Entrevista: Marcus Orione Gonçalves Correia Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP). Realizada em: 11/06/2008 Como surgiu a idéia de se ter um sistema unificado de Seguridade? Na época da promulgação houve uma movimentação muito intensa dos partidos de esquerda, inclusive com a participação de alguns deputados constituintes muito conhecidos dos movimentos sociais, como Florestan Fernandes, na educação, e integrantes do movimento sanitarista. Esses grupos conseguiram atuar em algumas comissões específicas – entre elas, a de trabalho e a de direitos sociais – e foram muito efetivos. Essa atuação conseguiu trazer para a Constituição o eixo da seguridade de uma forma mais indissociável. Foi uma atuação política muito bem organizada nas diversas comissões, com concentração de esforços nas comissões de trabalho e nas que eram ligadas a direitos sociais em geral. É a Constituição de 1988 que inaugura o nosso sistema de Seguridade Social, tal qual ele é conhecido hoje. Antes disso, havia disposições esparsas sobre previdência, assistência e saúde, mas, constitucionalmente, a idéia de segurança nacional atrelada ao eixo previdência-saúde-assistência e à perspectiva de políticas públicas ligadas a direitos sociais só passou a existir em 1988. É a partir dessa Constituição que consideramos que um país com segurança social é aquele que possui um conjunto de ações integradas a saúde, previdência e assistência, que passa a ser o eixo da nossa construção de seguridade social. E o sistema deu certo? Nesses 20 anos de Constituição, ainda não conseguimos a universalidade da maneira que queríamos, seja no SUS ou no sistema assistencialista. Mas quem viveu esses 20 anos sabe que nós, por pressão popular e utilização dos instrumentos constitucionais, conseguimos evitar que muitos retrocessos pudessem acontecer. A Constituição é um espaço de resistência. Que princípios norteiam Seguridade Social? O principal deles diz respeito à solidariedade. O sistema é custeado para que se tente fazer uma redistribuição de renda na sociedade, entre as diversas gerações. A idéia é estabelecer entre as gerações presentes, passadas e futuras um eixo de contribuição de tal forma que isso se alargue no tempo, para que as populações não fiquem desatendidas. Há uma lógica de custeio, que na assistência não é direta (o sujeito que vai receber não participa diretamente pagando) e na previdência é direta, porque só quem participa recebe a proteção. Pensa-se em várias gerações se solidarizando, custeando esse sistema e ao mesmo tempo fazendo uma redistribuição de renda, seja na cobrança dos valores, seja na distribuição dos serviços. Dois princípios interessantes são o da universalidade e o da seletividade: na época da promulgação, o mundo estava migrando para políticas públicas focalizadas, ou seja, em que se escolhe um ou outro serviço e uma ou outra população para ser beneficiada. No Brasil, a Constituição diz que o sistema é para todos, indistintamente, e deve alcançar o maior número de pessoas possível no maior número de situações adversas possível. A tendência do sistema é a de ser universal no sentido subjetivo (atingindo todos os sujeitos ou aumentando essa capacidade de atingi-los) e objetivo (no sentido das coberturas previstas). Assim, na previdência social, na assistência e na saúde, em tese, a idéia é aumentar o número de benefícios e o número de atingidos. Com o discurso da escassez de recursos, em geral o mundo tendeu a uma focalização, enquanto a nossa Constituição quis a universalização. Quando há serviços específicos para pessoas específicas, o próprio texto constitucional indica essas pessoas. Por exemplo, a assistência tem o benefício de um salário mínimo para pessoas com deficiência, e isso foi indicado pela própria Constituição. Isso nos leva a um outro princípio importante, o da isonomia dentro do sistema, ou eqüidade. Trata-se da igualdade de tratamento entre as pessoas, observando que as diferenças de alguns devem ser atendidas, tanto na previdência como na assistência e na saúde. Existe a necessidade de que o tratamento igual seja permeável à idéia de tratamento diferenciado para os diferentes. Como fica a relação entre público e privado? A seguridade ficou definida como o conjunto de medidas e ações da sociedade civil e do poder público em torno da saúde, assistência e previdência. Isso significa que tanto o público quanto o privado estão, nessas três áreas, em uma dimensão de seguridade social. Assim, quando se pensa em previdência complementar ou saúde suplementar, áreas em que é comum a atuação do setor privado, isso não está divorciado de um projeto de seguridade social. Num sistema de segurança social e de direitos sociais, existe o plano privado, e existe a autonomia de vontades, mas essa autonomia não é tão forte assim porque existe a intervenção de uma necessidade de que as partes, especialmente a mais forte, não possam dar as regras do jogo a seu bel-prazer. Isso desenha uma característica de um sistema de segurança social em que a liberdade de vontade das partes existe, especialmente no privado, mas deve limitada por esse interesse social. Então a Constituição de 1988 vem com uma carga muito grande em torno desses negócios e buscando evitar que os interesses da iniciativa privada possam se sobrepor ao interesse geral da coletividade, embora nem sempre isso aconteça. Existe crise no sistema de Seguridade? Hoje, como o aporte de recursos para a área de seguridade é menos eficiente – seja na quantidade, seja na qualidade dos recursos – ela acaba realmente tendo dificuldade de sobreviver. O que se necessita essencialmente é uma maior quantidade de recursos para esses setores. Por isso é necessário, com urgência, acabar com a Desvinculação de Recursos da União (DRU), que infelizmente foi prorrogada por mais 4 anos no fim do ano passado. Isso significa que 20% do dinheiro da seguridade pode ir para outras áreas. Para racionalizar o sistema, isso teria que acabar imediatamente. E um grande problema é a falta de clareza em relação aos números e à destinação dos recursos. Um exemplo disso é facilmente verificado quando se examina o orçamento da Previdência Social: boa parte dos recursos está destinada a ‘encargos especiais’ – um nome bonito, que se coloca abertamente no orçamento, sem que ninguém explique bem o que significa. Na verdade, o próprio conceito de saúde na Constituição dificulta a transparência em relação aos recursos financeiros. Para as políticas públicas, os conceitos devem ser bastante bem-elucidados em relação ao seu contorno. Na lei que cria o SUS, a saúde está ligada a questões do bem-estar não só físico como psíquico e mental, e isso inclui temas como lazer e transporte. O que ocorre é que, embora isso seja muito interessante, essa definição rica traz um problema: um conceito aberto como esse faz com que se torne possível usar recursos específicos da saúde para custear transporte e lazer. Embora eu conheça a luta que historicamente existiu por um conceito aberto – imagino que, em princípio, isso até tenha sido feito visando conseguir mais verbas – isso é negativo para que as políticas públicas dêem certo, porque quando a lei abre demais o conceito, o gestor daquela política pública fica em uma situação muito permissiva. Além da delimitação dos conceitos, o que é preciso para solucionar os problemas? Algumas soluções normativas se fazem necessárias, além das políticas. E uma delas diz respeito às leis orçamentárias, que devem ser mais rígidas quanto às rubricas dadas no orçamento. Essa é uma idéia controversa: muitos acham que os ‘encargos especiais’ dão ao gestor maior flexibilidade. Eu acredito que a flexibilidade seja uma idéia interessante, mas isso fragiliza muito o controle dos recursos. Outra solução diz respeito a um controle de responsabilidade dos gestores. Já se criou a lei de responsabilidade fiscal. Mas, para efeitos de gestão de direitos sociais, especialmente da previdência, da assistência e da saúde, o mais importante seria a criação de uma lei de responsabilidade securitária, que assegurasse a responsabilidade dos gestores da coisa pública pela realização das finalidades constitucionais da seguridade. Hoje o sujeito fica mais preocupado com a responsabilidade fiscal, com quanto pode gastar, e acaba não fazendo a otimização desse dinheiro para fins de política de saúde, sem direitos sociais. Estou advogando o contrário: ele tem que cumprir as metas constitucionais e regulamentadoras da Constituição, as metas colocadas pelo legislador, sob pena de ter responsabilidade pela não-realização. Essa pena poderia ser perda de cargo, perda patrimonial e assim por diante. Isso representaria uma blindagem de responsabilidade para esse sistema. Além disso, o fim da DRU e a regulamentação imediata da Emenda 29, por lei complementar, são medidas fundamentais.