. 30).
Esse tema é recorrente na literatura relativa à Sociologia e à Antropologia
Jurídicas, como o exposto a seguir, onde se reconhece que, se as sociedades são
sociologicamente plurais, da mesma forma serão juridicamente plurais:
A ordem jurídica estatal não é a única, como se crê e com muita freqüência
é ensinado: ela encima ordens jurídicas infra-estatais (as dos grupos
secundários) ou se avizinha delas e se inclina diante das ordens jurídicas
supra-estatais [...] Portanto, o pluralismo jurídico permite superar a
problemática do Estado de direito ao afirmar que o Estado não tem
o monopólio da produção do direito oficial. Para o antropólogo, a
limitação jurídica do Estado não pode ser oriunda do próprio
Estado, por intermédio de um direito cujo domínio ele conserva de
todos os modos. No plano interno, ela vem mesmo da sociedade, da
qual se deve reconhecer que produz sistemas de direito [...] Porém,
mais ainda do que a constatação da pluralidade das ordens jurídicas, conta a
da interação delas: essas ordens não são mônadas. Elas se enredam no
funcionamento concreto dos diversos sistemas de regulação [...] (grifei)
(ROULAND, 2003, p. 173-174).
Assim, a forte influência da concepção de direito como sistema estatal de
sanções e coerções nos representa o direito ocidental e seu ensino como cultura
universal, única escolha racional possível em nosso horizonte jurídico. A lei estatal,
soberana em sua razão, impõe-se como a grande fonte do direito moderno e
submete à sua obediência através da força.
Estudos sobre currículo de cursos de direito (LEITE, 2003) têm questionado
essa preponderância da cultura ocidental, trabalhando com noções de póscolonialismo e de representações do outro (SILVA; MOREIRA, 1995). A relação
pedagógica pode, pelo exposto, ser fonte de pluralidade de pensamentos e culturas.
Na sua prática, temos que ter em mente que:
[...] isto envolve a compreensão de como poder e controle introduzem-se
nestas construções para incluir ou excluir, ou para privilegiar ou
marginalizar. A teoria procura mostrar a força limitante de formas de
regulação e suas possibilidade, de tal forma que estejamos melhor
habilitados a escolher as formas que criamos do que as formas a
serem criadas para nós (grifei) (BERNSTEIN; SOLOMON, 1999, p. 275276).
Hans-Georg Gadamer (2008) ressalta que o conhecimento decorre de uma
fusão de horizontes: o passado e o presente acompanham o pesquisador, trilhando o
caminho com ele. Da mesma forma, essa fusão possibilita a ampliação dos saberes,
concedendo maior complexidade, em detrimento da simplificação matemática
moderna. Nesse sentido, a citação de Norbert Rouland (2003, p. 204):
Sejamos claros. Não há mais que duas maneiras de alcançar a unidade em
sociedades em que se afirma a pluriculturalidade. Quer se decrete a
uniformidade (a laicidade seria então compreendida como a proibição de
qualquer manifestação de pertencer a uma religião). O que pode ser
necessário nos casos em que as diferenças são interpretadas mais em
termos de antagonismos do que de complementaridades. Quer se prefira
a via mais difícil, porém infinitamente menos primitiva, da unidade
na diversidade. Pois eis os que os partidários da uniformidade querem ou
fingem ignorar: a diversidade não é necessariamente sinal de
desunião... contanto que se queira, enquanto a uniformidade pode
conduzir a ela (itálico no original, negrito meu).
A concepção de totalidade do objeto em Boaventura de Sousa Santos (2001)
traduz, da mesma forma, essa percepção. O conhecimento é “total e local”, sendo
construído a partir de temas, compostos por inúmeras variantes - o objeto de estudo
é apreendido sob diversos ângulos. A partir de conhecimentos e organizações
jurídicas próprios de grupos sociais – tais como as comunidades quilombolas – é
possível reestruturar nossa maneira de construir relações pedagógicas, assumindo
sua complexidade e co-produção. A riqueza cultural ali encontrada tem sua razão de
ser. Ainda hoje, muitos dos lugares onde antes se refugiavam os escravos
encontram-se ocupados por seus descendentes.
Em recente pesquisa etnográfica (HENNING, 2012) pode-se constatar a
dimensão cultural, política e jurídicas desses grupos. A proteção a remanescentes de
quilombos também abrange a conservação de modos de vida próprios de uma etnia.
Nesses lugares, há a preservação de rituais, manifestações religiosas, atividades
cotidianas típicas desse agrupamento social. A noção de cultura ocupa um lugar
fundamental para a caracterização do quilombo contemporâneo:
Assim, pensar a identidade quilombola é refletir sobre a territorialidade
complexa, multifacetada e diversa do país. Continuam vivas nestes lugares
tradições religiosas e festivas de candomblé, umbanda, tambor de mina,
tambor de crioula, bumba-meu-boi, reisado, festa do divino, festa de
caboclo, ladainhas para santos e encantados. Não são artigos folclóricos
estáticos, fechados em si e pendurados no tempo: são manifestações vivas
e plenas de vontade própria, que continuam mantendo - por vezes
descobrindo – seu sentido para as pessoas que as praticam, que continuam
em processo de transmutação em contato com o mundo, ao qual ainda
fazem referência e tomando parte daquilo que somos e desejamos ser
(ANJOS; CIPRIANO, 2006, p. 75).
A força da recontextualização de antigas e novas práticas pode ser observada
na citação a seguir:
Quando um texto é apropriado por agentes recontextualizadores, atuando
em posições deste campo, ele, geralmente, sofre uma transformação antes
de sua recolocação. A forma dessa transformação é regulada por um
princípio de descontextualização. Este processo refere-se a mudanças no
texto, na medida em que ele é deslocado e recolocado. Este processo
assegura que o texto não seja mais o mesmo texto: 1. O texto mudou sua
posição em relação a outros textos, práticas e situações. 2. O próprio texto
foi modificado por um processo de seleção, simplificação, condensação e
elaboração. 3. O texto foi reposicionado e refocalizado2 (grifos no original)
(BERNSTEIN, 1996, p. 270).
A recontextualização não é feita de maneira mecânica, mas adaptada a
realidade a qual se dirige. Assim ocorre nessas comunidades. Assim, também, pode
ocorrer no enfoque aqui proposto. Professores, alunos e comunidades, em um
diálogo multicultural, podem elaborar novas formas de ensino do direito. A
oxigenação de ambas as pedagogias (da comunidade tradicional e da academia)
ocasionada por esta troca é um dos horizontes possíveis do pensamento póspositivista.
Conclusão
2
No original: This involves understanding how power and control enter into these constructions to
include or exclude, or to privilege or marginalise. The theory attempts to show both the limiting power
of forms of regulation and their possibilities, so that we are better able to choose the forms we create
rather than the forms to be created for us. Tradução da autora.
Através da discussão aqui iniciada, percebe-se que comunidades e grupos
específicos possuem sistematização de regramentos jurídicos próprios, advindos de
embates
e
discussões
contemporâneas,
mesclados
a
tradições
e
culturas
conservadas através de gerações. É o caso de comunidades remanescentes de
quilombos, nas quais o passado é, cotidianamente, recontextualizado a fim de
resolver problemas atuais e necessidades do grupo.
A maneira com a qual tais relações se constroem e são reguladas, a forma
com que são transmitidas entre seus membros podem proporcionar uma reinvenção
de nossa própria prática pedagógica. Não para transportá-las, mecanicamente, às
nossas academias, em um movimento iconoclasta. Mas para permitir a oxigenação e
o diálogo cultural, abrindo horizontes antes limitados, transpondo os muros cerrados
do
formalismo.
Ao
ensino
jurídico
neutro
e
eqüidistante
sucede
outro,
axiologicamente assumido, ligado à dialética do cotidiano.
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