Coisa Julgada e Segurança Jurídica Heleno Taveira Torres Professor de Direito Tributário da USP Vice-Presidente da IFA Coisa julgada e declaração de (in)constitucionalidade do STF (concentrado), se esta decisão pode autorizar a retroatividade dos atos tributários, para alcançar as situações fáticas estabilizadas sob a égide da coisa julgada (dispor sobre o passado); Limites da eficácia dessa decisão do STF (quando disponha para futuro), nas chamadas relações tributárias continuativas; Efeito vinculante das decisões do STF (difuso) sobre a coisa julgada para o futuro (i) e se estas podem ser aplicadas às relações jurídicas constituídas no passado (ii) e se pode, a decisão em RE, ser aplicada em relação a terceiros (iii). Papel da ação rescisória e da revisão de coisa julgada Quanto ao procedimento, se seria imprescindível procedimento de “revisão” da coisa julgada (a) ou se seria desnecessária tal pretensão, em virtude do efeito vinculante dos órgãos administrativos, o que autoriza imediata exigibilidade de tributos e outros efeitos (b). Coisa julgada do contribuinte tem proteção de direito fundamental Restrições a direitos fundamentais não podem prejudicar o conteúdo essencial dos princípios ou garantias Definição do âmbito normativo da garantia da coisa julgada: ◦ Garantia constitucional à imutabilidade e irrevisibilidade da coisa julgada ◦ Vedação à eternização de litígios – eficiência processual ◦ Prevalência da igualdade e do equilíbrio concorrencial – funções de coordenação axiológica da Constituição CF/88 – Art. 5º XXXVI - a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada; • Coisa julgada formal – decisão irrecorrível • Coisa julgada material – decisão irrecorrível e irrescindível (esgotado o prazo da ação rescisória) A garantia da coisa julgada protege os efeitos da sentença contra normas in abstracto ou in concreto, bem como contra a retroatividade. Os efeitos futuros da coisa julgada delimitam-se de acordo com o pedido/causa de pedir. Diferenciação sistêmico-funcional: Coisa julgada do Fisco ◦ Privilégios da Fazenda Pública durante e após processo ◦ Aplicação de direitos fundamentais na execução ◦ PARECER PGFN/CRJ/Nº 492/2011, 30.03.2011 Coisa Julgada do Contribuinte ◦ - garantia de direito fundamental ◦ - aplicação do devido processo legal + limitações constitucionais ao poder de tributar (irretroatividade, anterioridade, não-discriminação etc) - Execução contra a Fazenda Pública diferenciada Dever de observância da coisa julgada Art. 19, II, § 4º e 5º da Lei n. 10.522/01 princípios de eficiência e moralidade administrativa: Afasta-se a continuidade de recursos e a exigência de tributos em virtude de jurisprudência pacífica do STF ou do STJ Exige-se ato declaratório do ProcuradorGeral da Fazenda Nacional, aprovado pelo Ministro de Estado da Fazenda. PARECER PGFN/CRJ/Nº 492/2011, 30.03.2011 Recentes tentativas de “limitação” ao direito fundamental de proteção à coisa julgada: ◦ ◦ ◦ ◦ Ativismo judicial “Relativização” da coisa julgada Coisa julgada inconstitucional Uso exagerado de efeitos de “precedentes” Respeito às decisões judiciais e eficácia do princípio da separação de poderes Jurisprudência e segurança jurídica por “orientação” – critérios de mutação exigem coerência com a CF Precedentes (persuasive precedent), predominância, consolidação (linha de precedentes), uniformização (súmulas) e stare decisis (súmulas vinculantes e repercussão geral – biding precedent) Modificação ou divergência da Jurisprudência: ◦ 1. Distinguishing – surgimento de fatos diversos; ◦ 2. Overriding – âmbito de aplicação restringido por situação posterior, sobre o que o Tribunal deverá se pronunciar ◦ 3. Overruling – revisão integral do conteúdo (com efeito “ex nunc” ou prospective overruling); “As palavras coisa julgada indicam uma decisão que não pende mais dos recursos ordinários, ou porque a lei não os concede (segundo lei das alçadas), ou porque a parte não usou deles nos termos fatais e peremptórios, ou porque já foram esgotados. Os efeitos de uma tal decisão é ser tida por verdade; assim, todas as nulidades e injustiças relativas, que porventura se cometessem conta o direito das partes, já não são susceptíveis de revogação.” (Pontes de Miranda, Comentários ao Código de Processo Civil, Tomo V, Rio de Janeiro: Forense, 1976, p. 172). “Art. 467 - Denomina-se coisa julgada material a eficácia, que torna imutável e indiscutível a sentença, não mais sujeita a recurso ordinário ou extraordinário.” “Art. 468 - A sentença, que julgar total ou parcialmente a lide, tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas.” “Art. 469 - Não fazem coisa julgada: I - os motivos, ainda que importantes para determinar o alcance da parte dispositiva da sentença; Il - a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença; III - a apreciação da questão prejudicial, decidida incidentemente no processo.” Segurança jurídica e confiança legitima na estabilidade temporal do direito - A hermenêutica da coisa julgada deve respeitar a irretroatividade e a anterioridade, pois, enquanto perduram seus efeitos, extingue-se o crédito tributário na cadeia de atos da relação continuada e modificações de critérios só valem para lançamentos futuros. Aplicação dos art. 100, 146 e 156, X do CTN Estabilidade do sistema - garantias de proteção do ato jurídico perfeito, da coisa julgada e do direito adquirido Unidade da Constituição e coisa julgada Distinguir: a) coisa julgada garantidora de fatos (oponível ad praeteritum), cuja imutabilidade deve ser garantida como efeito de direito fundamental; e b) coisa julgada garantidora de direito “in abstracto” (futuro) - o princípio de unicidade do sistema constitucional (para evitar discriminação, garantir equilíbrio de concorrência etc), impõe a cessação dos seus efeitos. Proibição de alcance a situações pretéritas e a vedação da retroatividade agravante (limitações constitucionais oponíveis ao poder de tributar) nas decisões do STF Decisão com efeito vinculante erga omnes Aplicação da anterioridade para início da exigência de tributos após decisão do STF – aplicável à coisa julgada material Efeitos da “decisão mais benigna” Art. 100, parágrafo único – permanência de decisões administrativas ou de práticas reiteradas da Administração afastam recolhimento de multas e acréscimos moratórios Art. 146. A modificação introduzida, de ofício ou em conseqüência de decisão administrativa ou judicial, nos critérios jurídicos adotados pela autoridade administrativa no exercício do lançamento somente pode ser efetivada, em relação a um mesmo sujeito passivo, quanto a fato gerador ocorrido posteriormente à sua introdução. • • • Relações continuativas: hipótese normativa caracterizada por um estado que se prolonga no tempo; ou eventos que tendem a se repetir, numa sucessão de fatos jurídicos tributários. Relação continuativa não decorre de “estado de sujeição permanente”, mas pelo encadeamento de fatos jurídicos tributários sucessivos, segundo critérios semelhantes da RMI. Diversamente: “Relações jurídicas sucessivas que nascem de um suporte fático complexo, formado por um fato gerador instantâneo, inserido numa relação jurídica permanente.” (STJ – Resp 686.085, Relator Ministro Teori Zavascki) Relação tributária continuativa caracteriza-se por prolongar-se no tempo: ser proprietário de imóvel = fato gerador do IPTU; realizar operações com produtos industrializados = IPI; isenção ou imunidade nas ocorrências do suporte fático etc. Hugo de Brito Machado: “Na sentença que declara a inexistência de relação jurídica tributária, porque reconhece haver imunidade, ou isenção, ou não incidência pura e simples do imposto, transita em julgado a declaração. Assim, em se tratando de relação jurídica tributária continuativa, o preceito valerá para o futuro, salvo, é claro, alteração que poderá ocorrer nos elementos de fato ou de direito, formadores dessa relação.” Relação continuativa no CPC Art. 471 do CPC: “Nenhum juiz decidirá novamente as questões já decididas, relativas à mesma lide, salvo: I – se, tratando-se de relação jurídica continuativa, sobreveio modificação no estado de fato ou de direito; caso em que poderá a parte pedir a revisão do que foi estatuído na sentença.” Direito da parte para pedir a revisão da coisa julgada : a) modificação no estado de fato (i) ou de direito (ii) b) cláusula rebus sic stantibus (persistência da situação de fato ou de direito ao tempo da sentença - art. 471, I, CPC) c) efeitos ex nunc (retroage à data da ação revisional) d) Não se confunde com rescisória e não tem limite temporal • Nas relações continuativas tributárias – suporte fático = circunstâncias fáticas especificamente delimitadas na ação – suporte jurídico = regra matriz de incidência tributária aplicada na decisão passada em julgado • Alteração do suporte circunstâncias de fato fático = modificação das – alteração das características do contribuinte (imune/não imune, residente/não residente) – alteração do evento tributário praticado pelo contribuinte (modificação da atividade ou do modus operandi) • Mutação da Jurisprudência e os art. 100 e 146, do CTN • • “A coisa julgada na seara tributária é mitigada pelas modificações de fato e de direito existentes na relação jurídico-tributária, de forma que se faz necessária a interpretação do título judicial para lhe definir o sentido e o alcance compatível com a Ordem Constitucional. “ (AgRg no REsp 841818 / DF , Min. Eliana Calmon, DJe 10/02/2010 ). MODIFICAÇÃO DO ESTADO DE FATO - APLICAÇÃO DA SÚMULA Nº 239/STJ. Em se tratando de relação continuativa é possível rever decisão transitada em julgado, se ocorrer alteração no estado de fato. Recurso improvido. (REsp 193500 / PE, Relator Garcia Vieira, DJ 13/09/1999 p. 43) • Alteração do suporte jurídico = modificação da regramatriz de incidência tributária aplicada na decisão passada em julgado em face da introdução de normas jurídicas no sistema Alteração do critério material: modificação/acréscimo do fato imponível Introdução do PIS/COFINS sobre importação de bens/serviços; Inclusão de serviço na lista anexa à Lei Complementar nº 116/03. • Avaliação dos efeitos da coisa julgada de acordo com as particularidades do pedido/causa de pedir Alteração do critério espacial: Mudança do IR e CSLL em bases universais Alteração do critério temporal: Modificação do tempo do fato – Ex. IRRF – data do pagamento, crédito, entrega, remessa (serviços) Alteração do sujeito passivo: Casos de responsabilidade tributária Modificação do regime de substituição tributária Alteração dos critérios quantitativos: Alíquota (majoração de alíquota de IPI, IOF, etc) Base de cálculo (ex. Lei nº 9.718/98 – PIS/COFINS) – STF - Controle concentrado (Adin, ADC) e repercussão geral: efeitos erga omnes e vinculação obrigatória. - efeitos ex tunc aplicáveis à nulidade da lei, mas não à coisa julgada. A decisão do STF pela constitucionalidade não autoriza cobrança retroativa contra coisa julgada material »Controle difuso – efeitos ex nunc e inter partes – Aplicação do art. 475-L e 741 do CPC limita-se aos pronunciamentos do STF em controle concentrado ou decisões em controle difuso com efeitos erga omnes e só alcança títulos executivos posteriores à decisão do STF (interpretação conforme) – não se presta como espécie de ação rescisória atípica. Art. 27 da Lei 9.868/1999 mitiga o efeito ex tunc das decisões do STF. Razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social (pressuposto finalístico). Poderes para restringir os efeitos da declaração (i), decidir a eficácia a partir de seu trânsito em julgado – efeito prospectivo (ii) ou outro momento que venha a ser fixado - modulação de efeitos (iii). – Consolidação da jurisprudência do STJ altera suporte jurídico? – Decisão em RESP do STJ não é erga omnes. Não é norma geral e abstrata. É norma de controle difuso que não altera o suporte jurídico da coisa julgada em uma relação continuativa. Não autoriza mutação do suporte jurídico em relações continuativas – não cabe relativização da coisa julgada, que permanecerá válida enquanto perdurar a situação vigente ao tempo da decisão. – Prescinde de ação revisora para aplicação Coisa julgada e legalidade “Art. 1º - É acrescido ao art. 168 da Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, Código Tributário Nacional, o inciso III com a seguinte redação: III – na hipótese de recurso extraordinário, a partir da publicação da Resolução do Senado Federal suspendendo a aplicação da lei, e, tratando-se de declaração de inconstitucionalidade ou no caso de repercussão geral, a contar da data da publicação do acórdão. Art. 2º - A presente lei complementar entra em vigor na data de sua publicação”. – Ação rescisória “Art. 485 - A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando: (...) V - violar literal disposição de lei”. Hipóteses: - Aplicação à CJ quando a controvérsia envolve questão constitucional (coisa julgada inconstitucional “prima facie” ) ou - Quando há pronunciamento posterior do STF (coisa julgada inconstitucional “a posteriori”) - Em qualquer caso, observado o biênio legal. “- A sentença de mérito transitada em julgado só pode ser desconstituída mediante ajuizamento de específica ação autônoma de impugnação (ação rescisória) que haja sido proposta na fluência do prazo decadencial previsto em lei, pois, com o exaurimento de referido lapso temporal, estar-se-á diante da coisa soberanamente julgada, insuscetível de ulterior modificação, ainda que o ato sentencial encontre fundamento em legislação que, em momento posterior, tenha sido declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal, quer em sede de controle abstrato, quer no âmbito de fiscalização incidental de constitucionalidade.” (RE 594350/RS, Relator Min. Celso de Mello, DJE de 11.6.2010) Art. 741 - Na execução contra a Fazenda Pública, os embargos só poderão versar sobre: (...) II - inexigibilidade do título; (...) Parágrafo único. Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal Necessidade de interpretação conforme: aplica-se unicamente pro futuro (títulos constituídos após a decisão do STF) – inconstitucional se aplicado aos títulos relativos a obrigações constituídas sob a égide de coisa julgada válida 1.A Corte Especial do STJ pacificou o entendimento de que a norma do art. 741, parágrafo único, do CPC, é inaplicável às sentenças transitadas em julgado anteriormente à sua vigência, ainda que maculadas por inconstitucionalidade, em homenagem ao princípio insculpido no art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal. 2. Diante disso, é inadmissível, até mesmo em sede de embargos à execução, que a Fazenda Nacional se oponha ao cumprimento da sentença invocando o entendimento do STF quanto à constitucionalidade da tributação, pelo Finsocial, das empresas exclusivamente prestadoras de serviços (RE 187.4368), e, com muito mais razão, por intermédio de simples petição nos próprios autos da execução. (REsp 817133 / RN, Ministra Eliana Calmon, DJe 25/05/2009) - A impugnação do art. 475 – L do CPC: “Art. 475-L. A impugnação somente poderá versar sobre: (...) II – inexigibilidade do título; (...) § 1º Para efeito do disposto no inciso II do caput deste artigo, considera-se também inexigível o título judicial fundado em lei ou ato normativo declarados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal, ou fundado em aplicação ou interpretação da lei ou ato normativo tidas pelo Supremo Tribunal Federal como incompatíveis com a Constituição Federal.” Necessidade de interpretação conforme: aplica-se unicamente para o futuro (títulos constituídos após a decisão do STF) – inconstitucional se aplicado aos títulos relativos a obrigações constituídas sob a égide de coisa julgada Súmula 239: “DECISÃO QUE DECLARA INDEVIDA A COBRANÇA DO IMPOSTO EM DETERMINADO EXERCÍCIO NÃO FAZ COISA JULGADA EM RELAÇÃO AOS POSTERIORES.” - prejudicada pela superação do princípio da anualidade - precedentes que motivaram sua edição foram proferidos em recursos de execuções fiscais, ajuizadas pela Fazenda para cobrar tributos de um determinado exercício. A referida súmula não seria aplicável ao reconhecimento de isenção, imunidade ou inconstitucionalidade da cobrança de determinado tributo; – aplicação restrita: “1. A existência de coisa julgada em ação declaratória de inexistência de relação jurídico-tributária relativa a operações mercantis sobre material de construção impede a cobrança futura de créditos decorrentes destes fatos jurídicos, até que sobrevenha modificação nas circunstâncias de fato e de direito objeto dos efeitos da preclusão máxima.” (AgRg no Ag 1051412 / MS, Ministra Eliana Calmon, DJe 04/11/2008 ) Inaplicabilidade da Súmula 239, do STF às relações continuativas: “1. A decisão em ação declaratória que reconhece, em manifestação trânsita, o direito à não-incidência de ICMS sobre produtos industrializados exportados, em face de imunidade constitucional (art. 155, § 2º, X, "a"), é ato jurisdicional prescritivo, que torna indiscutível a exigibilidade do tributo, sob pena de violação da coisa julgada. 2. A eficácia preclusiva da coisa julgada material alcança o dispositivo da sentença quanto ao pedido e a causa de pedir, como expressos na petição inicial e adotados na fundamentação do decisum. 3. Deveras, integram a res judicata, uma vez que atuam como delimitadores do conteúdo e da extensão da parte dispositiva da sentença. Dessa forma, enquanto perdurar a situação fático-jurídica descrita na causa de pedir, aquele comando normativo emanado na sentença, desde que esta transite em julgado, continuará sendo aplicado, protraindo-se no tempo, salvo a superveniência de outra norma em sentido diverso.” (REsp 875635 MG, 1 Tu., Rel. Luiz Fux, Julgamento: 16/10/2008)