Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. A LÍNGUA BRASILEIRA: FUSÃO E FORMAÇÃO LINGÜÍSTICAS Dr. Sebastião Elias Milani (Professor Adjunto IV, UFG) RESUMO: O objeto aqui é a língua brasileira. A língua se individualiza como expressão de uma nação, não há como separar nação, povo e língua. Os valores válidos para descrição da nação passam pelo povo e somente podem ser compreendidos através da língua. No entanto, cabe ressaltar, quando se fala na ocupação lingüística de um território, que o sistema lingüístico que vai ali permanecer não é aquele transportado por aquele que chega (imigrante, invasor, conquistador, etc.) nem aquele do povo auctótone, mas uma fusão, tendo como base um ou outro. Logo, importa primeiro verificar qual sistema lingüístico é considerado veículo da cultura dominante, porque será esse que ocupará o espaço físico. Uma historiografia lingüística do Brasil contemplaria episódios importantes e muito variados. A presença indígena em grande número em 1500, o domínio da língua geral, as invasões holandesas e francesas da costa brasileira, o domínio inglês dos mares e do comércio no século XVIII, a importância da cultura francesa no século XIX. Ainda, a relusitanização do Rio de Janeiro quando da presença da corte portuguesa de Dom João VI, a renovação causada pela fala dos escravos durante quatro séculos. E, derradeiramente, durante o século XX, a vinda de homens e de culturas migrantes, italianos, japoneses, americanos e outros, em valores suficientes para reedificar os fonemas e ressignificar muitos signos. Assim, aprontou-se antropofagicamente a língua brasileira do samba, da macaxeira, do urucum, do arroz, do abajur, do tchau, da pizza, do futebol, da cerveja, do voleibol, do computador, do fusca, da rapadura e da cachaça. PONTOS E BASES CONCEITUAIS Foi porque nunca tivemos gramáticas, nem coleções de velhos vegetais. E nunca soubemos o que era urbano, suburbano, fronteiriço e continental. Preguiçosos no mapa-múndi do Brasil. Filiação. O contato com o Brasil Caraíba (Oswald de Andrade, manifesto Antropofágico, 1928). 1 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. As línguas sempre são um recorte de muitas influências, de tal modo que todas são misturas de muitas línguas e povos. Os povos migram de um lugar para outro na busca de novas formas de vida e sempre levam consigo seus hábitos, seus modos de vida, seu espírito nacional, no lugar que chegam passam pela operação de aculturação e inevitavelmente misturam seus seres com os de outros já presentes e instalados naquele lugar. A operação de entrar em um lugar é acima de tudo lingüística, porque antes de possuir a língua o indivíduo não pode pertencer ao grupo. É inevitável um esforço de desligamento do passado e um ligamento no presente, mas o ser humano não é livre para se desligar e se ligar à língua que quiser. Ele pode ligar e desligar a sintaxe e a morfologia, mas não desligará completamente a fonética de sua língua nativa e da cultura do passado, porque uma vez assimilada ela torna-se parte dele. A língua é composta pelo espírito do povo, que é manifestado no falar. Então, no falar do povo encontram-se a língua e a identidade nacional. Para que o falar do povo mude, é preciso que ocorram mudanças na identidade nacional. Ao tomar um exemplo, como as gírias, pode-se observar com precisão a atitude espiritual diferenciada de uma geração para outra. Dessa forma fica mais ou menos patente que as línguas se transformam por ciclos ou em períodos. Evidentemente, não há fronteiras exatas entre os períodos, mas se pode ver que uma atitude extremada, que caia no domínio comum, ou tende a desaparecer ou permanece como aceitável, às vezes se transformando em regra. As mudanças lingüísticas geralmente surgem de necessidades sociais: mudanças tecnológicas, manifestações culturais, meios de comunicação, etc. Elas ocorrem na língua nacional, que é, porém, a soma das línguas individuais, então, as mudanças ocorrem antes nos indivíduos. Por este prisma se pode medir com clareza a relação língua individual e língua nacional, bem como a importância da participação do indivíduo no todo. Mas a língua é o veículo por onde as mudanças sociais acontecem e são conhecidas. Qualquer manifestação que ocorra em um indivíduo ou grupo somente será possível se estiver prevista e latente na língua nacional. No momento em que ocorrer a primeira manifestação, a língua deixa de depender do indivíduo para a reprodução da manifestação, passando a levar até outros indivíduos a primeira produção e espalhando a novidade, ocasionando as mudanças culturais. 2 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. Quando se observa a evolução dos povos, percebe-se que as manifestações culturais da nação vão sendo assimiladas à medida e no tempo em que acontecem. Por isso, o desenvolvimento cultural e lingüístico acontece paulatinamente. Não se pode esquecer que cultura e civilização, neste caso, se referem a intelectualização do povo. É por isso que não se deve impor a uma língua selvagem o nível de civilização de uma língua universal. Não se está dizendo que não se possa fazê-lo, mas, ao se tentar manifestar um nível espiritual muito mais alto em uma língua desacostumada a extrapolar o universo de sua nação, acontecem manifestações estranhas e muito imprecisas. A tendência, nos contatos entre línguas desses níveis espirituais, é o desaparecimento da língua menos universal. Mesmo que se tente preservá-la, muito pouco poderá ser feito se não for preservada a unidade nacional do povo: o território, a cultura nacional, etc. A intelectualização e a civilização levam a uma humanização dos povos. Porém, no nível lingüístico, elas são como a língua: fruto do desenvolvimento do espírito nacional. Nenhum nível intelectual pode ser implantado em uma língua ou em um povo que não estejam preparados para recebê-lo, e, caso se tente, ou isso os destruirá ou então o espírito nacional imposto sofrerá avarias irreparáveis e o nível intelectual não alcançará êxito. A importância de se pensar os danos que a infiltração de uma civilização culta provoca em povos ainda com hábitos primitivos é a oportunidade de observar uma manifestação lingüística pura. E, se se pretende preservar as culturas nacionais desses povos, não se pode esquecer que a cultura tem como elemento básico e indispensável o território, nas condições em que se manifestou o espírito na origem. O fato da descrição fonológica de uma língua não se esgota no momento em que todos os fonemas e suas possibilidades de execução foram identificados. Dentro de um contexto lingüístico, para encontrar as possibilidades de estruturação da fala, é preciso verificar o conjunto sociolingüístico que a determina. De qualquer forma que se estude a organização lingüística faz-se necessário considerar a instância enunciativa, ela traz para o texto seus traços de origem comunitária, histórica e geográfica; ao lado disso, contribui com seus traços íntimos: migração, origem dos indivíduos, acesso à educação e aos meios de comunicação, etc., mas todos eles cooperam para que os discursos encontrem sua individualidade. 3 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. O pensamento é estruturado e não tem forma. A forma que o pensamento assume é do som articulado. Porém, entre o pensamento e o som articulado, energia psíquica e matéria bruta, devem existir o sistema da língua, com suas regras e valores culturais. O pensamento é sentimento, tal qual diz Humboldt energeia, e se constitui na possibilidade de um impulso psíquico-motoro transformá-lo em matéria bruta, do tipo que outros humanos possam perceber. Conteúdo e expressão se constituem num único elemento, formam uma unidade reconhecível na expressão, em que as formas da identidade social do falante são apresentadas: língua nacional, variante regional e local, classe social, nível intelectual, situação de discurso tensa ou distensa, idioleto, etc. Sempre é assim, do sistema da língua ao idioleto, a estrutura inteira, presentes e identificáveis a cada exercício discursivo. Num único ato de linguagem, ou em qualquer ato de linguagem, história do povo e do indivíduo e a geografia social, física e humana da região e da nação, estão presentes e discursam por si mesmas. Assim é que num conjunto de possibilidades lingüísticas paradigmáticas (fonemas e signos) um falante executa uma determinada forma na cadeia sintagmática (frase/texto). Isso de modo algum é aleatório naquele discurso. O falante de uma localidade produz, por razões diacrônicas, determinados fonemas ou alofones, habitualmente deriva palavras de outras distintamente de outras regiões e aplica significados a certos significantes ou significantes a certos significados que individualizam aquele discurso como regional, local, classial, profissional, etc. A distribuição geográfica de uma língua se realiza pelo conjunto de fatores que influenciam o manuseio da terra, a distribuição econômica, os interesses políticos. Esbarram nas características culturais de determinados grupos, na abundância de recursos em determinados setores, produz-se na onda histórica que enleva e distribui necessidades humanas. Quando se estuda a língua numa perspectiva do alcance de sua distribuição geográfica, é preciso em primeiro lugar determinar qual área é o objeto. A língua se individualiza como expressão de uma nação, não há como separar nação e língua, da mesma forma que não dá para separar povo e língua, ou povo e nação. Os valores válidos para a descrição da nação passam pelo povo e só podem ser compreendidos 4 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. através da língua. Isso já é lugar comum na lingüística desde o século XIX. No entanto, cabe ressaltar, quando se fala de ocupação lingüística de um território, que o sistema lingüístico que vai ali permanecer não é aquele transportado pelo que chega (imigrante, invasor, conquistador, etc.) nem aquele do povo autóctone, mas uma fusão, tendo um ou outro como base. Logo, importa primeiro verificar qual sistema lingüístico é considerado veículo da cultura dominante, porque será esse que ocupará o espaço físico. Se forem estudadas duas nações com línguas que tenham a mesma origem, por exemplo, as nações de língua portuguesa, não se pode dizer que elas têm a mesma língua-nacional. As línguas refletem o contexto em que estão inseridas: o conjunto de fatores socioculturais, socioeconômicos, geográfico históricos, etc., que varia muito de uma nação para outra, varia também dentro de uma mesma nação; varia, inclusive, de indivíduo para indivíduo, por mais próximas que sejam suas experiências de vida (MILANI, 1999). Quando se pensa num território como o Brasil, os exemplos se avolumam: considerando o marco histórico da descoberta em 1500, deve-se pensar na existência de línguas nesse território. Não é incomum se pensar nessa área física como vazia antes dos portugueses, mas a história da nação Brasil data de 1500; essa é a data histórica da língua portuguesa do Brasil: a história somente existe se for contada e somente pode ser contada numa língua. Outras conquistas foram tentadas nesse território, mas não aconteceram, ficaram perdidas na história contada em língua portuguesa do Brasil, porém, os locais dessas invasões trazem no linguajar do povo as cicatrizes desses acontecimentos, marcadamente nos nomes dos locais e nos nomes de coisas típicas, às vezes, nos traços distintivos de certos fonemas do falar. A territorialização de uma língua, marcada por fronteiras políticas, segue a onda dos interesses sociais prestigiados. Os grupos de maior poder dentro da nação se impõem como dominantes culturais. O poder perpassa por fatores econômicos, que determinam quem tem prestígio e o que pode ser prestigiado. É assim que imensas áreas são numa época ignoradas e em outras invadidas. As fases de ocupação de um território podem ser muitas, em muitas levas de pessoas, ou podem ser contínuas, orientadas por 5 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. uma atração exercida por um território. Aspectos como transportes, recursos agrícolas, investimentos sociais, tornam áreas desocupadas em áreas atraentes. No passado, as determinantes de ocupação territorial se fizeram por fuga da miséria, as doenças, etc., originadas da ausência de recursos nos locais de origem. O Brasil e os outros países da Américas receberam levas inteiras de imigrantes de todas as partes do mundo de pessoas que buscavam formas mais dignas de sobrevivência. Há de se observar que na atualidade existem movimentos, organizados, não por ocupação territorial, mas para ocupação de postos de trabalho, na direção contrária, saindo dos países americanos do sul para o bloco de países desenvolvidos. A causa dessas migrações está na mudança da concentração de recursos em setores produtivos diferentes: antes era o agrícola, atualmente é o industrial. É TUDO TÃO ANTIGO O indo-europeu é uma língua hipotética, da qual as línguas modernas flexionais se originaram. Essa história ficou conhecida não faz muito tempo, data do início do século XIX. Na verdade, o que se costuma chamar de a “descoberta do sânscrito” aconteceu oficialmente no ano de 1789, ano em que o inglês William Jones, vice-rei da coroa inglesa para as Índias, publicou traduções para sua língua natal de textos dos livros sagrados do bramanismo/ hinduísmo. O latim, o grego e o germano já eram de muito tempo conhecidos como línguas originadas de um mesmo tronco lingüístico, mas elas estavam num mesmo continente, os povos eram parecidos e estavam sempre se misturando, não havia como regredir, a partir delas somente, a um passado mais distante. O sânscrito seria a prova concreta de um passado comum, desconhecido ainda, para os povos europeus. O sânscrito era o idioma de um povo que residia do outro lado do mundo, e as provas, que valiam para as ligações entre latim, grego e germano, não valiam para ele. O sucesso que o sânscrito faria na Europa não está ligado somente ao fato de concretizar as perspectivas dos filósofos da linguagem a propósito do indo-europeu, a cultura em língua sânscrita era demais atraente para os povos oprimidos do Ocidente. O Hinduísmo pregava a suavidade e a mansidão, acreditava na vida pós-morte. O valor que os europeus desejavam para o ser humano, na cultura indiana era evidente. Os 6 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. deuses indianos emanavam de um deus criador, e o poder dele era absoluto e eterno, tal qual o Deus cristão; porém, diferente do Deus cristão, não atirava o pecador ao fogo eterno do inferno e dava a ele a possibilidade de se redimir pelo resgate de seus erros reencarnando quantas vezes fossem necessárias, até que alcançasse a perfeição. O espalhamento que teria determinado o nascimento das línguas antigas a partir da fonte indo-europeu poderia ser aplicado às línguas neolatinas ou às germânicas, etc. O processo de diversificação das línguas sobre o planeta foi sempre igual, e pode ser descrito como um processo de busca pelo desconhecido, mas, sobretudo, pela atração que novas fontes de riqueza e poder exercem sobre os seres humanos. O processo não se reduz à ocupação das terras pelo invasor, quando se trata de língua, mas da disputa cultural que se instala a partir da decisão de o invasor se tornar residente. Não se justificaria discutir qualquer outra hipótese, já que o que se discuti nesse texto é justamente a formação da língua brasileira, e o território onde é o Brasil, estava ocupado quando da chegada da língua portuguesa. A ocupação do território da Península Ibérica pelos romanos é então outro caso de espalhamento de uma língua sobre um território, nesse caso, o exemplo serve como modelo de exploração dos recursos da terra e extermínio da população autóctone para explicar o domínio indiscutível que o latim veio a ter naquelas terras. O português sofreu resistência na terra dos índios tupi e tupinambás, tanto que em princípio uma língua intermediária, do tipo geral, teria se formado, tendo essas línguas indígenas como base, isso enquanto a maioria da população era indígena e não fosse possível confrontar as vantagens de todos os tipos que esses povos ofereciam. Certo dia o poder estava muito maior do lado do homem português, e a língua geral foi sufocada pela maioria portuguesa, mas maioria não é todos, e todos contam na organização da língua, porque é do pensamento dos falantes que surge a língua, todos contribuem para ela, por isso o que ficou não foi a língua portuguesa nem a língua geral, mas a proto língua brasileira, a massa lingüística inicial, a mistura de “Jesus” com “Tupã”, em que os senhores de Jesus, tomavam, conquistavam, escravizavam e, do resto, poucos fugiam, e os outros eram mortos. Mas para a língua, somente morre quem morre ou foge, quem fica tem seu espaço garantido, por isso Tupã não morreu, botou um canto sabiá nos sons da língua portuguesa e um penacho no chapéu português. 7 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. Papo furado à parte, porque permanece para serem explicadas quais foram as contribuições fonéticas dessas línguas indígenas para a língua falada no Brasil. Pode-se especular com se faz muito, empiricamente sabe-se que os sons retroflexos e os nasais eram abundantes nessas línguas e nas milhares de línguas indígenas que o Brasil tinha em 1500. No léxico da língua do Brasil têm muitas palavras, um número capaz de encher dicionários, esses são objetos concretos, mais palpáveis, por isso seria fácil fazer uma lista deles, não vem ao caso aqui, mas os compêndios de toponímia indígena publicados podem dar uma idéia a quem quiser verificar. A massa lingüística para o português fazer o pãozinho francês dos brasileiros estava misturada. Desse ponto em diante, a partir desse processo de distanciamento do espírito nacional brasileiro de qualquer outro, inclusive das outras nações colônia de língua portuguesa. Não se está querendo fazer aqui apologia a um isolamento lingüístico do Brasil, mas se defende sim o entendimento, já muito avançado em língua inglesa, da língua portuguesa como arqui-sistema. O que deve ser observado é que as variantes lingüísticas internas as nações seguem seu curso de mudanças, independente da vontade política ou do desejo de unificação. Não há meio imposto que consiga fazer a língua retroceder a estágios anteriores ou que faça com que ela pare, mesmo que seja ele assentado na base cientifica mais sólida: o falante manifesta sua vontade cultural segundo seu mundo cultural, historiográfico lingüístico, o faz manifestar. Destacam-se no horizonte diacrônico da língua falada no Brasil as invasões francesas e holandesas no Nordeste, centradas respectivamente em São Luís do Maranhão e Recife no Pernambuco. O Nordeste como cada uma das regiões do imenso território do Brasil esteve sempre sob interferências singulares, claro que se deve atentar para o fato de ser o Nordeste um território de grandes proporções, e a comunicação entre essas partes durante muitos séculos demandava muito esforço, fala-se aqui, sobretudo, das distâncias. Fato fonético é que os falares nordestinos têm uma preferência marcante por fonemas vocálicos médios baixos, as chamadas vogais abertas, enquanto nas outras regiões do Brasil tal incidência não ocorre. Muitas partes dessa enorme parte do Brasil permaneceram, por muito tempo, quase isoladas, acontecendo pouquíssimo contato lingüístico de seus habitantes com outros falares, daí uma clara forma conservada, de traços de uma língua portuguesa 8 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. muito antiga, que muitos teóricos insistem em chamar de arcaísmos, mas que na verdade são formações de vários níveis de análise lingüística que sofreram poucas mudanças. Não houve resistência daqueles falantes a formas inovadoras, não existiu uma opção pelo antigo, mas a conservação da cultura e da língua como em tempos da colonização portuguesa. Esses traços não fazem daqueles falares locais formas mais próximas da língua de outras nações lusófonas, mas as identificam como únicas e como contribuintes para a língua brasileira nas peculiaridades fonéticas do /t/ e do /d/ sempre dental, das formas ditongadas ainda perfeitas, quando a monotongação de ei e ou é corrente nos outros falares brasileiros, na conservação quase perfeita do uso das formas do modo imperativo na fala, enquanto que completamente desaparecido nos outros falares. No Sul do Brasil, fato notório é o caso da Serra Gaúcha, onde a alta incidência de italianos, migrantes no final do século XIX, fez as vogais de final de palavras do português que marcam gênero e que são fonemas centralizados, permanecerem pronunciadas sem as centralizações. As centralizações /I/ fazem o /t/ e o /d/ tornarem-se africados, mas nesse falar isso não acontece, além disso, a pronuncia desses brasileiros ganhou toque da musicalidade típica da língua dos imigrantes italianos, gerando um jeito inconfundível de falar. Em São Paulo, o elemento da nasalidade típica da língua portuguesa foi misturado à negação da nasalidade da língua italiana dos imigrantes, o resultado são fonemas consonantais nasais extremamente marcados. No Rio de Janeiro, a vinda de Dom João VI, no início do século XIX, fez com que a língua falada ali sofresse uma reaproximação com a língua falada em Portugal na época, assim, a fala do carioca apresenta traços de fricativos que nenhuma variante da língua brasileira apresenta. São muitas as histórias que poderiam ser contadas, também são muitos acontecimentos poderiam ser juntados para identificar o jeito do espírito nacional brasileiro presente nas línguas dos brasileiros. Mais cedo ou mais tarde, inevitavelmente, os lingüistas terão de reconhecer aquilo que os Comparatistas explicaram, como exemplo cita-se Wilhelm von Humboldt, que a identidade nacional é a única que não pode ser negada pelo ser humano, porque a língua nacional molda nos ossos da face o formato de seus fonemas e no pensamento fecunda o espírito da nação. 9 Língua portuguesa: ultrapassar fronteiras, juntar culturas (Eds.) Mª João Marçalo & Mª Célia Lima-Hernandes, Elisa Esteves, Mª do Céu Fonseca, Olga Gonçalves, Ana LuísaVilela, Ana Alexandra Silva © Copyright 2010 by Universidade de Évora ISBN: 978-972-99292-4-3 SLG 28 – Ocupação territorial e variação linguística. Se língua e nação não podem se separar, porque a língua é o armazém cultural da nação, então a cultura de uma nação só pode ser expressa na língua daquela nação, porque antes de qualquer identidade cultural está a identidade fonético-cultural, fala-se aqui da língua falada pelo povo brasileiro, da identidade e da cultura brasileiras. Antes de mais nada, deve-se reconhecer as diferenças e acima de tudo aceitá-las: ao ser diferente, não se pode negar a individualidade, então, aqui, interessou falar das individualidades da língua brasileira enquanto armazém da cultura e do espírito nacional brasileiro. REFERÊNCIAS HUMBOLDT, Wilhelm Karl von. Sobre la diversidad de la estrutura del lenguaje humano y su influencia sobre el desarrollo espiritual de la humanidad. Barcelona, Anthropos, 1990, 1ª. ed. Traducción y prólogo de Ana Agud. --------- Sobre el origen de las formas gramaticales y sobre su influencia en el desarrollo de las ideas - Carta a M. Abel Rémusat sobre la naturaleza de las formas gramaticales en general y sobre el genio de la lengua china en particular. Barcelona, Anagrama, 1972. Traducción de Carmen Artal. --------- De l'origine des formes grammaticales et de leur influence sur le développement des idées. Paris, A. Franck, 1859. Traduction de Alfred Tonnellé. --------- Escritos políticos. México, 1943. Traducción de Wenceslao Roces. MILANI, Sebastião Elias. As idéias lingüísticas de Wilhelm von Humboldt. FFLCH/ USP, São Paulo, 1994. Dissertação de Mestrado/www.letras.ufg.br/imago. --------- Humboldt, Whitney e Saussure: Romantismo e Cientificismo-Simbolismo na história da lingüística. São Paulo/USP, 2000. Tese de Doutoramento/ www.letras.ufg.br/imago. 10