O envelhecimento da população brasileira e a previdência social Os recentes protestos ocorridos na França nessas últimas semanas mostram claramente a insatisfação da população com as novas políticas de previdência social propostas pelo Estado francês, que reduzem os benefícios sociais alcançados no Estado do Bem Estar Social, aumentando o tempo de contribuição à previdência e a idade mínima para a aposentadoria. Jovens e velhos, trabalhadores e desempregados, sindicatos, organizações políticas e estudantes por todo país manifestaram seu descontentamento com as medidas aprovadas, apontando como consequências a perda de direitos adquiridos e o encurtamento do mercado de trabalho para os mais jovens, com a permanência dos mais velhos em seus postos de trabalho. Por outro lado, os argumentos são da necessidade das reformas para que o estado possa arcar com o custo social da seguridade em uma sociedade que envelhece celeremente. Phillip Longman, em artigo publicado no jornal O Estado de São Paulo1, afirma que “viver mais é estimulante, mas ficou arriscado dividir esse mundo que evita filhos, não se renova e faz do jovem amparo do velho.” Analisa a questão da “sociedade geriátrica” com olhos bastante pessimistas, afirmando que se mantidas as taxas de envelhecimento e as preocupantes taxas de natalidade quase negativas, em muitos países, chegaremos a uma crise em que, nem o estado nem a sociedade conseguirão suprir as necessidades dessa população. Fabio Giambiagi e Paulo Tafner lançaram o livro "Demografia - A ameaça invisível" 2, que trata da questão da previdência social brasileira. Giambiaghi diz que o livro é resultado de anos de reflexão acerca da questão previdenciária, e que seu objetivo foi explicar as razões que justificam que se olhe com cuidado para as tendências demográficas envolvidas na trajetória do perfil etário brasileiro. O livro apresenta uma proposta de reforma radical para quem ainda vai entrar no mercado de trabalho, com regras únicas para todos - trabalhadores da iniciativa privada, servidores públicos e militares, afirmando que a reforma deve ser feita nesse momento, para não transferir para as gerações futuras, responsabilidades com as quais não poderão arcar. Efetivamente temos um grande problema se delineando nos países desenvolvidos e se avizinhando do nosso. Em artigo recente o autor comenta 1 O Trôpego futuro da sociedade de idosos. Caderno Aliás, jornal O Estado de São Paulo, pg. j5, 24/10/2010. 2 Demografia. A ameaça invisível. Giabiaghi, Fabio, Tafner, Paulo, Ed. Campus, 2010. a aprovação da queda do fator previdenciário pelo legislativo, apontando que se sancionado pelo presidente, colocará em risco o sistema de previdência brasileiro. Não ignoramos em absoluto as dificuldades que advém dessa tendência demográfica, mas é preciso que fique claro que a responsabilidade não está somente no envelhecimento populacional, mas que seu cerne se encontra no atual modelo capitalista que promoveu a flexibilização do trabalho, a terceirização da produção com a consequente informalidade nas relações de trabalho e com isso uma profunda redução nas entradas das contribuições aos sistemas previdenciários. O capitalismo encontra-se em um estado de profunda exploração que remonta aos seus primórdios, eliminando as coberturas de riscos e a redução dos direitos sociais, mas quando esses analistas apontam a crise que a longevidade da população pode provocar, em nenhum momento põe em questão a estrutura estabelecida pelas políticas neoliberais que conformam o atual momento do capitalismo. Contudo, é preciso considerar que a Constituição de 1988, em seu conjunto de proposições no campo dos direitos sociais, avança no sentido de propiciar a universalização de direitos de cidadania. Segundo Marques, ao garantir a instituição do campo da Seguridade Social, a Constituição substituía o caráter meritocrático – o qual, até então, havia sustentado a proteção social, particularmente na área da previdência e na da saúde – pelo princípio da cidadania. Esse princípio, cabe lembrar, foi o mesmo que orientou a universalização da proteção social dos países capitalistas desenvolvidos, após a Segunda Guerra Mundial e mesmo durante os anos 70 e 80. Ainda que as economias desses países começassem a apresentar problemas ao final da década de 70, principalmente devido à retração do crescimento econômico, à elevação das taxas de desemprego, ao surgimento de déficits fiscais e ao aumento do nível de preços, os sistemas de proteção social ampliaram seu campo de ação, incorporando novos segmentos em sua cobertura. Os exemplos mais característicos dessa fase são: o fato de passar a ser reconhecido como desempregado o trabalhador sem emprego que nunca trabalhou e o surgimento de programas de renda mínima, animados pelo princípio da cidadania e não entendidos como uma mera ação assistencial. Para garantir os direitos do cidadão no campo da seguridade social, os constituintes estabeleceram um esquema de financiamento com recursos provenientes dos orçamentos das áreas federal, estadual e municipal, e de contribuições sociais, calculadas sobre o salário, o faturamento e o lucro líquido (art. 195 da Constituição Federal). Saliente-se que os constituintes também defendiam que as fontes de financiamento da seguridade social não seriam distintas de seu conceito. Em outras palavras, consideravam, ao ser eleita a cidadania e não o mérito como a referência para o direito à proteção social, estabelecido que a sociedade deveria, a cada ano, discutir e definir de que forma seria realizada a partilha do conjunto de receitas previstas para a seguridade social. Isso significa dizer que os constituintes se colocaram contra o estabelecimento de vinculação de receitas no interior da seguridade social. A única exceção ficou por conta do PIS/Pasep, que passou a ter uso exclusivo do programa seguro-desemprego e do pagamento do abono PIS/Pasep, sendo 40% de sua arrecadação destinada a empréstimos realizados pelo BNDES às empresas. 3 Dessa forma, não se pode discutir previdência vinculada aos outros entes da seguridade, mas como parte dela, cujos recursos próprios não são onerados por outros programas de garantia de renda, nem mesmo pelo Benefício de Prestação Continuada - BPC, que remunera com um salário mínimo idosos e deficientes sem renda, mas com recursos do Ministério do Desenvolvimento Social. O discurso do déficit da Previdência no Brasil é desmontado por auditores fiscais e estudiosos da previdência que são unânimes em dizer que não há déficit, mas um superavit, oferecendo dados que confirmam essa realidade. Pode-se constatar essa afirmação consultando os balanços da seguridade social (MPS) que na tabela de Receitas e Despesas da Seguridade Social entre 2007 e 2009, deixa claro o referido superavit. É preciso saber que no Brasil, desde sua criação, o modelo adotado para financiamento da Previdência previa que esta seria financiada pelo Estado, empregador e empregados. O Estado não fez seu aporte até 1991 e por isso havia uma dívida da União com a previdência. O pagamento dessa dívida foi feito através das reduções dos benefícios, defasando as aposentadorias grandemente, cobrindo um percentual desse rombo e a outra parte da dívida do estado foi coberta com o aumento da contribuição das empresas, que passou a ser sobre o salário efetivo do empregado. Com todas essas novas contribuições há hoje um superavit na Previdência Social, mesmo financiando outras áreas, como sempre aconteceu. Esses dados nunca são apresentados pelos críticos e apologistas da crise da Previdência. Era preciso que se fizesse a análise,considerando esses dados, sem mascarar a realidade atual do sistema, culpabilizando apenas a questão demográfica pela responsabilidade do problema. As pautas mundiais sobre seguridade social são dadas pelo Banco Mundial, organismo da área econômica e não social, que recentemente propõe a pauta: “Conter a pobreza dos Velhos”, apontando que há uma massa muito grande que envelhece e não está ligada a nenhum programa social. Propõe a criação de um benefício mínimo que seja financiado pelo Estado, para garantir a sobrevivência dessa população.4 De fato estamos diante de um problema complexo, que deve encorajar medidas capazes de tornar viáveis as políticas de proteção, sem contudo desconsiderar realidades regionais e outras alternativas, como as cooperativas de trabalho, que agregam o trabalhador ao sistema da previdência. 3 Previdência Social Brasileira: um balanço da reforma. Marques, Rosa Maria, Batich, Mariana, Mendes, Áquila, São Paulo em Perspectiva, vol.17 n.1, São Paulo, Jan/Março 2003 4 Old Age Income Support in the 21st Century. Robert Holzmam, Richard Hinz. The World Bank. Washington, D.C. Esses muitos países que tomam medidas de corte de benefícios sociais, fazem cortes numa estrutura de proteção universal, com mínimos bastante distintos dos praticados no Brasil e em tantos outros países. Mesmo assim, é uma grande perda para cada cidadão. No Brasil, estamos vendo mudanças conjunturais em relação ao mercado formal de trabalho, com um crescimento das contribuições previdenciárias, o que não pode ser desconsiderado ao se analisar a questão. Além disso, passamos por um momento de janela demográfica de oportunidades, que deve nos impulsionar a aliar desenvolvimento econômico e desenvolvimento social, estabelecendo políticas sociais geradoras de melhores condições de vida para toda a população, aproveitando o bônus decorrente desse período. Sem minimizar o fenômeno demográfico do envelhecimento populacional é necessário fazer uma discussão mais abrangente sobre a questão, ao invés de desconsiderar as baixas aposentadorias e defender indiscriminadamente a manutenção do fator previdenciário. Temos tempo, recursos e uma grande dívida social que devem ser o termômetro para as decisões sobre a Previdência, sem transformar a longevidade, que foi uma conquista da humanidade, em um desastre, levando toda a sociedade a uma crise da proteção social. Maria Alice Nelli Machado São Paulo, novembro de 2010.