Moral, Direito e Política: Sobre a Teoria do Discurso de Habermas Luiz Bernardo Leite Araujo UERJ/CNPq I- Introdução: Teoria do Discurso e Pensamento Pós-metafísico “Estou esgaravatando, um pouco aqui, um pouco acolá, à procura dos vestígios de uma razão que reconduza, sem apagar as distâncias, que una, sem reduzir o que é distinto ao mesmo denominador, que entre estranhos torne reconhecível o que é comum, mas deixe ao outro a sua alteridade”1. Estas palavras de Jürgen Habermas, extraídas de uma entrevista concedida há cerca de dez anos atrás, assinalam uma perspectiva geral de pensamento que o autor trata de desenvolver em problemas particulares com os quais depara, seguindo assim um método de pesquisa que, sem perder a visão de conjunto própria do saber filosófico, resiste ao monismo unificador das teorias tradicionais. As contribuições de Habermas nos campos da moral, do direito e da política ilustram sobremaneira tal perspectiva, tanto na forma de apresentação quanto nos resultados da investigação, razão pela qual uma apresentação da teoria discursiva torna indispensável a mirada retrospectiva sobre alguns elementos fundamentais do pensamento habermasiano, elaborados ao longo de uma trajetória acadêmica já cinqüentenária, cujo eixo norteador reside no conceito de agir comunicativo. A Teoria do Discurso deve ser considerada, em primeiro lugar, através de uma guinada lingüística ou pragmático-formal que Habermas assume em seu projeto teórico, desde sua incipiente formulação no quadro conceitual2 traçado com base na releitura das categorias hegelianas do trabalho e da interação até seu contorno definitivo nos temas incorporados na obra magna3 a partir de quatro teorias complementares: (i) a teoria do agir comunicativo, que tece um conceito constitutivo de ação social orientada à intercompreensão; (ii) a teoria da sociedade, que desenvolve um conceito de sociedade integrando a teoria dos sistemas com a teoria da ação, de modo a distinguir e conjugar a esfera sistêmica e a esfera do mundo vivido; (iii) a teoria da racionalidade, que elabora uma noção mais englobante de razão, com a conseqüente superação da perspectiva monológica da filosofia do sujeito; (iv) a teoria da modernidade, que propõe uma nova leitura da dialética da racionalização social, pela qual se possa discernir os fenômenos patológicos a fim de contribuir para um redirecionamento, em vez de um mero abandono, do projeto da modernidade. No amplo e sinuoso percurso de constituição da teoria discursiva, a noção de agir comunicativo representa seu ponto de unidade e seu fio de continuidade, pois é ela que permite a Habermas elaborar um conceito formal de racionalidade apropriado ao horizonte da modernidade e fundamentar uma concepção de sociedade baseada no conceito de razão mencionado acima pelo autor. 2 Além desse giro lingüístico, três outros motivos que caracterizam o que Habermas chama de pensamento pós-metafísico emigram para sua própria teoria: a racionalidade procedimental, o modo de situar a razão e a deflação do extraordinário no seio da filosofia4. De fato, Habermas concebe a teoria do agir comunicativo baseada numa racionalidade de procedimentos, prolongando a linha do novo tipo de racionalidade metódica que se impõe desde o final do século XVII e início do século XVIII, que significa, no campo do saber teórico, o falibilismo da ciência, e no campo do saber prático, o formalismo da moral e do direito. “Passa a valer como racional”, afirma o autor, “não mais a ordem das coisas encontrada no próprio mundo ou concebida pelo sujeito, nem aquela surgida do processo de formação do espírito, mas somente a solução de problemas que aparecem no momento em que se manipula a realidade de modo metodicamente correto. A racionalidade do procedimento não está mais em condições de garantir uma unidade antecipada na pluralidade dos fenômenos”5. Assim, Habermas pretende colocar a filosofia numa divisão de trabalho junto às outras ciências, isto é, na posição de participante num processo de cooperação. Além disso, na esteira de uma crítica ao saber absoluto da metafísica, a teoria habermasiana busca destranscendentalizar a razão, a fim de trazê-la ao chão do mundo vivido e às condições concretas e contingentes da prática, sem perder, entretanto, o horizonte das idealizações inevitáveis e necessárias que se abre em cada ato de fala, realizado argumentativamente. Finalmente, será crucial a explosão do clássico primado da teoria frente à prática. Esse processo é acolhido dentro da teoria do agir comunicativo não nos termos de uma liquidação da pretensão racional do pensamento filosófico e sim de um encolhimento dos seus papéis tradicionais. À filosofia não cabe mais o papel de indicador de lugar relativo às ciências e nem o de juiz frente à cultura, mas ela pode e deve assumir o posto de cooperadora das ciências e de intérprete, trazendo para o horizonte do mundo vivido, realimentando-o através da linguagem argumentativa da crítica, as estruturas de pensamento envolvidas num ambiente cultural cada vez mais especializado6. É, portanto, no âmbito de um universo pós-metafísico de pensamento que se deve situar os temas fundamentais da Teoria do Discurso. Estes, por seu turno, podem ser vislumbrados através de uma conexão entre as teorias da ação e da sociedade, por um lado, e entre as teorias da racionalidade e da modernidade, por outro. É o que mostraremos a seguir numa mirada retrospectiva. Num segundo momento, apresentaremos os aspectos centrais da teoria discursiva da moral, do direito e da política. II- Os fundamentos de uma teoria do agir comunicativo De início, Habermas propõe sua teoria da ação a partir de uma rejeição da versão “oficial” da racionalidade weberiana - cuja tipologia da ação repousa numa compreensão 3 monológica (sujeito solitário) e num modelo teleológico (ação relativa a fins) - e de uma ampliação da versão “oficiosa” - cuja tipologia da ação tem por base uma compreensão dialógica (relação entre ao menos dois sujeitos capazes de falar e de agir) e um modelo de interação social (agir comunicativo). Destarte, o autor reformula o conceito weberiano de racionalidade no plano de uma teoria da ação que se vincula à tradição da filosofia pós-wittgensteiniana da linguagem, sobretudo à teoria dos atos de fala7. Segundo Habermas, essa teoria permite construir uma espécie de síntese entre a ação e a linguagem, pela qual fica evidente que apenas as ações lingüísticas às quais o falante vincula uma pretensão de validade criticável são capazes de levar o ouvinte a aceitar a oferta contida num ato de fala, podendo assim se tornar eficazes como mecanismo de coordenação das ações. Contudo, essa síntese entre ação e linguagem não significa uma identificação entre o “falar” e o “agir”. Ao contrário. A teoria dos atos de fala possibilita precisamente distinguir as “ações lingüísticas” das “ações” no sentido estrito do termo8. O aspecto fundamental é a distinção entre atos perlocucionários e atos ilocucionários. Enquanto para os atos ilocucionários o que é constitutivo é o significado do enunciado, para os atos perlocucionários o que é capital é a intenção do agente. É apenas com base nos atos ilocucionários que Habermas considera possível elucidar os conceitos de “intercompreensão” e de “agir orientado ao entendimento mútuo”, pois é quando o locutor atinge seu objetivo ilocucionário que tem êxito a tentativa de reconhecimento intersubjetivo embutida em todo ato de fala. No cerne da teoria habermasiana da ação está a distinção entre a ação “orientada ao sucesso” (erfolgsorientiert) e a ação “orientada à intercompreensão” (verständigungsorientiert) uma renovada configuração daquele binômio “trabalho” e “interação” extraído da filosofia do espírito do jovem Hegel. Levando-se também em conta as situações da ação, ou seja, sociais e não-sociais, podemos compreender a importância concedida por Habermas à noção de agir comunicativo: trata-se do único tipo de acão social orientada à intercompreensão. “O conceito de ‘agir comunicativo’, diz Habermas, “que leva em conta o entendimento lingüístico como mecanismo de coordenação da ação, faz com que as suposições contrafactuais dos atores que orientam seu agir por pretensões de validade adquiram relevância imediata para a construção e a manutenção de ordens sociais: pois estas mantém-se no modo do reconhecimento de pretensões de validade normativas. Isso significa que a tensão entre facticidade e validade, embutida na linguagem e no uso da linguagem, retorna ao modo de integração de indivíduos socializados - ao menos de indivíduos socializados comunicativamente - devendo ser trabalhada pelos participantes”9. A citação, extraída da principal obra de Habermas em matéria de filosofia política e filosofia do direito, permite-nos perceber a conexão entre as teorias da ação e da sociedade. Ele sabe que a linguagem, enquanto veículo primário de intercompreensão, se sobrecarrega de tarefas no âmbito das sociedades modernas desencantadas, resultado da mudança 4 progressiva do agir ritual pelo agir comunicativo nas funções de reprodução social. Habermas propõe, então, uma nova e complexa conexão dos conceitos básicos da teoria da ação com os da teoria dos sistemas. A impotência do agir comunicativo diante da complexidade do mundo moderno obriga-o a integrar a perspectiva sistêmica na teoria da sociedade, tendo em conta dois tipos de coordenação das ações: a que é obtida por intermédio do consenso dos participantes (perspectiva do mundo vivido) e a que é realizada pela via funcional dos observadores (ótica do sistema). A distinção entre “sistema”, por um lado, e “mundo vivido”, por outro, possibilita especificar duas esferas de reprodução social - material e simbólica -, com funções diferentes no plano da integração - sistêmica, de um lado, social, de outro -, associadas a seus respectivos contextos de ação, isto é: estratégica e comunicativa. Habermas integra a teoria do agir com a teoria dos sistemas, evitando uma absorção da primeira pela segunda através de sua noção bipolar de sociedade, pela qual combina as análises hermenêutica e funcionalista. Em Habermas, a teoria da ação tem primazia sobre a teoria sistêmica, pois ele estabelece primeiro os eixos de uma teoria da ação que, como vimos, repousa no conceito de agir comunicativo, para, em seguida, incorporar a perspectiva do sistema, e não o contrário. Nessa linha, o “mundo vivido” é um conceito complementar do “agir comunicativo”, na medida em que o primeiro representa o background social da ação orientada ao mútuo entendimento e o segundo o medium da reprodução simbólica do mundo da vida10. Veremos oportunamente que essas formas distintas, inconfundíveis, de coordenação das ações sociais - estratégica e comunicativa - servem de fundamento para a explicação habermasiana do caráter dual do direito moderno. Por ora, e mantendo-nos ainda no âmbito da reconstrução de seu pensamento, cabe assinalar que é a determinação do mundo vivido, como base para as pretensões de validade, o que revela a existência de um acordo prévio, o qual deve ser restaurado formalmente através da comunicação desobstruída e, no caso das questões práticas, através de um procedimento discursivo que sirva de justificação de normas de ação em geral, fundidas em nossa relação não-problemática com o mundo. Nesse campo de saberes préteóricos, que somente se deixa acessar por intermédio da linguagem e que é a base na qual apoiamos nossas pretensões de validade, situa-se o horizonte compartilhado das noções de “verdade” (Wahrheit), de “correção” (Richtigkeit) e de “veracidade” (Wahrhaftifkeit). Resulta daí o resgate habermasiano de uma razão comunicativa incrustada no vínculo instaurado entre os indivíduos através da linguagem, fruto da mudança do paradigma representado por uma razão centrada no sujeito monológico - inaugurado por Descartes, reiterado na análise transcendental de Kant, prolongado por Husserl e amplamente presente na contemporaneidade - pelo paradigma da intersubjetividade. Neste caso, o privilégio é dado não à mera atitude objetivante do sujeito frente ao mundo como totalidade, mas à atitude performativa adotada pelos participantes de 5 qualquer interação mediada pela linguagem. Tal conceito de razão torna possível uma compreensão descentrada do mundo, que permite a adoção de várias atitudes - objetivante, normativa e expressiva - com relação aos diferentes “mundos” - objetivo, social e subjetivo. Habermas evidencia o fato de que as três formas de racionalidade - cognitiva, moral e estética -, constitutivas do conceito moderno de razão (referentes às esferas culturais de valor anotadas por Weber e provenientes da arquitetônica kantiana da razão pura), estabilizam-se em processos de aprendizagem permanentes e cumulativos. Porém, a razão comunicativa não deve ser identificada com os tipos constitutivos da razão moderna. Ela funciona, em correta acepção, como sua matriz ou princípio produtivo, enraizada no contexto do mundo vivido ou do agir comunicativo. É precisamente pelo fato de não estar solidificada nas formas objetivas da racionalidade, por seu caráter informal e fluido, em que pese sua expressão originária, que Habermas designa a razão comunicativa como uma razão “tênue” ou “fraca” (schwache Vernunft)11. Tal conceito de razão está associado aos processos de entendimento nos quais os participantes desempenham papéis de falantes e ouvintes. Em todas as interações lingüisticamente mediadas os falantes erguem pretensões de validade inerentes a seus atos de fala, relativas aos três setores básicos da realidade: “natureza externa” ou mundo objetivo (como conjunto dos estados de coisas existentes), “sociedade” ou mundo social (como conjunto das relações interpessoais legitimamente reguladas) e, por último, “natureza interna” ou mundo subjetivo (como conjunto das vivências a que todo locutor tem acesso privilegiado)12. A pressuposição fundamental para uma teoria da racionalidade é que as respectivas pretensões de validade levantadas por atos de fala - constatativos, regulativos e expressivos - podem ser criticadas e fundamentadas. Assim, na prática comunicativa cotidiana, o reconhecimento mútuo se processa com base nas pretensões de validade criticáveis, pelas quais o consenso é visado. Este é imediato, no caso de um assentimento do auditor à oferta do ato de fala do locutor. No caso de uma rejeição, têm início os discursos argumentativos, que são prolongamentos do agir comunicativo por outros meios, uma espécie de ruptura no curso normal da interação, pelos quais busca-se honrar as pretensões de validade pela força não coerciva do melhor argumento. A intercompreensão, tida por Habermas como um telos da linguagem humana, representa o processo pelo qual se realiza um acordo, na base pressuposta de pretensões de validade mutuamente reconhecidas. Ora, tal acordo significa que os participantes do processo argumentativo aceitam a validade de um saber, vale dizer, sua força de obrigação intersubjetiva. Neste sentido, Habermas fala em saber compartilhado, quando é constitutivo de um consenso “racionalmente motivado”, termo que serve para distinguir do mero compromisso e sobretudo de um consenso falacioso.E é precisamente nos pressupostos pragmáticos inerentes à linguagem 6 que está embutida a noção de razão comunicativa, que fixa critérios de racionalidade em função dos procedimentos argumentativos pelos quais resgatam-se as pretensões de validade associadas aos três conceitos formais de mundo. Em suma: a razão comunicativa é um conceito procedimental de racionalidade, que se expressa numa compreensão descentrada de mundo13. Esse descentramento, constitutivo de uma perspectiva que conduz os participantes na fala argumentativa à superação da subjetividade inicial de suas respectivas concepções, revela o fato de que, para Habermas, a noção de razão comunicativa é produto da superação moderna das visões globais de mundo, de caráter religioso ou metafísico, as quais mantinham cingidos os conceitos formais de mundo e suas respectivas pretensões de validade. Não resta dúvida que é o programa desta razão procedimental, diferenciada e pós-convencional, mediadora formal dos aspectos plurais da realidade, que Habermas designa como projeto da modernidade, que ele considera atual e inacabado14. Assim, a idéia central da teoria habermasiana da modernidade é a de que um diagnóstico crítico de nossa época deve colocar em evidência não um excesso mas uma insuficiência de razão15, tratando-se aqui, bem entendido, de uma razão talhada em molde lingüístico, que evita a um só tempo a Cila do absolutismo e a Caribide do relativismo. Em nosso contexto, vale destacar um aspecto essencial das diversas teorias elaboradas em torno do paradigma do agir comunicativo, quer dizer: o vínculo interno, portanto não contingente, entre modernidade e racionalidade. No entender de Habermas, a razão moderna sempre produz alternativas a partir de si mesma, ainda quando se trata de denunciar suas próprias patologias. Aliás, a questão da autofundamentação, a tarefa imperativa de buscar em si mesma seus fundamentos, longe das sugestões normativas de um passado já superado, tornou-se o problema maior da modernidade. Ora, pela introdução do tema, segundo a via da autocrítica, e pela precisão das regras, de acordo com a dialética do esclarecimento, Hegel inaugurou, segundo Habermas, o discurso crítico da modernidade, propondo uma leitura emblemática de nossa época16. Assim sendo, a representação racional, por um lado, e a crítica determinada, por outro, são movimentos indissolúveis da autoconsciência filosófica dos tempos modernos, posta em evidência por Hegel, fraturada por sua herança conservadora e bombardeada em seu núcleo pela tradição oriunda de Nietzsche. Aqueles que prosseguem, de forma crítica, o projeto da modernidade, são confrontados com adversários que possuem em comum tanto a sensação de ruptura com seu horizonte categorial quanto a resolução de desperdir-se dele. Evitando colocar na berlinda o projeto moderno, Habermas, longe da aprovação entusiástica do desenvolvimento pós-iluminista, acredita em sua continuidade, isto é, na releitura atenta de seu sentido interno de caráter universal. Tal projeto da modernidade17, na visão do filósofo alemão, se caracteriza, entre outras coisas, por uma avaliação positiva, ainda que crítica, da racionalidade e de seus progressos, por uma defesa clara da democracia como forma madura de resolução dos conflitos 7 e, finalmente, pela convicção inabalável de que as questões normativas são suscetíveis de discussão argumentativa. Essas características aparecem claramente na maneira como Habermas desenvolve sua contribuição no campo da filosofia prática. III- Facticidade e Validade: a teoria discursiva da moral, do direito e da política “Hoje como outrora, em matéria de filosofia prática, a discussão se nutre de três fontes - a ética aristotélica, o utilitarismo e a teoria moral kantiana. Neste campo argumentativo rico em tensões, duas partes se vinculam a Hegel, que, com sua teoria do espírito objetivo e da «suprassunção» da moralidade na eticidade, pretendeu efetuar uma síntese entre o pensamento comunitário clássico e o pensamento da liberdade moderna e individualista”18. Esta afirmação de Habermas ajuda a compreender a posição ocupada pela teoria discursiva no campo da filosofia prática em geral. Evidentemente, não é tão simples propor um quadro de interpretação das diversas tendências que se afirmaram nos últimos anos, mas certamente a Teoria do Discurso é um programa situado na linha kantiana das novas teorias morais, levando em conta aspectos significativos de outras concepções concorrentes. Trata-se de uma concepção, por assim dizer, kantiana pós-hegeliana da justiça e da razão prática que se inscreve num universo pós-metafísico de pensamento. De acordo com a leitura de Habermas, com efeito, a querela entre os filósofos gravita ainda hoje em torno do preço que Kant teve de pagar para estabelecer um conceito pósmetafísico de moral autônoma19. Tal preço está estreitamente ligado às características capitais da filosofia moral kantiana - o deontologismo, o cognitivismo, o formalismo e o universalismo -, cuja tarefa principal era a de fundamentar o ponto de vista da imparcialidade do juízo moral. Os conceitos universalistas de moral oriundos da perspectiva aberta por Kant parecem conduzir a enormes abstrações, dentre as quais cabe citar a dos motivos requeridos para agir moralmente, a da situação dada a cada momento e a da vida ética concreta: o deontologismo, em primeiro lugar, leva à separação abstrata entre o justo e o bem, entre o dever e a inclinação; o cognitivismo, em seguida, torna o agente moral insensível em face do contexto e surdo diante das conseqüências da ação; o formalismo, enfim, com sua abstração das instituições e formas de vida existentes, dá origem aos conceitos atomistas de pessoa e contratualistas de sociedade. Todas essas críticas, tomadas cum grano salis pela Teoria do Discurso, situa-nos, sob as condições do pensamento pós-metafísico, diante das alternatives de um retorno ao aristotelismo ou de uma modificação da abordagem kantiana. A transformação do universalismo moral de Kant é a via escolhida por Habermas como a única possível perante os desafios éticos e políticos contemporâneos. Se tomarmos a última passagem citada, poderemos constatar o alcance dessa reformulação intersubjetivista da ética kantiana e compreender a posição ocupada pela teoria 8 discursiva no debate contemporâneo em filosofia moral, em filosofia do direito e em filosofia política. Trata-se da manutenção do estádio pós-convencional da identidade moral alcançado pelas abordagens universalistas, associada a uma consideração efetiva das reservas em face das abstrações deontológicas, cognitivistas e formalistas de que elas são portadoras. Ora, a filosofia de Hegel é novamente fundamental nesta problemática. Assim como é possível, como vimos, fazer uma reconstrução do discurso filosófico da modernidade baseando-se na posteridade hegeliana, e daí distinguir certas perspectivas críticas da razão moderna, Habermas considera que as direções tomadas pela filosofia prática na contemporaneidade estão bastante determinadas pelo modo de absorção das objeções que Hegel, em seu tempo, havia erguido contra a moral kantiana. Ele pensa particularmente em duas tendências, inspiradas em Aristóteles e Kant - às quais deve ser acrescentado o caso especial do utilitarismo, como a variante mais conhecida do conseqüencialismo moderno -, que visam fundar a moral sobre uma base pós-metafísica. “Enquanto os comunitaristas se apropriam da herança hegeliana a partir da perspectiva da ética aristotélica do bem, e abandonam o universalismo próprio ao direito racional, a Ética do Discurso leva em conta a teoria hegeliana do reconhecimento com vistas a uma leitura intersubjetivista do imperativo categórico, sem por isso pagar o preço de uma dissolução da moralidade na eticidade. Ela se atém firmemente, como Hegel, à relação interna entre justiça e solidariedade, mas num espírito kantiano”20. Isto significa que a teoria discursiva reivindica seu lugar na tradição kantiana de uma moral deontológica (concentrada na questão da fundamentação da validez prescritiva de mandamentos ou normas de ação), cognitivista (fundada na idéia segundo a qual a decisão de agir conforme uma certa norma, bem como a escolha da norma enquanto tal, são suscetíveis de argumentação racional), formalista (limitada ao estabelecimento de um princípio ou procedimento de justificação das normas), e, por último, universalista (defensora da superação dos limites históricos e culturais pelas estruturas “transcendentes” da comunicação, nas quais se baseia a fundamentação daquele princípio), sem expor-se, contudo, às objeções do contextualismo contemporâneo. A incorporação de certos motivos capitais do utilitarismo e da ética aristotélica explica-se justamente pela recuperação das críticas bem fundadas em face de uma ética abstrata da convicção. A transformação da filosofia moral de Kant pode ser apreendida a partir de três diferenças que, segundo Habermas, separam-na da teoria discursiva, a qual abandona a doutrina dos dois reinos, supera o caráter puramente monológico e modifica o modelo dogmático da fundamentação kantiana da moral. O núcleo dessa transformação reside na passagem de uma perspectiva concentrada sobre os sujeitos isolados, na qual o poder de autolegislação é outorgado à simples competência dos indivíduos, para uma interpretação dialógica do imperativo categórico em que predomina a idéia do entendimento mútuo visado por meio de uma discussão racional. 9 Essa estratégia de reinterpretação discursiva do imperativo categórico permite afirmar, a um só tempo, o vínculo kantiano entre universalismo e cognitivismo e a tese hegeliana da individuação como um processo de socialização. Naquele ensaio dos anos sessenta sobre a filosofia do espírito do jovem Hegel21, Habermas já acenava para a importância da dialética da relação moral como meio originário de formação da identidade dos indivíduos. Ora, a compreensão da consciênciade-si como resultado de uma “luta pelo reconhecimento” permitiu a Hegel criticar o conceito kantiano de autonomia da vontade, apontando no filósofo de Kœnigsberg a redução da ação moral a uma forma de ação monológica, cujo desenlace é a harmonização da vontade particular com a vontade universal por intermédio do teste da universalização. Se a máxima da ação é corretamente universalizada, o sujeito individual poderá afirmar que descobriu uma lei racional, válida para todos: a intersubjetividade será atingida monologicamente por uma harmonia racional pré-estabelecida. Mas um tal procedimento elide o fato de que os sujeitos estão implicados num contexto de interação fundado no reconhecimento recíproco22. “Do fato de que as pessoas só se tornam indivíduos através de sua socialização”, afirma Habermas num texto recente, “segue-se que o respeito moral dirige-se igualmente ao indivíduo insubstituível e ao membro de uma comunidade, associando assim a justiça à solidariedade”23. Os dois últimos conceitos designam princípios distintos, mas complementares, que se referem à mesma e única raíz da moral, entendida como um sistema de proteção de seres humanos vulneráveis, individuados pela via da socialização. São dois pólos correspondentes aos aspectos igualmente importantes dos direitos dos indivíduos (igual respeito) e do bem da comunidade (responsabilidade solidária). Nesta ótica, compreende-se porque Habermas considera que o debate entre liberais e comunitaristas, no qual o ponto de litígio central é o da prioridade do justo sobre o bem24, não interessa à teoria discursiva senão sob o aspecto epistemológico e não de ontologia social, porquanto “as objeções comunitaristas contra a noção individualista de pessoa, ou contra os conceitos instrumentalistas de sociedade, não afetam os conceitos fundamentais da Ética do Discurso (...). Esta adota uma posição intermediária, na medida em que compartilha, com os liberais, a compreensão deontológica da liberdade, da moralidade e do direito oriunda da tradição kantiana, e com os comunitaristas, a compreensão intersubjetivista da individuação como socialização proveniente da tradição hegeliana”25. Contudo, a Teoria do Discurso extrai da ampla e crescente reflexividade das tradições culturais inseridas na modernidade a idéia da estabilização de uma concepção procedimental da razão prática, apoiada num confronto argumentativo desprovido de fundamento absoluto transcendente. No contexto moderno do pluralismo inevitável das formas de vida, uma teoria pós-metafísica da justiça deve ser fundada numa concepção pragmática da comunicação, vale lembrar, baseada no reconhecimento 10 discursivo de pretensões de validade inerentes a todo ato de fala, razão pela qual o conceito de justiça adequado ao contexto pós-metafísico do pensamento é inconciliável com quaisquer interpretações fundamentalistas do mundo26. A teoria discursiva, na verdade, está situada no seio de uma antinomia entre absolutismo e relativismo, procurando evitar ao mesmo tempo o fundacionalismo metafísico e o reconstrucionismo historicista através de uma renovada articulação entre os princípios universais de justiça e as concepções particulares do bem, um problema que está no cerne da filosofia prática em geral27. Neste sentido, Habermas sugere a retomada do tema clássico da unidade da razão prática no quadro da pragmática lingüística, para apreender usos, aspectos, modos de discurso e resultados distintos - pragmáticos, éticos e morais - relacionados à mesma e decisiva questão do “dever-ser” (Sollen). A pretensão introduzida pela teoria discursiva, ainda que mantida a defesa clara e explícita do primado do justo sobre o bem e do conceito universalista de moral, com base no modelo discursivo de racionalidade que fecunda a releitura dialógica do imperativo categórico kantiano, é a da incorporação de motivos críticos bem fundados do conseqüencialismo moderno e do eudaimonismo do pensamento clássico. O objetivo principal, ao adotar-se a leitura sugerida, é o da conjugação da liberdade dos antigos com a liberdade dos modernos, isto é, da autonomia “pública” republicana com a autonomia “privada liberal”, de modo a assegurar o vínculo interno entre a soberania popular e os direitos humanos. A relação interna entre direitos humanos e soberania popular, ou ainda a idéia de que o Estado de direito não é possível sem democracia participativa, é uma intuição central da Teoria do Discurso, apreendida com base na releitura de duas interpretações contrárias e conflitantes na filosofia política, representadas pelo liberalismo clássico e pelo republicanismo cívico28. Na tradição liberal, que remonta a Locke, a ênfase é posta no caráter impessoal das leis e na proteção das liberdades individuais, de tal modo que o processo democrático é compelido por (e está ao serviço dos) direitos pessoais que garantem a cada indivíduo a liberdade de buscar sua própria realização. Cristalizou-se aqui uma compreensão individualista e instrumentalista do papel dos cidadãos. A cidadania é concebida de acordo com o modelo de uma pertença organizacional capaz de fundamentar uma posição jurídica, ou seja, os indivíduos permanecem exteriores ao Estado, contribuindo de certa maneira para a sua reprodução, através de eleições e pagamento de impostos, a fim de conseguir em troca benefícios organizacionais. Na tradição republicana, que remonta a Rousseau, a primazia é dada ao processo democrático enquanto tal, entendido como uma deliberação coletiva que conduz os cidadãos à procura do entendimento sobre o bem comum. Nesta visão, a liberdade humana tem sua máxima expressão não na busca de preferências privadas e sim na autolegislação mediante a participação política. A cidadania é vista através do modelo da pertença a uma comunidade ético-cultural que se determina a si 11 mesma, ou seja, os indivíduos estão integrados na comunidade política como partes num todo, de tal maneira que, para formar sua identidade pessoal e social, eles necessitam do horizonte de tradições comuns e de instituições políticas reconhecidas29. Tais divergências não são inteiramente surpreendentes se levarmos em conta o fato de que o pensamento democrático moderno forjou-se em meio a um conflito interno entre duas noções radicalmente distintas de liberdade, exemplarmente comparadas por Benjamin Constant30 sob os títulos de liberdade dos “modernos” e liberdade dos “antigos”. A tradição liberal atribui maior peso à primeira, sobretudo à liberdade de consciência e de pensamento, ao passo que a tradição republicana dá maior importância à segunda, particularmente às chamadas liberdades políticas iguais. Sendo assim, ambas concorrem a partir de concepções unilaterais que concebem, por um lado, os “direitos humanos” como expressão de uma autodeterminação moral, e, por outro lado, a “soberania popular” como expressão de uma auto-realização ética. De acordo com a interpretação liberal, os cidadãos não se distinguem essencialmente das pessoas privadas que fazem valer seus interesses pré-políticos contra o aparelho estatal, e por isso a prioridade recai sobre as liberdades negativas que asseguram o exercício da autonomia individual. Segundo a interpretação republicana, ao contrário, a cidadania se atualiza somente na prática de autodeterminação coletiva, razão pela qual.o primado incide sobre a autonomia política dos cidadãos, que constitui um fim em si mesmo e que ninguém pode realizar perseguindo privadamente interesses próprios, pois pressupõe o caminho comum de uma prática intersubjetiva. O liberalismo e o republicanismo tendem a ressaltar apenas um dos aspectos da autonomia dos indivíduos como base da legitimidade democrática. Ao defender uma relação interna entre autonomia privada e autonomia pública, a Teoria do Discurso pretende fazer justiça a ambas as tradições, isto é, proporcionar uma justificação do Estado de direito democrático na qual direitos humanos e soberania popular desempenham papéis distintos, irredutíveis, porém complementares. É de uma tal justificação que provém o modelo procedimental da teoria discursiva da moral e da política, uma vez que para demonstrar a tese de uma relação interna entre democracia e estado constitucional é necessário introduzir um princípio de validação imparcial de normas, conceitualmente anterior à própria distinção entre a moral e o direito, cuja formulação é a seguinte: “São validas as normas de ação às quais todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais”31. O princípio do discurso (D) permite evitar tanto uma interpretação moralizante do direito quanto seu confinamento em afirmações comunitárias de valores compartilhados, apontando para um modelo de legitimação que solda a cisão liberal-republicana. Em face do problema de integração das sociedades modernas pluralizadas e secularizadas, nas quais as ordens normativas devem ser mantidas sem as garantias meta-sociais de natureza religiosa ou 12 metafísica, Habermas adota uma compreensão procedimental da razão prática em cujo cerne está a expectativa da qualidade racional dos resultados obtidos através da ampla e livre discussão entre os participantes de processos argumentativos fundados no princípio do discurso. Enquanto princípio de justificação imparcial das normas de ação em geral, o princípio do discurso (D) está igualmente na base da moralidade e do direito. E é graças à mencionada diferenciação de usos da razão prática32 que Habermas insiste no delineamento sutil entre tal princípio, que explicita o sentido da imparcialidade de juízos práticos, e sua especificação como princípio moral (U) segundo o qual “toda norma válida deve satisfazer a condição de que as conseqüências e efeitos colaterais, que (previsivelmente) resultarem para a satisfação dos interesses de cada um dos indivíduos do fato de ser ela universalmente seguida, possam ser aceitos por todos os concernidos”33 - ou como princípio da democracia (De) - de acordo com o qual “somente podem pretender validade legítima as leis jurídicas capazes de encontrar o assentimento de todos os parceiros do direito, num processo jurídico de normatização discursiva”34. A nova formulação do princípio discursivo possui uma dupla vantagem, oriunda de seu alto grau de abstração, em relação àquela originalmente apresentada por Habermas35. Em primeiro lugar, as normas de ação às quais ela se refere não prejulga o contexto em que estão inseridas, cabendo ao princípio da democracia (De) a especificação como normas que manifestam as propriedades formais das normas jurídicas. Em segundo lugar, os discursos racionais envolvem variadas formas de argumentação que estão abertas a contribuições e informações relacionadas com temas morais, ético-políticos e pragmáticos, incumbindo ao princípio moral (U) a restrição do amplo espectro de questionamentos para o tipo de discurso no qual apenas argumentos morais são decisivos. Embora distintos, os princípios da moral e da democracia não estão ordenados hierarquicamente. Para Habermas, ao contrário, eles são complementares, de tal modo que a legitimidade jurídica não pode ser assimilada à validade moral, como no caso do jusnaturalismo, e tampouco o direito deve estar completamente separado da moral, como defende o positivismo. O direito é compreendido como um complemento funcional da moralidade pós-tradicional, compensando assim vários de seus déficits, tais como os da indeterminação cognitiva e da incerteza motivacional. Além disto, Habermas defende que o princípio da democracia não está subordinado a um sistema de direitos, e sim que eles se constituem de modo co-originário, explicando-se reciprocramente. “Por isso”, afirma o autor, “o princípio da democracia só pode aparecer como núcleo de um sistema de direitos”36. A idéia básica é que o sistema de direitos pode ser desenvolvido a partir da interligação entre o princípio do discurso e a forma jurídica, processo a que Habermas dá o nome de gênese lógica dos direitos. Tal sistema de direitos, reconhecido por cidadãos que desejam regular a vida em comum por meio do direito positivo, delineia as condições gerais necessárias para a institucionalização de processos democráticos de 13 discussão no âmbito do direito e da política. Habermas aponta cinco categorias básicas de direitos, que incluem direitos à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação, ao status de membro na comunidade política, à proteção jurídica individual, ao exercício da autonomia política e a condições básicas de vida que possam garantir a oportunidade de exercer as outras categorias de direitos elencados. “Quando introduzimos o sistema dos direitos desta maneira”, conclui Habermas, “torna-se compreensível a interligação entre soberania do povo e direitos humanos, portanto a co-originariedade da autonomia política e da privada. Com isso não se reduz o espaço da autonomia política dos cidadãos através de direitos naturais ou morais, que apenas esperam para ser colocados em vigor, nem se instrumentaliza simplesmente a autonomia privada dos indivíduos para fins de uma legislação soberana. Nada vem antes da prática de autodeterminação dos cidadãos, a não ser, de um lado, o princípio do discurso, que está inserido nas condições de socialização comunicativa em geral, e, de outro lado o medium do direito”37. Como se pode notar, a questão central da legitimidade é abordada através da racionalidade própria do direito moderno, assegurada pelo vínculo entre a autonomia privada e a autonomia pública de cidadãos integrados socialmente através do agir comunicativo38. O modelo habermasiano de democracia “procedimental” - termo que serve para designar a tentativa de realização dos direitos vinculados às duas formas de autonomia dos cidadãos através da incorporação de discursos pragmáticos, ético-políticos e morais em marcos institucionais -, é introduzido também pelo contraste entre as alternativas clássicas republicana e liberal. Como o modelo republicano, rejeita-se a visão do processo político como sendo primariamente a competição entre preferências privadas. Como o modelo liberal, entretanto, considera-se a visão de uma cidadania unificada e ativamente motivada por uma concepção compartilhada do mundo como irrealista nas sociedades modernas pluralistas. Tais modelos procedem, na verdade, de um mesmo conceito de sociedade centrada no Estado, embora este último seja tido como o protetor de uma sociedade econômica ou como a institucionalização de uma comunidade ética, em cada caso particular. Na visão liberal, a constituição do Estado de direito é o aspecto capital para o equilíbrio dos interesses de sujeitos privados que buscam a satisfação de suas expectativas concorrentes. Na visão republicana, a formação de uma comunidade ético-política estruturada é o elemento fundamental para a autodeterminação democrática de sujeitos vinculados na totalidade coletiva. A primeira perspectiva prescinde da idéia de cidadania e do papel constitutivo da formação política da opinião e da vontade, ao passo que a segunda menoscaba as fronteiras entre Estado e sociedade civil através da excessiva politização de uma esfera pública voltada contra a administração burocrática. Ambos os elementos da normatização constitucional e do processo político de formação da opinião e da vontade são assumidos sob nova composição na teoria discursiva da democracia: “para ela 14 processos e pressupostos comunicativos da formação democrática da opinião e da vontade funcionam como a comporta mais importante para a racionalização discursiva das decisões de um governo e de uma administração vinculados ao direito e à lei”39. Habermas sugere um processo em dois trilhos, no qual há uma divisão de trabalho entre o “público fraco” - a esfera pública informalmente organizada, que abrange as associações privadas, instituições culturais, grupos de interesse com preocupações públicas, igrejas, instituições de caridade, etc. - e o “público forte” - as corporações parlamentares e outras instituições formalmente organizadas do sistema político. A soberania popular, interpretada de modo intersubjetivista, não se concentra em um ator coletivo que reflete a totalidade e age em função dela, como no modelo republicano, nem é banida para o anonimato de competências jurídico-constitucionais, como no modelo liberal, mas faz-se valer como poder produzido comunicativamente. Vital para o exercício da cidadania, neste sentido, são os discursos institucionalizados para a formação da opinião política racional40. O cerne de uma compreensão genuinamente procedimental da democracia, nos termos de Habermas, “consiste precisamente no fato de que o processo democrático institucionaliza discursos e negociações com o auxílio de formas de comunicação que devem fundamentar a suposição da racionalidade para todos os resultados obtidos conforme o processo”41, sendo seu núcleo dogmático, no sentido de algo que não podemos eludir, “a idéia de autonomia, segundo a qual os homens agem como sujeitos livres na medida em que obedecem às leis que eles mesmos estabeleceram, servindo-se de noções adquiridas num processo intersubjetivo”42. Aqui reside, no meu entender, a contribuição principal de Habermas no âmbito da filosofia prática. A despeito de seus múltiplos e complexos aspectos, conferindo-lhe um certo grau de impenetrabilidade, aspectos que tentamos reunir na presente exposição, a Teoria do Discurso se funda na intuição simples de que o reconhecimento dos indivíduos como pessoas responsáveis consiste em tomá-las seriamente como agentes que podem e devem ter voz na validação de normas e leis às quais eles próprios estão sujeitos. Neste sentido, a enorme influência de Habermas no debate contemporâneo se deve ao modo inovador com que procura responder à questão fundamental da filosofia moral e política, surgida de nossa compreensão moderna do mundo, quanto à possibilidade da existência de uma comunidade política formada por pessoas razoáveis mas profundamente divididas pelo pluralismo, não apenas inevitável mas também desejável, das visões de mundo e dos modos de vida. Uma resposta que, de resto, aplicase não apenas a âmbitos locais e da qual o autor extrai implicações profundas para diversos problemas atuais, tais como o do futuro do Estado Nacional numa era de globalização, o de uma política global de direitos humanos e o das correspondentes instituições políticas supranacionais, além dos temas do multiculturalismo e dos direitos das minorias culturais43. Em tais aspectos, como era de se esperar, Habermas continua esgaravatando “à procura dos vestígios de uma razão 15 que reconduza, sem apagar as distâncias, que una, sem reduzir o que é distinto ao mesmo denominador, que entre estranhos torne reconhecível o que é comum, mas deixe ao outro a sua alteridade”44. NOTAS 1 HABERMAS, Jürgen. Passado como futuro [tradutor: Flávio B. Siebeneichler; entrevistador: Michael Haller]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993, p. 112 (original alemão: Vergangenheit als Zukunft. Zurique: Pendo, 1990). 2 O quadro conceitual parte de duas distinções importantes. Em primeiro lugar, a distinção fundamental entre interação ou agir comunicativo e trabalho ou agir “racional relativo a fins” (zweckrational). Em segundo lugar, a diferenciação, feita à luz da primeira, entre o quadro institucional de uma sociedade e os subsistemas do agir racional com respeito a fins. Cf. HABERMAS, Jürgen. Technik und Wissenschaft als ‘Ideologie’. Frankfurt, Suhrkamp, 1968 (tradução de Artur Morão: Técnica e Ciência como ‘Ideologia’. Lisboa: Edições 70, 1987). 3 HABERMAS, Jürgen. Theorie des kommunikativen Handelns. Frankfurt: Suhrkamp, 1981. 4 HABERMAS, Jürgen. Nachmetaphysisches Denken. Frankfurt, Suhrkamp, 1988 (tradução de Flávio B. Siebeneichler: Pensamento Pós-metafísico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1990). Habermas se refere a “motivos que problematizaram a metafísica como forma de pensamento, culminando na sua desvalorização final” (p. 38). 5 HABERMAS, Jürgen. Pensamento Pós-metafísico, p. 44. 6 Quanto aos papéis que cabem hoje à filosofia, cf. HABERMAS, Jürgen. “A filosofia como guardador de lugar e como intérprete”, in: Consciência moral e agir comunicativo [tradutor: Guido A. de Almeida]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1989, p. 17-35 (original alemão: Moralbewusstsein und kommunikatives Handeln. Frankfurt: Suhrkamp, 1983). 7 Habermas se guia primordialmente pelos ensaios de Max Weber acerca da evolução das imagens religiosas de mundo, em cujo cerne ele encontra o eixo da teoria weberiana da racionalização: Gesammelte Aufsätze zur Religionssoziologie. Tübingen: Mohr, 8ª ed., 1986 (1ª ed.: 1920). Vide, sobre o assunto: ARAÚJO, Luiz B. L. Religião e Modernidade em Habermas. São Paulo: Loyola, Col. “Filosofia”, 1996, obra da qual extraimos boa parte do material para esta apresentação do pensamento habermasiano. Quanto à teoria dos atos de fala, cf. AUSTIN, J. L. How to do things with words. Cambridge: University Press, 1962; SEARLE, J. R. Speech Acts. Cambridge: University Press, 1969; Idem. Expression and Meaning. Cambridge: University Press, 1979. 8 Ler, a propósito disso, os esclarecimentos feitos por Habermas nos três capítulos de Pensamento Pós-metafísico em que trata do giro pragmático na análise da linguagem: “Ações, atos de fala, interações mediadas pela linguagem e mundo da vida” (p. 65-103); “Sobre a crítica da teoria do significado” (p. 105-134); “Notas sobre Searle: Meaning, Communication and Representation” (p. 135-148). 9 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade [tradutor: Flávio B. Siebeneichler]. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, volume I, 1997, p. 35 (original alemão: Faktizität und Geltung. Beiträge zur Diskurstheorie des Rechts und des demokratischen Rechtsstaats. Frankfurt: Suhrkamp, 1992). 10 Estamos resumindo, a essa altura, as reflexões - por vezes elípticas - feitas por Habermas na segunda Zwischenbetrachtung de sua obra de 1981. Para uma apresentação dos principais passos desta abordagem reconstrutiva das condições de integração social, vale a pena ler o primeiro capítulo, intitulado “O Direito como categoria da mediação social entre facticidade e validade”, da obra citada na nota anterior. 11 Trata-se, em termos habermasianos, de “um conceito de razão cético e pós-metafísico, mas não derrotista” (Pensamento Pós-metafísico, p. 152). Sobre o que foi dito, cf. FERRY, Jean-Marc. Habermas. L'éthique de la communication. Paris, PUF, 1987. 12 Em relação aos quais são erguidas as pretensões de verdade, correção e veracidade já mencionadas. Sobre essas definições pormenorizadas dos conceitos formais de “mundo”, vide, por exemplo, Consciência moral e agir comunicativo, p. 167. 13 Acerca desses aspectos envolvendo o conceito de “razão comunicativa”, ler a décima-primeira das doze conferências reunidas em: HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade [tradução de A. Marques et alii]. Lisboa: Dom Quixote, 1990, p. 275-307 (original alemão: Der philosophische Diskurs der Moderne. Frankfurt: Suhrkamp, 1985). 14 No prefácio à edição francesa de sua obra magna (ver nota 3 supra), Habermas condensou, de forma retrospectiva, o eixo de sua leitura filosófica da modernidade: “De uma distância tomada sem crispação, nós nos apropriamos então de toda a riqueza do movimento de pensamento que vai de Kant a Hegel, e não precisamos encontrar refúgio do lado de um ‘outro da razão’...” (p. 11). 15 Cf. HABERMAS, Jürgen. O discurso filosófico da modernidade, p. 287s. 16 Ler, a propósito, as duas primeiras conferências, intituladas “A consciência de época da modernidade e sua necessidade de autocertificação” e “O conceito hegeliano de modernidade”, de O discurso filosófico da modernidade, p. 13-32 e p. 33-55. 16 17 Cf. BERTEN, A. “Modernité et postmodernité: un enjeu politique?”. Revue Philosophique de Louvain, 81 (1991): 84-112. 18 HABERMAS, Jürgen. Erläuterungen zur Diskursethik. Frankfurt: Suhrkamp, 1991, p. 100. 19 Sobre o que segue, cf. HABERMAS, Jürgen. Erläuterungen zur Diskursethik, p. 81-87. Segundo ele, entre as três direções tomadas pela ética a partir do surgimento das ciências experimentais modernas, uma de exclusão da capacidade de juízo moral do domínio da razão, a outra de redução do raciocínio moral ao modelo da racionalidade meios-fins, “apenas Kant atribuiu ao juízo moral um lugar no domínio da razão prática, e daí uma autêntica pretensão de conhecimento” (p. 81). 20 HABERMAS, Jürgen. Erläuterungen zur Diskursethik, p. 100. 21 Cf. nota 2 supra. 22 O que torna necessário, do ponto de vista de uma Ética do Discurso, o questionamento do “solipsismo metódico” e da “compreensão da linguagem como sendo secundária com respeito ao pensamento, que seria originariamente solitário” - dois pressupostos enraizados na filosofia moderna, inclusive em Kant. Ora, no dizer de Apel, “a autoridade do ser humano enquanto legislador autônomo podendo impor-se um dever a si mesmo deve ser relacionada com o ato fundamental do livre reconhecimento das normas do discurso argumentativo pelo qual ele se constitui efetivamente como ser razoável” (APEL, K.-O. Éthique de la discussion. Paris: Cerf, p. 44). 23 HABERMAS, Jürgen. A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política [tradutores: George Sperber e Paulo Astor Soethe]. São Paulo: Edições Loyola, 2002, p. 54; tradução modificada (original alemão: Die Einbeziehung des Anderen. Studien zur politischen Theorie. Frankfurt: Suhrkamp, 1996). 24 A propósito desse complexo debate, predominantemente anglo-saxão e que traduz temas essenciais da discussão contemporânea no campo aqui tratado, ver: BERTEN, André, DA SILVEIRA, Pablo; POURTOIS, Hervé (Orgs.). Libéraux et communautariens. Paris: PUF, 1997. Com relação à Teoria do Discurso, cf. BENHABIB, Seyla. “In the Shadow of Aristotle and Hegel: Communicative Ethics and Current Controversies in Practical Philosophy”. Philosophical Forum, 21 (1989-90): 1-31; BAYNES, Kenneth. “The Liberal-Communitarian Controversy and Communicative Ethics”. Philosophy and Social Criticism, 14 (1988): 293-315; 25 HABERMAS, Jürgen. Erläuterungen zur Diskursethik, p. 203. 26 Cf. HABERMAS, Jürgen. Erläuterungen zur Diskursethik, p. 206s. 27 O estado atual do debate é bem definido, a meu ver, pela discussão entre o liberalismo político e a teoria discursiva. Sobre esse importante debate, ler os dois ensaios reunidos por Habermas na obra A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política: “Reconciliação por meio do uso público da razão” (p. 61-88); “Racional versus Verdadeiro - ou a Moral das Imagens de Mundo” (p. 89-119). Quanto à posição de John Rawls, vide o ensaio “Reply to Habermas”, retomado na obra Political Liberalism. New York: Columbia University Press, 2nd. edition, 1996, p. 372-434. Permito-me sugerir também a leitura de um artigo de minha autoria: “Pluralismo ético e justiça política”, in: CIRNE-LIMA, Carlos e ALMEIDA, Custódio (Orgs.). Nós e o Absoluto. Festschrift em homenagem a Manfredo Araújo de Oliveira. São Paulo: Edições Loyola, 2001, p. 245-256. 28 Vide, neste sentido, o Posfácio de 1994 à obra Faktizität und Geltung, que resume exemplarmente o núcleo da argumentação habermasiana. O autor afirma que para demonstrar a relação interna entre Estado de direito e democracia é necessário “o esclarecimento das seguintes proposições: o direito positivo não pode ser submetido simplesmente à moral; a soberania do povo e os direitos humanos pressupõem-se mutuamente; o princípio da democracia possui raízes próprias, independentes da moral” (Direito e Democracia: entre facticidade e validade, volume II, p. 310) 29 A propósito desses dois conceitos concorrentes de cidadania, cf. HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, volume II, p. 18-25. Cf. tb., na mesma obra, os seguintes ensaios de 1988 e 1990, respectivamente: “A soberania do povo como processo” (p. 249-278); “Cidadania e Identidade Nacional” (279-305). 30 Refiro-me aqui a seu famoso ensaio, de 1819, intitulado “De la liberté des anciens comparée à celle des modernes”, in: De l’esprit de conquête et de l’usurpation. Paris: Flammarion, 1986, p. 265-291 31 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, volume I, p. 142. 32 Na esteira de Kant, Habermas distingue, como já foi notado, as dimensôes ética, pragmática e moral da razão prática. As questões éticas dizem respeito àquilo que é bom para mim ou para nós, ao passo que as questões pragmáticas se referem a meios apropriados para determinados fins práticos. As questões morais, por seu turno, têm a ver com aquilo que é valido para todos, na acepção kantiana de um dever universal. Vide, em particular, Erläuterungen zur Diskursethik, p. 100-118. 33 HABERMAS, Jürgen. Consciência moral e agir comunicativo, p. 86. 34 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, volume I, p. 145. 35 Na obra Consciência moral e agir comunicativo, de 1983, Habermas havia formulado da seguinte maneira o princípio D: “só podem reclamar validez as normas que encontrem (ou possam encontrar) o assentimento de todos os concernidos enquanto participantes de um Discurso prático” (p. 116). Ao falar agora em “normas de ação” em geral, sem expressar um sentido específico de validade normativa, e em “discursos racionais”, que podem comportar justificações discursivas de caráter moral, ético e pragmático, Habermas considera que há um espaço amplo para a dedução dos principios da moral e da democracia, por meio de especificações adequadas, a partir do princípio discursivo. 36 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, volume I, p. 158. 17 37 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, volume I, p. 164-165. Para uma exposição sucinta da teoria política habermasiana, cf. “Sobre a coesão interna entre Estado de direito e democracia”, in: A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política, p. 285-297. 39 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, volume II, p. 23. 40 No que respeita ao modelo procedimental de democracia, cf. “Três modelos normativos de democracia”, in: A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política, p. 269-284. 41 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, volume II, p. 27. 42 HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, volume II, p. 190. 43 Os textos reunidos em A Inclusão do Outro. Estudos de Teoria Política lidam precisamente com esses temas, em torno dos quais Habermas se guia pelo mesmo foco da dualidade entre “facticidade” e “validade” característica do direito moderno, radicalizando a orientação procedimentalista da teoria discursiva. Para uma avaliação crítica geral, ler as contribuições reunidas nas seguintes coletâneas: WHITE, Stephen (ed.). The Cambridge Companion to Habermas. New York: Cambridge University Press, 1995; ROSENFELD, Michel and ARATO, Andrew (eds.). Habermas on Law and Democracy. Critical Exchanges. Berkeley: University of California Press, 1998; DEWS, Peter (ed.). Habermas: A Critical Reader. Oxford: Blackwell, 1999. 44 Cf. nota 1 supra. 38