artigo
Carlos Guillermo Aguilar*
Qual comércio,
para qual
desenvolvimento?
1
Se aceitamos como ponto de partida que o comércio pode se tornar uma ferramenta
fundamental para o desenvolvimento dos países pobres, também devemos ser capazes de
avaliar algumas das razões pelas quais, hoje,a agenda de liberalização comercial agressiva
nem é uma agenda de desenvolvimento sustentável nem ajuda a reduzir os problemas
de pobreza definidos nos Objetivos do Milênio (ODM).
Os ODM são um conjunto de medidas adotadas em 2000 por um total de 189
países, “para resgatar o tema do desenvolvimento nos países pobres”, com metas definidas
para 2015. Nele, encontram-se metas como reduzir a pobreza, a fome, as desigualdades
de gênero, a mortalidade infantil e a materna; evitar doenças como HIV/aids, malária,
entre outras; promover o desenvolvimento sustentável, a educação; e avançar rumo a
uma parceria global para o desenvolvimento.
[Traduzido do espanhol por Lígia Filgueiras]
1 Este texto é parte da
palestra “El multilateralismo
desequilibrado de la
Organización Mundial
de Comercio (OMC) y la
estrategia de acuerdos
bilaterales de los países
desarrollados: hacia una
agenda para fracasar en los
Objetivos del Milenio (ODM)”,
realizada na Universidade da
Costa Rica. O texto completo
será publicado pelo Instituto
de Investigaciones Sociales da
universidade.
Janeiro 2010
3
artigo
2 Veja os trabalhos
mais recentes de
Ricardo Hausmann
(antigo colaborador do
Consenso de Washington
e economista-chefe do
Banco Interamericano de
Desenvolvimento). Em 2005,
Hausmann afirmava ao Wall
Street Journal: “Reformas
profundas, crescimento
péssimo [...]. Algo deve estar
errado com as teorias de
crescimento.” Recomendamos
também os trabalhos de
Dani Rodrik, Joseph Stiglitz e
Andrew Charlton.
3 Algumas análises insistem
que o comércio desempenha
um papel cada vez mais
ativo na distribuição da
renda global. Veja Programa
das Nações Unidas para o
Desenvolvimento, 2005,
p. 133.
4 Bloco comercial formado
por Estados Unidos, Canadá e
México. Este último assinou,
em 1997, o Acordo Bilateral,
que entraria em vigor
em 2000.
5 Costa Rica e outros países
da América Central, exceto
Nicarágua, que já estava
incluída antes por sua relação
com os EUA, iniciaram
processos formais de adesão
ao GATT em finais dos
anos 1980.
4
Democracia Viva Nº 44
Cada vez mais, diversas organizações
e instâncias internacionais reconhecem que,
embora o comércio não seja uma panaceia
para o progresso em todos esses aspectos, é
fundamental para atingir as metas fixadas. As
negociações comerciais multilaterais, em especial as promovidas na Organização Mundial do
Comércio (OMC), compreendem uma agenda
tão ampla que toca os principais temas relacionados com os ODM.
Hoje, por exemplo, é reconhecido que
os maiores problemas ocorrem nas questões de
desenvolvimento humano, particularmente no
que diz respeito à saúde, e que as diferenças
nos avanços estão intimamente relacionadas
às regiões mais ou menos convergentes do
comércio internacional. Assim, a Ásia apresenta
progressos significativos, enquanto a África
subsaariana apresenta defasagens em matéria
de comércio e redução da pobreza. Na América
Latina, são vistas algumas reduções no número
e na porcentagem de vítimas da fome, já na
América Central, há significativos aumentos nos
últimos anos (Andersson, 2007).
Por outro lado, é opinião corrente,
admitida por vários grupos de especialistas em
economia e políticas de desenvolvimento, que
o crescimento econômico nem significa melhores condições para o desenvolvimento nem
está, necessariamente, associado à liberalização
do comércio e às reformas promovidas por
organismos financeiros internacionais desde a
década de 1980.2
Um estudo patrocinado pelo Programa
das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(Pnud) sobre a promoção das exportações e a
pobreza, durante a década de 1990, na América
Latina e no Caribe, sustentava em 2004:
Desde o final da década de 1980, quase
todos os países latino-americanos experimentaram um processo de profundas
reformas econômicas que ocorreram, particularmente, no comércio internacional,
na liberalização financeira e da balança de
pagamentos (...). A maior abertura favoreceu novas fontes de crescimento econômico, mas também aumentou a volatilidade
e a sensibilidade aos choques externos.
No início, parecia que as reformas iriam
funcionar como prometido. Aumentou o
crescimento econômico, a inflação caiu
e houve um boom de entrada de capital
estrangeiro. Mas em algum momento,
por volta de 1995, o crescimento cessou,
particularmente em países da América do
Sul. Aconteceu o mesmo com as exportações. (...). Não apenas o crescimento total
foi muito menor do que o do período de
substituição de importações, como também
o crescimento das exportações desacelerou
e ainda é dominado pelos produtos primários (Ganuza et al., 2004, p.1).
Segundo esse estudo, paralelamente,
cresceu a desigualdade de renda,3 afetando a
eliminação da pobreza, a equidade e a coesão
social. Assim, o estudo chegou a reconhecer que,
embora o impacto da liberalização e a tendência
para as exportações não fossem a principal explicação para o fracasso, a sua contribuição para o
desenvolvimento deveria ser medida na apreciação
de casos particulares em um esquema mais geral
de grupos vencedores (segundo a educação e a
percepção de renda) e de perdedores (trabalhadores agrícolas e não-qualificados) (Programa das
Nações Unidas para o Desenvolvimento, 2005).
Essa é a situação geral na América Latina,
onde surge, em meados dos anos 1990, a OMC
ao mesmo tempo que a promulgação do Tratado Norte-Americano de Livre Comércio (Nafta).4
Ainda que as políticas de liberalização comercial
agressiva acompanhem a situação do continente
desde as reformas propostas pelo Consenso de
Washington, a aprovação do Acordo Geral sobre
Tarifas e Comércio (GATT), por meio da Rodada
Uruguai5 até a formação da OMC e a Rodada de
Doha para o Desenvolvimento, lançada em 2001,
significaram mudanças muito sensíveis nos temas,
nas modalidades e no alcance das negociações.
As décadas de 1980 e 1990 caracterizamse por anos de dominação de uma forte ortodoxia
liberalizadora, de raízes monetaristas, que optou
por um modelo que combinava o multilateral e
o bilateral. Os resultados dessas políticas, nos
anos subsequentes, provocaram não apenas uma
revisão e uma discussão sobre os fundamentos
econômicos do monetarismo e do regionalismo
aberto para a América Latina (Cepal), mas significaram, acima de tudo, um alerta constante para o
crescimento excessivo e descontrolado de acordos
bilaterais e a crise desencadeada nas negociações
multilaterais após a V Conferência Ministerial, em
Cancun, no México (2003).
Emaranhado de acordos
O que observamos hoje em dia é a constatação
da crise geral do sistema de comércio baseado
em estratégias de liberalização agressiva (livre-
Q ua l c o m é r c i o, pa ra q ua l d e s e n v o lv i m e n t o ?
comércio) que desaceleraram e desnudaram as
verdadeiras intenções dos países desenvolvidos
nas negociações multilaterais, e que acabaram
construindo um complexo emaranhado de
acordos bilaterais, tanto no plano comercial
como nos investimentos.
Contrariamente ao que supõem alguns
pesquisadores, não creio que estamos diante
de um dilema do tipo: multilateralismo versus
bilateralismo. Tanto os Estados Unidos (EUA),
em sua Estratégia de Segurança Nacional conhecida desde 2002 (Aguilar, 2003) como a
União Europeia (UE), em seu documento “Uma
Europa global: competir no mundo”, têm enfatizado a necessidade de continuar encorajando
as negociações multilaterais, ao mesmo tempo
que avançam em seus interesses particulares por
meio de acordos bilaterais.
Dessa forma, não foram os países desenvolvidos que questionaram esse modelo de
grandes prejuízos para os interesses do desenvolvimento. Foi basicamente a opinião pública mundial (ONGs, movimentos sociais), especialmente
os países que compõem o G-336 e, até mesmo,
as agências de financiamento e organismos
internacionais. Hoje, economistas como Jagdish
Bhagwati7 reconhecem que acordos como o
Nafta significaram o desvio do comércio, afetando, principalmente, a economia mais fraca.8
Outros, como Stephen Tokarik (2004), do Fundo
Monetário Internacional, sustentam que:
A liberalização beneficia principalmente
os países ricos e, embora no conjunto os
países em desenvolvimento se beneficiem,
alguns podem ser prejudicados, principalmente os importadores de produtos
agrícolas (p. 316).
Em geral, não surpreende que, dada a
avalanche de acordos bilaterais (mais de 230
em todo o mundo, cobrindo mais de 40% do
comércio mundial), organizações como o FMI
insistam que esses instrumentos deveriam ser
chamados de “acordos preferenciais” porque
não tendem a uma ampla liberalização do
comércio, mas à redução das barreiras entre
os países signatários. Deve acrescentar-se que
também deixam intacto o sistema de ajudas e
subsídios para a agricultura dos países desenvolvidos, que não tocam em questões relacionadas às práticas de dumping e que ampliam a
agenda de questões relacionadas com serviços,
propriedade intelectual, investimentos, normas
de concorrência e contratação pública.9
O relatório “Perspectivas da economia
mundial para 2005”, do Banco Mundial, deixa
bem clara a situação:
Os acordos entre o Norte e o Sul, especialmente os celebrados com os Estados
Unidos, foram mais eficazes em bloquear
a liberalização de novos serviços, fizeram
exigências de direitos de propriedade
intelectual mais rigorosas do que as da
Organização Mundial do Comércio (OMC)
e ampliaram o âmbito da proteção dos
investimentos ... (2005).
A questão para esses organismos resumese em até que ponto conseguem esses acordos
substituir o programa de liberalização multilateral. Especialistas como Anne Krueger e Srinivasan
destacam que esses acordos preferenciais impedem a liberalização, fixando regras que mudam
a política comercial dos países individualmente.
David Richardson e Hans-Peter Lankes, por sua
vez, reconhecem que os dados são ambíguos,
mas que, sob certas circunstâncias – comércio
significativo entre as partes, tarifas elevadas e
negociações entre países desenvolvidos e em desenvolvimento – e seguindo padrões de harmonização e redução tarifária sob a supervisão da
OMC, poderiam apoiar uma liberalização maior
a nível mundial. (Ibid. Conferência do FMI).
Yongzheng Yang, do FMI, resume a
questão dessa forma:
... as autoridades devem estar cientes de
que o regionalismo talvez não beneficie a
economia mundial a longo prazo. [...] Em
um mundo de regionalismo e bilateralismo,
poderíamos terminar com o dilema de países que procuram tirar vantagem através da
discriminação (regionalismo “competitivo”),
sem que o resultado beneficie ninguém.
(Los acuerdos regionales y bilaterales de
libre comercio requieren precaución, FMIBoletín. V. 33, n.11. 6 / 2004. p. 168).
Assim, o dilema multilateralismo-bilateralismo mostra-se falso diante dos interesses
dos países desenvolvidos, que combinam ambas
as negociações, interessados em suas indústrias
e empresas, e não em políticas de desenvolvimento internacional para os ODM. Há anos,
os questionamentos ao sistema de comércio
mundial nos obrigam a refletir sobre o que está
errado. São necessárias novas regras, novas
instituições, significa desviar o foco do comércio
6 Grupo de países reunidos
para defender interesses,
especialmente em relação aos
países africanos, embora não
exclusivamente.
7 Bhagwati é reconhecido
mundialmente por ser um
dos maiores economistas
defensores da globalização
econômica. Seu livro “Em
defesa da globalização” reúne
uma série de desqualificações
para os críticos do atual
modelo econômico dominante
e foi apresentado pelo FMI
como “o caudilho do livre
comércio”.
8 Robert Lawrence, professor
de Harvard, manifestava suas
dúvidas, em uma entrevista
para o Boletim do FMI,
assim: “... é preferível não
celebrar acordos que exijam
a implementação de políticas
que, na opinião dos países,
sejam prejudiciais para o
desenvolvimento”. FMIBoletin.
V.33, n.22. 12/2004.
p. 359.
9 Estas três questões estão
entre os conhecidos temas
de Singapura, por enquanto,
suspensos na OMC.
Janeiro 2010
5
artigo
* Carlos Guillermo
Aguilar
Pesquisador do Ibase
10 Os estudos de Andrew
Rose, professor de Berkeley,
demonstraram, em 2003, que
o ingresso dos países na OMC
não representou aumento
das trocas comerciais e,
em vários casos, significou
efeitos econômicos negativos.
Veja-se Rose, Andrew. “Do
WTO members have more
liberal trade policy?” or
“Do we really know that
the WTO increases trade?”
[“Os membros da OMC
têm política comercial
mais liberal?” ou “Será
que realmente sabemos
que a OMC desenvolve o
comércio?”. Disponível em:<:
http://faculty.haas.berkeley.
edu/arose/WTO.pdf> e
<http://faculty.haas.berkeley.
edu/arose/GATT.pdf >
11 Estudos de Aaditya
Mattoo e Sabramanian, do
Banco Mundial, propõem que
não se limite a liberalização
de bens e serviços, mas
também a mão de obra,
o que, segundo eles, se
traduziria em maiores
benefícios para os países em
desenvolvimento. Vide “La
OMC sí es importante”, 2004,
pp. 22-23.
6
Democracia Viva Nº 44
(romper a identificação com uma série de políticas ortodoxas de livre comércio) para deixá-lo
em função de um desenvolvimento social e
ecológico, de um marco amplo e abrangente
dos direitos humanos, romper o falso dilema
proteção-liberalização ou, em sua forma mais
ideológica: isolamento-abertura.10
Como observou o Relatório sobre Desenvolvimento Humano, de 2005:
Lançada em 2001, Doha foi classificada
como uma ‘rodada para o desenvolvimento’. Os países ricos comprometeram-se
a implementar medidas práticas para se
alcançar uma distribuição mais justa dos benefícios da globalização. No entanto, nestes
últimos quatro anos, não houve qualquer
avanço em nenhuma questão importante.
Os obstáculos ao comércio internacional
permanecem intactos, aumentaram os subsídios agrícolas e os países ricos dedicamse ativamente a conseguir a aplicação de
regras para os investimentos, os serviços
e a propriedade intelectual que ameaçam
aprofundar ainda mais as desigualdades no
mundo (Pnud, 2005, pp. 127-128).
Nestas circunstâncias, o comércio, longe
de ser um fator de desenvolvimento e convergência das economias mais pobres, significou, em alguns casos, a redução drástica de participação no
mercado mundial (a mais perceptível é a da África subsaariana, como dissemos). Se seguirmos
as recomendações do Pnud para que o comércio
apoie, realmente, os objetivos dos ODM, criados
em 2005, a saber, o fortalecimento de três áreas
fundamentais para os países pobres: acesso
aos mercados, o processamento dos subsídios
agrícolas e tratamento especial e diferenciado,
podemos constatar que Doha falhou em tudo. A
transformação das medidas de investimento, dos
direitos de propriedade intelectual, a circulação
temporária de pessoas (liberalização gradual dos
mercados de trabalho),11 a questão da dívida e
a crise das commodities demonstram não ser
a agenda prioritária dos países desenvolvidos,
nem para os Estados Unidos, muito menos para
a União Europeia.
A situação dos países do Sul obriga
mudanças urgentes na estrutura do comércio
multilateral, bem como de toda uma discussão
de fundo sobre a ajuda e a cooperação internacional, os fluxos de capital e de migração, a
distribuição de renda mundial, a transferência de
conhecimentos e tecnologias, e os padrões de
consumo de energia para a proteção do meio
ambiente e as alterações climáticas. Se queremos que o comércio consolide novas maneiras
de acabar com a fome e a pobreza, é urgente
começar a nos perguntar: qual comércio, para
qual desenvolvimento?
referências
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Qual comércio, para qual