IV FÓRUM IDENTIDADES E ALTERIDADES: EDUCAÇÃO E RELAÇÕES ETNICORRACIAIS 10 a 12 de novembro de 2010 UFS – Itabaiana/SE, Brasil ABASSÁ REI DE URUBÁ DA FILHA DE OXÓSSI QUEURICIDÊ3: UMA VISITA BREVE, UMA HOMENAGEM AINDA QUE TARDIA Evanilson Tavares de França (SEED)4 Soraya Machado Pereira de França (SEED)5 Grupo Temático 04: Diversidade nas Religiões Afro-Brasileiras: o que se conhece hoje e quais os principais Desafios? RESUMO As linhas breves que comporão este artigo propõem-se a expor um arcabouço do Abassá Rei de Urubá, a partir de memórias do autor – personagem significativo em toda a trajetória do terreiro (onde permaneceu dos sete aos 22 anos), tendo, inclusive, assumindo a função de ogã alabê – e de entrevistas semi-estruturadas efetuadas junto a filhos e filhas de santo da casa de candomblé de Bochocha, como era conhecida a yalorixá Lenilda Tavares de França na intimidade familiar e entre os pares do santo. Representa, portanto, uma tentativa de resgate de uma história, de boniteza indiscutível e de profundidade inegável, construída por filhas, filhos e mãe de santo de um terreiro plantado em Sergipe (Aracaju), com maior temporalidade no bairro Ponto Novo, mas com raízes baianas (de onde, aliás, vieram Bochocha e sua mãe, Maria Prudência Santos). Ainda que tivesse o ketu como matriz, a casa da filha de Oxossi celebrava os caboclos e realizava os seus rituais, como mostra a denominação do terreiro “Rei de Urubá”, um índio da tribo dos potiguaras. É também uma busca de valorização de um terreiro que teve uma história curta, iniciada na primeira metade da década de 70 e concluída definitivamente em 2008. É, ainda, uma homenagem, dirigida àqueles e àquelas que afirmam e reafirmam sua negritude fazendo uso, também, da religiosidade. Palavras-chave: Abassá Rei de Urubá. Candomblé. Ketu. 3 Conservamos a forma aportuguesada do termo porque assim encontrava-se grafado em tabuleta afixada na fachada do terreiro. 4 Graduado em Pedagogia (Faculdade Pio Décimo), especializado em Planejamento Educacional e Língua Portuguesa Universidade Salgado Oliveira - e em Educação e Gestão Escolar, pela Faculdade Pio Décimo. Atua como professor e pedagogo da Rede Estadual de Ensino (Secretaria de Estado da Educação/SEED - Sergipe). Contatos: Telefone: (79) 91342121. E-mail: [email protected]. 5 Graduada em Pedagogia pela Faculdade Pio Décimo. Possui especialização em Língua Portuguesa (UNIVERSO). Especializanda em Educação de Jovens e Adultos pelo IFS (Instituto Federal de Sergipe). É professora da Rede Estadual de Ensino (Secretaria de Estado da Educação/SEED - Sergipe). Contatos: Telefone: (79) 9132-8509. E-mail: [email protected]. ANAIS DO IV FÓRUM IDENTIDADES E ALTERIDADES GEPIADDE/UFS/ITABAIANA ISSN 2176-7033 1 IV FÓRUM IDENTIDADES E ALTERIDADES: EDUCAÇÃO E RELAÇÕES ETNICORRACIAIS 10 a 12 de novembro de 2010 UFS – Itabaiana/SE, Brasil 1 ABRINDO O TERREIRO Lenilda Tavares de França nasceu em 1942. Seu registro de identidade informa que seu nascimento se deu na cidade de Aracaju. Entretanto, a yalorixá sempre afirmou categoricamente ter nascido em Salvador (BA), no bairro da Liberdade – situado na cidade alta da capital baiana. A contradição entre o documento de identidade e as informações legadas por D. Bochocha encontram sentido quando refletimos sobre o processo de registro das crianças pobres em nosso país. Era bastante comum oficializar o nascimento dos filhos após um tempo significativo da natalidade, ou nem mesmo fazê-lo. Segundo Portela (1989, p. 493), No Brasil, o primeiro ato que regulamentou os registros foi o Decreto n° 9.886, de 07/03/1888, que abrangia nascimentos, casamentos e óbitos, sofrendo várias modificações no decorrer do tempo. Vigora, hoje, a Lei n° 6.015, de 31/12/73, que regulamenta os registros públicos em nosso país.6 Considerando que D. Lenilda nasceu na primeira metade do século passado (1942), é bastante plausível o entendimento de que seu nascimento tenha sido certificado em outra cidade. Aliás, o documento de nascimento a que tivemos acesso – e que certamente não é o primeiro – sofrera assentamento no Serviço Notarial João Bezerra, localizado na rua Itabaiana, 106, no centro da capital sergipana, no Livro “A”, nº 179, às fls 195, sob número de ordem 78.105, em 21 de setembro de 2007. Há mais um elemento que corrobora com a afirmativa da yalorixá. Sua mãe biológica, Maria Prudência Santos, também mãe de santo (conhecida como Maria Bata Curta, graças ao cumprimento desta indumentária, bastante usada pelo povo-do-santo), fixou 6 A Lei 6015/1973 sofre alteração em 2001 e “passa a vigorar com a seguinte redação: Art. 46. As declarações de nascimento feitas após o decurso do prazo legal somente serão registradas mediante despacho do juiz competente do lugar da residência do interessado”. (Lei 10.215/2001, Art. 1º). ANAIS DO IV FÓRUM IDENTIDADES E ALTERIDADES GEPIADDE/UFS/ITABAIANA ISSN 2176-7033 2 IV FÓRUM IDENTIDADES E ALTERIDADES: EDUCAÇÃO E RELAÇÕES ETNICORRACIAIS 10 a 12 de novembro de 2010 UFS – Itabaiana/SE, Brasil residência no bairro América (localizado na região oeste da capital sergipana), na travessa Brasil, onde montou sua roça de candomblé. E aí residiu até próximo à morte. Nesta região, D. Maria criou seus 22 (vinte e dois) filhos – sanguíneos – netos e dezenas de filhos de santo. É possível e provável que, com residência fixa, uma vez que a família levava uma vida quase nômade, tendo morado em diversos municípios baianos, alagoanos e sergipanos, Maria Bata Curta efetuou o registro de seus filhos quando se assentou naquela localidade, não se preocupando com o Estado de nascimento deles. No início da década de 70, na região outrora chamada de Baixa Fria, hoje bairro Pereira Lobo, a filha de Oxossi Queuricidê inicia suas atividades oraculares7. Ainda não havia um terreiro de candomblé, propriamente dito, mas um pequeno casebre, alugado, onde a mãe de santo morava com uma amiga e seu filho pequeno, e onde um diminuto quarto (o quarto de santo), se converteu em local de atendimento a clientes. É desta forma, e com muito sofrimento, que D. Lenilda dar início ao Abassá Rei de Urubá. Apenas para mostrar certo alinhamento entre o terreiro de D. Lenilda e de sua mãe biológica, Maria Prudência Santos. Ambas as casas de santo, em verdade, sempre estiveram sob a orientação dos caboclos. Enquanto o terreiro de Maria Bata Curta tinha a tutela de Horácio da Pena Branca8, o de Bochocha ficava sob a coordenação de Rei de Urubá, índio pertencente à tribo dos potiguaras. Segundo Ortiz (1999, p. 71): Os caboclos são os espíritos de nossos antepassados índios que passaram depois da morte a militar na religião umbandista. Eles representam a “energia e a vitalidade”; podem-se encontrar facilmente estas características 7 Na fachada da casa de D. Lenilda havia uma placa identificando o terreiro e uma espécie de slogan, logo abaixo, que declarava “atende diariamente com seu jogo de búzios e sua bola de cristal”. 8 Os filhos biológicos de Maria Prudência tratavam o caboclo por Tio Horácio, dada a importância que esta entidade tinha para os familiares e o grau de afetividade a ele destinado. Em nossas pesquisas não encontramos o termo Horácio entre as palavras de origem indígena. De acordo com o site http://www.significado.origem.nom.br/nomes/horacio.htm, o vocábulo tem origem latina e significa visível, evidente. ANAIS DO IV FÓRUM IDENTIDADES E ALTERIDADES GEPIADDE/UFS/ITABAIANA ISSN 2176-7033 3 IV FÓRUM IDENTIDADES E ALTERIDADES: EDUCAÇÃO E RELAÇÕES ETNICORRACIAIS 10 a 12 de novembro de 2010 UFS – Itabaiana/SE, Brasil de arrojo no mimetismo do transe. A chegada de um caboclo vem sempre acompanhada de um grito forte que denota a energia e a força desta entidade espiritual. Seguindo esta explicação, Ortiz acrescenta que os caboclos são “espíritos indóceis rebeldes” (ibidem) e questiona se não se trata de traços do selvagem (o aborígene). Contrariando a afirmativa do pesquisador acima citado, os caboclos em foco apresentavam uma ternura tão substantiva que os filhos de santo, de ambos os terreiros, aguardavam ansiosamente a sua manifestação. E eram, inclusive, as entidades mais queridas das casas de candomblé por ora sublinhadas, tanto a de Maria Bata-curta, quanto à de Bochocha, não tão somente pelos filhos de santo, mas pelos clientes que recorriam aos abassás em busca de ajuda, de orientações. Retomando a reflexão acerca do Abassá Rei de Urubá. O terreiro da filha de Oxossi9, que continuava funcionando em prédio alugado, transfere-se para o bairro Ponto Novo – final da década de 70. Não era mais um casebre, mas uma casa modesta, com quintal, onde a roça de candomblé foi construída. Na fachada, a tabuleta ganhara maiores dimensões e grafia mais definida. Neste espaço/tempo nasce, de fato, a casa de candomblé de D. Lenilda que, por um tempo significativo, se configurou em um dos maiores abassás do Estado. O apogeu do terreiro de Queuricidê acontece na década de 80. A senhora Iolanda, médium que dividia teto e responsabilidades ritualísticas com a yalorixá, desde os primórdios, recebe uma herança. O valor recebido foi suficiente para a compra de um sítio no mesmo bairro (Ponto Novo), desta feita na rua Santa Terezinha. Tratava-se de um brejo que, coincidentemente fora adquirido quando se fazia a abertura de canal naquele bairro. Filhos/as e netos/as de santo, com bacias e baldes sobre a cabeça – é esta uma característica do 9 Rei da floresta. Por ser o caçador que traz para a casa, ele ganhou fama de diligente e responsável. É o rei provedor, que ajuda os chefes de família na busca do sustento para o lar. O orixá também é tido como o deus rígido, que não admite falhas no cumprimento dos rituais. (Rev. Religiões, São Paulo, p. 84) ANAIS DO IV FÓRUM IDENTIDADES E ALTERIDADES GEPIADDE/UFS/ITABAIANA ISSN 2176-7033 4 IV FÓRUM IDENTIDADES E ALTERIDADES: EDUCAÇÃO E RELAÇÕES ETNICORRACIAIS 10 a 12 de novembro de 2010 UFS – Itabaiana/SE, Brasil candomblé: o trabalho coletivo – transportaram caminhões de areia, extraídas do canal em construção, para aterramento do terreno. Lavando e passando roupas para as famílias abastadas, pescando e fazendo seus trabalhos religiosos, Lenilda constrói uma casa ampla e noutra área do sítio o abassá de seus sonhos. Vários filhos de santo vêm morar na casa de candomblé. Lavar e passar roupa já não faz parte de sua rotina, dada a quantidade de pessoas a serem atendidas e o número significativo de clientes que a procuravam para ver a sorte (jogo de búzios), fazer oferenda para os seus orixás, iniciar-se na religião. Segundo sua filha adotiva, a primeira de quatro, Evanise Tavares Conceição, neste período sua mãe chegou a contar mais de 400 (quatrocentos) filhos/as de santo, muitos deles morando em sua casa ou em prédio construídos no sítio. Era a época de ouro do Abassá Rei de Urubá. Procurada por pessoas de todo o Estado, e dos fronteiriços, D. Lenilda passa boa parte de seu tempo nos municípios, atendendo uns, tratando de outros, iniciando outros tantos. Prepara seus filhos de santo, mais antigos no candomblé, para assumir os rituais em sua ausência. Em Neópolis ajuda D. Maura a abrir seu terreiro. É, de fato, o período áureo daquela casa de santo. O período dourado tem vida curta. Na segunda metade da década de 90, o caboclo Rei de Urubá incorpora-se na yalorixá e faz sua despedida – sua missão, avisa ele, estava concluída. Lágrimas rolam pelas faces dos presentes. Inicia-se a decadência de um terreiro encantador. Aos poucos, os filhos de santo vão desaparecendo; D. Lenilda altera-se emocionalmente; as companheiras de tantos anos, Bochocha e Iolanda, se separam; o prédio é vendido por uma bagatela; a yalorixá, que não tinha como provar participação na construção do prédio, volta para o aluguel. Sobram-lhe, tão somente, os atendimentos aos clientes e a venda de acarajés. ANAIS DO IV FÓRUM IDENTIDADES E ALTERIDADES GEPIADDE/UFS/ITABAIANA ISSN 2176-7033 5 IV FÓRUM IDENTIDADES E ALTERIDADES: EDUCAÇÃO E RELAÇÕES ETNICORRACIAIS 10 a 12 de novembro de 2010 UFS – Itabaiana/SE, Brasil Parece que D. Lenilda introjetou a compreensão natural do povo-do-santo, entendendo o terreiro como propriedade coletiva, não acumulando, portanto, documentos e similares que poderiam lhe garantir parte da propriedade – o que encontra ressonância, em nossa ótica, na afirmativa de Baptista (2008, p. 141) “É comum ouvir de membros do candomblé expressões como estar no axé, como que significando estar dentro de um espaço sagrado específico, ser do axé, indicando que alguém é membro de um determinado terreiro”, cuja propriedade é coletiva, pertencente a todos e todos pertencendo a ela. 2 CONVOCANDO OS ORIXÁS O que é o candomblé? Segundo Prandi (2004, p.1) candomblé é uma religião brasileira dos orixás e outras divindades africanas que se constituiu na Bahia no século XIX – e demais modalidades religiosas conhecidas pelas denominações regionais de xangô, em Pernambuco, tambor-de-mina, no Maranhão, e batuque, no Rio Grande do Sul, formavam, até meados do século XX, uma espécie de instituição de resistência cultural, primeiramente dos africanos, e depois dos afro-descendentes, resistência à escravidão e aos mecanismos de dominação da sociedade branca e cristã que marginalizou os negros e os mestiços mesmo após a abolição da escravatura. O candomblé de D. Lenilda cultuava vigorosamente os orixás comuns aos candomblés da Bahia – Yansã, Xangô, Ogum, Exu, Oxum, Oxalá, Logunedé, Obaluayê, Oxumaré, Ossaim, Iemanjá, Nanã e outros encontravam naquela casa de santo espaço e tempo de adoração e cuidados. Entretanto, no que tange a estas entidades, o Oxossi assumia o comando do terreiro por tratar-se de orixá “de cabeça”10da yalorixá, que tinha Yansã como segunda guardiã. 10 Denominação genérica dada ao primeiro orixá que toda pessoa tem. É o orixá mais importante porque cuida da cabeça do iniciado e se junta a ele desde o momento da fecundação. ANAIS DO IV FÓRUM IDENTIDADES E ALTERIDADES GEPIADDE/UFS/ITABAIANA ISSN 2176-7033 6 IV FÓRUM IDENTIDADES E ALTERIDADES: EDUCAÇÃO E RELAÇÕES ETNICORRACIAIS 10 a 12 de novembro de 2010 UFS – Itabaiana/SE, Brasil Mesmo apresentando-se como casa de ketu - bastante comum na Bahia, como nos ensina Pierre Verger Entre os nagô, na Bahia, a nação Kétou era particularmente importante, em conseqüência das numerosas guerras que, no início do século XIX, opuseram os reinos vizinhos de Abomé e de Kétou. Foram estes últimos que criaram os primeiros terreiros de candomblé. O ritual de suas cerimônias influenciou profundamente o de outras nações. (1999, p. 33) Todavia, o Abassá Rei de Urubá reservava tempo significativo ao culto do caboclo que dava nome ao terreiro – o que talvez exemplifique uma propriedade dos candomblés em Sergipe, que não guardam uma pureza quando se trata da nação ketu. Aliás, mesmo a yalorixá prestigiando e cultuando o seu orixá de cabeça, era o caboclo Rei de Urubá quem ditava as normas da casa, quem atendia aos clientes, quem tratava os necessitados e quem punia os desobedientes, delicadamente. O orixá de cabeça de D. Lenilda manifestava-se uma vez por ano, quando se faziam os festejos específicos do Oxossi, em 31 de janeiro de cada ano. Porém, quando a yalorixá organizava os festejos do seu Oxossi, a festa durava sete dias e varava a noite. Os convites para prestigiar os festejos eram enviados a autoridades políticas e de segurança pública; a comunidade toda se fazia presente. Vários animais eram sacrificados: partes deles destinavam-se ao orixá, outras nutriam os espectadores. Noite e dia filhos e filhas de santo entravam e saíam de quartos e cozinhas preparando e alimentando o público. Todos saboreavam aquelas delícias que contavam, quase sempre, com gengibre, dendê e outros condimentos destinados às comidas dos orixás. Orixá da caça e da fartura, Oxossi era muito bem tratado e extremamente respeitado, inclusive pelo caboclo Rei de Urubá que não se manifestava naquela casa quando se celebrava o Oxossi Queuricidê. E mais: ainda que o caboclo ditasse as regras de funcionamento do ANAIS DO IV FÓRUM IDENTIDADES E ALTERIDADES GEPIADDE/UFS/ITABAIANA ISSN 2176-7033 7 IV FÓRUM IDENTIDADES E ALTERIDADES: EDUCAÇÃO E RELAÇÕES ETNICORRACIAIS 10 a 12 de novembro de 2010 UFS – Itabaiana/SE, Brasil terreiro de candomblé, estas se subordinavam plenamente àquelas estabelecidas pelo orixá de cabeça de D. Lenilda. Em dezembro era realizada a festa da Yansã de D. Lenilda. Era também bastante ampla. Havia comida em abundância e muitos convidados ilustres abrilhantavam os festejos, ainda que surdinamente em muitos casos. Portanto, cada ano era aberto celebrando-se o Oxossi e encerrado com as comemorações destinadas a Yansã. A indumentária adquirida pela yalorixá, para vestir os seus guardiões, Oxossi e Yansã, era algo maravilhoso. O Oxossi vestia-se de azul, com um tecido sofisticado. Havia também a presença do branco, geralmente uma caça-bordada. Contava-se ainda com as ferramentas (dos orixás) que D. Lenilda fazia questão de adquirir em Salvador (BA). A Yansã trajava-se de vermelho, o tecido era também bastante sofisticado. Acompanhava a indumentária outros elementos específicos da orixá, como coroa, espada, miçangas e outros. Oxossi e Yansã somente estabeleciam algum contato oral com ogãs, ekedes, mãe pequena e pai pequeno. Os iniciados, durante a apresentação dos orixás de D. Lenilda, permaneciam de cabeça baixa, batendo palmas e entoando as cantigas. Durante a exibição dos orixás, a ekede segurava uma toalha que secava o rosto da yalorixá – sempre muito solenemente – enquanto o ogã alabê puxava os cantos e as batidas e a mãe e o pai pequeno acompanhavam tudo com muito cuidado. Ainda que as celebrações a Oxossi durassem sete dias, a incorporação acontecia apenas no primeiro dia. O mesmo ocorria quando se comemorava o dia da Yansã, sendo que, neste caso, os festejos ocorriam em apenas três dias. O Abassá Rei de Urubá da Filha de Oxossi Queuricidê estava sempre em festa. Comemoravam-se os caboclos, os erês, os orixás de outros componentes daquele terreiro. Ou se iniciava outras pessoas – as yaôs. Dia e noite, noite e dia filhos e filhas de santo estavam ANAIS DO IV FÓRUM IDENTIDADES E ALTERIDADES GEPIADDE/UFS/ITABAIANA ISSN 2176-7033 8 IV FÓRUM IDENTIDADES E ALTERIDADES: EDUCAÇÃO E RELAÇÕES ETNICORRACIAIS 10 a 12 de novembro de 2010 UFS – Itabaiana/SE, Brasil sempre juntos: educando os/as iniciados/as, cuidando da roça de candomblé, organizando os afazeres do quotidiano de uma casa de santo e de uma grande casa de família, porque ali também viviam yalorixá e seus/suas filhos/as (sanguíneos e de santo). 3. CONCLUINDO OS FESTEJOS, ABRINDO CAMINHOS Esta é uma primeira leitura da beleza e sublimidade presenciadas e vividas na casa de candomblé de Lenilda Tavares de França. É também uma leitura muito injusta porque esboça muito pouco do que foi realizado por aquele povo-do-santo durante mais de duas décadas. É ainda uma tentativa de resgate de lembranças que alimentam, nutrem e felicitam este observador. Mas acima de tudo: tenta ser uma homenagem, mui grata (e tardia, bastante tardia), a essa “gente morena” que historicamente vem mostrando seu valor, ainda que os textos e contextos construam obstáculos de difícil transposição. O Abassá Rei de Urubá da Filha de Oxossi Queuricidê pode (e penso que deve!) ser compreendido como uma das várias estratégias construídas, conscientemente ou não, por negros/as, durante séculos, com a forte esperança (e convicção, muitas vezes) de confirmar a presença de uma etnia, de uma cultura, de uma crença inabalável em sua ancestralidade, em seus mitos, em seus deuses. Lenilda Tavares de França é uma mulher negra, pobre, sofrida, resistente – como o são tantas mulheres negras brasileiras. É uma sacerdotisa que se encontra, hoje, acometida pelo mal de Alzheimer, portando com memória falida e, consequentemente, desconectada do universo sagrado que a tornou uma grande yalorixá, uma grande mãe, uma grande mulher. Os nomes e fisionomias dos seus filhos (de santo e de sangue) já não povoam mais sua cabeça. Em verdade, a própria Lenilda não conhece Lenilda. ANAIS DO IV FÓRUM IDENTIDADES E ALTERIDADES GEPIADDE/UFS/ITABAIANA ISSN 2176-7033 9 IV FÓRUM IDENTIDADES E ALTERIDADES: EDUCAÇÃO E RELAÇÕES ETNICORRACIAIS 10 a 12 de novembro de 2010 UFS – Itabaiana/SE, Brasil Com a memória perdida da yalorixá perde-se também um bocado do universo místico da religião de matriz africana. Perde-se um tanto da cultura negra que sobrevive nas cozinhas, nas roças de candomblé, na memória do povo negro, nas práticas que sustentam a negritude, nas cantigas dos orixás, nas danças ritualísticas, na sabedoria preservada que, inconscientemente, muitas vezes, empodera um povo que historicamente sofre perdas e danos, muitas vezes, irreparáveis. Lenilda Tavares de França, a yalorixá responsável pelo Abassá Rei de Urubá da Filha de Oxossi Queuricidê, conhecida, entre seus pares de santo, por Bochocha, é mulher negra que nunca gostou de sê-lo. Para bem da verdade, cremos que o que desgostava Lenilda eram o desprezo e a discriminação de que foi vítima quando vendia limão nas feiras, para garantir o próprio sustento. Cremos que o desgosto da própria negritude é oriundo do desgosto do preconceito, do racismo, da humilhação porque passou quando lavava os banheiros das famílias abastadas, sempre de pele branca e cabelo liso. Lenilda é mulher negra que rejeita sua negritude, mas o faz contraditoriamente, porque a capoeira, o candomblé e a culinária de origem africana sempre representaram bandeiras que ela desfraldava com competência e elegância. Mulher negra, mulher guerreira, mulher brasileira – Mãe Lenilda. REFERÊNCIAS AGIER, Michel. Distúrbios Identitários em Tempo de Globalização: In: Revista Mana, v. 7, n. 2, 2001. 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