Por que não há déficit na Seguridade Social e na previdência social? Evilasio Salvador1 A seguridade social é uma das principais conquistas sociais da Constituição Federal (CF) de 1988, designando um conjunto integrado de ações do Estado e da sociedade voltadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. A concretização dessa conquista social passa pela efetivação do orçamento da seguridade social; para tanto, um dos princípios constitucionais estabelecidos é a diversidade das bases de financiamentos, que deveriam ser constituídas por contribuições socais exclusivas. Essas contribuições adicionadas às receitas arrecadadas sobre a folha de pagamentos mais impostos a serem transferidos pelo orçamento fiscal seriam conduzidas para um fundo público redistributivo da seguridade social. A Constituição Federal (CF) no seu Título VIII, que trata da ordem social, dedicou o Capítulo II à seguridade social: Art. 194. A seguridade social compreende um conjunto integrado de ações de iniciativa dos Poderes Públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. Parágrafo único. Compete ao Poder Público, nos termos da lei, organizar a seguridade social, com base nos seguintes objetivos: I - universalidade da cobertura e do atendimento; II - uniformidade e equivalência dos benefícios e serviços às populações urbanas e rurais; III - seletividade e distributividade na prestação dos benefícios e serviços; IV - irredutibilidade do valor dos benefícios; V - eqüidade na forma de participação no custeio; VI - diversidade da base de financiamento; VII - caráter democrático e descentralizado da administração, mediante gestão quadripartite, com participação dos trabalhadores, dos empregadores, dos aposentados e do Governo nos órgãos colegiados. 1 Economista. Doutor em Política Social e professor da UnB. Nota elaborada para o Sindifisco Nacional. O corolário desse artigo é que as receitas e despesas da previdência social passam a integrar o orçamento geral da seguridade social, conforme o estabelecido pelo texto constitucional: Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: I - do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre; a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; b) a receita ou o faturamento; c) o lucro; II - do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo regime geral de previdência social de que trata o art. 201; III - sobre a receita de concursos de prognósticos. IV - do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar. (...) Nos parágrafos do mesmo artigo, explicita-se que também são fontes de recursos da previdência as receitas dos estados, do Distrito Federal e dos municípios, constantes nos respectivos orçamentos. Ainda, a União é responsável pela cobertura de eventuais insuficiências financeiras da seguridade social, quando decorrentes do pagamento de benefícios da Previdência Social. As outras fontes de custeio são: contribuição de segurados individuais, dos clubes de futebol profissional, do empregador doméstico, do produtor rural, parte da arrecadação do Sistema Integrado de Pagamento de Impostos e Contribuições (Simples). Ainda, no período de 1997 a 2007, vigorou a Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira (CPMF), que foi extinta pelo Congresso Nacional no fim de 2007. O Orçamento da Seguridade Social (OSS), sob o formato quadripartite, chegou a ser elaborado nos primeiros anos após a regulamentação das leis de custeio e de benefício da seguridade social, mas que na realidade definiam o financiamento e os benefícios da previdência social, com raras passagens sobre a seguridade social no texto legal. Em 1993 e 1994, apareceu como proposta do Conselho Nacional da Seguridade Social (CNSS), mas essa orientação não prevaleceu. Na realidade, apesar da previsão constitucional de gestão quadripartite da seguridade social, o CNSS teve vida curta. Essa opção de não implementação do OSS deve ser compreendida de forma mais ampla no contexto das opções de políticas econômicas, particularmente o quadro tributário e fiscal constituído nas últimas duas décadas no país. No bojo das políticas macroeconômicas que deram sustentação ao Plano Real, como se sabe, a política fiscal foi determinante e seguiu à risca as recomendações dos organismos multilaterais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI). Em 1993, os economistas formuladores do Plano Real, com a pretensa defesa dos equilíbrios das contas públicas brasileiras, defendem a criação de um “Fundo Social de Emergência (FSE)”, que acabou sendo instituído por meio da Emenda Constitucional de Revisão nº 1, de 1994, permitindo a desvinculação de 20% dos recursos destinados às políticas da seguridade social. Nos exercícios financeiros de 1994 e 1995, por meio do Fundo de Estabilização Fiscal (FEF) (Emendas Constitucionais nos 10 e 17 e, posteriormente, Emenda Constitucional nº 27), que criou a Desvinculação das Receitas da União (DRU), permitiu a desvinculação de 20% da arrecadação de impostos e contribuições sociais até o fim de 2003. Dando seqüência à mesma política fiscal do governo anterior, a equipe econômica do Governo Lula, sob alegação de que a “economia brasileira ainda requer cuidados”, manteve no âmbito da Emenda Constitucional nº 42 (reforma tributária) a prorrogação da DRU até 2007. A EC nº 56, aprovada em 2007, voltou novamente a prorrogar a DRU, desta vez até 2011. Portanto, teremos 17 anos de usurpação de recursos da seguridade social pelo orçamento fiscal. A não-implementação do orçamento seguridade social também ajudou a criar o caldo de cultura da crise da seguridade social, pois constituiu um elemento importante de justificativa da “reforma” da previdência social, em 1998, o fato de o governo, a imprensa e muitos analistas julgarem o sistema previdenciário brasileiro deficitário e causador do déficit público. Tais alegações se fundamentam nos valores previstos no Orçamento Geral da União (OGU) nos últimos anos para as despesas previdenciárias, mas são controversos diante dos ditados constitucionais sobre o assunto. Mesmo porque, do ponto de vista orçamentário, a Constituição brasileira definiu no seu artigo 165, para os três níveis de governo, que a Lei Orçamentária Anual (LOA) será composta pelo Orçamento Fiscal, Orçamento de Investimentos das Empresas Estatais e Orçamento da Seguridade Social. Inexistindo no âmbito constitucional qualquer referência a um orçamento específico para a previdência social. O que tradicionalmente os dirigentes da previdência social brasileira divulgam é o resultado financeiro do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) por meio do contraste entre a arrecadação líquida e as despesas com benefícios previdenciários do INSS. Pois, a Constituição determina a criação de um orçamento com recursos próprios e exclusivos para as políticas da Seguridade Social (saúde, previdência e assistência social) distinto daquele que financia as demais políticas de governo Diante da falta de iniciativa oficial de implementação do OSS, alguns atores sociais têm pesquisado e divulgado o “balanço” da seguridade social: a Associação Nacional dos Fiscais de Contribuições Previdenciárias (ANFIP), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o Tribunal de Contas da União (TCU) e o Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC). Além de grupos de pesquisas vinculados às universidades, como O Grupo de Estudos e Pesquisas em Seguridade Social e Trabalho (GESST) da Universidade de Brasília e o Grupo de Estudos e Pesquisas do Orçamento Público e da Seguridade Social (GOPSS) ligado ao Centro de Estudos Octavio Ianni (FSS/UERJ). No tocante à metodologia de apuração de uma proposta de orçamento da seguridade social, a ANFIP e o IPEA consideram no lado das receitas: COFINS, CSLL, CPMF, as contribuições de empregados e empregadores sobre a folha de salários e mais o Simples. O IPEA inclui, ainda, a parte do PIS que financia o seguro-desemprego, a contribuição sobre a produção rural e a do Servidor Público (CSSP); no lado das despesas, o pagamento dos benefícios previdenciários urbanos e rurais, os benefícios assistenciais e as ações do SUS, saneamento e custeio do Ministério da Saúde. O IPEA inclui os gastos com a previdência de inativos e pensionistas da União, com ressalvas. O instituto divulgou até o n° 14 da publicação “Políticas Sociais - Acompanhamento e Análise” (fevereiro de 2007) a sua forma de apurar o resultado da seguridade social. O TCU limita-se a analisar a execução orçamentária oficial, fazendo apenas alguns ajustes. Salienta, porém, que, se não houvesse a DRU, a Seguridade Social teria um resultado positivo de R$ 5,3 bilhões, em 2006, e R$ 17,1 bilhões, em 2007. Após determinação da LDO de 2005 (Lei nº 10.934, de 11 de agosto de 2004), a STN passou a explicitar o montante de recursos desvinculados da seguridade social, mas permanece a falta de discriminação e clareza na divulgação dos dados da execução orçamentária, pois na rubrica “fonte 100” da execução orçamentária homogeneízam-se impostos e recursos oriundos da DRU. Desconsiderando os efeitos da desvinculação nas contas do órgão oficial, o resultado da seguridade social seria positivo em R$ 15,2 bilhões, em 2007. Portanto, por meio da DRU ocorre uma perversa “alquimia” que transforma os recursos destinados ao financiamento da seguridade social em recursos fiscais para a composição do superávit primário e, por conseqüência, os utiliza para pagar juros da dívida. A tabela 1 apresenta os resultados da seguridade social. Seja qual for o critério, ao desconsiderar os recursos desviados por meio da DRU, o saldo é positivo variando, conforme o órgão ou entidade, de R$ 4,4 bilhões a R$ 62,7 bilhões, no período de 2004 a 2007. Em 2008, o TCU apurou um superávit de R$ 7,8 bilhões nas contas da seguridade social. Tabela 1 Projeção do Orçamento da Seguridade Social em R$ bilhões 2004 2005 2006 2007 Saldo com DRU Saldo sem DRU Saldo com DRU Saldo sem DRU Saldo com DRU Saldo sem DRU Saldo com DRU Saldo sem DRU ANFIP 17,6 42,5 24,7 62,7 17,0 50,9 21,8 60,9 IPEA 0,3 27,7 0,1 27,7 1,6 33,5 nd nd TCU -18,3 12,2 -14,1 19,1 -28,6 5,3 -22,0 17,1 - - -14,4 17,6 -29,4 4,4 -23,4 15,2 Entidades/órgãos Tesouro Nacional (1) Fonte: ANFIP, IPEA, TCU e STN Elaboração própria (1) O Tesouro Nacional divulga as receitas, as despesas da seguridade social e as desvinculações da DRU, mas não apresenta o saldo da seguridade social.As contas apresentadas são elaborações próprias. Até 2002, as propostas de leis orçamentárias encaminhadas pelo Poder Executivo e aprovadas pelo Congresso Nacional não tratavam das despesas e das receitas da seguridade social de forma separada do orçamento fiscal. A Lei Orçamentária, em cada ano, tratava de forma homogênea as despesas e receitas das esferas fiscal e da seguridade social, em uma única peça orçamentária denominada “orçamento fiscal e da seguridade social”. Em 2003, ou seja, após 15 anos de existência na Constituição, o projeto e a lei orçamentária aprovada trouxeram o montante das receitas e das despesas dos orçamentos fiscal e da seguridade social separados. Contudo, essa apresentação limitouse a uma estrutura formal de orçamento, sem qualquer controle social, pois o CNSS tinha sido extinto quatro anos antes. Além disso, os orçamentos aprovados após 2003 não seguem o desenho constitucional da seguridade social, pois não explicitam a desvinculação das receitas que ocorre por meio da DRU, que é transformada em arrecadação do orçamento fiscal. Assim como as despesas não ficam limitadas àquelas previstas na Carta Magna para esfera da seguridade social (previdência, saúde, assistência social e seguro-desemprego). No lado das receitas do Orçamento da Seguridade Social, ainda, ocorrem outras graves confusões para além da DRU. Ocorre o descumprimento ao art. 27, inciso I, da Lei nº 8212/1991, “parte das receitas provenientes de juros, multas, correção monetária e até mesmo a recuperação da dívida ativa de contribuições sociais, que são fontes do Orçamento da Seguridade Social, constam como receitas do Orçamento Fiscal”. Além disso, os autores destacam a inusitada situação do Fundo de Saúde Militar, que tem suas receitas classificadas no orçamento fiscal e as suas despesas a cargo do OSS, apesar de não ser um gasto do SUS, mas um encargo do governo em benefícios dos integrantes das forças armadas. A falta de transparência na divulgação de informações orçamentárias e na elaboração das propostas encaminhadas ao Congresso Nacional continua sendo uma práxis. Em recente Nota Técnica divulgada pelo INESC é destacado o fato de que a lógica de apresentar a seguridade social como deficitária repete-se no PLOA 2009. A proposta do orçamento, no artigo 2º, diz que a seguridade social terá uma receita de R$ 387,7 bilhões. Contudo, as despesas projetadas são de R$ 425,7 bilhões para o ano de 2009 (inciso II, art° 3°). A diferença de R$ 38 bilhões de acordo com o PLOA será coberta pelo orçamento fiscal. Na realidade, “esta conta é uma falácia e não colabora para transparência dos dados orçamentários” (p. 6). Pois segundo o estudo do INESC, mesmo com a perda de recursos da CPMF (estimada em R$ 40 bilhões), a seguridade social permanece superavitária. Caso fossem respeitadas as fontes de financiamento exclusivas definidas no art. 195 da CF, as receitas seriam suficientes para cobrir todas as despesas previstas no âmbito desse orçamento. Essa situação ocorre porque o governo não evidencia na proposta orçamentária os recursos que são desvinculados da seguridade social pela DRU e transferidos para o orçamento fiscal. Brasília-DF, 25 de fevereiro de 2010