Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 1 CONHECIMENTO CIENTÍFICO, SENSO COMUM E EXPERIÊNCIA Francisco Gomes de Andrade (UFS) ... Guardemo-nos de crer também que o universo é uma máquina; certamente não foi construído com um objetivo, e usando a palavra ‘máquina’ lhe conferimos demasiada honra [...] ele não é tocado por nenhum de nossos juízos estéticos e morais! Tampouco tem impulso de auto-conservação, ou qualquer impulso; e também não conhece leis. Guardemo-nos de dizer que há leis na natureza. Há apenas necessidades... Guardemo-nos de dizer que a morte se opõe à vida. O que está vivo é apenas uma variedade daquilo que está morto... Quando poderemos começar a naturalizar os seres humanos com uma pura natureza, de nova maneira descoberta e redimida? (NIETZSCHE, A gaia ciência, aforismo 109) No advento da modernidade, a Ciência Moderna (Ciências naturais e Ciências sociais) se desenvolve de modo constitutivo ao lado do surgimento vitorioso das conseqüentes descobertas do universo e das terras africanas, orientais e americanas. Seu surgimento baseou-se nos pontos de vistas arquimediano e cartesiano, que lançou os fundamentos capacidade cognitiva daquele que observa com olhar distanciado. Por meio de seu telescópio voltado para fora da terra, em função de sua estrutura mental introspectiva, o homem, essa criatura terrena, colocou-se diante não só do universo, mas diante da terra e dele próprio, com a permissão para medir, calcular e explorar tanto o sistema solar quanto sua morada terrestre. Essa visão arquimediana parece ter acarretado a alienação da terra e do homem mediante uma Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 2 focalização de fora (ponto arquimediano) e ao mesmo tempo dentro do sujeito (cogito artesiano), mesmo sendo ele um prisioneiro da terra e do próprio corpo. O olhar exterior arquimediano foi transferido do universo para dentro do observador introspectivo cartesiano por meio de fórmulas matemáticas elaboradas pela sua própria mente intelectiva. Segundo Hannah Arendt, “o raciocínio cartesiano baseia-se no pressuposto implícito de que a mente só pode conhecer aquilo que ela mesma produz e retém de alguma forma dentro de si mesma” (ARENDT, 1995, p. 295). Seu ideal principal deve ser o conhecimento matemático moderno a partir de formas produzidas pela estrutura mental sem necessitar dos estímulos dos sentidos em relação a outros objetos além de si mesma (mente). Isto representa a vitória do intelecto sobre os sentidos ocasionando também a perda do senso comum, na medida em que foram substituídos por um sistema de equações matemáticas a fim de demonstrar verdades convincentes. Assim, somos tentados a dizer que tal perspectiva mecanicista e alienadora – que postulou a supremacia do intelecto sobre o conhecimento vulgar, da razão sobre os sentidos – acarretou o distanciamento em relação ao próprio sujeito e a sua experiência de vida, a utilizar-se de um vocabulário específico bem como de um especialista. Pois ao longo de seu desenvolvimento, a ciência, passando pela ampliação e aprofundamento no século das Luzes e desaguando no positivismo oitocentista, tornou-se inacessível à maioria dos cidadãos tal como sugere Edgar Morin: Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 3 Os desenvolvimentos da ciência levam, porém, à redução do campo de competência dos cidadãos. Por quê? Porque, de um lado, o conhecimento científico é cada vez mais formalizado, mais apoiado em procedimentos matemáticos, torna-se hermético para a maioria dos cidadãos, e mesmo de especialistas para especialistas. De outro lado, os cidadãos são mantidos à distância pela tecno-ciência (MORIN, 2001, p. 33). Então a ciência permanece nas mãos de peritos especializados para atender às necessidades e demandas da técnica, da indústria, da sociedade burguesa e do Estado centrando-se num círculo vicioso que, segundo Morin, cria “uma máquina que produz especialistas”. A propósito, isso caracteriza, em outras palavras, a atividade do homo faber, analisado por Hannah Arendt, em função de sua atividade de medir objetivamente as coisas e de fabricar produtos. E os problemas vitais e as decisões, que deveriam competir também aos homens comuns e que dizem respeito à vida ordinária e cultural deles, permanecem no poder desses especialistas intelectuais ou técnicos. Isso faz com que os homens, na condição de cidadãos, sejam desapropriados por força desse distanciamento, permanecendo numa “espécie de ignorância selvagem” (MORIN, 2001, p. 34). Dessa forma, assim como a maioria dos homens, na qualidade de cidadãos, foi excluída de partilhar e participar do conhecimento científico, da mesma forma o conhecimento do senso comum, como vimos já em Descartes, foi banido pela hegemonia do conhecimento científico fundado nas ciências naturais e leis matemáticas. A força discursiva desse conhecimento, atrelado ao poder hegemônico, deslegitimou o conhecimento do senso comum, que os homens e mulheres em suas culturas têm da natureza e da vida, partilhando seu patrimônio cultural arraigado na Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 4 experiência. A força discursiva do conhecimento científico, atrelado ao poder hegemônico, deslegitimou o conhecimento do senso comum. Colocado em prática, se por um lado favoreceu a vida dos homens; por outro lado e em grande escala, ele orientou e forneceu os instrumentos, necessários ao sistema capitalista e ao Estado burguês desde os tempos colonizadores, para pesquisar e explorar a natureza, além de ajudar na destruição do próprio homem e da própria terra, na qual residiam seus valores, seus deuses, seus antepassados e seu modo de ver a vida. Se pensarmos no modo como o ideal civilizatório, a política colonizadora e a exploração da natureza e do próprio homem foram sustentados pelo discurso científico-racionalista, moral-religioso, jurídico e econômico, veremos o quanto de conhecimento vulgar e sabedoria prática, ligados a determinados modos de vida na terra, foram deslegitimados, saber este que era a referência primordial e sagrada para a vida de homens e mulheres indígenas nas Américas, por exemplo. É o que nos faz lembrar o líder indígena Marcos Terena ao dizer que: Aos olhos do colonialismo, a dignidade da existência bárbara do Novo Mundo foi reconhecida, apenas na sua capacidade de incorporar-se às luzes da moral cristã, da mentalidade capitalista e do racionalismo progressivo do mundo industrial, em sua insaciável voracidade por recursos naturais, cada vez mais distantes. Ontem, à força da dizimação física, hoje, à força da espoliação e destruição sutil das nações indígenas (TERENA apud MORRIN, 2000, p. 10). Porém, não só das nações indígenas, mas de toda uma visão de mundo e sabedoria milenar ligadas ao seu patrimônio cultural. Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 5 Daí, como não lembrar também da “Carta do Cacique Seattle” da tribo Suquamish do Estado de Washington, enviada em 1855 ao presidente dos Estados Unidos (Francis Pierce), que pretendia comprar as terras ocupadas pela referida tribo. Nas palavras do cacique - que não deixa de ser um tipo de ação no sentido arendtiano - temos o registro de um conhecimento, de uma sabedoria prática de vida cujo ensinamento é holístico (não distinção entre homem-natureza) e essencial, porque atende apenas às necessidades pragmáticas da existência. Nesta Carta, o cacique Noah Sealth (1786-1866) nos informa do interesse que o “Grande Chefe” (o presidente americano) tem em comprar a sua terra. Diz que vai pensar em sua oferta, pois se não o fizer tem consciência de que “o homem branco virá com armas e tomará nossa terra”. Ao mesmo tempo, em suas palavras, soa o estranhamento em relação ao comportamento do homem civilizado perante a mãe terra: Como pode querer comprar ou vender o céu, o calor da terra? Tal idéia nos é estranha. Se não somos donos da pureza do ar ou do esplendor da água, como então pode comprá-los? Cada torrão desta terra é sagrado para meu povo. Cada folha reluzente do pinheiro, cada praia arenosa, cada véu de neblina na floresta escura, cada clareira e inseto a zumbir são sagrados nas tradições e na consciência do meu povo [...] Somos parte da terra e ela é parte de nós. As flores perfumadas são nossas irmãs: o cervo, o cavalo, a grande águia - são nossos irmãos. As montanhas rochosas, as fragrâncias dos bosques, o calor que emana do corpo de um potro e o homem - todos pertencem à mesma família [...] Os rios são nossos irmãos, eles apagam nossa sede. Os rios transportam nossas canoas e alimentam nossos filhos. Se lhe vendermos nossa terra terá de se lembrar e ensinar a seus filhos que os rios são irmãos nossos e seus, e terá de dispensar aos rios a afabilidade que daria a um irmão. (SEATTLE, s.d, p. 01) Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 6 Depois, o cacique Seattle diz que homem civilizado não compreende seu modo de viver e pensa apenas em explorar a terra ao seu bel prazer deixando para traz seu rastro de destruição: A terra não é sua irmã, mas sim sua inimiga, e depois de a conquistar, ele vai embora. Deixa para trás os túmulos de seus antepassados, e nem se importa. Arrebata a terra das mãos de seus filhos e não se importa. Ficam esquecidas a sepultura de seu pai e o direito de seus filhos à herança. Ele trata sua mãe a terra - e seu irmão - o céu - como coisas que podem ser compradas, saqueadas, vendidas como ovelhas ou miçangas cintilantes. Sua voracidade arruinará a terra, deixando para trás apenas um deserto. (SEATTLE, s.d, p. 02) Se decidir aceitar a oferta do presidente americano, o chefe indígena diz que o fará mediante uma condição: “o homem branco deve tratar os animais desta terra como se fossem seus irmãos”. Arrematando em seguida palavras que demonstram uma sabedoria louvável e desejável para qualquer homem ou mulher sobre a face da terra, ele diz constatando a barbárie civilizatória do homem branco e seu “cavalo de ferro”: Sou um selvagem e desconheço que possa ser de outro jeito. Tenho visto milhares de bisões apodrecendo na pradaria, abandonados pelo homem branco que os abatia a tiros disparados do trem em movimento. Sou um selvagem e não compreendo como um fumegante cavalo de ferro possa ser mais importante do que o bisão que (nós - os índios) matamos apenas para o sustento de nossa vida. O que é o homem sem os animais? Se todos os animais acabassem, o homem morreria de uma grande solidão de espírito. Porque tudo quanto acontece aos animais, logo acontece ao homem. Tudo está relacionado entre si. (SEATTLE, s.d, p. 03) Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 7 Logo depois, ele constata a condição degradante em que foram lançadas as populações indígenas no confinamento e prisão das “reservas” forjadas pelo Estado barbaramente civilizador, além de vislumbrar o desaparecimento de seu povo: Os nossos filhos viram os seus pais humilhados na derrota. Os nossos guerreiros sucumbem sob o peso da vergonha. E depois da derrota passam o tempo em ócio, envenenando seu corpo com alimentos adocicados e bebidas ardentes. Não tem grande importância onde passaremos os nossos últimos dias - eles não são muitos. Mais algumas horas, mesmo alguns invernos, e nenhum dos filhos das grandes tribos que viveram nesta terra ou que tem andado em pequenos bandos pelos bosques, sobrará para chorar, sobre nossos túmulos, um povo que um dia foi tão poderoso e cheio de confiança como o nosso. (SEATTLE, s.d, p. 03) Então, nessas sábias palavras do cacique americano da tribo Suquamish, proferidas há 154 anos, percebemos a força e o senso prático da sabedoria indígena que vai na contra-mão do conhecimento e do desenvolvimento técnico-científico e eurocêntrico colocados em prática no processo civilizador do Ocidente. É impossível não perceber, nessas sábias palavras do índio, o valor de uma ação fundado no seu modo de ver o mundo e viver a vida. Essa ação reflexiva sobre o mundo configura-se exatamente no conhecimento vulgar dos indígenas arraigado na experiência prática herdada dos seus antepassados e transmitida a sua geração. É necessário, então, seguirmos um atalho para pensar a condição da experiência nos tempos modernos e, se possível, relacionar com o conhecimento científico que acarretou de certa forma modificou a visão de mundo dos homens na sociedade burguesa. No ensaio “Experiência e pobreza”, Walter Benjamin faz um Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 8 diagnóstico de uma nova barbárie por força da “Pobreza de experiência” dos homens modernos no mundo burguês. A experiência de que nos fala Benjamin é exemplificada por uma pequena narrativa: Em nossos livros de leituras havia a parábola de um velho que no momento da morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos. Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio do tesouro. Com a chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a felicidade não está no ouro, mas no trabalho (BENJAMIN, 1994, p. 114). De acordo com Benjamin, essa pequena narrativa em forma de parábola corrobora o fato de que as experiências são passadas de pais para filhos, como legado de um patrimônio cultural fundamentado no conhecimento do senso comum enquanto um tipo de sabedoria transmitido de vários modos: Tais experiências nos foram transmitidas, de modo benevolente ou ameaçador, à medida que crescíamos... Sabia-se exatamente o significado da experiência: ela sempre fora comunicada aos jovens. De forma concisa, com a autoridade da velhice, em provérbios; de forma prolixa, com sua loquacidade, em histórias; muitas vezes como narrativas de países longínquos, diante da lareira, contadas a pais e netos. Que foi feito de tudo isso? Então, Benjamin afirma que “as ações da experiência”, que são a base do conhecimento vulgar, estão em decadência. Essa perda da experiência marcou justamente a geração que viveu, de modo catastrófico e traumático, as experiências da Primeira Guerra, em que todos os combatentes retornaram mudos e em que tais experiências foram “desmoralizadas” pela técnica mortífera da Guerra: “Uma nova forma de miséria surgiu com esse monstruoso desenvolvimento da técnica, sobrepondo-se ao homem” (BENJAMIN, 1994, 115). Assim, essa pobreza de Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 9 experiências diz respeito não só aos indivíduos, mas sim à toda humanidade. Foram abolidos os vestígios sobre a terra. Apagaram-se os rastros e os vestígios das experiências do patrimônio cultural que se desvinculou da vida quotidiana dos homens. A pobreza desses homens tornou-se superficialmente externa e interna. E pelo visto, segundo Benjamin, tanto os cientistas (Descartes, Einstein, Newton) quanto os artistas (Paul Klee, Adolf Loos, Paul Scheerbart) foram os construtores modernos de uma espécie de homem-máquina, tal como as figuras de Klee, pois sua expressão fisionômica foi forjada a partir de dentro, análogo à carroceria de um automóvel obedecendo a necessidade interna do motor: “Ao que está dentro, e não à interioridade: é por isso que elas são bárbaras” (BENJAMIN, 1994, 116). Enfim a perda da experiência, base do conhecimento do senso comum, significou a perda de orientação para as necessidades mais vitais da vida sobre a terra. Mas, em nossa contemporaneidade, nota-se uma compreensão revalorativa da sabedoria e do conhecimento prático da vida, vislumbrando aí a possibilidade de seu retorno. Essa compreensão se faz presente, por um outro viés e de modo complementar, nas palavras de Marcos Terena, embora este seja já um índio aculturado, buscando constatar que o conhecimento indígena contribui para o desenvolvimento da ciência. Ele afirma que houve o desaparecimento de mais de 700 povos indígenas e de sua língua, que expressava o conhecimento prático e partilhado com os seus, isto porque a nossa comunicação era falar com as pessoas. Contar para as pessoas, como quero contar agora, a beleza da filosofia indígena. As pessoas sempre consideraram este grande manancial de sabedoria como fonte, como Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 10 um banco de dados, uma biblioteca para sugar o conhecimento dos povos indígenas e depois fazerem as suas teses, as suas recomendações (TERENA apud MORRIN, 2000, p. 18) Para ele, conhecimento indígena, fincado na experiência da vida, foi usurpado pelos pesquisadores em nome do desenvolvimento intelectual, deturpado e transformado em produto e lucro econômico, relegando os índios a condição degradante da miséria social gerada pelo sistema capitalista. O que Marcos Terena propõe é um diálogo entre o conhecimento indígena e o conhecimento dos cientistas para que ambos sejam partilhados e úteis para tais povos. Essa parece ser também, por outro lado, a proposta de Boaventura em função do “paradigma emergente” do conhecimento científico pós-moderno em que deixa de existir a distinção homem versus natureza. O próprio conhecimento então passa a ser visto em sua totalidade, dialogando, revalorizando e incorporando outras formas de conhecimento, em especial “o conhecimento do senso comum, o conhecimento vulgar e prático com que no quotidiano orientamos as nossas acções e damos sentido à nossa vida” (BOAVENTURA, 1987, p. 55-56). Este teórico afirma que a ciência moderna, na mesma perspectiva de Hannah Arendt, foi forjada em contraposição ao conhecimento do senso comum, encarado como superficial, ilusório e falso. O grande mérito da “ciência pós-moderna” é buscar a reabilitação do conhecimento vulgar e prático por considerá-lo enriquecedor na relação dos homens com o mundo. Também sua importância reside em “uma dimensão utópica e libertadora que pode ser ampliada através do diálogo com o conhecimento científico” (BOAVENTURA, Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 11 1987, p. 56). Assim, a ciência pós-moderna ao postular a revalorização pragmática do senso comum não tende a desprezar o conhecimento científico-tecnológico, mas compreende que o “desenvolvimento tecnológico deve traduzir-se em sabedoria de vida” (BOAVENTURA, 1987, p. 57). Trazendo essas reflexões para analisar a visão de mundo do romancista Guimarães Rosa, presente na obra Grande sertão: veredas, diríamos que esse escritor mineiro parece assumir uma postura de contraposição ao conhecimento intelectual e científico, entendido desde a teoria cartesiana e o ponto vista arquimediano até o século XX. Enquanto pensador do sertão-mundo, Guimarães Rosa tende a valorizar os sentidos e o conhecimento do senso comum do homem sertanejo, onde não havia o distanciamento entre ele, seu saber e o próprio mundo por força de sua ação reflexiva e tino prático. Segundo o escritor, o homem não é composto apenas de cérebro. Eu diria mesmo que, para a maioria das pessoas, e não me excetuo, o cérebro tem pouca importância no decorrer da vida. O contrário seria terrível: a vida ficaria limitada a uma única operação matemática, que não necessitaria da aventura do desconhecido e inconsciente, nem do irracional. (ROSA apud LORENZ, 1983, p. 93). Assim, para ele, suas personagens, tal como o semi-civilizado Riobaldo, “que são um pouco de mim mesmo... não devem, não podem ser intelectuais, isso diminuiria sua humanidade”. Por isso, o saber de Riobaldo não se funda na lógica da mente, mas nas veredas de suas experiências e do “viver perigoso”, em função da condição humana de sua sobrevivência no mundo com os outros. O sentido da ação, em plena época moderna, na perspectiva de Guimarães Rosa e de seu personagem Riobaldo, Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 12 está em desmistificar, talvez na segurança dos cinco sentidos e talvez envolvido por dúvida, o pesadelo demoníaco do homem e da terra e libertando-os de um passado mergulhado na ignorância, mesmo se mantendo um católico libertino que bebe “de toda água e de todo rio”. Pela e na experiência, no senso comum, em prol dos próprios homens guiando-se pela sua sabedoria popular, a vida e o mundo, o presente e o passado, começa a relampejar, para usar um termo de Walter de Benjamin, na consciência inquieta e desassossegada do homem: “o real não está nem na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é nomeio da travessia” (ROSA, 2001, p. 80). Já na velhice de Riobaldo, por exemplo, suas conjecturas não surgiram das leis da mente, mas de suas memórias revisitadas e ao mesmo tempo avaliadas de modo reflexivo. Não nasceram das idéias para as coisas, como em Descartes, mas das coisas para as idéias, para a reflexão. Desse modo, o intelecto se constitui é na experiência, é na vivência e na sabedoria da própria vida em comum dos homens. Para Riobaldo formular suas certezas, ele teve de formulá-las com base nos sentidos vividos e revividos das suas experiências, quer sejam de modo inconsciente ou irracional dionisíaco, para compreender o mundo e o próprio homem buscando transformá-los. Portanto, o intelecto não é o único ponto de referência em que, como mostra Hannah Arendt, “lidamos apenas com configurações de nossa própria mente, a mente que projetou os instrumentos e submeteu a natureza às suas condições no experimento – impôs à natureza suas leis” (ARENDT, 1993, p. 299). Com isso, surge o Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 13 homo faber que, na sua atividade de calcular e de fabricar produtos, aliena-se dele próprio e do mundo em detrimento da ação reflexiva sobre o mundo. A preocupação de Guimarães Rosa é com o homem e com o mundo, por meio da atividade da ação e com a capacidade de reger sua liberdade e seu próprio destino, revelando assim a sua verdadeira condição humana. A condição de agir no próprio mundo, em cada aldeia, para que o valor das experiências do presente-passado junto com o auxílio do pensamento (mente) busque resolver os diversos problemas da humanidade e transformar o mundo, quem sabe orientado naquela premissa nietzschiana de que temos de ter “fidelidade à terra”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARENDT, Hannah. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 1995. BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Magia e Técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1994. LORENZ, Günter. Diálogo com Guimarães Rosa. In: ROSA, João Guimarães. Ficção completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. MORIN, Edgar. Saberes Globais e saberes locais: o olhar transdiciplinar. Rio de Janeiro: Garamond, 2000. PENA-VEJA, Alfredo, ALMEIDA, Cleide R. S. e PETRAGLIA, Izabel (orgs). Edgar Morin: ética, cultura e educação. São Paulo: Cortez, 2001. ROSA, Guimarães. Grande sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001. SANTOS, Boaventura de Souza. Um discurso sobre as ciências. São Paulo: Coimbra: Edições Afrontamento, 2001. Anais Eletrônicos do IV Seminário Nacional Literatura e Cultura São Cristóvão/SE: GELIC/UFS, V. 4, 3 e 4 de maio de 2012. ISSN: 2175-4128 14 SEALTH, Noah. A Carta do Cacique Seattle, em 1855. Disponível em: http://www.culturabrasil.pro.br/seattle1.htm. Acesso em 10 Dez. 2009, 22:30:00.