Vida Nova pós-FIDCs
Fundos de recebíveis mudam o padrão de transparência das empresas
cedentes dos créditos, estimulam a revisão de processos e estreitam
relacionamento com o mercado de capitais
Por Soraia Duarte
* Matéria cedida pela Revista Capital Aberto, edição de fevereiro/2005. Informações
sobre a publicação podem ser obtidas no site www.revistacapitalaberto.com.br.
O que fazer para uma empresa endividada, há anos consecutivos no
vermelho, conseguir encher os olhos de investidores? A pergunta foi
lançada aos executivos da Gradiente no final do ano 2000, momento em
que a companhia dava início a um grande processo de reestruturação. A
resposta, conta Gustavo Junqueira, que chegou à companhia em 2001
para assumir a gerência financeira, foi o lançamento de um Fundo de
Investimento em Direitos Creditórios (FIDC). “Foi o primeiro passo para
melhorarmos a imagem da companhia perante o mercado”, afirma.
Segundo Junqueira, o fundo contribuiu para que a companhia fechasse
2004 com um passivo inferior a US$ 50 milhões. Em 2000, esse número
alcançava US$ 230 milhões. Ajuda ainda maior foi dada pela carteira de
recebíveis da empresa, carimbada com um festejado “AA” da Standard
& Poor’s. “Com essa nota, podemos dizer que, hoje, a Gradiente vende
R$ 1,2 bilhão por ano para clientes AA”, diz Junqueira. “O investidor vai
enxergar a empresa como um ativo importante para ter em seu
portfólio”, acredita. O final da história também já está previsto nos
planos da Gradiente, que hoje possui ações ordinárias e preferenciais
listadas na bolsa paulista. Será em 2006 e culminará com a adesão a
um dos níveis diferenciados de governança da Bovespa.
A fabricante de eletroeletrônicos é reveladora de como os FIDCs estão
mudando a vida das companhias que aderem a esta nova forma de
captação. Inclusive de empresas de capital fechado, que encontram no
fundo um veículo para captar recursos junto a investidores e, ao mesmo
tempo, se deparam com a exigência de uma postura nova frente ao
mercado, pautada por mais transparência e disposição da administração
para prestar contas sobre suas decisões.
Roadshows, atendimento a analistas, detalhamento de estratégias e
outras rotinas tão comuns para as companhias abertas mais atuantes
agora invadem o dia-a-dia de empresas que até então se viam
dispensadas dessas obrigações. “É o primeiro degrau para acessar o
mercado de capitais”, avalia Antônio Hermann, sócio da consultoria
Integral Trust, responsável pela estruturação de 17 FIDCs.
“Os
preparativos para a operação fazem com que a companhia absorva
processos mais sofisticados”.
A capacidade de abrir informações é um dos pontos destacados por
Jayme Bartling, diretor da área de estruturação da Fitch Ratings no
Brasil. “A maioria das empresas que vêm cedendo seus recebíveis não
tinha relação com o mercado de capitais”, explica. “Por isso, é
importante que essa aproximação se dê por meio de uma política de
transparência.”
O caso da Gradiente, ainda que relacionado a uma companhia já aberta,
é emblemático. É claro que, até ser tomada a decisão de lançamento de
um FIDC, outras ações foram implementadas para pôr a casa em
ordem. A arrumação começou pela reestruturação operacional,
passando pela organizacional e a financeira. Nesta última, decidiu-se
pelo alongamento de prazos e a adoção de novos mecanismos de
captação – momento em que o FIDC caiu como uma luva. “Passamos a
captar com custos menores”, afirma Junqueira, ao explicar que a
remuneração de referência do FIDC está vinculada à variação do
Certificado de Depósito Interbancário (CDI), acrescida de 2%. “Menor
do que o empréstimo bancário”, afirma.
Revisão de processos
Os preparativos para lançamento do FIDC da Gradiente passaram
também pela implementação de novos – e melhores – processos de
gestão. A começar pela carteira de clientes. A partir da estruturação do
fundo, nenhum deles passou a responder por mais de 10% da carteira.
Regra que não ficou restrita apenas aos recebíveis que seriam
transferidos ao fundo, mas a todo o “contas a receber” da companhia.
“Houve uma reformulação da nossa política de crédito”, conta Junqueira.
Outra mudança ocorreu no relacionamento com o cliente. Como os
recebíveis estão, agora, atrelados a um fundo, foi preciso restringir a
flexibilidade de negociação, prática sempre usual no mercado.
Liberdade para negociação, aliás, é um capítulo à parte na vida das
companhias pós-FIDCs. Mauro Sérgio de Oliveira, sócio da Oliveira Trust
DTVM, administradora de sete FIDCs, lembra a história de uma empresa
cujo departamento comercial, por falta de informação, estendeu o prazo
de pagamento para um de seus clientes. No fundo de recebíveis, a
renegociação de dívida virou inadimplência e elevou a sazonalidade dos
atrasos, que passou de 3% a 4% da carteira para 6%. “A perda da
liberdade de renegociar prazos com clientes é um ponto sensível”,
destaca Oliveira, que preferiu preservar o nome do cliente que passou
pela experiência. “Por isso é importante que o pessoal da área comercial
participe da estruturação do fundo”, recomenda. A revisão de
procedimentos internos é outro ponto vital para a empresa que decide
lançar um FIDC. “A estruturação obriga que a companhia reveja seus
processos, desde a tesouraria até a área de sistemas e o faturamento”,
destaca Hermann, da Integral Trust.
A Omni Financeira, especializada em crédito direto ao consumidor de
baixa renda para financiamento de veículos usados, foi pioneira ao
lançar, em 2003, cotas de FIDC para negociação em mercado de balcão
organizado. Por tratar-se de uma financeira de pequeno porte, teve de
destacar – e treinar - uma equipe para trabalhar com o produto.
Além de incorporar um novo vocabulário, e ter as manhãs das sextasfeiras ocupadas, durante seis meses, para reuniões de estruturação do
fundo, precisou criar uma nova metodologia de concessão de crédito e
aplicá-la a toda a carteira, conta Tadeu da Silva, diretor de estratégia da
Omni. “Abrir os números a uma auditoria externa também serviu como
balizador de nossas atividades”, avalia o executivo.
Outro ponto positivo foi a maior exposição ao mercado, que
proporcionou uma resposta sobre o modelo de negócio, e a convivência
com as empresas que a assessoraram no processo – estruturador,
administrador e agências de rating –, que ajudaram a rever estratégias
e a melhorar a equipe.
Para uma financeira, conseguir financiar-se com seus recebíveis foi uma
tática “vencedora”, segundo Silva. Tanto que a Omni não se deu por
satisfeita com o FIDC emitido em 2003, de R$ 80 milhões e, em janeiro,
lançou um segundo fundo, no valor de R$ 130 milhões, com
características semelhantes às do primeiro. Os FIDC responderão por
20% dos recursos que a empresa irá precisar neste ano. O restante virá
de outras fontes, como os empréstimos bancários.
No Banco Bonsucesso, focado em crédito consignado em folha de
pagamento com sede em Belo Horizonte, a captação via FIDCs também
foi motivo de comemoração. “Para um banco pequeno e pouco
conhecido, abrir as portas ao mercado de capitais foi um desafio”, avalia
Jorge Lipiani, diretor de captação da instituição. A operação recebeu o
rating “AAA” outorgado pela Moody’s que, na opinião de Lipiani, motivou
a demanda excedente de 120% na primeira colocação.
O caso do Bonsucesso ilustra bem um dos aspectos mais glamourosos
de um FIDC. Ao centrar as atenções do mercado na carteira de
recebíveis e não no desempenho do emissor, o FIDC permite
classificações de risco que jamais poderiam ser atingidas se o próprio
emissor estivesse sendo avaliado diretamente. A nota concedida pela
Moody´s ao banco mineiro, por exemplo, se equipara ao rating do
Bradesco, maior banco de varejo do País. O Bonsucesso captou um total
de R$ 50 milhões com o FIDC, após dois roadshows, um em São Paulo e
outro em Belo Horizonte. Mais três tranches do mesmo valor estão
previstas para este ano.
Até as multinacionais estão passando pela experiência de ceder seus
recebíveis a um FIDC. Em 2003, a brasileira Caterpillar Financial, com o
aval da matriz norte-americana, lançou um fundo com patrimônio
líquido de R$ 23,8 milhões. No alvo da Caterpillar, além dos recursos, é
claro, estavam os benefícios que os FIDCs trariam para as suas
operações. Um dos objetivos era otimizar a comunicação entre a fábrica
e a financeira. “Hoje, contamos com um controle mais apurado da
informação”, destaca Hector Bergos, gerente de projetos da Caterpillar
Financial.
Para se ter uma idéia, os pedidos da fábrica para a financeira
demoravam, antes, três dias para ser atendidos. Com o sistema de
controle de recebíveis, a análise de liberação de recursos passou a
ocorrer em questão de horas. “Tem sido um processo contínuo de
amadurecimento e aprimoramento”, destaca. Com os resultados, a
companhia pretende estender as melhorias desencadeadas pelo fundo
de recebíveis a outros setores, vislumbrando, inclusive, o lançamento de
novos FIDC, desta vez com lastro nas exportações e em créditos contra
outros fornecedores.
Estratégia de longo prazo
Dotados de vantagens que vão desde o financiamento da companhia ao
aprimoramento de seus processos de gestão, passando por uma
exposição maior na mídia e o contato com investidores, os FIDCs
começam a cair nas graças das pequenas e médias empresas e, até
mesmo, a ocupar um papel mais estratégico nos seus planos de
negócios. Para elas, contudo, cabe um alerta. “A empresa de pequeno e
médio porte que quiser acessar o mercado de capitais por meio da
securitização precisa começar hoje”, diz o responsável pelo
desenvolvimento de produtos do Banco Pactual, Paulo Cunha. “A
carteira de recebíveis precisa ter, pelo menos, uns três anos de fluxo
estável”.
Os custos para o lançamento de um FIDC ainda são um problema,
principalmente para as empresas menores. Mas a expectativa é que os
valores se reduzam com o tempo, conforme aumente o número de
empresas prestadoras de serviços que atuam neste mercado. Quando o
primeiro FIDC – o da Omni – foi lançado, havia apenas um custodiante
trabalhando com esse tipo de ativo. Hoje, já são cinco, o que fez o custo
cair de 10% a 15%, segundo Hermann, da Integral Trust. Somando
todas as outras etapas, desde a estruturação, a análise de rating, a
assessoria jurídica, de cobrança e custódia, o custo de um FIDC é, hoje,
50% menor que em 2003. Com a evolução das operações, a tendência é
que os preços continuem a cair.
Outra perspectiva que segue o crescimento deste mercado é a redução
no volume das emissões. A previsão é que se chegue a operações de R$
10 milhões – até agora, elas não saíram abaixo de R$ 50 milhões. São
esperadas também operações que agrupem dezenas de pequenas e
médias empresas. Um exemplo é o fundo que está sendo estruturado
pelo Pactual, em parceira com o Sindipeças e a Associação Brasileira da
Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee). O FIDC será formado pelos
recebíveis de 20 fornecedores de pequeno e médio porte, que atendem
cerca de dez companhias dos segmentos de autopeças e
eletroeletrônicos.
Os números recentes também são sinalizadores da evolução dos FIDCs.
Há um ano, a Comissão de Valores Mobiliários (CVM) contabilizava o
registro de cerca de 20 fundos. Em janeiro último, eram 51. O mercado
secundário também vem mostrando algum movimento. Em 2004,
primeiro ano de negociação desses ativos no BovespaFix e no SomaFix,
mercados de dívida corporativa da bolsa paulista, as cotas de fundos de
recebíveis movimentaram mais de R$ 420 milhões.
Aos poucos, os FIDCs começam a disseminar novos hábitos entre as
empresas brasileiras. E a plantar uma semente para que, no futuro, já
mais crescidas, elas continuem a se financiar através do mercado de
capitais. Até lá, quem sabe, com emissões maiores e, por que não, com
lançamentos de ações. É o mercado de capitais incentivando as
companhias a contar com ele, desde o começo.
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