Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128 06 e 07 de agosto de 2009 UFS – São Cristóvão, Brasil 1 O PATRIARCALISMO EM SENHORA DE JOSÉ DE ALENCAR José Carlos de Aquino Solidade Junior1 INTRODUÇÃO Desde os filósofos gregos, a literatura tem sido discutida e analisada. A questão sobre qual seria o cerne literário está presente nos diversos livros publicados cujo tema é a teoria da literatura. Aristóteles em sua “Poética” menciona a importância da verossimilhança na Literatura, ou seja, a literatura deve retratar a realidade, assim como fala Antônio Soares Amora na sua Introdução à teoria da literatura “Estabelecer, finalmente, que a literatura, por exemplo, um romance, um poema, um drama, expressa uma concepção intuitiva e individual da realidade (AMORA, 1986, p. 51)”. E estas reflexões a respeito da função literária de imitar ou, melhor dizendo, retratar a realidade foram as matérias primas utilizadas para a construção deste artigo científico que trata deste retrato desenhado, pela literatura, da sociedade, mais especificamente, da sociedade burguesa do século XIX no Romantismo, escola literária surgida neste momento histórico da sociedade brasileira. No entanto, tratar da sociedade burguesa forjada num período conturbado e cheio de transformações como foi o século XIX brasileiro não seria viável em um artigo científico, já que este tema é extremamente abrangente. Logo, o tema deste trabalho foi ainda mais delimitado até chegar a um aspecto característico desta época histórico-social do nosso país e que se vê bem representado na literatura. Este aspecto é o patriarcalismo, o qual 1 Estudante de graduação do curso de Letras Português-Inglês da Universidade Federal de Sergipe Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128 06 e 07 de agosto de 2009 UFS – São Cristóvão, Brasil 2 está bem explicitado em uma das obras literárias mais importantes do período romântico da literatura nacional, Senhora, do grande escritor José de Alencar. Em Senhora, José de Alencar retrata Aurélia, um dos seus perfis de mulher. Aurélia é uma personagem altiva, independente e que estava no controle de sua própria vida. E é através deste controle que ela compra o seu próprio marido. Porém, em nome do amor que sente por este homem, Aurélia simplesmente abre mão deste controle e o deixa nas mãos de seu grande amor, fato que reafirma a posição de submissão da mulher perante o homem na sociedade patriarcal brasileira do século dezenove. O BRASIL NO SÉCULO XIX Antes de entendermos o que foi a literatura romântica no Brasil, é importante que saibamos um pouco do momento histórico brasileiro neste período. O século dezenove, no Brasil, foi uma época de mudanças significativas na configuração social até então regente. Em 1808, a família real vem para o Brasil fugindo das ameaças de Napoleão, graças a esse fato o Brasil deixa o status de colônia e passa a ser considerado reino unido a Portugal e Algarves, o que desenvolveu o nosso comércio, indústrias e até mesmo a educação. O povo brasileiro teve sua auto estima elevada já que o Brasil deixara de ser a colônia para a qual somente eram enviados os degredados e rejeitados da corte portuguesa. Em 1822, é proclamada a independência do Brasil por D. Pedro, o que dá novo ânimo aos brasileiros que desde então se viam livres da forte e até mesmo obrigatória influência que recebiam de Portugal e que era refletida social e culturalmente no povo do Brasil, a partir deste momento passou-se a cogitar a idéia de uma literatura brasileira e não mais uma imitação da européia. No ano de 1831, D. Pedro I renuncia em nome de seu filho, Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128 06 e 07 de agosto de 2009 UFS – São Cristóvão, Brasil 3 Pedro de Alcântara, e volta para Portugal. No entanto, Pedro tinha completados apenas 5 anos de idade e não poderia ser coroado, por conta disso, o Brasil entrou no período chamado de regencial, no qual o Brasil seria comandado por regentes até a maioridade do príncipe regente. Em 1836, surge Suspiros poéticos e saudades, de Gonçalves de Magalhães, o primeiro indício de uma literatura brasileira e uma das primeiras manifestações românticas brasileiras. José Jobson de A. Arruda e Nelson Piletti dão uma boa explanação deste período de nossa história. A fase da história brasileira iniciada em 1831 caracterizou-se por dois aspectos principais: intensa agitação social em todas as províncias, pondo muitas vezes em risco a própria unidade nacional; e grande efervescência política, primeiros ensaios da organização partidária que prevaleceria durante o Segundo Reinado (PILETTI et ARRUDA, 1994, p. 223). Portanto, mudanças intensas ocorreram na estrutura da sociedade brasileira neste século tão perturbado de nossa história. E estas mudanças, certamente, tiveram sua parcela nas mudanças ocorridas nas manifestações culturais deste novo Brasil e a literatura brasileira, ao inaugurar a “sua” escola romântica, reflete todas estas mudanças. PATRIARCALISMO EM SENHORA “Senhora é um dos livros mais cuidados de Alencar (SCHWARZ, 2000, p. 42)”. Neste livro, o qual retrata um dos perfis de mulher alencarinos juntamente com Lucíola e Diva, temos como heroína, a personagem Aurélia Camargo, a qual, no início da narrativa aparece como uma refinada e admirada dama da sociedade carioca. Há anos raiou no céu fluminense uma nova estrela. Desde o momento de sua ascensão ninguém lhe disputou o cetro; foi proclamada a rainha dos salões. Tornouse a deusa dos bailes; a musa dos poetas e o ídolo dos noivos em disponibilidade (ALENCAR, 1998, p. 17). Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128 06 e 07 de agosto de 2009 UFS – São Cristóvão, Brasil 4 No entanto, Aurélia não é uma típica moça casadoira da época. Durante a narrativa ela se mostra uma mulher independente, com personalidade forte e muito altiva, o que faz dela uma personagem a frente de seu tempo. Não tinha dito Aurélia naquela noite cruel, que o marido era um traste indispensável à mulher honesta e que o comprara para esse fim? Ela tinha razão. Ali, naquele carro, ou nas salas onde entravam, parecia-lhe que sua posição e sua importância eram a mesma, senão menor, do que tinha o leque, a peliça, as jóias, o carro, no traje e luxo de Aurélia (ALENCAR, 1998, p. 146). A personagem principal continua sendo representada com estas mesmas características no decorrer da trama, pois mesmo amando loucamente o seu marido Seixas, ela não muda o seu modo de agir e pensar e continua se colocando em uma posição superior a de seu próprio marido. “Para esta herdeira bonita, inteligente e cortejada, o dinheiro é rigorosamente a mediação maldita: questiona homens e coisas pela fatal suspeita, a que nada escapa, de que sejam mercáveis (SCHWARZ, 2000, p. 43)”. Não obstante, no momento do clímax da narrativa, seguindo a estrutura de enredo proposta Henry James, Aurélia perde todas estas características e se mostra uma mulher extremamente submissa ao seu homem, chegando ao ponto de deixar em suas mãos o poder sobre toda a sua riqueza. “Ela despedaçou o lacre e deu a ler a Seixas o papel. Era efetivamente um testamento em que ela confessava o imenso amor que tinha ao marido e o instituía seu universal herdeiro (ALENCAR, 1998, p. 215).” Esta postura assumida por Aurélia no final da história apenas corrobora o pensamento vigente na época de que não somente a mulher, mas a sociedade era comandada por homens e é assim que ela deve permanecer, já que o final feliz romântico só se concretiza, nesta obra, quando a heroína sucumbe e se mostra não mais uma transgressora e sim uma ratificadora das regras patriarcais da sociedade. Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128 06 e 07 de agosto de 2009 UFS – São Cristóvão, Brasil 5 A LITERATURA COMO RETRATO DA REALIDADE “A epopéia e a tragédia, bem como a comédia e a poesia ditirâmbica e ainda a maior parte da música de flauta e de cítara são todas, vistas em conjunto, imitações (ARISTÓTELES, 2004, p. 37)”. Imitações. É assim que a arte e, consequentemente, a literatura são vistas por Aristóteles. Na verdade, não só por ele, mas também por diversos outros pensadores da literatura. A arte é uma representação da realidade, não extremamente fiel, mas verossímil como disse o próprio filósofo grego: O poeta deve ser um construtor de enredos mais do que de versos, uma vez que é poeta devido á imitação e imita acções. E, se lhe acontece escrever sobre factos reais, não é menos poeta por isso: nada impede que alguns factos que realmente aconteceram sejam [possíveis e] verossímeis e é nessa medida que ele é o seu poeta (ARISTÓTELES, 2004, p. 55). Antônio Soares Amora, em sua Introdução à teoria da literatura, concorda com o pensamento aristotélico quando faz reflexões a respeito do retrato da realidade feito pelo literato. [...] o ato criador de um poeta, um ficcionista ou um teatrólogo é sempre empenho no sentido de expressar, o melhor possível, o que deseja dizer ao leitor [...] depois de uma obra realizada fica sempre no espírito do escritor todo um mundo indizível de emoção, de imaginação e de pensamentos; e ao longo da leitura de uma obra vaise formando, igualmente, em nós, leitores, todo um mundo de ressonâncias psíquicas indefiníveis... (AMORA, 1986, p. 61). René Wellek e Austin Warren também fizeram reflexões a respeito do cerne da literatura. Eles lembram Horácio ao dizer que a literatura é doce e útil. Segundo eles: “Quando uma obra literária exerce com êxito a sua função, os dois factores referidos- prazer e utilidadedevem não só coexistir, mas fundir-se (Wellek et Warren, 1971, p. 33). Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128 06 e 07 de agosto de 2009 UFS – São Cristóvão, Brasil 6 Ainda a respeito da função da literatura Warren e Wellek fazem outra reflexão importante: Ora, segundo Eastman, o escritor imaginativo- e especialmente o poeta- entende-se mal a si próprio se pensa que o seu papel primordial é o de descobrir e de comunicar o conhecimento. A sua função real é a de nos fazer aperceber daquilo que nós vemos e de nos fazer imaginar aquilo que nós já sabemos, conceptualmente ou praticamente (Wellek et Warren, 1971, p. 37). CONCLUSÃO De acordo com todo conteúdo estudado e lido para a confecção deste artigo e tudo que foi apresentado anteriormente, conclui-se que a literatura tem, entre outras, a função de retratar a realidade da maneira mais verossímil possível. E o romantismo brasileiro refletiu o momento da sociedade burguesa em que o poder estava concentrado nas mãos dos homens. As obras literárias desta época retrataram, com riqueza de detalhes, os aspectos e características da sociedade burguesa de um Brasil, resultado de todas as transformações que aconteceram, a partir de 1808 e se estenderam até o final do século XIX com a proclamação da república. E neste palco de transformações surgiu o romantismo no Brasil, o qual acabou refletindo estas mudanças, e também corroborando um ideal que já existia e ainda estava presente nesta sociedade que era o patriarcalismo. Este prezava pela manutenção do poder nas mãos de homens e em Senhora, umas das obras mais célebres do romantismo brasileiro, José de Alencar ratifica este ideal através de Aurélia e sua felicidade alcançada somente no momento em que ela submete-se ao seu marido. Anais do Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 1, agosto de 2009 – ISSN 2175-4128 06 e 07 de agosto de 2009 UFS – São Cristóvão, Brasil 7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALENCAR, José de. Senhora. 23. ed. São Paulo: Ática,1992. AMORA, Antônio Soares. Introdução à teoria da literatura. 6. ed. São Paulo: Cultrix, 1986. ARISTÓTELES. Poética. Tradução de Ana Maria Valente. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. PILETTI, Nelson et ARRUDA, José Jobson de Andrade. A crise do Antigo Regime: o processo de independência do Brasil (1808-1822). In: ______. Toda a história. São Paulo: Ática, 1994. p. 204-207. PILETTI, Nelson et ARRUDA, José Jobson de Andrade. O Brasil monárquico: o Primeiro Reinado (1822-1831). In: ______. 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