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O MISTÉRIO DE CAPITU: UMA COMPARAÇÃO ENTRE O ROMANCE
ORIGINAL DE MACHADO DE ASSIS E A RECRIAÇÃO LITERÁRIA DE
FERNANDO SABINO
Lívia Bisch Endres1
A personagem Capitu, do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, bem se
sabe, está rodeada de controvérsia. Sua natureza é ambígua, com seus “olhos de cigana
oblíqua e dissimulada”, e, além disso, há o tão falado mistério a respeito de seu possível
adultério. Seria Capitu inocente ou culpada? Teria ela traído o marido com seu melhor amigo?
Muito da possível culpa de Capitu se atribui à narração de Bento Santiago, o Dom
Casmurro do título, o marido possivelmente traído que conta sua versão dos fatos. Está claro
que o intuito de Bento é defender-se, provar, ao longo da história que conta, que Capitu é
realmente culpada, que seria capaz de traí-lo. Desta maneira, o fato de ser Bento o narrador
contribui para o mistério de duas maneiras: tanto ele se utiliza de todos os argumentos a que
tem alcance para incriminar Capitu, o que pode levar o leitor a julgá-la culpada, como
também o leitor pode interpretar seu ponto de vista como exagerado e afetado pelo ciúme,
pela paranóia, podendo assim concluir que as provas apresentadas ao longo da narrativa
podem não ser tão irrefutáveis assim e que talvez Capitu seja inocente do adultério do qual é
acusada.
Apoiado na parcialidade do relato de Bento, Fernando Sabino recria, em 1998, uma
versão da história de Dom Casmurro sem seu narrador original, à qual dá o nome Amor de
Capitu: o romance de Machado de Assis sem o narrador Dom Casmurro: recriação literária.
Em vez da narração em primeira pessoa de Bentinho, temos um narrador em terceira pessoa.
Na seção chamada Apresentação, no livro, Sabino mostra ainda como argumento para a
recriação do livro o fato de que Bentinho, como narrador, divaga longamente em comparações
e referências à literatura e fatos históricos, desviando muitas vezes a atenção do leitor e
criando, assim, “um mistério a mais”.
Amor de Capitu não tem a intenção de superar ou modificar o texto original, como
Sabino explica, ainda na Apresentação. Pelo contrário, o autor faz questão de frisar que recria
a obra em reconhecimento a sua importância, a sua qualidade, referindo-se a ela como “um
dos monumentos da nossa literatura” (SABINO, 1998, p. 7). É uma experiência; o autor
1 Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – Rio Grande do Sul – Brasil.
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elimina o relato memorial de Bentinho, eliminando, assim, uma parte do mistério, para então
ficar com o tanto de mistério que sobra.
No que diz respeito ao mistério principal da obra de Machado, a culpa ou não de
Capitu, é importante deixar claro desde já que Fernando Sabino não acredita ser esse um
mistério tão sem respostas. Ainda na “Apresentação”, afirma:
o que sempre me atraiu neste romance admirável não foi a intrigante e todavia óbvia
infidelidade da personagem principal, motivo de tantas especulações da crítica ou
pseudocrítica. O que me excitou a curiosidade desde a primeira leitura e mais de
uma releitura da obra foi descobrir até que ponto a dúvida teria sido premeditada
pelo autor, através de um narrador evasivo, inseguro, ingênuo, preconceituoso e
casmurro, como o apelido que assumiu para si mesmo. (SABINO, 1998, p. 8)
Sendo assim, fica claro que o objetivo de Sabino não é duvidar da culpa de Capitu,
mas mostrar, com a eliminação do narrador, quanto dessa dúvida (sobre um fato que ele julga
óbvio) se dá por sua presença, e quanto dela ainda resta tendo-se um narrador supostamente
mais imparcial.
Na seção E bem, e o resto?, no final do livro, o autor volta a conversar com o leitor a
respeito de seus objetivos ao recriar a obra, e do processo através do qual o fez. Ele comenta,
por exemplo, sobre o fato de ter removido da narrativa as divagações e histórias de Bentinho,
e colocado-as em outra seção, anexa ao final do livro, chamada O cronista Dom Casmurro.
Outra modificação que o autor faz na narração é juntar capítulos que eram muito curtos e
relatavam a mesma cena, por exemplo. Os nomes dos capítulos também são omitidos, e
substituídos por números, mas não números romanos, como no texto original.
Sabino ainda substitui algumas expressões do texto original por outras mais atuais,
como explica em outro trecho da seção E bem, e o resto?:
Algumas expressões idiomáticas da época, ou de flagrante herança lusitana, que
pareceriam desusadas ou mesmo chulas ao leitor de hoje, foram substituídas por
vocábulos de sinonímia ou acepção equivalente que não trouxessem a marca do
tempo – como “lábios” em vez de “beiços”, “rosto” em vez de “cara”, “é verdade”
em vez de “é deveras”, “encabulado” em vez de “enfiado”, “estupefato” em vez de
“estúpido”, “zombeteiro” em vez de “chocarreiro”, “raspado” em vez de “rapado”,
etc. (SABINO, 1998, p. 233)
O autor ainda explica por que modificou mais algumas expressões mais e por que
deixou outras como estavam. O autor ainda volta a comentar a respeito das discussões através
do tempo a respeito do que, segundo ele mesmo, se convencionou chamar de “enigma de
Capitu”, reforçando que sua recriação literária é também sua maneira de participar de tal
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discussão, apresentando seu ponto de vista, já acima mencionado.
Quanto ao romance em si, Sabino o apresenta da forma como afirma tencionar:
eliminando o cunho pessoal dos fatos narrados, através do narrador em terceira pessoa. Temos
aqui um narrador em terceira pessoa que é onisciente, mas que escolhe apenas um ponto de
vista, o de Bento Santiago. Sabino não experimenta adentrar os pensamentos de nenhum dos
outros personagens, nos apresentando de uma forma diferente o mesmo ponto de vista que
tínhamos, originalmente.
O autor também não cria fatos novos; relata somente aqueles mesmos a que o leitor
teve acesso ao ler o original. Os organiza de forma mais objetiva e mais linear, já que eles
deixam de ser contados por alguém que, eventualmente, esquece um detalhe ou outro ou volta
atrás para contar algo que lhe passou despercebido anteriormente. A remoção das histórias
contadas por Bento e que não tinham relevância para a trama principal, aquelas que Sabino
chama de “divagações” e coloca ao final de seu livro chamando-as então de “crônicas”,
contribui para a objetividade que o autor tencionava alcançar. Um exemplo comparativo desta
objetividade está no início de ambas as narrativas; o trecho citado a seguir, de Dom casmurro,
está no capítulo XI, enquanto o equivalente, em Amor de Capitu, está no capítulo 2.
Tão depressa vi desaparecer o agregado no corredor, deixei o esconderijo, e corri à
varanda do fundo. Não quis saber de lágrimas nem da causa que as fazia verter a
minha mãe. A causa eram provavelmente os seus projetos eclesiásticos, e a ocasião
destes é a que vou dizer, por ser já então história velha; datava de dezesseis anos.
Os projetos vinham do tempo em que fui concebido. Tendo-lhe nascido morto o
primeiro filho, minha mãe pegou-se com Deus para que o segundo vingasse,
prometendo, se fosse varão, metê-lo na igreja**. (ASSIS, 1947, p. 34)
Tão logo viu José dias desaparecer no corredor, Bento deixou o esconderijo e correu
até a varanda do fundo. Não quis saber das lágrimas da mãe, por conta da promessa
que ela fizera dezesseis anos antes, quando ele fora concebido. Tendo nascido morto
o seu primeiro filho, ela se agarrou com Deus para que o segundo vivesse,
prometendo fazê-lo padre, se fosse menino. (SABINO, 1998, p. 17)
A grande diferença entre a presença dos trechos em capítulos e até páginas assim
distantes se dá porque os capítulos iniciais do original, nos quais Bento explica como surgiu a
idéia de escrever e o título do livro, são omitidos na versão de Sabino. Da mesma forma, os
capítulos originalmente separados em que Bento conta da denúncia de José Dias a respeito da
“gente do Pádua” e de como este tornou-se um “agregado”, aparecem aglutinados no capítulo
1 de Amor de Capitu.
** Tomei a liberdade de atualizar a ortografia presente no livro.
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Quanto aos trechos em si, podemos perceber a distanciação ganha com o narrador em
terceira pessoa ao trocar o apelido pelo qual Bento denominava José dias pelo nome, e
também obviamente pela omissão de pronomes que se referem a ele como o “minha”
juntamente com a palavra “mãe”. Outra mudança interessante é a eliminação do diálogo que o
narrador Casmurro sempre travava com seu leitor, como quando anuncia “a ocasião destes é
a que vou dizer.”
De forma semelhante, se torna muito mais impessoal e objetivo o trecho em que Bento
conta sobre quando descobriu que amava Capitu, depois da denúncia que José Dias fizera para
sua mãe:
Tudo isto me era agora apresentado pela boca de José Dias, que me denunciara a
mim mesmo, e a quem eu perdoava tudo, o mal que dissera, o mal que fizera, e o
que pudesse vir de um e de outro. Naquele instante, a eterna Verdade não valeria
mais que ele, nem a eterna Bondade, nem as demais Virtudes eternas. Eu amava
Capitu! Capitu amava-me! E as minha pernas andavam, desandavam, estacavam,
trêmulas e crentes de abarcar o mundo. Esse primeiro palpitar da seiva, essa
revelação da consciência a si própria, nunca mais me esqueceu, nem achei que lhe
fosse comparável qualquer outra sensação da mesma espécie. Naturalmente por ser
minha. Naturalmente por ser a primeira. (ASSIS, 1947, p. 41)
Tudo isso lhe era agora apresentado pela boca de José Dias, que o denunciava a si
mesmo, e a quem ele perdoava tudo, o mal que dissera, o mal que fizera, e o que
mais pudesse vir. Ele amava Capitu! Capitu o amava! Essa revelação da consciência
a si própria, ele jamais esqueceria – nem era comparável a qualquer outra sensação
da mesma espécie.
Naturalmente por ser a primeira. (SABINO, 1998, p.21)
Outra comparação pertinente é aquela em que Bento deixa, em Amor de Capitu, de ser
um personagem em duas épocas paralelas; aquela que ele relata e aquela da qual ele faz seu
relato. O narrador em terceira pessoa, na recriação, não é um personagem em época alguma, e
temos portanto apenas o tempo de uma narrativa, em vez de duas.
Mais especificamente falando a respeito das mudanças que atingem a maneira como
Capitu é retratada, podemos analisar um trecho em que Bento narra um momento em que ele e
Capitu são surpreendidos pelo pai dela exatamente como, pouco antes, tinham sido
surpreendidos pela mãe:
Agora é que o lance é o mesmo: mas se conto aqui, tais quais, os dois lances de há
quarenta anos, é para mostrar que Capitu não se dominava só em presença da mãe; o
pai não lhe meteu mais medo. No meio de uma situação que me atava a língua,
usava da palavra com a maior ingenuidade deste mundo. A minha persuasão é que o
coração não lhe batia mais nem menos. Alegou susto, e deu à cara um ar meio
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enfiado; mas eu, que sabia tudo, vi que era mentira e fiquei com inveja. (ASSIS,
1947, p. 128)
O mesmo trecho, retirado de Amor de Capitu:
Agora o lance era o mesmo; Capitu não se dominava só em presença da mãe: o pai
também não lhe meteu medo. No meio de uma situação que atava a língua de Bento,
ela usava da palavra com a maior ingenuidade do mundo. Alegou susto, e deu ao
rosto um ar meio encabulado. Bento, que acompanhava tudo, via que era mentira e
ficou com inveja. (SABINO, 1998, p. 63)
É possível perceber que um dado importante foi perdido no trecho modificado por
Sabino; o motivo pelo qual tais fatos foram escolhidos por Bento para serem contados.
Quando Bento diz ao leitor que os escolheu “para mostrar que Capitu não se dominava só
em presença da mãe; o pai não lhe meteu mais medo”, ele está afirmando que seu objetivo é
demonstrar como Capitu, desde muito jovem, tinha total controle de suas emoções diante de
situações em que ele ficaria nervoso, além de ser capaz de dissimular uma mentira tal como se
fosse verdade. Ele admite que admirava a habilidade da garota; porém, seu intuito é muito
claro ao contrastar tal habilidade com sua própria incapacidade de fazer o mesmo.
Da mesma maneira, o narrador Bento, mesmo quando conta do início da paixão, época
em que não via mais que qualidades em Capitu, mesmo em sua habilidade de dissimular,
insiste em, além de desacreditá-la, diminuí-la, continuamente, ressaltando a diferença social
entre eles. Isso fica claro em vários momentos, como em toda a seqüência a respeito do
homem vendendo cocadas, no capítulo XVIII, especialmente com a insinuação da música
cantada pelo vendedor e repetida pelos jovens, em momentos de brincadeiras: “Chora,
menina, chora,/ Chora, porque não tem/ Vintém” (ASSIS, 1947, p.61).
No capítulo XXXIX, quando Capitu parabeniza o Padre Cabral por ter sido promovido
a protonoário apostólico, Bento comenta sutilmente, em sua narração, que ela “trazia um
vestidinho melhor e os sapatos de sair” (ASSIS, 1947, P. 130), comentário que permanece
praticamente intacto na versão de Sabino, “estava com um vestidinho melhor e os sapatos de
sair” (SABINO, 1998, p. 65). Aqui começa a ficar claro que o efeito de imparcialidade do
narrador em terceira pessoa não está atrelado, em Amor de Capitu, a um efeito de
neutralidade. Ou seja: a visão de Bento é mantida, com sua opinião a respeito do vestido,
como sendo um pouco melhor do que os outros, e sua menção sutil ao fato de a menina
possuir apenas um par de sapatos suficientemente adequados para sair, de forma que não
apenas a opinião do antigo narrador continua prevalecendo como ganha maior peso ao ser
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afirmada também pelo narrador em terceira pessoa.
Voltando a outro trecho citado anteriormente, na quinta página do presente artigo,
aquele em que Bento quer provar a habilidade de Capitu em se controlar diante dos pais,
também podemos perceber a diferença entre o narrador Bento e o narrador em terceira pessoa
de Amor de Capitu. Embora o narrador de Sabino modifique a afirmação “eu, que sabia de
tudo”, transformando-a em “Bento, que acompanhava tudo”, permanece a afirmação de que
as emoções de susto e vergonha de Capitu são falsas, na afirmação “via que era mentira”,
que, afirmada por um narrador imparcial, ganha muito mais impacto e dá, senão a certeza, a
impressão de que não era apenas opinião de Bento a palavra “mentira”, mas fato.
Outro que fato também começa a pesar durante a narrativa é o de serem os mesmos
fatos de Dom Casmurro os contados em Amor de Capitu. O ponto de vista segue sendo
sempre o de Bento, pois é aos fatos escolhidos por ele que o leitor tem acesso, comentados
sempre sob a sua opinião, adjetivados por suas impressões e afirmados pelo narrador
onisciente. Se a primeira pessoa, como marido que se julgava traído, tinha como objetivo
fazer crer na culpa de Capitu, o narrador de Sabino não a mostra sob um ponto de vista
neutro, que permita ao leitor tirar suas próprias conclusões.
É possível, todavia, perceber uma preocupação de Fernando Sabino em atribuir
somente a Bento as opiniões e impressões nos trechos mais cruciais da argumentação “contra”
Capitu. Como por exemplo na versão do seguinte trecho:
Capitu e eu, involuntariamente, olhamos para a fotografia de Escobar, e depois um
para o outro. Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura. Este era aquele; havia
por força alguma fotografia de Escobar pequeno que seria o nosso pequeno
Ezequiel. De boca, porém, não confessou nada; repetiu as últimas palavras, puxou
do filho e saíram para a missa. (ASSIS, 1947, p. 411)
Capitu e ele, involuntariamente, olharam para a fotografia de Escobar, e depois um
para o outro. Desta vez a confusão dela se fez aos olhos de Bento confissão pura.
Para ele, não havia como negar: devia existir por força alguma fotografia de Escobar
em pequeno que seria o menino Ezequiel. De boca, porém, ela não confessou nada;
repetiu as últimas palavras, puxou o filho e saíram ambos para a missa. (SABINO,
1998, p. 213-214)
Ao substituir “Desta vez a confusão dela fez-se confissão pura” por “Desta vez a
confusão dela se fez aos olhos de Bento confissão pura”, Sabino garante que a afirmação a
respeito da confissão cabe inteiramente a Bento. O narrador de Sabino ainda se distancia mais
uma vez ao substituir a afirmação “havia por força alguma fotografia de Escobar pequeno
que seria o nosso pequeno Ezequiel” por “devia existir por força alguma fotografia de
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Escobar...”, marcando assim que trata-se de uma suposição de Bento, e não uma certeza.
Apesar de seu cuidado para não incriminar Capitu tão abertamente, é nos pequenos
detalhes que o narrador em terceira pessoa de Fernando Sabino o faz; nas pequenas
afirmações que escapam aos olhos em contraste com aquelas mais explícitas é que temos a
impressão de que o narrador, embora desligado de Bento, concorda com ele, corrobora com a
sua versão.
Em um trecho anterior da história, antes da separação de Bento e Capitu, durante o
enterro de Escobar, podemos perceber exemplos disso.
Capitu olhou alguns instantes para o cadáver tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que
não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...
As minhas cessaram logo. Fiquei a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando
a furto para a gente que estava na sala. Redobrou de carícias para a amiga, e quis
levá-la; mas o cadáver parece que a retinha também. Momento houve em que os
olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras
desta, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora, como se quisesse tragar
também o nadador da manhã. (ASSIS, 1947, p. 374)
O trecho na versão de Sabino:
Bento viu Capitu a olhar alguns instantes para o cadáver de maneira tão fixa, tão
apaixonadamente fixa, que não se admirou ao saltarem dos olhos algumas poucas e
silenciosas lágrimas.
As dele cessaram logo. Ficou a ver as dela; Capitu enxugou-as depressa, olhando
furtivamente para as pessoas que estavam na sala. Redobrou de cuidados com a
amiga, e quis levá-la: mas o cadáver parecia retê-la também. Houve um momento
em que Bento viu os olhos de Capitu fitarem o defunto, como os da viúva, sem o
pranto nem as palavras dela, mas grandes e abertos, como a vaga do mar lá fora,
como se quisesse tragar também o nadador daquela manhã. (SABINO, 1998, p. 194)
Embora, novamente, atribua a Bento as opiniões mais relevantes do trecho, usando por
duas vezes o termo “Bento viu” ao manter a característica “apaixonadamente fixa” ao olhar
que Capitu lança ao defunto e no comentário de que ela o olhava da mesma maneira que a
viúva, o narrador em terceira pessoa torna menos dignas de dúvida as suspeitas de Bento ao
afirmar, com sua autoridade de narrador onisciente, e não mais uma personagem da trama, e a
mais envolvida nela, que Capitu enxugou as lágrimas depressa, verificando apressadamente
(“furtivamente”) se alguém as percebera, e que redobrou os cuidados com Sancha, a quem
consolava durante a cena. São duas observações menores em relação às outras, mas que,
afirmadas pelo narrador onisciente, ajudam as afirmações atribuídas a Bento a terem mais
credibilidade.
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Podemos concluir, à luz de tais reflexões, que a obra de Fernando Sabino cumpre ao
menos com os objetivos relatados por ele na Apresentação de sua obra. O primeiro deles seria
tornar a narrativa mais objetiva, o que de fato ocorre, já que ela se torna mais curta, vai mais
direto ao ponto, retém-se mais às cenas e deixa de lado os comentários feitos por Bento que
não fossem tão relevantes aos fatos narrados. Capítulos que eram separados, mas tratavam da
mesma coisa, também se juntam, sem os capítulos que muitas vezes interrompiam a ação. E a
subjetividade causada pelo fato de ser um dos personagens o narrador da história dá lugar à
objetividade, sem envolvimento, da narração em terceira pessoa.
Outro objetivo era ser o mais fiel possível à obra, coisa que ocorre, já que os fatos
relatados são os mesmos; Fernando Sabino não cria fatos ou situações novas, narrando
aquelas criadas originalmente por Machado de Assis. O ponto de vista continua sendo o de
Bento Santiago, como no original. Também continuam sendo apenas os pensamentos e
opiniões de Bento os que são mostrados ao leitor, ou seja; Sabino não mostra o que estão
pensando e sentindo os outros personagens.
Sendo assim, a maneira como os personagens são mostrados, inclusive Capitu,
permanece a mesma. Se Capitu é, na obra original de Machado, mostrada como uma
personagem feminina forte, inteligente, perspicaz e dissimulada, uma personagem, aliás,
extremamente moderna e incomum para a literatura da época, ela também o é na obra de
Fernando Sabino.
O autor da recriação ainda tinha como objetivo determinar quanto da dúvida a respeito
da culpa de Capitu se deve ao fato de ser Bento o narrador da história, objetivo este que
também é alcançado. Afirmo tal, pois parece claro, após a leitura da obra, que a presença de
um narrador em terceira pessoa só serviria para afirmar um dos dois pontos de vista – o da
culpa ou o da inocência. O fato de ser Bento o narrador favorece a dúvida, pois ele tenta,
durante toda a narrativa, provar que Capitu seria capaz de enganá-lo, e isso pode levar o leitor
a não acreditar inteiramente em tudo o que ele diz da esposa. Um narrador em terceira pessoa,
com sua autoridade e onisciência, conferiria veracidade ao ponto de vista que fosse escolhido.
No caso, o de que Capitu é culpada.
Desta forma, Amor de Capitu ajuda a esclarecer, como desejava seu autor, quanto da
dúvida era premeditada por Machado: provavelmente toda. Ao fazer do marido ciumento o
narrador, Machado de Assis já pressupõe a dúvida, a cria no primeiro instante, oferecendo a
Capitu a possibilidade da inocência por ser acusada pela parte mais interessada em incriminá-
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la. O narrador imparcial de Fernando Sabino não tem interesse em provar nada ao leitor,
mesmo que o faça sem intenção. E é por isso mesmo que seu relato se torna mais merecedor
da confiança do leitor.
Alguém que nunca tenha lido Dom Casmurro, se vier a ler Amor de Capitu primeiro,
poderá ter certeza absoluta da culpa de Capitu. Já a leitura do original pode levar tanto a esta
opinião quanto à contrária, ou mesmo à própria dúvida. Dúvida esta que só faz demonstrar o
talento de Machado; é preciso ter muita habilidade para oferecer um relato que possa ser
interpretado de qualquer uma dessas formas.
Assim, torna-se uma decisão de Sabino ajudar a determinar, através da presença de um
narrador em terceira pessoa, para qual dos dois lados penderá a dúvida. O autor poderia ter
favorecido o tese da inocência de Capitu, se nela acreditasse, mesmo optando por manter o
ponto de vista de Bento como o central na história. Acreditando em sua culpa, cria um
narrador que só serve para reafirmar os motivos que Bento tinha para acreditar que Capitu o
traíra. A personagem agora não é acusada apenas por um sujeito, seu marido, mas por dois:
ele e o narrador. Sabino, se não acaba com a dúvida, a diminui muito, dando ao relato de
Bento uma credibilidade que originalmente não tínhamos. As características dúbias de Capitu
são ora afirmadas pelo narrador, que tem o poder de afirmar com veracidade, ora delegadas ao
marido ciumento. Seu ponto de vista, porém, permanece desconhecido.
Referências
ASSIS, MACHADO DE. Dom Casmurro. Rio de Janeiro: W. M. Jackson, 1947. 436 p.
(Obras Completas de Machado de Assis)
GLEDSON, JOHN. Machado de Assis: impostura e realismo: uma reinterpretação de Dom
Casmurro. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. 196 p.
PIETRANI, ANÉLIA MONTECHIARI. O enigma mulher no universo masculino
machadiano. Niterói: EDUFF, 2000. 136 p. (Coleção Ensaios; v.18)
SABINO, FERNANDO. Amor de Capitu: o romance de Machado de Assis sem o narrador
Dom Casmurro: recriação literária. 2. ed. Rio de Janeiro: Ática, 1998. 292 p. (Série Rosa dos
Ventos)
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o mistério de capitu