ALTERAÇÕES NO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL: INTERROGATÓRIO PÓSTUMO E AS REFORMAS PROCESSUAIS José Carlos Teixeira Giorgis SUMÁRIO: 1 INTRODUÇÃO; 2 PROCESSO E PROCEDIMENTO; 3 PROCEDIMENTO ORDINÁRIO; 4 RESPOSTA; 5 AUDIÊNCIA DOS PERITOS, OFENDIDO E TESTEMUNHAS; 6 INTERROGATÓRIO PÓSTUMO; 7 DIREITO INTERTEMPORAL. 1 INTRODUÇÃO Já se avista a data em que entram em vigor as substanciais alterações promovidas no estatuto do processo penal, aplaudidas pela adequação das regras aos princípios da celeridade e da inteira verbalização dos atos; mas também recebidas com algumas críticas pelo açodamento de sua edição, instigada pelo clamor público afetado pela impunidade e delonga forense em alguns episódios de repercussão midiática. O dogmatismo criminal mostra-se retardatário em relação ao seu parente civil que, apadrinhado pelos juristas peninsulares chegados em tempos de guerra, logrou disparar à frente alguns quarteirões científicos; distâncias que se encurtam com os novos modelos instrumentais previstos. A reforma continua a seguir a estratégia de promover mudanças pontuais bem mais úteis que uma codificação ampla, embora se perca em algumas situações a visão do conjunto, e por isso a coerência sistêmica. 2 PROCESSO E PROCEDIMENTO Entroniza-se no altar adequado o termo procedimento em substituição ao vocábulo processo, para marcar as fronteiras que acontecem entre uma meraconcatenação de atos formais e o objetivo teleológico que a acepção do último proclama. E sensível à doutrina, alude-se existir duas formas de ritos, os procedimentos comum ou especial, o primeiro de cunho paradigmático; o segundo ditado pelo código ou por normas extravagantes. E para namorar unidade com o processo civil consolida-se a divisão do procedimento comum, aqui sedimentada em limites de pena e não mais em sua espécie. 1 Assim, quando a sanção cominada for igual ou superior a quatro anos de privação de liberdade adota-se o procedimento ordinário, antes previsto para as infrações punidas com reclusão; se a pena for inferior a quatro anos de privação de liberdade, persegue-se o procedimento sumário, reservado até aqui para os ilícitos castigados com detenção. Finalmente, prevendo-se passo futuro, já se introjetam noções do procedimento sumaríssimo, ainda capitulado em legislação singular, destinado às infrações de menor potencial ofensivo; quando suas normas fixarem domicílio no código se completará a trindade que a pedagogia já apregoa. As mudanças operadas nos procedimentos ordinário e sumário, apenas distintos pelo cabimento, distância da audiência final e número de testemunhas, parecem sinalizar algum novo projeto que reduza mais as divergências entre eles. Têm-se pragmaticamente três marcadores: a) infrações com penas até dois anos observam o rito sumaríssimo; b) infrações com sanções até quatro anos seguem o procedimento sumário; e c) infrações com penas iguais ou superiores a quatro anos observam a forma ordinária. É claro que se acham preservadas a competência do júri, a da jurisdição especial e dos procedimentos especiais, quando não se enquadrem nas hipóteses dos juizados especiais. 3 PROCEDIMENTO ORDINÁRIO Recorde-se que o procedimento ordinário em uso compõe-se da denúncia ou queixa, citação, interrogatório, defesa prévia, inquirição das testemunhas, diligências, debates escritos e sentença. E que o sumário vigente consta da denúncia ou queixa, citação, interrogatório, defesa prévia, inquirição das testemunhas de acusação, despacho saneador, e audiência de instrução e julgamento, com oitiva das testemunhas de defesa, debates orais e sentença. Sinalizando as modificações, os procedimentos obedecem as seguintes fases: recebimento da denúncia ou queixa; citação do acusado para oferecer uma defesa escrita em dez dias, peça que será subscrita por defensor dativo quando o agente se omitir; absolvição sumária do acusado; ou designação da audiência, com intimação das partes (acusado, defensor, Ministério Público, querelante, assistente); audiência de instrução e julgamento (declarações do ofendido; inquirição das testemunhas de acusação e defesa; oitiva de peritos, acareações e reconhecimento de pessoas ou coisas; interrogatório; pedido de diligências pelas partes; se deferidas, e quando imprescindíveis, a audiência é concluída, sem alegações; e se não forem solicitadas ou quando denegadas, colhem-se logo os debates orais e o magistrado dita a sentença). 2 Pelo afago à rapidez e à oralidade, os depoimentos serão registrados em fita magnética, estenotipia, digitação ou similar e técnica audiovisual, meios que favorecem a fidelidade da prova de que as partes obterão transcrições ou cópia (audiovisual). Havendo diligências, e cumpridas, as partes apresentam razões escritas (memoriais), sucessivamente, em cinco dias, sendo a sentença proferida em dez dias; os memoriais também substituem os debates orais quando o juiz entender a causa complexa; e a decisão ainda será subseqüente. Ambos os procedimentos se assemelham nas etapas, o que é muito saudável, apenas diferindo no prazo em que a audiência final deva ser designada depois do recebimento da denúncia ou queixa (60 dias, no procedimento ordinário; e 30 dias, no sumário); e na quantidade de testemunhas que possam ser arroladas, oito ou cinco, consoante os ritos. A relevância se debruça na criação de uma defesa preliminar que pode levar ao encerramento do processo em caso de absolvição; e num interrogatório póstumo, situado como fecho da instrução, inovação reclamada sob a justificativa de que a declaração do imputado só devia acontecer depois de produzida a prova por inteiro. Examinem-se as principais inovações. 4 RESPOSTA Antes, depois de recebida a denúncia ou a queixa, o juiz designava o interrogatório do acusado; logo se abria o prazo de três dias para oferecimento da defesa prévia, peça facultativa que somente se prestava para arrolar as testemunhas, embora também propiciasse outros requerimentos ou alegações processuais ou de mérito. Todavia, o código admitia no procedimento para os crimes praticados por funcionário público que, estando denúncia ou queixa em devida forma, o juiz mandava autuá-la e notificar o acusado para responder em quinze dias, réplica que podia ser instruída com documentos e justificações. Se convencido da inexistência do fato ou da improcedência da ação, o magistrado rejeitava a peça em despacho fundamentado; caso contrário, depois de acolher a petição acusatória dava seqüência ao rito apropriado (CPP, arts. 514/518). A forma de revide frontal também era ensejada pela Lei de Imprensa; ali, ao despachar a denúncia ou a queixa o juiz determinava a citação do réu para apresentar defesa prévia, alegando preliminares, exceção da verdade e indicação de provas, voltando o processo para que o julgador rejeitasse ou recebesse as peças vestibulares (Lei nº 5.250/67, arts. 44/45). 3 A legislação sobre drogas também previa uma resposta em dez dias após o oferecimento da denúncia e com conteúdo similar aos casos anteriores; findo o prazo, o juiz rejeitava ou acolhia a denúncia, imprimindo as etapas posteriores (Lei nº 10.409/02). A mesma possibilidade de defesa preliminar exauriente antes do recebimento da denúncia acontece na vigente Lei de Drogas, em que o decisor notifica o acusado para oferecer suas alegações e provas, ditando a decisão de recebimento ou rejeição, em cinco dias (Lei nº 11.343/06). Deixando-se de lado os arroubos científicos, como o uso indevido dos termos notificação e citação, era tendência oportunizar a coleta de razões e provas do agente da infração antes que o juiz abrigasse a denúncia ou queixa, até por motivos de economia processual. Cogitava-se também de um possível agravo de instrumento para atacar a decisão interlocutória de recebimento ou não do documento portal, embora consagrado a apelação para o veredicto de rejeição. Agora, se o juiz não rejeitar a denúncia ou queixa de maneira liminar, ordenará a citação do acusado para responder por escrito em dez dias, onde poderá argüir tudo que interessa, como preliminares, exceções, provas e testemunhas; caso não o faça, em respeito à ampla defesa, o juiz designará defensor para substituí-lo. Depois se bifurcam os caminhos: ou o juiz absolve sumariamente (excludente de ilicitude ou culpabilidade, fato atípico ou causa extintiva da punibilidade) ou recebe a denúncia, marcando a audiência de instrução e julgamento, onde toda a prova será produzida (CPP, arts. 396/399, nova redação). É impositivo reconhecer que houve algum progresso quanto à ciência processual, pois tendo sido recebida a denúncia e determinada a citação permite-se juízo de mérito e absolvição, o que não era cabível nos procedimentos antes referidos, pois a relação não estava instaurada, somente permitindo a rejeição da peça; nesse caso, nenhum agente podia almejar veredicto de inocência, desejo natural de qualquer indigitado, mas consolar-se com um simples decreto de extinção da ação. Restará aos operadores esclarecer a antinomia entre os dois recebimentos da denúncia (CPP, arts. 396 e 399), tal como antes aconteceu com o duplo interrogatório da extinta Lei de Tóxicos. É razoável concluir que a segunda expressão nada mais é que uma reiteração ou ênfase retórico necessário para dar andamento ao rito. A peça defensiva deve ser subscrita por advogado: é que, já tendo sido recebida a denúncia e providenciada a citação, está instaurada a instância e a ação penal. 4 Ora, como já vigoram as garantias constitucionais, e prestigiada a ampla defesa, que exige um defensor técnico. Em situações anteriores, em que não se cogitava de absolvição sumária, era até possível que essa peça, a que se tinha ciência por mera notificação e não ensejava um juízo de mérito, podia ser aforada mesmo sem um mandatário, consoante liberalidade do sistema. Mas agora não, já se está em pleno exercício das seguranças afirmadas pela Carta Magna. 5 AUDIÊNCIA DOS PERITOS, OFENDIDO E TESTEMUNHAS Perícias e peritos. Depois de consolidada a necessidade de dois peritos oficiais, retorna-se ao sistema de um só experto judicial, talvez pela carência de servidores concursados ou pela possibilidade de atuação de assistentes. Os especialistas não oficiais, embora qualificados, devem constituir dupla, embora prestem o compromisso da fé, o que indica menos-valia perante o funcionário. Há muito se reclamava o contraditório nos exames de corpo de delito operados em fase de inquérito. Ali se constrói a base probatória, sabem os profissionais do direito. A modificação que admite a presença de assistentes técnicos e a formulação de quesitos nesta fase administrativa, além da simetria científica com o processo civil, oferece condições de melhor apuração da autoria e do fato; e o comparecimento dos entendidos perante o juiz fortalece o convencimento. Também é boa iniciativa a guarda do material periciado, salvo se impossível a conservação. Abre-se, ainda, a chance de uma pluralidade de peritos e assistentes, quando o esclarecimento da infração incida em vários campos do conhecimento. Resta aguardar como se fará a otimização da diligência nos cômodos públicos (CPP, art. 159). Ofendido. Como sujeito passivo da infração e parte interessada, a vítima deve ser avisada dos atos processuais relativos ao ingresso e saída do agente da prisão onde se encontre recolhido, data das audiências, sentença e acórdãos que a mantenham ou mudem. As comunicações aceitam o correio eletrônico, se ele assim entender. O ofendido terá lugar cativo nas audiências. Em caso de abalo físico ou psíquico, a vítima receberá tratamento interdisciplinar, à custa do ofensor ou do Estado, inclusive apoio jurídico, sem ônus. Embora a sadia intenção de proteger a vítima, não se vislumbra fácil a implementação da novidade. A lei projeta a preservação da intimidade e da honra do ofendido e o segredo de justiça quanto a seus dados, restrição que alcança somente os agentes públicos envolvidos e não seu procurador. A cautela busca inibir os escândalos divulgados pela mídia e o fácil acesso às esferas da privacidade (CPP, art. 201 e parágrafos). Testemunhas. Assim como acontecia com os acusados, as testemunhas devem ocupar salas diferentes antes do depoimento, para evitar a 5 comunicação entre elas. Em sintonia com a coleta de declarações em outros países, as perguntas das partes são feitas diretamente às testemunhas, sem passar pelo juiz, o que representa ruptura do sistema presidencial; pode o juiz, contudo, intervir para evitar insinuações, repetição de respostas ou perguntas irrelevantes; também para completar a inquirição, quando obscuros alguns pontos do depoimento. Todas as incidências constarão do termo. A inquirição direta já se previa no júri, mas como letra morta (CPP, arts. 210 a 217). 6 INTERROGATÓRIO PÓSTUMO O procedimento penal que estréia em breve escolheu o interrogatório como a debutante que vai fechar o baile: é o fim do espetáculo, ocasião para recolher os aplausos que a doutrina acumula para essa festa especial. Atendendo pregões insistentes da literatura jurídica e assim como acontece nos juizados especiais criminais, a declaração do acusado passa a enfeitar a despedida da persecução oficial; contudo, a novidade deixa algumas perplexidades. O interrogatório é forma de autodefesa, mas também meio e fonte de prova; é verdade que o direito ao silêncio reduz o brilho da solenidade, embora a abdicação verbal não signifique nenhum desdouro para a persuasão do magistrado. O adiamento do ato para depois que a prova fora produzida presta homenagem à ordem reverenciada pela instrução: a atividade defensiva é sempre conseqüente à obra de acusação, esse o princípio solar que justifica a reforma; o imputado apenas exerce a plenitude da garantia constitucional que o protege quando esclarecido sobre o poder de fogo da artilharia inimiga; também importa a simetria com outros trâmites processuais, em que o agente está sempre em resguardo, como ocorre nos prazos, debates, inquirições. Entendidos reclamam que o modelo anterior não era discriminatório; colocado no vestíbulo do rito o interrogatório era a primeira versão que impregnava a convicção do magistrado; e a estratégia defensiva tinha um plano de vôo desenhado que podia adequar-se com o movimento das brisas, mesmo por que outro depoimento podia ser pedido a qualquer tempo. Algumas questões devem ser solvidas com a nova experiência, contudo. Por exemplo, a realização do ato no estabelecimento prisional em que se encontre foi introduzida por mudança recente e festejada como maneira de 6 se preservar a integridade física dos agentes penitenciários em deslocamentos aos foros, economia de meios e pessoas, rapidez; além de constituir-se em direito subjetivo do apenado, ante o império do verbo usado na frase ("... será..."); agora, também de modo contundente, a nova legislação afirma que o acusado preso será requisitado para comparecer ao interrogatório, devendo o poder público providenciar sua apresentação (CPP, art. 394, § 1º); sublinhe-se que não houve revogação expressa dos dispositivos que integram o instituto, mas ao contrário foi o capítulo preservado, como evidente no procedimento do júri (CPP, art. 474). Também se aguarde com relação ao interrogatório por precatória, já aceito pela tradição instrumental, mas que confronta com a concentração de provas e a celeridade que se almeja em concluir a causa em única audiência; ou com a utilização do interrogatório virtual há pouco amaldiçoado por decisão superior, mas que acha opiniões favoráveis em escalões jurisdicionais, sensíveis à modernidade e ao progresso. 7 DIREITO INTERTEMPORAL Finalmente, cogite-se a incidência do direito intertemporal sobre o padrão em exame. Não é preciso lembrar que as normas processuais se aplicam imediatamente (CPP, art. 2º); então, no dia em que a nova sistemática entra em vigor (22.08.08), os juízes devem dar impulso às demandas penais em sintonia com a lei partejada, sendo óbvio que não atingem os processos findos. Como o rito é um complexo de atos organizados, convém elucidar o que acontece com o porvir e o passado. A doutrina adota a "teoria do isolamento dos atos", ou seja, a lei nova não atinge o que já foi praticado nem seus efeitos, mas alcança os acontecimentos futuros. Assim, se o interrogatório foi realizado e oferecida a defesa prévia, o juiz designará a audiência de instrução e julgamento, onde é razoável renovarse a indagação ao acusado, porque o código admite que isso ocorra a qualquer tempo, tanto de ofício como a pedido fundamentado das partes (CPP, art. 196). Caso o interrogatório esteja marcado para antes ou depois da data de vigência, é prudente o cancelamento da audiência, e pronta designação de outra sob a nova vestimenta. 7