INTERPRETAÇÃO DOS TRATADOS DE PAZ COM A BULGÁRIA, HUNGRIA E ROMÊNIA (1949-1950) (PRIMEIRA FASE) 4. Parecer Consultivo de 30 de março de 1950 A questão relativa à interpretação dos tratados de paz concluídos com a Bulgária, Hungria e Romênia foi submetida à Corte pela Assembléia Geral das Nações Unidas (Resolução de 19 de outubro de 1949). Por onze votos a três, a Corte declarou que existiam com estes países disputas para as quais um processo de solução estava previsto nos próprios tratados; e que os governos dos três países estavam obrigados a executar as cláusulas dos tratados relativas à solução de controvérsias, e particularmente aquelas que os obrigam a designar seus representantes nas comissões previstas pelos tratados. As circunstâncias nas quais a Corte foi chamada a se pronunciar são as seguintes: Em abril de 1949, a questão dos direitos humanos na Bulgária e na Hungria foi apresentada perante a Assembléia Geral, que adotou uma resolução pela qual expressava sua profunda preocupação com as graves acusações feitas contra os governos destes países, e voltou sua atenção para suas obrigações adquiridas em virtude dos tratados de paz concluídos com as potências aliadas e associadas, incluindo a obrigação de cooperar com a solução de todas essas questões. Em 22 de outubro de 1949, a Assembléia Geral, na presença das acusações feitas a este respeito por certas potências contra a Bulgária, Hungria e Romênia, e rejeitadas por estas últimas, constatando que os governos destes três países se recusaram a designar seus representantes nas comissões previstas pelas cláusulas dos tratados relativas à solução de controvérsias alegando que não eram juridicamente obrigados a fazê-lo, e preocupada com esta situação, decidiu submeter à Corte, para um parecer consultivo, as seguintes questões: I. Revela a correspondência diplomática entre os três Estados e certas potências aliadas e associadas a existência de controvérsias para as quais um processo de solução é previsto pelos tratados? II. Em caso afirmativo, os três Estados são obrigados a executar as cláusulas dos tratados relativas a solução de controvérsias e, particularmente, aquelas que concernem a designação de seus representantes nas comissões? III. Se a resposta à questão II for afirmativa e se a designação não for efetuada em um prazo de trinta dias a partir da data em que a Corte proferir seu parecer, está o Secretário Geral das Nações Unidas autorizado a designar o terceiro membro das comissões? IV. Se a resposta à questão III for afirmativa, a Comissão assim constituída será qualificada para tomar decisões definitivas e obrigatórias na solução de uma controvérsia? Entretanto, as questões III e IV, que se referem a uma cláusula dos tratados de paz encarregando o Secretário Geral das Nações Unidas de designar, na falta de acordo entre as partes, o terceiro membro das comissões previstas pelos tratados de paz para a solução de controvérsias, não foram submetidas à Corte para uma resposta imediata. A Corte deveria examiná-las somente se a designação dos membros nacionais das comissões não fosse efetuada em um prazo de um mês após seu parecer sobre as questões II e III. Em seu parecer, a Corte respondeu às questões I e II. A Corte, inicialmente, examinou se o artigo 2º, parágrafo 7º da Carta, que proíbe as Nações Unidas de intervirem nos casos que estão essencialmente dentro da jurisdição doméstica de um Estado, não é um obstáculo à elaboração de um parecer no presente caso. Ela observou, por um lado, que a Assembléia Geral justificou o exame que procedeu ao invocar o artigo 55 da Carta, que impõe às Nações Unidas a promoção do respeito universal e efetivo dos direitos humanos e, por outro lado, que a demanda por um parecer não a chamava a lidar com as alegadas violações das disposições dos tratados relativos aos direitos humanos: o objeto desta demanda visa somente a obter esclarecimentos jurídicos concernentes à aplicabilidade do processo de solução de controvérsias, tal como previsto nos tratados. Para este fim, a interpretação dos termos de um tratado não pode ser considerada como uma questão que está essencialmente dentro da competência nacional de um Estado, é uma questão de direito internacional, que, por sua natureza, está inserida nas atribuições da Corte. A Corte examinou, por outro lado, se o fato da Bulgária, da Hungria e da Romênia terem expressado sua oposição ao procedimento consultivo não deveria determiná-la, por aplicação dos princípios que governam o funcionamento de um órgão judicial, a se abster de responder. A Corte observou que um procedimento contencioso levando a uma sentença é distinto de um procedimento consultivo. Ela estimou que tinha o poder de apreciar, em cada caso, se as circunstâncias eram de tal natureza que a levassem a se abster de responder. No presente caso, que era totalmente diferente do caso da Carélia Oriental (1923), a Corte considerou que não deveria se abster porque a demanda lhe foi feita a fim de esclarecer à Assembléia Geral a questão da aplicabilidade de um procedimento de solução de controvérsias e não de se pronunciar sobre o mérito destas disputas. Sobre a questão I, a Corte respondeu afirmativamente, constatando, por um lado, que havia controvérsias porque certos Estados haviam levantado acusações contra outros Estados, que as rejeitaram, e, por outro lado, que estas controvérsias estavam sujeitas à aplicação das disposições dos tratados de paz relativas à solução de controvérsias. Passando à questão II, a Corte determinou seu significado, enunciando que se referia unicamente à obrigação da Bulgária, Hungria e Romênia de executar as cláusulas dos tratados de paz sobre a solução de controvérsias, e, particularmente, à obrigação desses Estados de nomear seus representantes nas comissões encarregadas de dirimir as disputas. A Corte constatou que todas as condições necessárias para que fosse aberta a fase de solução de controvérsias pelas comissões foram satisfeitas. Portanto, ela respondeu afirmativamente à segunda questão. O parecer da Corte foi pronunciado em audiência pública, sendo devidamente notificados o Secretário Geral das Nações Unidas e os Estados signatários dos tratados. O texto das conclusões do parecer foi comunicado telegraficamente aos Estados signatários que não compareceram à audiência. O juiz Azevedo, mesmo concordando com o parecer, anexou sua opinião individual. Os juízes Winiarski, Zoricic e Krylov, considerando que a Corte deveria se abster de emitir um parecer, anexou a este a exposição de sua opinião dissidente. (SEGUNDA FASE) 5. Parecer consultivo de 18 de julho de 1950 O parecer consultivo aqui resumido trata da segunda fase da questão relativa à interpretação dos tratados de paz concluídos com a Bulgária, Hungria e Romênia. Por uma Resolução de 22 de outubro de 1949, a Assembléia Geral das Nações Unidas apresentou à Corte, para um parecer consultivo, as quatro seguintes questões: “I. A correspondência diplomática trocada entre a Bulgária, Hungria e Romênia, de uma parte, e certas potências aliadas e associadas signatárias dos tratado de paz, de outra, relativa à aplicação do artigo 2º dos tratados com a Bulgária e Hungria e do artigo 3º do tratado com a Romênia, revela que existem controvérsias para as quais o artigo 36 do tratado de paz com a Bulgária, o artigo 40 do tratado de paz com a Hungria e o artigo 38 do tratado de paz com a Romênia prevêem um processo de solução? Se a resposta à questão I é afirmativa: II. Os governos da Bulgária, Hungria e Romênia estão obrigados a executar as cláusulas dos artigos mencionados na questão I, particularmente aquelas que concernem à designação de seus representantes nas comissões previstas pelos tratados? Se a resposta à questão II é afirmativa; se no prazo de trinta dias da data em que a Corte tiver proferido seu parecer, os governos interessados não fizeram conhecer ao Secretário Geral que haviam designado seus representantes nas comissões previstas pelos tratados; e se o Secretário Geral informou tal fato à Corte Internacional de Justiça: III. Se uma das partes não designa representante a uma comissão prevista pelo tratado de paz com a Bulgária, Hungria e Romênia, enquanto é obrigada a fazê-lo, está o Secretário Geral das Nações Unidas autorizado a designar o terceiro membro da comissão a pedido da outra parte na disputa, conforme as disposições do tratado em causa? Se a resposta à questão III é afirmativa: IV. Uma comissão prevista pelos tratados, que será composta de um representante de uma das partes e de um terceiro membro designado pelo Secretário Geral das Nações Unidas será considerada como comissão no sentido dos artigos pertinentes dos tratados e competente para tomar decisões definitivas e obrigatórias na solução de uma controvérsia?” Em 30 de março de 1950, a Corte respondeu às duas primeiras questões declarando que a correspondência diplomática trocada revelava a existência de disputas submetidas às disposições dos tratados para solução de controvérsias e que os governos da Bulgária, Hungria e Romênia tinham a obrigação de designar seus representantes nas comissões previstas pelos tratados. Em 1º de maio de 1950, o Secretário Geral das Nações Unidas informou à Corte que, no prazo de trinta dias da data de entrega do parecer consultivo sobre as duas primeiras questões, ele não havia recebido informação de que algum dos três governos interessados tivesse designado seu representante nas comissões previstas pelos tratados. Em 22 de junho de 1950, o governo dos Estados Unidos apresentou uma declaração escrita. Anteriormente, o governo do Reino Unido expôs suas opiniões sobre as questões III e IV na declaração escrita apresentada na primeira fase do caso. Nas audiências públicas, ocorridas em 27 e 28 de junho de 1950, a Corte apreciou as exposições orais apresentadas em nome do Secretário Geral pelo Secretário Geral Adjunto encarregado do departamento jurídico e em nome dos governos dos Estados Unidos e do Reino Unido. Em seu parecer, a Corte declarou que, se está claro que a letra do texto não exclui absolutamente a possibilidade de uma designação de um terceiro membro antes da designação pelas partes de seus respectivos comissários, o significado natural e comum dos termos empregados requer a designação destes últimos antes da designação do terceiro membro. Este fato resulta claramente da seqüência de eventos contemplados no artigo. Ademais, era a ordem normal adotada na prática arbitral e, na ausência de uma disposição expressa em sentido contrário, não havia razão em supor que as partes tinham o desejo de não proceder desta maneira. O poder do Secretário Geral de designar o terceiro membro resulta exclusivamente da vontade das partes tal como expressa na cláusula de solução de controvérsias. Por sua própria natureza, tal cláusula é de direito estrito e somente pode ser aplicada em casos expressamente previstos. O caso contemplado pelos tratados era o de uma falta de acordo entre as partes sobre a escolha do terceiro membro e, mais seriamente, de uma recusa completa de cooperação de um deles, tomando a forma de uma recusa de designação de seu próprio comissário. Para justificar uma intervenção na ordem normal das designações, seria necessário que a atitude das partes demonstrasse que elas desejavam esta intervenção para facilitar a constituição da comissão segundo os termos dos tratados. Mas este não foi o caso. Nestas condições, a designação de um terceiro membro pelo Secretário Geral, ao invés de conduzir à constituição de uma comissão de três membros, tal como contemplado nos tratados, só poderia chegar à constituição efetiva de uma comissão de dois membros, o que não era o tipo de comissão previsto pelos tratados. A oposição de um só comissário nacional designado poderia impedir a comissão de tomar uma decisão. Tal comissão só poderia decidir unanimemente, considerando que a cláusula de solução de controvérsias previa uma decisão por maioria. Não havia dúvida de que as decisões de uma comissão de dois membros, em que um deles seria designado por uma das partes, não teriam o mesmo grau de autoridade moral do que aquelas de uma comissão de três membros. Enfim, o Secretário Geral somente estaria autorizado a designar um terceiro membro se fosse possível constituir a comissão em conformidade com as cláusulas dos tratados. Em seu parecer de 30 de março de 1950, a Corte constatou que os governos da Bulgária, Hungria e Romênia tinham a obrigação de designar seus representantes nas comissões previstas pelos tratados. A recusa de cumprir uma obrigação convencional envolveria uma responsabilidade internacional. Entretanto, esta recusa não poderia modificar as condições previstas pelos tratados para o exercício do poder de designação do Secretário Geral. Estas condições não estão reunidas neste caso e sua falta não foi suprida pelo fato de que esta ausência ocorreu devido à quebra de uma obrigação convencional. A ineficácia de um processo de solução de controvérsias em razão da impossibilidade de constituir a comissão prevista pelo tratado é uma coisa, a responsabilidade internacional é outra. Não se pode reparar a quebra de uma obrigação convencional criando uma comissão que não era do tipo contemplado pelos tratados. A Corte foi chamada a interpretar os tratados, e não a revisá-los. O princípio de que uma cláusula deve ser interpretada de maneira a lhe conferir efeito prático não pode permitir à Corte atribuir às disposições um significado que seria contrário ao seu texto e espírito. O fato de que uma comissão arbitral pode proferir uma decisão válida mesmo se o número original de seus membros for reduzido posteriormente pela retirada de um dos comissários, por exemplo, não permite fazer uma analogia com o caso da designação de um terceiro membro pelo Secretário Geral em outras circunstâncias que as previstas nos tratados, porque este fato levantaria precisamente a questão da validade inicial da comissão que está em causa no presente caso. Tampouco pode ser dito que uma resposta negativa da Corte à questão III comprometeria seriamente o futuro de várias cláusulas arbitrais semelhantes em outros tratados. A prática arbitral demonstra que se os redatores das convenções de arbitragem estão freqüentemente preocupados com as conseqüências da falta de acordo sobre a designação de um terceiro árbitro, eles não prevêem, exceto em casos excepcionais, a recusa das partes em designar seu próprio comissário. Os poucos tratados que contêm disposições expressas sobre a matéria demonstram que os signatários sentiram a impossibilidade de remediar esta carência simplesmente por via de interpretação. Na realidade o risco é mínimo pois, normalmente, cada uma das partes tem interesse em designar seu próprio comissário e deve, de qualquer forma, respeitar suas obrigações convencionais. O fato de que isto não ocorreu no presente caso não autoriza a Corte a sair de sua função judicial com o pretexto de remediar uma carência sobre a qual os tratados não fizeram nenhuma previsão. Por estes motivos, a Corte decidiu responder negativamente à questão III e declarou que, nestas condições, não havia necessidade de considerar a questão IV. O parecer da Corte foi proferido por 11 votos a 2. O juiz Krylov, apesar de concordar com a conclusão do parecer e com seus argumentos em geral, declarou não poder concordar com os motivos que se referem à responsabilidade internacional, tendo a opinião de que este problema sairia do quadro da questão apresentada à Corte. Os juízes Read e Azevedo anexaram ao parecer a exposição de suas opiniões dissidentes.