Teoria da Reestruturação Raimundo José Macário Costa Disciplina: Representação do Conhecimento Professora: Dra. Adriana Benevides Fonte: Pozo, Juan Ignacio. Teorias Cognitivas da Aprendizagem. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998. Cap. 7 e 8 DA ASSOCIAÇÃO À REESTRUTURAÇÃO: O PARADOXO DA APRENDIZAGEM O processamento de informação, embora seja a tendência dominante na psicologia cognitiva, não esgota todas as possibilidades do enfoque cognitivo. De fato, podemos falar legitimamente da existência de duas diferentes tradições cognitivas. Uma, a dominante, de natureza mecanicista e associacionista, representada atualmente pelo processamento de informação. A outra, de caráter organicista e estruturalista, remonta à psicologia européia de entre-guerras, quando autores como Piaget, Vygotsky, Bartlett ou a escola da Gestalt propõem, no auge do condutismo na outra margem do Atlântico, uma concepção do sujeito humano radicalmente anti-associacionista. Talvez, a diferença essencial entre o processamento de informação e o estruturalismo cognitivo resida na unidade básica da análise da qual partem. Enquanto o processamento de informação é elementista e parte de unidades mínimas, considerando que uma totalidade pode ser decomposta em suas partes (por exemplo, um conceito é uma lista de aspectos), o outro enfoque cognitivo parte de “unidades mais molares, nas quais o todo não é simplesmente a soma de seus componentes. Vygotsky (1934), um dos mais lúcidos defensores de um enfoque molar em psicologia, considera que tal enfoque deve basear-se no que ele denomina análise por unidades, onde as unidades seriam “um produto da análise que, contrariamente aos elementos, contém todas as propriedades básicas da totalidade e não pode ser dividido sem que se perca” (Vygotsky, 1934, p. 25 da trad. cast.). O estudo da formação de conceitos a partir dessas unidades ou globalidades pressupõe a rejeição da idéia — comumente aceita por todas as teorias revisadas nos capítulos anteriores — de que os conceitos ficam definidos pelas características ou atributos que os definem. Em outras palavras, implica passar do estudo dos procedimentos de identificação de um conceito ao estudo do seu núcleo (Miller e Johnson-Laird, 1976), e remete às diferentes dicotomias surgidas recentemente no estudo das representações conceituais (por exemplo, Neisser, 1987a; Scholnick, 1983). Definitivamente, a passagem do associacionismo ao estruturalismo pressupõe ultrapassar a pesquisa da identificação de conceitos e ocupar-se também de sua aquisição ou formação. Ao admitir que os conceitos não são simples listas de características acumuladas, mas que fazem parte de teorias ou estruturas mais amplas, a aprendizagem de conceitos seria, principalmente, o processo pelo qual essas estruturas se transformam. Portanto, o processo fundamental de aprendizagem seria a reestruturação das teorias das quais fazem parte os conceitos. Já que as teorias ou estruturas de conhecimento podem diferir entre si em sua organização interna, a reestruturação é um processo de troca qualitativa, e não simplesmente quantitativa. Tabela 7.1. Diferenças entre as teorias associacionistas (enfoque baseado na similitude) e organicistas (enfoque baseado nas teorias) da aprendizagem de conceitos, segundo Murphy (1985). ASPECTO DA TEORIA CONCEITUAL ENFOQUE BASEADO NA SIMILITUDE ENFOQUE BASEADO NA TEORIA Representação de conceitos Estrutura de similitude, lista de atributos, atributos correlacionados Atributos correlatos mais princípios que determinam que correlaçôes são detectadas Definição de categorias Várias medidas da similitude e soma de atributos Um princípio explicativo comum aos membros da categoria Unidades de análise Atributos Atributos mais relações entre atributos e conceitos explicitamente representados Base de categorização Emparelhamento de atributos Emparelhamento mais processos inferenciais proporcionados pelos princípios subjacentes Ponderação dos atributos Validade e relevância de atributos Determinado, em parte pela importância, nos princípios subjacentes Estrutura interconceitual Hierarquia baseada em atributos compartilhados Rede formada por relações causais e explicativas, assim como aquelas propriedades compartilhadas que se considerem relevantes Desenvolvimento conceitual Incremento de características Mudar a organização e as explicações dos conceitos como resultado do conhecimento sobre o mundo Porém, a diferença fundamental entre ambos os enfoques, ao abordar a aprendizagem de conceitos, reside na postura construtivista que adotam. Vimos anteriormente que o associacionismo computacional parte de um construtivismo “estático” que, respeitando o princípio de correspondência entre as representações e o mundo, assume que o sujeito interpreta a realidade a partir de seus conhecimentos anteriores. Em troca, as teorias da reestruturação assumem, além disso, um construtivismo dinâmico pelo qual não somente se construíam interpretações da realidade a partir dos conhecimentos anteriores, mas que também se construíam esses mesmos conhecimentos sob a forma de teorias. A diferença entre o construtivismo estático e o dinâmico remete, em último caso, à própria natureza mecanicista e organicista dos dois enfoques. Enquanto os mecanismos são estáveis e somente se modificam por intervenção exterior, os organismos são, por definição, seres mutáveis, criaturas que não se banham duas vezes no mesmo rio, nem conhecem duas vezes utilizando o mesmo conceito. Se aprender é reestruturar as próprias teorias ou estruturas cognitivas, dentro da psicologia construtivista na qual nos movimentamos, a reestruturação seria o processo pelo qual de uma estrutura mais simples surge outra mais complexa. A partir desse ponto, o autor se ocupa fundamentalmente do que anteriormente denominou a psicologia européia de entre-guerras, com a exposição das concepções sobre a aprendizagem na psicologia da Gestalt, a teoria da equilibração de Piaget e as posturas de Vygotsky a respeito da aprendizagem de conceitos. Por último, uma teoria mais recente, orientada para a instrução, a teoria da aprendizagem assimilativa de Ausubel. A GESTALT: APRENDIZAGEM POR INSIGHT As idéias que precedem a obra da Gestalt são totalmente opostas aos princípios do associacionismo. Tais idéias poderiam definir-se como antiatomistas (na medida em que rejeitam a concepção do conhecimento como uma soma de partes preexistentes) e estruturalistas (ou antiassociacionistas, já que concebem que a unidade mínima de análise é a estrutura ou a globalidade). Para a Gestalt, a psicologia deve estudar o significado, e este não é divisível em elementos mais simples. Por isso, as unidades de análise devem ser totalidades significativas, ou gestalten. PENSAMENTO PRODUTIVO E REPRODUTIVO Esta insistência na importância da Gestalt, ou estrutura global dos fatos e dos conhecimentos, fez com que se concedesse maior importância à compreensão do que a simples acumulação de conhecimentos. A esse respeito, Wertheimer (1945) distinguia entre pensamento reprodutivo e pensamento produtivo. O pensamento reprodutivo seria aquele que consiste simplesmente em aplicar habilidades ou conhecimentos previamente adquiridos a situações novas. Assim, por exemplo, todos aprendemos a aplicar de maneira reprodutiva a equação do “binômio de Newton” para achar o quadrado de uma soma: (a+b)2(a2+b2+2ab). No entanto, o pensamento produtivo seria aquele que implicaria o descobrimento de uma nova organização perceptiva ou conceitual com relação a um problema, uma compreensão real do mesmo (como compreender o “binômio de Newton” a partir de uma figura). b a a axb a2 b b2 axb (c) (c) Figura 7.2. Representação geométrica do quadrado de uma soma (a+b)2, que facilita uma aprendizagem produtiva do binômio de Newton, assim como sua generalização a outros problemas (a+b +c)2 Segundo Wertheimer (1945), o fundamental para obtermos uma solução produtiva para um problema e compreendê-lo realmente, é preciso captar os aspectos estruturais da situação, além dos elementos que a compõem. Enquanto o enfoque associacionista estudava a realidade — e com ela o funcionamento psicológico — dividindo-a em partes que se uniam entre si de maneira arbitrária, sem atender à estrutura geral, a Gestalt vai inverter as relações entre a estrutura e as partes componentes. A solução de problemas e a aprendizagem não seriam obtidas pela associação de elementos próximos entre si, mas da compreensão da estrutura global das situações. Era, portanto, necessário determinar os processos mediantes os quais se consegue captar tal estrutura. REESTRUTURAÇÃO POR INSIGHT Algumas das pesquisas dos autores da Gestalt consistiam em situações de aprendizagem que, em termos gerais, demonstravam a superioridade da aprendizagem por compreensão ou reestruturação sobre a simples aprendizagem mnemônica ou associativa (por exemplo, Katona, 1940). Uma importante conseqüência é que, no enfoque gestaltista, o sujeito aprende reinterpretando seus fracassos e não somente por meio do êxito, se bem que também possa aprender do êxito se for capaz de compreender as razões estruturais que o tornaram possível. EXPERIÊNCIA PRÉVIA E INSIGHT Segundo Wertheimer (1945), a compreensão de um problema está vinculada a uma tomada de consciência de seus aspectos estruturais. Uma nova estrutura surge quando se consegue desequilibrar a estrutura anterior (Burton e Burton, 1978). Ainda que segundo algumas interpretações simplificadoras, o insight seria um processo repentino ou imediato, alguns gestaltistas admitem que pode exigir previamente um longo período de preparação. Em termos gerais, quando um problema ou tarefa tem várias estruturas possíveis e alguma delas resulta mais imediata ou fácil de perceber para o sujeito, a reestruturação se mostrará mais difícil. Igualmente, quando na solução de uma tarefa entra em jogo interesses ou motivações pessoais, a mudança para uma estrutura diferente da situação será obstaculizada (Wertheimer, 1945). Em ambas as situações a rigidez funcional ou a resistência à reestruturação da tarefa impediram sua correta solução e, portanto, a aprendizagem produtiva. A posição da Gestalt a respeito é clara: “todos os efeitos exercidos pela aprendizagem sobre a experiência subseqüente constituem pósefeitos da organização prévia. Se a aprendizagem ... equivale à associação, e se é que estamos certos, a associação é um pós-efeito da organização” (Kõhler, 1929, p. 227 da trad. cast.). De fato, não é por acaso que a Gestalt defende o caráter inato das leis da percepção e da organização do conhecimento. AS CONDIÇÕES DO INSIGHT De fato, as criticas mais importantes à Gestalt têm a ver com o conceito de insight. Por um lado, existem sérias dúvidas de que determinados tipos de conhecimento (por exemplo, uma língua estrangeira ou as habilidades de ler e escrever) possam ser adquiridos mediante o insight (Gagne, 1965). Porém, ainda que fosse assim, a própria noção de compreensão súbita é, pelo menos, ambígua, como indica o próprio Vygotsky (1934). Não parece que a eliminação da consciência tenha sido um dos propósitos dos esforços da Gestalt, mas, pelo contrário, podemos considerar que uma de suas contribuições mais relevantes é justamente a recuperação da consciência para o estudo da aprendizagem, ainda que de maneira imprecisa. Ainda que historicamente a Gestalt tenha cedido diante da pressão do condutismo, suas idéias conservam boa parte de seu vigor original. Em inúmeras ocasiões se tem anunciado a morte da Gestalt como movimento. Porém, como indica Henle (1985), um morto que é enterrado com tanta freqüência deve possuir uma estranha vitalidade. Porém, além das idéias gerais para a elaboração de um novo enfoque na psicologia da aprendizagem, a Gestalt contribuiu, com alguns conceitos que, mesmo que em sua formulação inicial possam ser vagos ou pouco operacionais, lembram alguns dos conceitos nucleares de uma teoria da aprendizagem alternativa ao associacionismo. Assim, diferenciam entre pensamento reprodutivo e produtivo e, em conseqüência, entre aprendizagem mnemônica e compreensiva, sendo esta última produto do insight, ou reestruturação súbita do problema. Além disso, na Gestalt, essa reestruturação fica vinculada ao conceito de equilíbrio. Esta mesma idéia será desenvolvida por Piaget. A TEORIA DA EQUILIBRAÇÃO DE PIAGET Piaget (1959) distinguia entre “aprendizagem no sentido estrito”, pelo qual se adquire no meio informação específica, e “aprendizagem no sentido amplo”, que consistiria no progresso das estruturas cognitivas por processos de equilibração. Piaget considera que o primeiro tipo de aprendizagem, representado pelo condicionamento clássico e operante (Piaget, 1970), encontra-se subordinado ao segundo ou, dito de outra maneira, que a aprendizagem de conhecimentos específicos depende completamente do desenvolvimento de estruturas cognitivas gerais, que ele formaliza em termos lógicos (Piaget, 1970; Flavell, 1963, 1977). Essa posição de Piaget a respeito das relações entre aprendizagem e desenvolvimento leva-o a negar qualquer valor explicativo à aprendizagem por associação, já que, segundo ele, “para apresentar uma noção adequada da aprendizagem, é preciso primeiro explicar como procede o sujeito para construir e inventar, não simplesmente como repete e copia” (Piaget, 1970, p. 27 da trad. cast.). ASSIMILAÇÃO E ACOMODAÇÃO Como enfatiza Flavell (1977, 1985), a teoria piagetiana do conhecimento, baseada em uma tendência ao equilíbrio cada vez maior entre os processos de assimilação e de acomodação, tem como objetivo explicar não somente como conhecemos o mundo em determinado momento, mas também como muda nosso conhecimento a respeito do mundo. Para ilustrar o processo de assimilação, tomemos um exemplo sugerido por Flavell (1977, 1985), que constitui, além disso, uma adequada metáfora de toda a teoria piagetiana do conhecimento. Posso acreditar que esta caneta é um avião e que a garota de meus sonhos afinal se interessa por mim, porém finalmente a caneta cairá no chão e estragará sua ponta e a garota somente estará buscando meus apontamentos. Se unicamente existisse a assimilação, grande parte de nosso conhecimento seria fantástico e levariam a contínuos equívocos. É necessário, portanto, um processo complementar, ao qual Piaget denomina acomodação. Piaget (1970, p. 19) assim define a acomodação : “Chamaremos acomodação a qualquer modificação de um esquema assimilador ou de uma estrutura, modificação causada pelos elementos que assimilam”. A acomodação pressupõe não somente uma modificação dos esquemas prévios em função da informação assimilada, mas também uma nova assimilação, ou reinterpretação dos dados ou conhecimentos anteriores em função dos novos esquemas construídos. Como se pode ver, ambos os processos, a assimilação e a acomodação, necessariamente se vinculam: “não existe assimilação sem acomodação, mas... a acomodação também não existe sem uma assimilação simultânea” (Piaget, 1970, p. 19 da trad. cast.). Piaget elaborou, ao longo de sua obra, vários modelos do funcionamento desse processo de equilibração. No último modelo (Piaget, 1975; Coll, 1983; Haroutounian, 1983; Vuyk, 1980) sustenta que o equilíbrio entre assimilação e acomodação se produz — e se rompe — em três níveis de complexidade crescente: 1) No primeiro nível, os esquemas que o sujeito possui devem estar em equilíbrio com os esquemas que assimila. Assim, quando a “conduta” de um objeto — um objeto pesado que flutua — não se ajusta às predições do sujeito, se produz um desequilíbrio entre seus esquemas de conhecimento — é o peso absoluto o que determina a flutuação dos corpos (Carretero, 1984) — e os fatos que assimila. 2) Neste segundo nível, deve existir um equilíbrio entre os diversos esquemas do sujeito, que se devem assimilar e acomodar reciprocamente. Caso contrário, produz-se um “conflito cognitivo” ou desequilíbrio entre os dois esquemas. Assim acontece, por exemplo, com os sujeitos que pensam que a força da gravidade é a mesma para todos os corpos e, no entanto, que os objetos mais pesados caiam mais rapidamente (Pozo, l987a, l987c). 3) Por último, o nível superior de equilíbrio consiste na integração hierárquica de esquemas previamente diferenciados. Assim, por exemplo, quando o sujeito adquire o conceito de força, deve relacioná-lo a outros conceitos que já possui (massa, movimento, energia) integrando-o em uma nova estrutura de conceitos (Pozo, l987a; West e Pines, 1985). Neste caso, a acomodação de um esquema produz mudanças no restante dos esquemas assimiladores. Se isso não ocorresse, produzir-se-iam contínuos desequilíbrios ou conflitos entre esses esquemas. Esses três níveis de equilíbrio estão — também eles — hierarquicamente integrados. Um desequilíbrio no terceiro nível acabará produzindo conflitos no segundo nível (contradições entre afirmações sucessivas do sujeito) e no primeiro nível (predições errôneas). Porém, nos três casos, os desequilíbrios mostram a insuficiência dos esquemas disponíveis para assimilar a informação apresentada e, portanto, a necessidade de acomodar tais esquemas para recuperar o equilíbrio. Como é que se superam tais desequilíbrios? RESPOSTA AOS CONFLITOS COGNITIVOS: A TOMADA DE CONSCIÊNCIA Segundo Piaget (1975), haveria dois tipos globais de resposta às perturbações ou estados de desequilíbrio. As respostas não adaptativas estariam representadas na ausência de tomada de consciência do conflito existente, isto é, em não levar a perturbação a um estágio de contradição. É óbvio que, ao não conceber a situação como sendo conflitiva, o sujeito não fará nada para modificar seus esquemas. Nesse sentido, a resposta não é adaptada, já que não produz nenhuma acomodação e, portanto, nenhuma aprendizagem, não ajudando em absoluto a superar o conflito latente entre os esquemas e os objetos assimilados. Existe uma interação complexa entre o conjunto de esquemas de assimilação e a realidade assimilada. Dessa interação surge a reestruturação. No caso de Piaget, são especificados com maior detalhe que no de Lakatos os processos pelos quais se modifica uma teoria ou um conjunto de esquemas. Entre os estudos sobre aprendizagem realizados pela escola de Genebra, um dos mais influentes, juntamente com a obra mais completa de Inhelder, Sinclair e Bovet (1974), é sem dúvida uma elegante pesquisa realizada por Karmioff-Smith e Inhelder (1975) e publicada com um título muito indicativo e sugestivo: “Se queres avançar, constrói uma teoria”. Esse estudo, complementar, de certa maneira, ao citado volume sobre Aprendizagem e estruturas do conhecimento, baseou-se em um trabalho experimental em relação à “atividade espontânea” de crianças de 4 a 9 anos. Utilizando um método microgenético, isto é, de exposição repetida do sujeito à mesma tarefa, Karmiloff-Smith e Inhelder (1975) pesquisaram como as crianças aprendiam a equilibrar blocos. Porém, quais são os desencadeantes desse processo? Quais são os requisitos da reestruturação? Segundo Karmiloff-Smith e Inhelder (1975), as crianças chegam a modificar, e em seu caso de estudo a abandonar, a teoria do centro geométrico devido à confluência de três fatores: a regularidade dos contra-exemplos, seu processo cognitivo geral e a integração de informação proprioceptiva. Segundo as autoras, fiéis às idéias piagetianas a respeito das relações entre aprendizagem e desenvolvimento, isso somente será possível quando as crianças alcançarem a conservação do peso como parte dos êxitos intelectuais próprios do estágio das operações concretas. Vemos, portanto, que, tal como indicávamos ao começo da exposição desta pesquisa, as contradições são uma condição necessária, porém não suficiente, da reestruturação. Porém, além disso, comprovamos que é produto da “regularidade dos contra-exemplos”. A acumulação de contra-exemplos e, portanto, a prática, parecia desempenhar alguma função no progresso cognitivo. OS DESEQUILÍBRIOS DA TEORIA DA EQUILIBRAÇÃO Remetendo-nos aos próprios níveis de equilíbrio formulados por Piaget, poderíamos dizer que sua teoria da aprendizagem se tem visto obrigada a defrontar-se com dois tipos de conflito. De um lado, existem provas empíricas contra a noção piagetiana da aprendizagem como substituto do desenvolvimento e, de outro, existem claros problemas teóricos no modelo de aprendizagem por equilibração defendido por Piaget. Nas palavras do próprio Piaget (1979, p. 51 da trad. cast.): “o problema central é compreender como se efetuam tais criações (as estruturas cognitivas) e porque, sendo conseqüência de construções não pré-determinadas, podem durante o caminho fazer-se logicamente necessárias”. Os racionalistas pós-darwinianos se viram obrigados, na psicologia, a optar entre a necessidade ou a pré-formação da mente. Enquanto Fodor (1979, 1983) e Chomsky (1980) optam pelas estruturas mentais inatas, Piaget (1979) tenta mostrar como tais estruturas podem ser necessárias sem serem inatas. Porém, como indica Toulmin (1972), existe uma determinada finalidade nas formulações piagetianas, segundo a qual o desenvolvimento conduz necessariamente à formação de um determinado tipo de estruturas lógicas, relacionadas ao pensamento formal. Parece de certa maneira paradoxal que cada pessoa construa individualmente seu próprio conhecimento e, no final, todas as pessoas acabem construindo o mesmo conhecimento. A posição de Piaget a respeito dessas relações não pode nos explicar quando é que se resolvem favoravelmente os desequilíbrios, porque, como acontecia no caso da Gestalt, a aprendizagem se concebe apenas como um pós-efeito da aplicação de uma estrutura ou, dito de outra maneira, a aquisição de conhecimentos específicos é um efeito da reorganização das estruturas cognitivas gerais, e não o contrário. Na opinião do autor, existem múltiplos dados que mostram que a aprendizagem por reestruturação pode apoiar-se muitas vezes em aquisições associativas prévias. Isto é assim tanto no caso das aprendizagens naturais como no das artificiais. Talvez a aprendizagem natural por excelência seja a da linguagem. Alguns autores (por exemplo, Rivière, 1983) acreditam que um funcionamento inadequado dos mecanismos de detecção de associações pode danificar seriamente a aquisição da linguagem. A aprendizagem de conceitos somente pode ser explicada a partir de posições que estabeleçam uma integração efetiva entre associação e reestruturação. A posição de Piaget a esse respeito se mostra, sem dúvida, pouco satisfatória e, em último caso, dá lugar a graves problemas quando se trata de localizar sua teoria da aprendizagem na sala de aula. A defesa exacerbada do ensino por descobrimento é uma amostra a mais da confusão entre aprendizagens naturais e artificiais na obra de Piaget. Segundo sua célebre frase, muitas vezes repetida, “cada vez que se ensina prematuramente a uma criança alguma coisa que ela poderia descobrir sozinha, se lhe impede de inventá-la e, consequentemente, de entendê-la completamente” (Piaget, 1970, pp. 28-29 da trad. cast.). Ao reduzir toda a aprendizagem ao desenvolvimento ou, o que dá no mesmo, reduzindo todas as aprendizagens a aquisições espontâneas e necessárias, Piaget está defendendo um certo individualismo “rousseauniano”, minimizando a importância não somente das aprendizagens associativas, mas também dos processos de instrução. Felizmente, dentro da aprendizagem por reestruturação, encontramos teorias que se opõem a tais reducionismos e tentam conciliar os processos de aprendizagem associativa com a reestruturação, atribuindo para tanto uma maior importância aos processos de instrução. Tanto Vygotsky (1934) como mais recentemente Ausubel (Ausubel, Novak e Hanesian, 1978) abordaram a aprendizagem de conceitos a partir de posturas mais coincidentes com a instrução. Ambos os esforços podem, de certa maneira, ser considerados complementares. Enquanto Vygotsky (1934) não conseguiu ir além do desenvolvimento de uma estrutura ou arcabouço teórico do que deveria ter sido uma teoria da aprendizagem e da instrução, Ausubel desenvolveu essa teoria, ainda que carecendo em boa medida de uma teoria psicológica geral na qual a enquadre. A TEORIA DA APRENDIZAGEM DE VYGOTSKY Nos últimos anos aumentou notavelmente o interesse dos psicólogos cognitivos pela obra de Vygotsky (por exemplo, Rivière, 1985; Siguán, 1987; Wertsch, 1985). Porém, neste caso, a “recuperação” de Vygotsky adquire aspectos peculiares se comparada com o que acontece com Piaget ou a Gestalt. Diferentemente desses outros autores, a obra de Vygotsky permaneceu totalmente desconhecida durante várias décadas não somente da “psicologia burguesa” ocidental, como costumavam dizer os psicólogos soviéticos, mas inclusive em seu próprio país, onde não existiam barreiras idiomáticas que justificassem esse isolamento, mas ideológicas, além das devidas à evolução interna da psicologia soviética (ver Carretero e García Madruga, 1983). A RESPOSTA VYGOTSKIANA DIANTE DA SEPARAÇÃO DA PSICOLOGIA: ATIVIDADE E MEDIAÇÃO A aproximação de Vygotsky à psicologia é contemporânea à aproximação de Piaget, e tem em comum, tanto com o autor genebrino como com a escola da Gestalt, partir de uma posição decidida contra o associacionismo e o mecanicismo que começavam a dominar as teorias psicológicas. O esforço para procurar uma psicologia unitária, se não única, passa em Vygotsky por uma concepção dialética das relações entre o fisiológico ou mecânico e o mental. Vygotsky rejeita totalmente os enfoques que reduzem a psicologia —e em nosso caso a aprendizagem — a uma simples acumulação de reflexos ou associações entre estímulos e respostas. Existem aspectos especificamente humanos não redutíveis a associações, como a consciência e a linguagem, que não podem ficar alheios à psicologia. No caso da aprendizagem, tal fusão passa pela integração dos processos de associação e reestruturação em uma teoria unitária da aprendizagem. Porém essa integração, não pode ser feita em um plano de igualdade. De fato, sua posição a respeito da aprendizagem está mais próxima dos preceitos organicistas do que dos mecanicistas. Neste sentido, a teoria vygotskiana pode ser considerada uma variante do enfoque organicista (ver Pérez Pereira, 1987). Contudo, diferentemente de outras posturas igualmente organicistas, como as de Piaget ou as da Gestalt, Vygotsky, por princípio, não vai negar a importância da aprendizagem associativa, embora coincida com esses autores em que se trata de um mecanismo claramente insuficiente. É lamentável que mesmo Vygotsky não negando as aprendizagens associativas não chegue a desenvolver, suficientemente, como interatuam com os processos mais complexos da aprendizagem por reestruturação. A introdução de elementos mediadores é superficialmente análoga às posturas do condicionamento mediacional. Os mediadores não são réplicas externas das associações E-R, nem um componente a mais das correntes associativas. Na concepção de Vygotsky (1978), como foi dito, os mediadores são instrumentos que transformam a realidade em vez de imitá-la. Sua função não é adaptar-se passivamente às condições ambientais, mas modificá-las ativamente. O conceito vygotskiano de mediador está mais próximo do conceito piagetiano de adaptação — como um equilíbrio entre assimilação e acomodação — do que do condutismo mediacional. A diferença entre ambos os tipos de instrumentos fica nítida nas seguintes palavras de Vygotsky (1978, trad. cast.): “A função da ferramenta não é outra que a de servir de condutor da influência humana no propósito da atividade; encontra-se externamente orientada e deve provocar mudanças nos objetos. É um meio pelo qual a atividade humana externa aspira dominar e triunfar sobre a natureza. Por outro lado, o sinal absolutamente nada no propósito de uma operação psicológica. Dessa maneira, trata-se de um meio da atividade interna que aspira dominar-se a si próprio; o sinal, por conseguinte, encontra-se orientado internamente”. A ORIGEM DOS SIGNIFICADOS: AS RELAÇÕES APRENDIZAGEM / DESENVOLVIMENTO A posição de Vygotsky se distancia também da de Piaget (1936), que defende o acesso à simbolização através das ações sensório-motoras individuais da criança. Para Vygotsky os significados provêm do meio social externo, mas devem ser assimilados ou interiorizados por cada criança de forma particular. Sua posição coincide com a de Piaget ao considerar que os sinais se elaboram em interação com o meio ambiente, porém, no caso de Piaget, esse ambiente está constituído unicamente por objetos, alguns dos quais são objetos sociais, enquanto para Vygotsky está composto de objetos e pessoas que medeiam a interação da criança com os objetos (Kaye, 1982; Perinat, 1986; Rivière e Coll, 1986). Em outras palavras, segundo Vygotsky (1978), o vetor de desenvolvimento e de aprendizagem iria desde o exterior do sujeito ao interior, seria um processo de “internalização” ou transformação das ações externas, sociais, em ações internas, psicológicas. A formação de significados como um processo de interiorização pressupõe uma posição teórica “mediadora” entre a idéia associacionista de que os significados se adquirem do exterior, de acordo com o princípio da correspondência, e a teoria piagetiana, segundo a qual o sujeito constrói seus significados de maneira autônoma e, em muitos casos, autista. A posição vygotskiana, ainda que mais próxima da idéia construtivista de Piaget, também incorpora, de maneira clara e explícita, a influência do meio social. Para ele, o sujeito não imita os significados — como seria o caso do condutismo — nem os constrói, como em Piaget, mas literalmente os “reconstrói”. Enquanto o associacionismo nega a existência de um desenvolvimento independente dos processos associativos de aprendizagem (ou, em outras palavras, reduz todo o desenvolvimento à aprendizagem), Piaget (1970) adota uma posição inversa, ao negar a relevância das aprendizagens associativas para a equilibração que é o motor fundamental do desenvolvimento. A posição de Vygotsky (1934) vai ser novamente intermediária. Ambos os processos são, segundo Vygotsky, interdependentes. Ainda que o desenvolvimento — ou, na terminologia de Piaget, a “aprendizagem em sentido amplo”, equivalente aos processos de reestruturação por equilibração — não seja uma simples soma cumulativa de aprendizagens associativas pontuais, se vê facilitado por eles. Não existe desenvolvimento sem aprendizagem, nem aprendizagem sem desenvolvimento prévio. Do ponto de vista do autor, não existe reestruturação sem acumulação associativa, nem associação sem estruturas prévias. Em consequência, Vygotsky (1934) entende que a aprendizagem precede temporalmente ao desenvolvimento, que a associação precede à reestruturação. Tal precedência temporal fica manifesta na distinção vygotskiana entre dois níveis de desenvolvimento ou dois tipos de conhecimentos presentes nas pessoas. Tal relevância é ainda maior se levarmos em conta que as idéias de Vygotsky conseguem superar um certo bloqueio produzido nas relações desenvolvimento/instrução pela aplicação imediata da obra de Piaget à educação. Esse bloqueio fica excelentemente resumido no falso dilema analisado por Duckworth (1979) no que diz respeito à aplicação de Piaget à sala de aula: “ou ensinaremos muito cedo, e não o podem aprender, ou ensinamos muito tarde, e já o sabem”. Ao romper a unidirecionalidade das relações entre aprendizagem/instrução e desenvolvimento, Vygotsky consegue superar tal dilema, permitindo uma proveitosa aplicação da psicologia da aprendizagem à educação, consistente com a psicologia cognitiva e evolutiva atual (Carretero, 198Gb; Palacios, 1987). O estreito vínculo entre os processos de aprendizagem e a instrução na interiorização e conseguinte reestruturação de mediadores simbólicos é particularmente claro quando são analisadas as idéias de Vygotsky em relação à aprendizagem de conceitos. Nessas idéias encontraremos o esboço de uma teoria que deve servir novamente como ponte conciliadora entre muitas das teorias da aprendizagem até aqui revisadas. FORMAÇÃO DE CONCEITOS ESPONTÂNEOS E CIENTÍFICOS Nas idéias vygotskianas a respeito da generalização e aquisição de conceitos se encontram, talvez como em nenhum outro aspecto, as melhores virtudes da teoria histórico-cultural de Vygotsky, mas também seus maiores defeitos. Isto é assim porque, fiel à sua rejeição da análise elementarista e à sua própria concepção das relações entre pensamento e linguagem, Vygotsky (1934) estabelece que a unidade de análise da psicologia deveria ser buscada no “significado da palavra”, no qual se encontra não somente a menor unidade comunicativa que conserva as propriedades da totalidade, mas também a unidade mínima do “pensamento generalizado”. Dessa maneira, os conceitos, enquanto generalizações, terão sua origem na palavra que, uma vez interiorizada, se constituirá em sinal mediador: “Todas as funções psíquicas superiores são processos mediatizados, e os sinais, os meios básicos utilizados para dominá-los e dirigi-los... Na formação de conceitos esse sinal é a palavra” (Vygotsky, 1934, pp. 98-99 da trad. cast.). Com a finalidade de comprovar a importância da palavra na formação de conceitos espontâneos ou familiares nas crianças — em oposição aos conceitos — Vygotsky (1934) recorre ao “método da dupla estimulação”, também conhecido como “método genéticoexperimental”. Tal método, idealizado por Sakharov, um de seus colaboradores, é coerente com a lei da dupla formação e com o conceito de zona de desenvolvimento potencial, e consiste na apresentação simultânea de duas séries de estímulos, uma tendo como centro a atividade da criança e a outra o conjunto de sinais que podem servir para apoiar essa atividade. As palavras proporcionadas pela série de estímulos auxiliares não apresentam nesse tipo de classificação nenhum significado. Essa etapa corresponde ao pensamento “sincrético” ou participativo, tanto na psicologia evolutiva (por exemplo, Piaget, 1927; Wallon, 1945; Werner, 1948) como nos estudos sobre o pensamento dos povos primitivos (Levy-Bruhl, 1910; Werner, 1948). O pensamento sincrético é o único tipo de categorização que carece de significado conceitual. O tipo seguinte, o pensamento mediante “complexos”, já possui tanto referência como significado. Porém, se as cadeias mostram com maior clareza a natureza dos complexos, a manifestação mais relevante desse tipo de pensamento para a aprendizagem de conceitos são os pseudoconceitos. Ainda que, desde um ponto de vista interno, psicológico, o pseudoconceito continua sendo um complexo, desde o ponto de vista externo, lógico, aparenta ser um conceito. Neste sentido, constitui a forma mais avançada dos complexos, servindo como uma ponte para a formação de conceitos propriamente ditos. Um pseudoconceito agrupa adequadamente os objetos, porém a partir de seus aspectos sensoriais imediatos, sem que o sujeito tenha uma idéia precisa de quais sejam as características comuns aos objetos, sem que conheça propriamente o conceito. Os pseudoconceitos, porém, não aparecem somente no pensamento infantil. Ainda que a partir da adolescência os sujeitos já sejam capazes de formar autênticos conceitos, eles devem conviver por toda a vida com os pseudoconceitos. De fato, segundo Vygotsky, se as acumulações sincréticas são nomes próprios, os complexos, e mais especificamente os pseudoconceitos, são como “sobrenomes”, compartilhados pelos membros de uma mesma família: “Nesta etapa de seu desenvolvimento, a criança pensa, por assim dizer, em sobrenomes; o universo dos objetos individuais torna-se organizado ao ser agrupado em “famílias” separadas, porém mutuamente relacionadas” (op. cit., p. 94 da trad. cast.). Uma vez mais as idéias de Vygotsky resultam de uma modernidade surpreendente, ainda que talvez devamos nos perguntar se não é a psicologia atual que demonstra uma antiguidade surpreendente. A atualidade de Vygotsky se baseia não somente em admitir a existência de categorias difusas, com os mesmos referentes dos conceitos clássicos ou científicos correspondentes, mas com diferentes significados, mas chega inclusive a antecipar os dados recolhidos pelos mais recentes estudos sobre a formação de categorias naturais. De fato, os pseudoconceitos são para Vygotsky uma ponte para o terceiro tipo de classificação, os “conceitos”. Na medida em que os pseudoconceitos se baseiam em uma generalização a partir de aspectos semelhantes, são um caminho para a formação de conceitos propriamente ditos. Eles se constituíram, ademais, por um segundo caminho, o dos “conceitos potenciais”, que consistem na abstração de um aspecto constante em uma série de objetos. Mediante os processos tradicionais de abstração, os conceitos cotidianos somente podem chegar a ser representações gerais, o que os diferencia dos conceitos científicos. Neste ponto, Vygotsky considera insuficiente o enfoque tradicional, ou teoria da abstração, e a contrasta com caminho inverso, pelo qual se adquirem os conceitos científicos. Segundo Vygotsky (1934), os conceitos verdadeiros são os conceitos científicos, adquiridos através da instrução. Diferentemente dos conceitos espontâneos, os conceitos científicos apresentam três aspectos característicos em sua aquisição (ver Davydov, 1972): a) Os conceitos científicos fazem parte de um sistema; b) São adquiridos através de uma tomada de consciência da própria atividade mental; c) Envolvem uma relação especial como objeto, baseada na interiorização da essência do conceito. Assim, os conceitos espontâneos e científicos se aprendem por caminhos opostos; os conceitos espontâneos vão do concreto ao abstrato, enquanto os científicos percorrem o caminho inverso. Segundo Vygotsky (1934, p. 148 da trad. cast., sublinhado do autor), “o desenvolvimento dos conceitos espontâneos da criança acontece de maneira ascendente e o de seus conceitos científicos de maneira descendente”. Desta maneira, os diferentes processos seguidos na aprendizagem dos conceitos espontâneos e científicos determinam definições e estruturações diferentes dos mesmos. Assim, os conceitos espontâneos são adquiridos e definidos a partir dos objetos aos quais se referem, por sua referência, enquanto os conceitos científicos são adquiridos sempre por relação hierárquica com outros conceitos, por seu sentido. Na opinião de Vygotsky, os conceitos científicos adquiridos na instrução são a via através da qual se introduz na mente a consciência reflexiva, que posteriormente se transfere aos conceitos espontâneos. Na terminologia utilizada pelo autor neste trabalho, o significado dos conceitos científicos não pode ser construído sem referência aos conceitos cotidianos. Ou, em termos de processo de aprendizagem, os verdadeiros conceitos somente podem ser adquiridos por reestruturação, mas essa reestruturação somente é possível se apoiada em associações prévias. OS LIMITES DE UMA TEORIA INACABADA Na explicação vygotskiana da aprendizagem de conceitos destacamse, possivelmente como em nenhum outro âmbito, as virtudes do pensamento de Vygotsky, mas também os limites de uma teoria que permanece inacabada. Muitas das idéias de Vygotsky se mostram mais sugestivas do que suficientes. Sua prematura desaparição, somada ao longo silêncio do organicismo, não só na União Soviética mas também na “psicologia burguesa”, deixou inacabadas muitas sugestões promissoras. Por isso, em muitos aspectos, a contribuição de Vygotsky continua sendo mais importante a partir do ponto de vista metateórico do que desde o estritamente teórico. As idéias de Vygotsky a respeito de ambos os tipos de representações conceituais podem representar um marco de referência adequado para desenvolver modelos integradores e não-dicotômicos. Também a respeito das relações entre conceitos espontâneos e científicos e sobre o papel da instrução, ainda que discutíveis — e as abordaremos mais adiante —, podem contribuir para a construção desse marco teórico que integre a multidão de dados esparsos. A grande virtude da teoria vygotskiana não é somente diferenciar esses dois sistemas conceituais e os mecanismos pelos quais eles são adquiridos, mas principalmente, uma vez diferenciados, voltar a reuni-los. As razões pelas quais continua inacabada podem, em alguns casos, ser encontradas na própria evolução da psicologia soviética e ocidental; em outros, porém, são atribuíveis à própria teoria. Assim, por exemplo, embora Vygotsky tenha contribuído para uma reformulação das relações entre aprendizagem e desenvolvimento mediante seu conceito de zona de desenvolvimento potencial (“proximal”), resulta difícil utilizar esse conceito de forma específica em um contexto educativo ou experimental. Afortunadamente, no que diz respeito às relações entre aprendizagem e instrução, dispomos de teorias que complementam a metateoria de Vygotsky. Entre elas, a teoria da aprendizagem de Ausubel (Ausubel, Novak e Hanesian, 1978) é, na opinião do autor, o melhor apoio para as sugestivas, e em muitos casos geniais, idéias de Vygotsky. A TEORIA DA APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA DE AUSUBEL Na terminologia de Vygotsky o autor diz que Ausubel desenvolve uma teoria a respeito da interiorização ou assimilação, através da instrução dos conceitos verdadeiros que são construídos a partir de conceitos previamente formados ou “descobertos” pela criança em seu meio. A diferenciação entre a aprendizagem e o ensino é justamente o ponto de partida da teoria de Ausubel. APRENDIZAGEM MNEMÔNICA E SIGNIFICATIVA Uma das contribuições mais relevantes da posição de Ausubel é a diferenciação entre esses dois eixos que seriam bastante independentes um do outro. Além disso, ao conceber a aprendizagem e o ensino como contínuos, e não como variáveis dicotômicas, Ausubel evita reducionismos e, além disso, estabelece a possibilidade de interações entre associação e reestruturação na aprendizagem. Isso permite diferenciar entre diversos tipos de instrução, em função de sua colocação em ambos os contínuos, tal como mostra a figura. Ausubel mostra que, ainda que a aprendizagem e a instrução interatuem, são relativamente independentes, de tal maneira que determinadas formas de ensino não conduzem forçosamente a um determinado tipo de aprendizagem. Mais especificamente, tanto a aprendizagem significativa como a mnemônica são possíveis em ambos os tipos de ensino, o receptivo (ou expositivo) e o ensino por descobrimentos (ou pesquisa), como é exemplificado na figura. Aprendizagem significativa Aprendizagem por repetição Esclarecimento das relações entre os conceitos Ensino audiotutelar bem planejado Pesquisa científica (música ou nova arquitetura) Conferência ou apresentações da maior parte dos livros—texto Trabalho escolar no laboratório Pesquisa “rotineira” ou produção intelectual Tabuada de multiplicação Aplicação de fórmulas para resolver os problemas Resolução de quebra-cabeças por ensaio e erro Aprendizagem por recepção Aprendizagem por descobrimento guiado Aprendizagem por descobrimento autônomo Figura 7.6. Classificação das situações de aprendizagem segundo Ausubel, Novak e Hanesian. (1978, p. 35 da trad. cast.: Psicologia educativa. Reproduzido com permissão de Editorial Trillas, SA.) Em outras palavras, uma aprendizagem é significativa quando pode ser incorporada às estruturas de conhecimento que possui o sujeito, isto é quando o novo material adquire significado para o sujeito a partir de sua relação com conhecimentos anteriores. Para tanto é necessário que a matéria a ser aprendida possua um significado em si mesma, ou seja, que exista uma relação não arbitrária ou simplesmente associativa entre suas partes. Além das diferenças cognitivas, ambas as extremidades do contínuo de aprendizagem se diferenciam também pelo tipo de motivação que estimulam e pelas atitudes do aluno diante da aprendizagem. Todas essas diferenças são indicadas por Novak e Gowin (1984), sintetizado na tabela a seguir. Tabela 7.2. Diferenças fundamentais entre a aprendizagem significativa e a aprendizagem mnemônica, segundo Novak e Gowin (1984). Aprendizagem significativa Incorporação substantiva, não arbitrária e não-verbal, de novos conhecimentos à estrutura cognitiva Esforço deliberado para relacionar os novos conhecimentos com conceitos de nível superior, já existentes na estrutura cognitiva. Aprendizagem relacionada com experiências, fatos ou objetos. Envolvimento afetivo para relacionar os novos conhecimentos com aprendizagens anteriores. Aprendizagem mnemônica Incorporação não substantiva, arbitrária e verbal, de novos conhecimentos à estrutura cognitiva. Nenhum esforço para integrar os novos conhecimentos a conceitos já existentes na estrutura cognitiva. Aprendizagem não relacionada com experiências, fatos ou objetos. Nenhuma implicação efetivamente relacionando os novos conhecimentos às aprendizagens anteriores. AS CONDIÇÕES DA APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA Nem sempre os materiais estruturados com lógica são aprendidos significativamente. É necessário, além disso, que se cumpram outras condições na pessoa que deve aprendê-los. Em primeiro lugar, é necessária uma predisposição para a aprendizagem significativa. Tendo em vista que compreender requer sempre um esforço, a pessoa deve ter algum motivo para esforçar-se. É muito conhecido, a partir das pesquisas dos behavioristas com ratos esfomeados correndo por labirintos, que a aprendizagem — como os crimes — necessita sempre um motivo ou causa. Por mais significativo que seja um material, isto é, por mais relações potenciais que possua, se o aluno ou aprendiz não está disposto a esforçar-se em estabelecer relações, limitando-se a repetir a matéria, não haverá aprendizagem significativa. De fato, a aprendizagem significativa é o caminho pelo qual as pessoas assimilam a cultura que as envolve (Ausubel, 1973), uma idéia fortemente vygotskiana que faz da teoria de Ausubel um complemento instrucional adequado ao marco teórico geral de Vygotsky. Apesar do caráter intrapessoal dos significados psicológicos, estes são adquiridos geralmente em contextos interpessoais de instrução, que geram nesses significados uma notável homogeneidade intracultural. Em função da natureza da nova informação e de sua relação com as idéias ativadas na mente da pessoa que aprende, Ausubel diferencia vários tipos de aprendizagem significativa. TIPOS DE APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA Em função da natureza do conhecimento adquirido, Ausubel, Novak e Hanesian (1978) diferenciam três tipos básicos de aprendizagem significativa: a aprendizagem de representações, de conceitos e de proposições. Tabela 7.3. Tipos básicos da aprendizagem significativa na teoria de Ausubel. Prévia à formação do conceitos Representações Aquisição de vocabulário Posterior à formação de conceitos Formação (a partir dos objetos) Comprovação de hipóteses Conceitos Diferenciação progressiva (conceito subordinado) Aquisição (a partir de conceitos preexistentes) Ver tabela 7.4. Integração hierárquica (conceito supra-ordinado) Proposições Combinação (conceito do mesmo nível hierárquico) Ausubel (op. cit., p. 61) define os conceitos como “objetos, eventos, situações ou propriedades que possuem atributos de critério comuns e que se designam mediante algum símbolo ou signo”. Segundo Ausubel, a maior parte das aprendizagens significativas são subordinadas, isto é, a nova idéia aprendida se encontra hierarquicamente subordinada a uma idéia preexistente. Nesse tipo de aprendizagem se produz uma diferenciação progressiva de conceitos já existentes em vários conceitos de nível inferior. A idéia ausubeliana de que a maior parte dos conhecimentos são adquiridos por diferenciação progressiva dos conceitos ou estruturas já existentes é, sem dúvida, atraente. O próprio Vygotsky (1934) reconhecia a maior facilidade da diferenciação na reestruturação conceitual. Mais recentemente, Bereiter (1985) tem indicado que tal preferência se deve, em parte, à maior facilidade de explicar como surge um conhecimento mais específico de um conhecimento mais geral do que o contrário. Finalmente, como observa o autor, para fazer uma análise ausbeliana de uma situação de aprendizagem é necessário dispor tanto da estrutura lógica da disciplina como da estrutura psicológica do aluno nessa mesma área de conhecimento, e ir introduzindo progressivas diferenciações nas idéias do aluno, acompanhadas ocasionalmente de algumas comparações e generalizações. Em outras palavras, segundo Ausubel, a aprendizagem de conceitos vai fundamentalmente do geral ao específico, seguindo uma via descendente semelhante à definida por Vygotsky (1934) em relação à aprendizagem de conceitos científicos. APRENDIZAGEM SIGNIFICATIVA E REESTRUTURAÇÃO Os dados conhecidos a respeito da aprendizagem de conceitos mostram que, como muito bem assinalava Vygotsky (1934), ela se produz tanto de maneira ascendente como descendente na pirâmide de conceitos. Embora a teoria de Ausubel reconheça este fato, ao diferenciar entre vários tipos de aprendizagens significativas, parece excessivamente centrada na aprendizagem por diferenciação, já que não existem provas de que a aprendizagem significativa ou a reestruturação aconteça somente por diferenciação, ainda que isto seja verdadeiro para determinados autores (por exemplo, Bereiter, 1985; Vygotsky, 1934) afirmando que a diferenciação mostra-se psicologicamente mais fácil que a integração. Finalmente, a aprendizagem significativa e, em geral a reestruturação de conhecimentos são um produto direto ou indireto da instrução, assim como a necessidade de que os enfoques organicistas consigam integrar os processos associativos como parte constitutiva da reestruturação, integração que se produzirá necessariamente em contextos de instrução. OS LIMITES DAS TEORIAS ORGANICISTAS: A REESTRUTURAÇÃO COMO UM PRODUTO DA INSTRUÇÃO Ao longo deste capítulo foi visto que a reestruturação é um processo complexo, que precisa da convergência de diferentes condições para sua ocorrência. Dessa forma, apontam que a reestruturação não é um produto direto da “conduta” dos objetos, não se corresponde com eles. É antes o produto da tomada de consciência de que as estruturas conceituais não correspondem à realidade sobre a qual se projetam. Claxton (1984) dá um exemplo muito ilustrativo desta distinção. Segundo ele, para nos movimentarmos pelo mundo — “o território” — necessitamos dispor de modelos ou teorias pessoais que organizem o mundo — “os mapas”. Para que troquemos de mapa (o reestruturaremos), não é suficiente que este não corresponda ao território, já que, por definição, todos os mapas diferem dos territórios que representam. E necessário, ademais, que nos percamos no território e saibamos o que está errado em nosso mapa. Para isso, não é suficiente passear pelo território; é preciso conhecer e analisar o próprio mapa. Ou seja, como indica Lakatos (1978), não são nunca os dados que refutam as teorias, mas a aparição de outra teoria melhor. Como afirma Claxton (1984. pp. 33-34 da trad. cast.): “o que faço depende do que a minha teoria me diz a respeito do mundo, não de como é o mundo na realidade... No entanto, o que acontece depois depende de como é o mundo na realidade, não de como acredito que seja”. A tomada de consciência dos desequilíbrios entre os “mapas” e os “territórios” é outro dos aspectos que definem as teorias organicistas da aprendizagem. Como sustentava Vygotsky (1934), e com o qual concordam inúmeros estudos recentes a respeito da formação de categorias naturais, somente mediante a instrução é possível a construção de verdadeiros conceitos dentro de uma “pirâmide de conceitos”. Somente mediante a instrução se tem consciência dos limites do “mapa” e da complexidade do “território”, o que permite, embora não garanta, uma maior complexidade e organização interna do “mapa”. Ainda que a instrução não deva nunca ser confundida com a escolarização (já que se inicia, de uma maneira informal, muito antes da idade escolar e persiste de muitas formas diferentes durante toda a vida social), em nossa sociedade são as instituições educativas as responsáveis mais diretas pela instrução. Capitulo 8 POR UMA INTEGRAÇAO DE ASSOCIAÇÃO E REESTRUTURAÇÃO NA INSTRUÇAO MUDANÇAS QUANTITATIVAS E QUALITATIVAS NA APRENDIZAGEM As teorias associacionistas, em suas mais diversas variantes, ocupam-se de mudanças contínuas, mensuráveis e, portanto, quantificáveis, que ocorrem em conseqüência da prática acumulada sob determinadas condições. Ao contrário, as teorias organicistas ou da reestruturação, fugindo de um enfoque atomista, ocupam-se das mudanças produzidas na organização das estruturas cognitivas em conseqüência da interação entre tais estruturas e os objetos aos quais são aplicadas. Por isso, a integração entre ambas as maneiras de entender a aprendizagem passa necessariamente pela reconciliação entre as mudanças quantitativas e qualitativas. DIFERENÇAS COGNITIVAS ENTRE ESPECIALISTAS E INICIANTES Além de sua especificidade temática, todos os estudos comparativos entre especialistas e iniciantes partem de alguns princípios comuns, algumas vezes explícitos e noutras implícitos que, são os seguintes: a) Diferença especialista/iniciante é basicamente uma diferença de conhecimentos, e não de processos cognitivos básicos ou capacidades gerais do processamento. b) Essa diferença de conhecimentos é tanto quantitativa como qualitativa; isto é, os especialistas não somente sabem mais do que os iniciantes, mas principalmente organizam seus conhecimentos de uma maneira diferente. c) A perícia (expertise) é um efeito da prática acumulada, isto é, um efeito da aprendizagem, rejeitando-se, portanto, os fatores inatos e as possíveis diferenças individuais. d) A perícia está circunscrita a áreas de conhecimentos, de maneira que se é ou não especialista em relação a alguma coisa específica. Um mesmo sujeito pode ter diferentes graus de especialização para problemas vinculados à mesma área. No caso da pesquisa a respeito dos especialistas e iniciantes em mecânica newtoniana, encontram-se claramente diferenciados dois enfoques distintos que viriam se ocupar respectivamente das diferenças quantitativas e qualitativas. Ambos os tipos de diferenças podem vincular-se a algumas das teorias da aprendizagem revisadas anteriormente. DIFERENÇAS QUANTITATIVAS ENTRE ESPECIALISTAS E INICIANTES Na resolução de equações por especialistas e iniciantes surgem diferenças de natureza quantitativa. Assim, os novatos realizam mais erros e demoram, em termos médios, quatro vezes mais do que os especialistas para resolver o problema (Larkin e colaboradores, 1980; Simon e Simon, 1978). Estas duas diferenças, porém, são obviamente conseqüência das diferentes estratégias utilizadas por uns e outros. Essa diferenças podem ser resumidas: 1) Os especialistas, antes de começarem a aplicar equações, detêm-se em uma etapa de representação, na qual realizam uma análise qualitativa baseada em uma intuição física (Larkin, 1979). Por sua vez, o novato inicia imediatamente pelas equações. 2) Ambos os grupos diferem quanto à estratégia adotada para a solução do problema. Os iniciantes fazem uma análise “para trás”, isto é, partem da meta final. Ao contrário, os especialistas trabalham “para a frente”, utilizando os dados conhecidos para buscar a solução desconhecida. Esta estratégia consiste em uma análise meios-fins (Larldn, 1983) similar à que utilizam os sujeitos na solução de problemas sem carga semântica, como o da “torre de Hanói”, nos quais não podem aplicar conhecimentos específicos prévios. 3) Ao aplicar as equações, o iniciante as calcula uma a uma, enquanto o especialista as elabora agrupadas, isto é, calcula várias equações simultaneamente, depois faz uma pausa e, a seguir, elabora outro grupo de equações (Larkin, 1980). Considera-se que tais grupos de equações correspondem a chunks (aglomerados) de conhecimentos, análogos aos empregados pelos jogadores de xadrez na rememoração das posições (Chase e Simon, 1973), e que revelariam a existência de “ramificações de conhecimentos” organizados na mente do especialista, em contraste com os conhecimentos isolados ou menos diferenciados do novato. 4) Por último, os iniciantes elaboram muito mais meta-enunciados a respeito do próprio processo de solução (Simon e Simon, 1978). Isto é, dedicam mais tempo a pensar a respeito da estratégia que devem seguir e a analisar e planejar os passos seguintes. Ao contrário, os especialistas apenas “pensam em voz alta” sobre as operações que devem realizar para solucionar as equações. Poder-se-ia dizer que os especialistas não precisam tomar decisões a respeito da forma em que devem resolver o problema, enquanto os iniciantes devem dedicar uma boa parte de seu tempo precisamente à busca de um caminho a seguir até encontrar a solução adequada. DIFERENÇAS QUALITATIVAS ENTRE ESPECIALISTAS E INICIANTES Uma das tarefas que Chi e colaboradores formulavam a seus sujeitos consistia em classificar uma série de problemas sobre mecânica. Os especialistas e os iniciantes diferiam nos critérios ou atributos em que baseavam sua classificação. Os especialistas categorizavam os problemas segundo sua estrutura conceitual profunda, determinada pelas leis e conceitos físicos relevantes para sua solução, enquanto os iniciantes guiavam suas classificações pela estrutura superficial, baseada em objetos reais e termos explícitos no enunciado dos problemas. Esta mesma investigação serve para ilustrar outra das diferenças mais relevantes observadas por Chi e colaboradores entre especialistas e iniciantes. Ambos diferem em seus conhecimentos declarativos básicos, isto é, no conteúdo dos esquemas ou conceitos que ativam. Mesmo quando utilizam os mesmos rótulos verbais, o que, não é muito frequente, o significado dos mesmos varia. Uma diferença digna de ser mencionada entre especialistas e iniciantes reside no processamento seletivo que realizam diante dos problemas de mecânica. Quando se lhes pede que selecionem os aspectos mais importantes para a solução de um problema, os novatos, uma vez mais, referem-se a objetos reais ou a termos mencionados no problema. Muito raramente mencionam por si mesmos aspectos de segunda ordem, isto é, não perceptíveis diretamente. Em troca, os aspectos destacados pelos especialistas podem ser caracterizados como “descrições dos estados e condições da situação física descrita pelo problema” (Chi, Feltovich e Glaser, 1981, p. 142). Finalmente, a passagem de iniciante a especialista envolve, em consequência da prática, não somente mudanças quantitativas na quantidade de conhecimentos mas também uma verdadeira reorganização de tais conhecimentos. Quando uma pessoa se transforma em especialista, não apenas automatiza determinadas habilidades mas, além disso, restaura seus conhecimentos. Até hoje os estudos comparativos entre iniciantes e especialistas tenderam a ser demasiado estáticos, descritivos, talvez pelas dificuldades metodológicas que implica estudar a transição de iniciante a especialista. No entanto, a comparação especialista/iniciante está sendo proposta por alguns autores como um modelo adequado para analisar o desenvolvimento cognitivo (por exemplo, Chi e Rees, 1983; Flavell, 1985). REESTRUTURAÇÃO FRACA E FORTE Susan Carey (1985) estabeleceu uma distinção entre dois tipos de reestruturação, conforme esta envolva ou não uma verdadeira troca conceitual. Em uma primeira abordagem, a “reestruturação fraca”, representada pelos estudos realizados em relação às diferenças entre especialistas e iniciantes, trataria das mudanças produzidas na organização conceitual em consequência dessa transição que dão lugar ocasionalmente à aparição de novos conceitos integradores que não estavam presentes nas representações dos iniciantes. As reestruturações fracas pressupõem o estabelecimento de novas relações conceituais unidas à produção de conceitos novos, mas conservando um núcleo de conceitos comuns entre a teoria ou hierarquia inicial e a nova teoria desenvolvida. Por isso, na reestruturação fraca não podemos falar, segundo Carey (1985), de mudança conceitual. Segundo a visão mais radical da “reestruturação forte”, a nova teoria surgida da troca conceitual não compartilha com a velha teoria um mesmo sistema conceitual, mas, ao mudar a teoria, modifica-se o significado de todos os conceitos nela incluídos. Segundo essa versão, o significado de um conceito é determinado por suas relações com outros conceitos na teoria, por sua rede de relações dentro da pirâmide de conceitos. Ao mudar tais relações, modifica-se o significado de todos os conceitos, ainda que superficialmente possa parecer que a nova e a velha teoria compartilhem um núcleo conceitual comum. A idéia de que o progresso das teorias científicas requer ocasionalmente reestruturações fortes das mesmas está presente na maior parte das teorias epistemológicas atuais. Assim, as revoluções científicas de Kuhn (1962) envolvem uma troca de paradigma tão radical que as sucessivas teorias resultam inclusive incomensuráveis. A esse respeito, a postura de Lakatos (1978) se mostra mais rica do que a de Kuhn, já que sua teoria admite a existência tanto de reestruturações fortes como fracas. Porém, o fato de que a aprendizagem de conceitos científicos necessite de uma reestruturação forte não invalida, na opinião do autor, a utilidade da diferenciação estabelecida por Carey (1985). Ambos os tipos de reestruturação podem ser concebidos como etapas sucessivas de um mesmo processo de transição de iniciante a especialista. Em outras palavras, a reestruturação fraca pode ser considerada um requisito da reestruturação forte. Tal idéia se vê apoiada por diversos estudos empíricos que mostram o vinculo entre as trocas qualitativas e a acumulação de novos conhecimentos, como, por exemplo, os citados estudos sobre iniciantes e especialistas (Chi, Glaser e Farr, 1988), ou ainda pelas posições teóricas de Lakatos (1978) ou Vygotsky (1934). Resumindo, os processos de discriminação e generalização conceitual desenvolvidos pelas teorias associacionistas da aprendizagem, em especial pelas teorias computacionais, seriam um requisito para a mudança conceitual ou reestruturação forte. Porém, a interação entre ambos os tipos de aprendizagem é bidirecional. MODELOS DE MUDANÇA CONCEITUAL NA INSTRUÇÃO A idéia fundamental que assumem os diversos modelos de mudança conceitual é que a aprendizagem de conceitos científicos deve partir dos conceitos naturais que o aluno já possui: a “ciência intuitiva” que o aluno traz para a sala de aula (Hewson e Hewson, 1984; Nussbaum e Novick, 1982; Osborne e Freyberg, 1985; Osborne e Wittrock, 1983; Posner e cols., 1982). NATUREZA DOS CONCEITOS ESPONTÂNEOS Deixando de lado outras características (para uma análise mais detalhada ver Driver, 1986; Furnham, 1988; Pozo e Carretero, 1987), as concepções espontâneas têm sua origem na atividade cotidiana das pessoas. Surgem na interação espontânea com o meio cotidiano e servem, principalmente, para predizer “a conduta” desse meio. Estão, além disso, determinadas quanto a seu conteúdo por limitações na capacidade de processamento dos seres humanos. Outro aspecto característico das concepções espontâneas é que se organizam em forma de “teorias-em-ação” ou implícitas (Drivere Erickson, 1983; Karniiloff-Smith e Inhelder, 1975), “teorias pessoais” (Claxton, 1984) ou “teorias causais” (Pozo, l987a, l987b). Todas estas denominações aludem, com diversos matizes, a duas características: antes de mais nada, os conceitos espontâneos não se justapõem uns aos outros “como ervilhas em uma vagem”, segundo a feliz expressão de Vygotsky (1934), mas constituem estruturas hierarquizadas de conceitos, ainda que geralmente implícitas ou não conscientes e, em segundo lugar, que tais estruturas cognitivas possuem uma função explicativa. AS CONDIÇÕES DA MUDANÇA CONCEITUAL De nossa parte, e baseando-nos nas teorias revisadas nos capítulos anteriores, muito especialmente nas idéias de Lakatos (1978) a respeito da mudança dos programas de pesquisa científica, resumidas no primeiro capítulo deste trabalho, poderíamos dizer que a mudança conceitual se produz nas seguintes condições: a) A aprendizagem do conceito científico não consiste somente em trocar uma idéia qualquer por outra cientificamente aceita, já que existe um determinado vinculo genético entre a teoria espontânea do aluno e a teoria científica que se lhe pretende transmitir. O aluno não abandonará suas idéias espontâneas até que encontre outra teoria melhor que, de acordo com as idéias de Lakatos (1978) a respeito da mudança dos programas de pesquisa científica, dê conta não somente do que suas idéias espontâneas já explicavam, mas de fenômenos novos até agora incompreensíveis. b) Para que o aluno consiga compreender a superioridade de uma nova teoria é necessário defrontá-lo com situações conflitivas que suponham um desafio para suas idéias. Dessa maneira, o conflito cognitivo é muito importante no avanço conceitual do aluno, embora em nenhum caso deva ser considerado uma condição suficiente para a mudança conceitual. c) Por último, a partir da condição anterior, podemos deduzir que a tomada de consciência por parte do aluno é um passo indispensável para a mudança conceitual. Os conceitos espontâneos dos alunos costumam ser implícitos. Um primeiro passo para sua modificação será torná-los explícitos mediante sua aplicação a problemas específicos. Também é necessário que o aluno tome consciência das vantagens da nova teoria que lhe é proposta. Ainda que se agrupem entre as teorias organicistas, os modelos da troca conceitual não necessariamente excluem outros processos de aprendizagem, de tipo associativo. Este, e não outro, é o objetivo do modelo conceitual que se expõe a seguir. UM MODELO DA MUDANÇA CONCEITUAL O modelo apresentado pelo autor tenta identificar os processos envolvidos na obtenção de um dos resultados da aprendizagem mais complexos que se pode estudar: a troca conceitual ou reestruturação forte dos conhecimentos. Sem dúvida, a maior parte das situações de aprendizagem não atinge resultados tão radicais, mas produz pequenos ajustes ou um simples crescimento do conhecimento, recorrendo à terminologia de Rumelhart e Norman (1978). Embora, tal como está formulado, o modelo seja útil para compreender qualquer situação de aprendizagem de conceitos ou significados, tanto em situações espontâneas como de instrução, a complexidade de seus requisitos e a sequência de situações conflitivas a que se deve submeter o sujeito para chegar a reestruturar seu conhecimento fazem com que ele se aproxime mais das situações de aprendizagem planificada, ou instrução. ESTRATÉGIAS DE ENSINO VOLTADAS À MUDANÇA CONCEITUAL A produção de reestruturações, sejam fracas ou fortes, necessita de inúmeras situações de crescimento e ajustes prévios que tornem possíveis as condições requeridas pela reestruturação. Por isso, também é necessário integrar, a partir de um ponto de vista instrucional, os dois grandes enfoques ou culturas da aprendizagem, a associação e a reestruturação. Ainda que a aprendizagem seja, como diz Claxton (1984), um elefante com muitas facetas, no final, todas essas facetas são parte constitutiva de um mesmo organismo, e dificilmente alguma delas poderá ser conhecida ou utilizada sem as outras. Talvez a própria psicologia da aprendizagem e da instrução ainda tenha algumas reestruturações a fazer, a mais relevante das quais seria a “reconciliação integradora” entre as suas duas correntes ou tradições principais. Sem dúvida, tal reconciliação produzirá não somente uma maior coerência teórica mas, inclusive, uma maior eficácia em sua aplicação à resolução de problemas práticos.