JOAQUIM MARIA
MACHADO DE ASSIS
[1839 - 1908]
por Ana Cristina R. Pereira
“ tudo o que quis vencer,
venceu”
[Mário de Andrade]
“Do morro à Academia”
• VIDA & OBRA: Machado de Assis foi o
primeiro de nossos escritores a não
proceder da burguesia rural ou da pequena
burguesia urbana. Nasceu no morro do
Livramento, no Rio de Janeiro, a 21 de
junho de 1839. Filho de um mulato carioca,
Francisco José de Assis, pintor de
paredes, e de Maria Leopoldina Machado
de Assis, uma lavadeira, branca, e
imigrante
açoriana.
Gente
humilde,
organizada e bem quista no morro.
A madrinha
• Não suspeitava Dona Maria José de
Mendonça Barroso, viúva de Bento Barroso
Pereira, senador, oficial general do exército,
ministro duas vezes, de D. Pedro I e da
Regência trina, que seu nome só passaria à
posteridade por haver, em 13 de novembro
de 1839, consentido em ser madrinha de
uma criança nascida a 21 de junho desse
mesmo ano, numa casinha simples vizinha
da sua chácara.
A infância de Machado
• Entre a casa pobre dos pais e a casa
opulenta da madrinha, passavam-se os seus
dias; bem cedo terá aprendido a distinguir a
diferença das sortes, talvez a achá-la injusta
e incompreensível. Essa formação explica
muita coisa no seu perfil – a sua estranha
mescla de ambição pessoal e de aceitação
da hierarquia social, de convencionalismo e
de ceticismo, de conformismo e de
relativismo.
A infância de Machado
• Já na infância, revelou frágil saúde: atitudes
nervosas, epilepsia e gaguez, que surgiram em
intervalos ao longo de sua existência e que lhe
conferiram um temperamento tímido e reservado.
Mas foi um moleque entre muitos outros, feio, de
camisa de riscado e pés no chão, espiando,
curioso, o povo que se aventurava pela praia da
Gamboa e as embarcações que atracavam na praia
de São Cristovão. Sua mãe morreu cedo. Sua
irmãzinha, única companheira, morreu menina.
A infância de Machado
• Seu pai casou-se novamente com uma
mulata doceira, Maria Inês, que possuía um
bom coração e tratou o enteado doentio
como se fosse sua mãe. Maria foi a primeira
mestra de Machado; ensinou-lhe o pouco que
sabia, as letras (português), as primeiras
operações (matemática). Depois, o menino
passou a frequentar a sombria escola pública
de antigamente, com a palmatória à mostra.
A infância de Machado
• Manifestou logo grande amor ao estudo e
desenvolveu, ao longo de toda a sua vida,
uma curiosidade intelectual insaciável. Mas
não frequentou por muito tempo a escola. O
pai morre e a boa mulata e o enteado ficam
entregues a si, sem recursos, sem amparo.
Maria Inês empregou-se num colégio cujas
donas, senhoras de poucos meios, faziam
doces e balas para fora.
A infância de Machado
• Para sobreviverem, Maria fazia doces e o
menino mulatinho, enteado da cozinheira,
aceito na casa por caridade, ficou
encarregado de vender os doces e balas.
Mas o pequeno, gago, esquivo, pouco
comunicativo, não deve ter sido o ideal dos
vendedores. Nas horas de folga, procurava
ouvir, escondido, trechos das lições dadas
às meninas ricas, pescar aqui e ali uma
noção de esclarecimento.
A infância de Machado
• Machado frequenta, rapidamente, a escola
pública, depois, aprendeu francês com um
amigo padeiro. Talvez tenha sido coroinha,
pois assim se explicaria seu conhecimento
sobre a bíblia e o latim. Mas foi como
autodidata que construiu sua vasta cultura
literária.
• Teve, enfim, uma infância amarga. Mais
tarde, procurou esquecê-la, baniu-a de sua
vida, nunca falou dela, aristocratizou-se,
renegou a humilde madrasta, assumindo a
condição burguesa, misturando-se aos
letrados da classe dominante. Exteriormente,
adaptou-se às elites, mas, seu “demônio
interior - esse espírito inquieto e inquiridor não lhe permitia sossegar. Então o grande
recurso apareceu: o papel, o discreto papel
onde debateria todos os problemas.”
O casamento
• Em 1867 Machado conhece sua eterna
amada, Carolina de Novais, contava ela 33 e
anos e Machado 29 anos. A amabilidade
risonha e acolhedora de Carolina, a sua
inteligência fina, superior ao comum das
outras, a palestra variada, a distinção da
maneiras, até o falar cantado de portuguesa
encantaram o jovem intelectual. Depois de
alguns obstáculos, casaram-se em 1869 e
foram muito felizes.
Carolina de Novais
(esposa de Machado de Assis)
Dom Casmurro (1900)
Dom Casmurro é um romance de adultério?
O NARRADOR
• Nesse romance, saudade, ironia, desencanto e
rancor, misturam-se, e o narrador-protagonista está
prestes a evocar
um
mundo de sortilégios,
emoções e acontecimentos contraditórios, onde
todas as certezas parecem ser relativizadas.
Valendo-se de um método narrativo, tecido em
capítulos curtos, com comentários paralelos, ora
filosóficos, ora irônicos, e de um diálogo
aparentemente banal com o leitor, entre outros
aspectos, o narrador constrói uma narrativa que
pode iludir o leitor.
A viravolta crítica do romance
• A viravolta crítica do romance levou 60 anos,
desde que foi publicado, para emergir da
inteligência de uma professora norteamericana que, estranhando a leitura bárbara
que Bentinho faz do Otelo de Shakespeare,
acabou descobrindo que Machado não queria
celebrar, mas criticar aqueles clichês do
patriarcalismo. Estava desfeita a cilada que o
romancista havia armado, certamente com
propósito crítico.
• Para a norte-americana Helen Caldwell, as
insinuações e acusações de Bento Santiago a
Capitu assumiam o signo do equívoco, sendo
infundadas e ditadas pelo ciúme. A professora
publicou o seu O Otelo Brasileiro de Machado de
Assis, argumentando, pela primeira vez, sobre a
inocência de Capitu em relação à acusação de
adultério determinada pelo seu marido e algoz,
esclarecendo a falta de sustentabilidade do
argumento do acusador, em função do caráter
nebuloso do ponto de vista narrativo e de que,
também, é impossível provar a culpa ou a inocência
da heroína. O livro de Helen mudou a perspectiva
crítica do romance e tornou-se um divisor de águas
na fortuna crítica de Machado de Assis.
O NARRADOR
• Segundo Roberto Schwarz, o cidadão acima
de qualquer suspeita – o bacharel com bela
cultura, o filho amantíssimo, o marido cioso, o
proprietário abastado, avesso aos negócios,
o moço com educação católica, ficava
suspeição, credor de toda a desconfiança
disponível. Assumindo a condição de
narrador volúvel, não confiável e enganador.
“Dom Casmurro”
- 1900 • Romance de extraordinária
complexidade. Nele a realidade
apresenta múltiplas faces,
significados díspares, visões
conflitantes. Trata-se de uma obra
com várias possibilidades de
decifração e análise.
“Dom Casmurro”
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ROMANCE:
DA SUSPEITA
DA DÚVIDA
DA AMBIGÜIDADE
DA PAIXÃO LÍRICA DA ADOLESCÊNCIA
DA
FEROCIDADE
DOS
VALORES
PATRIARCAIS
• DO TORMENTO DOS CIÚMES E DA
INCOMUNICABILIDADE HUMANA
• DE PARADOXOS e DE CONTRADIÇÕES
• NADA SE ESCLARECE TOTALMENTE
“ Capitu, apesar daqueles olhos que
o diabo lhe deu... são assim de
cigana oblíqua e dissimulada ”
• Relativização de todas as certezas:
• Confronto entre a aparência e a essência
da alma humana. O que, em dado
momento, é apresentado como verdade
pode ser apenas uma ilusão. O mundo
concreto é movediço e não tem um
sentido único. [Será que é possível
traduzir a verdade plena da existência? =
crítica ao Realismo].
Os olhos de Capitu
Capítulo XXXII – Olhos de ressaca
•
“Retórica dos namorados, dá-me uma comparação exata e
poética para dizer o que foram aqueles olhos de Capitu. Não
me acode imagem capaz de dizer, sem quebra da dignidade
do estilo, o que eles foram e me fizeram, Olhos de ressaca?
Vá, de ressaca. É o que me dá idéia daquela feição nova.
Traziam não sei que fluido misterioso e enérgico, uma força
que arrastava para dentro, como a vaga que se retira da
praia, nos dias de ressaca. Para não ser arrastado, agarreime às outras partes vizinhas, às orelhas, aos braços, aos
cabelos espalhados pelos ombros; mas tão depressa
buscava as pupilas, a onda que saia delas vinha crescendo,
cava e escura, ameaçando-me envolver-me, puxar-me e
tragar-me. (...) mas eu não estou aqui para emendar poetas.
Estou para contar que, ao cabo de um tempo não marcado,
agarrei-me definitivamente aos cabelos de Capitu, mas então
com as mãos...”
Capítulo XXXII – Olhos de ressaca
•
Capitu é uma personagem emblemática. Fica
difícil saber o que nela é sinceridade ou
fingimento, cálculo ou entrega generosa.
Justifica-se, assim, a contemplação apaixonada
de Bentinho tentando decifrar-lhe os olhos
“misteriosos e enérgicos”. O narrador pretende,
com a metáfora, não apenas esclarecer o efeito
causado sobre si próprio pelos olhos de Capitu,
mas também ressaltar a sua incapacidade de
escapar facilmente ao sortilégio hipnótico desses
olhos.Trata-se de um capítulo célebre do
romance, onde aparece a definição metafórica
para os olhos de Capitu, assimilada por Bento.
“ Capitu era Capitu, isto é, uma
criatura mui particular, mais mulher
do que eu era homem. ”
• CAPITU: personalidade complexa, a
jovem de “olhos de ressaca” não é
desvendada por inteiro, pois o escritor
cria mecanismos sutis que a envolvem
em uma aura de mistério e de tendências
difusas. Fica difícil saber o que nela é
sinceridade ou fingimento. Apesar dos
traços dúbios, Capitu é inteligente,
decidida, curiosa e cheia de vida.
O ciumento Bento Santiago
“ olhos de cigana oblíqua e
dissimulada. ”
• BENTO: Narrador (1ª pessoa) - Foi um
menino mimado e pouco apto para a vida
prática. É o típico representante das
elites brasileiras do Segundo Império:
culto, sofisticado e, especificamente
quando adulto, um homem autoritário,
brutal e incapaz de dialogar com a mulher
que ama. Suas ações são vis e sem
grandeza.
A morte de Escobar
Capítulo CXXIII – Olhos de ressaca
• Enfim, chegou a hora da encomendação e da
partida. Sancha quis despedir-se do marido, e o
desespero daquele lance consternou a todos.
Muitos homens choravam também, as mulheres
todas. Só Capitu, amparando a viúva, parecia
vencer-se a si mesma. Consolava a outra, queria
arrancá-la dali. A confusão era geral. No meio dela,
Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão
fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe
saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...
Capítulo CXXIII – Olhos de ressaca
• As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as
dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando a
furto para a gente que estava na sala.
Redobrou de carícias para a amiga, e quis
levá-la; mas o cadáver parece que a retinha
também. Momento houve em que os olhos de
Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva,
sem o pranto nem palavras desta, mas
grandes e abertos, como a vaga do mar lá
fora, como se quisesse tragar também o
nadador da manhã.
Capítulo Final – E bem, e o resto?
Capítulo CXLVIII – E bem, e o resto?
“Agora, por que é que nenhuma dessas caprichosas me
fez esquecer a primeira amada do meu coração? Talvez
porque nenhuma tinha os olhos de ressaca, nem os de
cigana oblíqua e dissimulada. Mas não é este propriamente
o resto do livro. O resto é saber se a Capitu da praia da
Glória já estava dentro da de Matacavalos, ou se esta foi
mudada naquela por efeito de algum caso incidente. Jesus,
filho de Sirach, se soubesse dos meus primeiros ciúmes, dirme-ia, como no seu cap. IX, vers. 1: “Não tenhas ciúmes de
tua mulher para que ela não se meta a enganar-te com a
malícia que aprender de ti”. Mas eu creio que não, e tu
concordarás comigo; se te lembras bem da Capitu menina,
hás de reconhecer que uma estava dentro da outra, como a
fruta dentro da casca.
E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é
a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a
minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos
ambos e tão queridos também, quis o destino que
acabassem juntando-se e enganando-me...”
Capítulo CXLVIII – E bem, e o resto?
–
Nesta passagem do romance “Dom
Casmurro”, Bento Santiago confessa que
nenhuma
outra
mulher
(“caprichosas”)
despertou-lhe amor tão profundo quanto
Capitu, voltando a designá-la pelas metáforas
dos olhos (olhos de “ressaca”, de “cigana”) e
reafirmando, pela última vez, a natureza
envolvente e oblíqua de sua amada. Nas
entrelinhas desta afirmativa , constatamos que
o narrador jamais se recuperou afetivamente
do golpe sofrido, tenha sido ele real ou
imaginário.
Capítulo CXLVIII – E bem, e o resto?
–Em seguida, Bento chega a cogitar baseando-se em uma citação bíblica -,
na possibilidade dos seus ciúmes
terem causado a traição da esposa,
sendo, portanto, também ele culpado
do que ocorrera, ideia que é logo
refutada (negada) pelo narrador na
seqüência narrativa.
Capítulo CXLVIII – E bem, e o resto?
– Finalmente, em sua última afirmativa, o narrador
conclui pela culpabilidade da esposa morta,
dizendo que a Capitu da praia da Glória (a
Capitu adulta) já estava na da rua de
Matacavalos (a Capitu menina) “como a fruta
dentro da casca”. Bento Santiago encerra
assim o processo de julgamento de sua mulher,
sem lhe conceder a chance de defesa através do
discurso direto. Este aspecto conclusivo do
relato levou, durante muito tempo, leitores e
críticos a igualmente condenarem Capitu por
adultério,
numa
percepção
visivelmente
influenciada por valores machistas e patriarcais.
Capítulo CXLVIII – E bem, e o resto?
• Contudo, nas últimas décadas, esta visão baseada
no “texto sofrido” – ainda que elegante e sedutor –
de Bento Santiago foi posta em xeque. Alguns
leitores perceberam que só ele tem o direito à
palavra e que a ótica dos acontecimentos é
exclusivamente a sua. Outros perceberam algo
ainda mais complexo: a acusação do narrador
está corroída internamente por tal quantidade
de dúvidas e contradições, que ela mesma não
se sustenta. A cada prova enunciada corresponde
a insinuação de uma contraprova.
Capítulo CXLVIII – E bem, e o resto?
• Desta forma, descobriu-se que o tema do
romance talvez não seja nem o adultério,
nem os ciúmes, mas a impossibilidade de
um indivíduo conhecer inteiramente outro
ser e, por derivação, a impossibilidade do
homem de alcançar qualquer verdade
objetiva e absoluta. Sob esta perspectiva,
Dom Casmurro passou a ser visto como um
romance amargo e genial sobre a
fragilidade do conhecimento humano.
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Dom Casmurro