Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128 1 CRIME E COMPORTAMENTO EM A GALINHA DEGOLADA DE HORÁCIO QUIROGA. Thiago de Freitas (UEFS) O objetivo fundamental deste texto é levantar duas questões substancias no conto A galinha degolada, de Horacio Quiroga. Em primeiro plano, quais relações podem ser atribuídas entre a turbulenta vida pessoal do autor e sua obra. Posteriormente, detalhando o estudo, procuraremos discutir as noções de agressividade através das personagens que integram a obra, sobretudo através das relações entre hereditariedade e meio ambiente, como fundamentadas por Ashley Montagu e Erich Fromm. Habitualmente, os conflitos internos na vida de um escritor induzem à criatividade e originalidade. Reações emocionais levadas ao extremo resultam, em alguns casos, em obras de arte de caráter igualmente pungentes, sejam elas literárias, visuais ou musicais. Casos de amores não correspondidos, instabilidade mental, uso abusivo de drogas e até mesmo profundas depressões, podem influenciar a confecção, direta ou indiretamente, de uma obra de arte. Em A galinha degolada, as experiências de vida do autor, influenciadas pelo seu ambiente fatídico, emergem no texto através de angústias e de uma narrativa, apesar de bastante realística, esteticamente fantástica. Influenciado por escritores como Edgar Allan Poe e Guy de Maupassant, Horacio Quiroga foi um dos responsáveis pela modernização do conto na América Latina e seu traço narrativo se impôs, com o tempo, como modelo literário. Modelo este que, segundo Pablo Rocca, focaliza o efeito e a potência expressiva do enredo e de cada uma das palavras, eliminando elementos acessórios que parecem desnecessários, tendo o horror como marca predominante da obra. Diferente de Poe, Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128 2 Quiroga, como observa Pablo Rocca, “descartou os ingredientes clássicos do relato gótico, apropriando-se, no entanto, do clima e até do detalhe mórbido ou do recurso do “achado macabro.” (ROCCA, 2008, p. 67). O conto em questão retrata o cotidiano do casal Mazzini-Ferraz que, recém-casados e aparentemente saudáveis e apaixonados, teve a desventura de, em sequência, procriar somente filhos que tiveram o infortúnio de perder suas capacidades cognitivas após sucumbirem à doença na idade de dezoito meses. Caso após caso, eles não perdem a esperança em dar luz à crianças mentalmente sadias, mas o resultado é sempre consistente. Com este andamento, chega ao leitor a impressão de que um deles, Mazzini ou a mãe, Berta, ou mesmo o cruzamento entre ambos, carrega um problema genético, que seria, em razão dos filhos com problemas mentais, motivo de questionamento e acusações entre ambos. Depois do nascimento dos gêmeos, e de reativação de esperança por dias melhores, os meninos, novamente aos dezoito meses, sucumbem ao mesmo mal, a doença mental. Finalmente, após nova tentativa, realizando então um objetivo crucial para ambos, o casal foi abençoado com uma filha que permanece saudável além do primeiro ano e meio. A partir disto, eles ficam tão encantados com a menina que negligenciam ainda mais seus primeiros quatro filhos e passam a cuidar implacavelmente de Berdita. Enquanto isso, o casal continua acusando um ao outro pelas faltas dos filhos mais velhos e insiste em crédito exclusivo para a filha saudável. Através do texto, sabemos que “desde o primeiro desgosto envenenado tinham perdido o mútuo respeito. Se há algo para qual o ser humano se sente arrastado com cruel fruição, este algo é terminar de humilhar alguém depois de já ter começado.” (QUIROGA, 2008, p. 20). As consequências desta relação agressiva entre o casal, aliada ao conjunto familiar, contribuem integralmente para o fim chocante da narrativa. Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128 3 Em um dia como qualquer outro, de reclusão para os filhos mais velhos, os quatro garotos testemunham a empregada degolando uma galinha para o almoço. Mais tarde, voltando de um passeio com Berdita, os pais deixam a menina se divertir livremente no quintal, onde os idiotas costumavam estar sempre sentados num banco, absortos, “quase sempre apagados no sombrio letargo da idiotia.” (QUIROGA, 2008, p.15). Enquanto Berdita inocentemente tentava subir no muro, eles, impulsionados por alguma razão, agarram a criança e a assassinam da mesma maneira que a empregada previamente executara a galinha, cortando-lhe brutalmente o pescoço. Deste crime, o leitor extrai um sentimento de culpa que ecoa da reação irresponsável do casal ao cuidar do seus outros filhos, sempre referidos por Quiroga como idiotas. O autor relativiza a indiferença em relação ao destino de suas personagens, juntamente com o retrato de pessoas, que o destino reservou uma tragédia além de seu controle, passando um sentimento de desespero e remorso. A galinha degolada reflete, muito provavelmente, as experiências tumultuadas que Quiroga experimentou enquanto viveu. Segundo Jesús Calledo Cabo, foi “uma vida que condicionou toda sua obra literária”, (CABO, 2004, p.124) estando rodeada por fatalidades, já que de um modo ou de outro, quase todos aqueles que estiveram próximos ao uruguaio tiveram suas vidas marcadas por uma tragédia repentina. Seu pai biológico se suicidou quando Quiroga tinha apenas dois meses de idade. Aos 13 anos presenciou a morte de seu padrasto com a mesma espingarda que tirara antes a vida de seu pai. Sua primeira esposa e os três filhos tiveram o mesmo fim marcante, o suicídio. Sua saúde também supõe uma série de infortúnios: asma e gagueira. Estas questões, da maneira como enfrentadas, ocasionaram graves problemas de adaptação e relacionamento desde a infância. Quanto à isso, é importante levar em consideração as palavras do próprio escritor em relação aos sofrimentos pessoais: Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128 4 Siento una especie de placer en mis sufrimientos, en mis tristezas y aún desearía padecer más, para encontrar en el fondo de mi escepticismo una realidad que se destaque poderosa con el tinte del dolor eterno. (QUIROGA apud CABO, 2004, p. 127) Seguindo a quebra repentina de sua primeira relação amorosa, uma série de acontecimentos trágicos se sucederam. Sua ida à Paris, por exemplo, gerou grandes desventuras. Outro trauma que marcaria profundamente sua psique ocorre quando do assassinato inesperado e acidental do amigo e poeta Federico Ferrando, o que, obviamente, o levaria a ser interrogado e encarcerado por alguns dias. Nesse sentido, concluímos, portanto, que as características mais marcantes de sua obra são reflexos de uma vida repleta de tragicidades. Voltando ao texto, é notável como as crianças com problemas mentais são subjugadas pelos pais. A mãe, “ao nascer Bertita […] se esqueceu quase completamente deles. A mera lembrança daqueles quatro já a horrorizava. Com Mazzini, embora em menor grau, acontecia o mesmo.” (QUIROGA, 2008, p.20). “O aspecto desleixado e a sujeira deles acusavam a falta absoluta de um mínimo de zelo materno. (QUIROGA, 2008, p. 15). A empregada, encarregada dos cuidados com os filhos maiores, “os vestia, dava-lhes de comer, deitava-os e tudo com impaciente grosseria.” (QUIROGA, 2008, p.20). Os meninos passavam os dias sentados num banco do pátio, vidrados para o muro em frente. É evidente no texto, desde suas primeiras linhas, que uma tragédia iminente se abateria sobre a família Mazzini-Ferraz. A discussão entra em vigor quanto à geração de quatro crianças com problemas mentais. Quais seriam as razões para tal infortúnio? A pergunta que Mazzini faz ao médico quando do nascimento do primeiro filho é essencial para o entendimento desta questão. Ele Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128 5 diz: “então isso pode ser herdado, algo que... (QUIROGA, 2008, p. 17) O médico, aparentemente se esquivando, diz: “sobre a herança paterna, já lhe disse o que pensei quando vi seu filho. Quanto à mãe, bem, ela tem um sopro no pulmão.” (QUIROGA, 2008, p. 17). Até aqui não temos indícios do que o médico teria dito a Mazzini sobre seu pai. Sabemos, no entanto, pelas palavras de Quiroga, que o primogênito pagava pelos excessos do avô. Mais tarde, quando de uma discussão mais áspera entre o casal, temos conhecimento que o pai de Mazzini teria morrido louco, delirando. Por este motivo, Berta acredita que poderia ter tido filhos normais, já que o problema estaria supostamente relacionado ao pai. Ao investigar o texto, presumimos que as causas dos problemas mentais dos filhos do casal seriam genéticas, diferente, como veremos adiante, das razões que atribuímos ao assassinato da filha Berdita. Talvez isso esteja refletido nos próprios sentimentos de solidão e contenção de Quiroga após as tribulações desastrosas de sua vida. Os infortúnios do casal não são totalmente culpa deles próprios, mas, ao mesmo tempo, eles não são totalmente inocentes. Um tom de culpabilidade inevitável lança uma sombra sobre o já triste enredo. Como o casal se transforma em um outro durante os tempos difíceis, eles são incapazes de se ligar durante os bons tempos, condenando-se a sucumbir à tragédia da situação. Apesar do desejo por uma família normal e saudável, o idealismo do casal ofusca sua realidade operacional, cegando-os ao destino inevitável. É quase paradoxal como o desespero de seu destino é derivado de sua própria falta de controle sobre a situação. Se não fizessem distinção entre os filhos, o casal supostamente poderia ter se poupado da agonia de perder sua preciosa Berdita. Não obstante, seus destinos foram determinados e inalteráveis. Pois é esta relação a maior responsável pelo trágico destino reservado à família Mazzini-Ferraz. Sua falta de atenção e cuidado determinam quase que inteiramente a perda Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128 6 da querida Berdita. Chegamos à questão fundamental do texto. Em razão do crime, seriam os idiotas bons ou maus? O brutal assassinato da menina é condicionado por uma hereditariedade similar à causa da doença mental das crianças ou estaria condicionado ao ambiente familiar? Erich Fromm, em Análise do homem, discute, de modo geral, algumas questões do comportamento humano. Partindo duma análise freudiana, Fromm acredita que o homem não seja essencialmente bom ou essencialmente mau, mas movido por duas forças opostas igualmente pujantes. Esta posição dualista é, segundo o autor, apenas o ponto de partida e não a resposta final para os problemas psicológicos e étnicos do ser humano. De acordo com Fromm, a destrutividade humana passa primeiro por uma questão: diferenciar o ódio entre racional ou “reativo”, e irracional ou “condicionado pelo caráter”. O ódio no ser humano é, segundo Fromm, uma reação do homem em busca duma suposta sensação de alívio, como se praticasse alguma atitude violenta ou odienta como oportunidade de descarregar sua hostilidade. O homem que assim reage às situações adversas encontra prazer ao insurgir de tal modo. “A destrutividade é o produto da vida nãovivida.” (FROMM, 1963, p.193). O degolamento de Berdita, apesar de parecer somente uma reprodução do abate da galinha, carrega consigo outras dependências. Os filhos mais velhos teriam assassinado sua irmã por prazer, como espécie de vingança, ou teriam agido involuntariamente, visto sua condição mental? Supomos que o ambiente familiar, encarado da maneira que é no texto, pode proporcionar atitudes agressivas. Outra observação de Fromm que nos é importante na abordagem temática do conto diz respeito à não realização de condições favoráveis individuais e sociais características ao homem. Se fossem oportunamente bem educados e familiarizados, teriam as crianças se comportado violentamente? Fromm argumenta que com restrições de energia o homem se torna destrutivo, manifestando o mau. “Se é verdade que a destrutividade deve formar-se Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128 7 como decorrência da energia produtiva bloqueada, talvez pareça que ela pode ser chamada adequadamente de uma potencialidade da natureza humana.” (FROMM, 1963, p.193). Entendemos, portanto, que a potencialidade má do homem passa primeiro por questões culturais e sociais, principalmente ligadas às condições exigidas para sua realização. Como exemplo, Fromm menciona as capacidades de falar e pensar do homem, que se restringidas podem gerar consequências sérias, ainda que se possa ignorar o sofrimento causado por certas restrições. Provavelmente, se o homem deixa de utilizar suas aptidões, ficará fragmentado, ansiando por fugir de si mesmo. A atitude agressiva das crianças do conto seria, portanto, resultado duma privação de sentidos, agravadas, particularmente, pelo tratamento que recebem de seus pais. Numa perspectiva similar, discutindo as causas da agressividade do homem, Ashley Montagu, em seu A natureza da agressividade humana, observa que o retardo mental pode não ser sempre causado por deficiências hereditárias, mas por outras razões. Neste sentido, se os filhos do casal Mazzini-Ferraz tivessem crescido num ambiente favorável, suas capacidades cognitivas poderiam ser ampliadas, assim como as de outras crianças. “Os genes não existem no vácuo; existem sempre em um meio ambiente de algum tipo.” (MONTAGU, 1978, p. 23). O autor argumenta que não só as reações físicas e mentais, mas os traços de personalidade, o comportamento e as atitudes são mais dependentes de fatores ambientais do que hereditários. Concordamos com as observações de Montagu ao investigar o comportamento dos filhos idiotas do casal Mazzini-Ferraz. O nascimento de Berdita, aliado ao ambiente desfavorável, teriam sido as maiores razões para o assassinato, que funciona também, ao nosso ponto de vista, como reação de defesa ao território invadido pela menina. Desmond Morris, em O macaco nu, observa que o entendimento acerca da natureza dos instintos agressivos do homem passa, obrigatoriamente, por nossa origem animal. Ou seja, a Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128 8 desterritorialização pode gerar atitudes agressivas de defesa por parte de ambos, homem e animal. Os filhos mais velhos, com o nascimento de Berdita, sentem-se privados e invadidos, visto que perdem quase que total espaço e atenção dos genitores, agora reservados exclusivamente à filha. Montagu parte do princípio de que praticamente não há comportamento agressivo espontâneo em crianças saudáveis, normais e bem cuidadas. Já Lauretta Bender (Apud Montagu), chegou a conclusão de que a hostilidade não é inata à criança, mas é antes um complexo de sintomas que resultam de privações, causadas pelo interrompimento no desenvolvimento considerado normal na estrutura de personalidade que levam a criança a encontrar satisfação através de meios inadequados, particularmente através de impulsos agressivos. Este pensamento leva em conta que a agressividade, supostamente inerente ao homem, depende de estímulos, para acontecer ela deve ser provocada. Os autores concordam que antes de tudo a violência humana é uma experimentação social. A agressividade, segundo Bender, não é intrínseca ao ser humano. Pelo contrário, a criança tem uma tendência de se comportar genuinamente de maneira dócil, criando uma situação de bem-estar para si e para as pessoas circundantes. Anais do II Seminário Nacional Literatura e Cultura Vol. 2, São Cristóvão: GELIC, 2010. ISSN 2175-4128 9 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CALLEJO CABO, Jesús. Enigmas literarios: secretos y misterios en la historia de la literatura. Madrid: Ediciones Corona Borealis, 2004. FROMM, Erich. Análise do homem. Rio de Janeiro: Zahar, 1963. QUIROGA, Horacio. A galinha degolada e outros contos. Porto Alegre: L&PM, 2008. MONTAGU, Ashley. A natureza da agressividade humana. Rio de Janeiro: Zahar, 1978. MORRIS, Desmond. O macado nu. Rio de Janeiro: Record, 1996. ROCCA, Pablo. Posfácio. In: QUIROGA, Horacio. A galinha degolada e outros contos. Porto Alegre: L&PM, 2008.