Agradeço a todos a vossa presença nesta data histórica para a classe notarial
portuguesa: trata-se da primeira vez, após a reforma do Notariado que teve lugar em
2004, e terminado o período de transição do regime de notário funcionário público para
notário oficial público mas em regime de profissão liberal, que se abre a época de
estágio para candidatos a notários.
Tenho a honra e o privilégio de ser o Bastonário da ordem dos notários nesta
data de enorme simbolismo para todos os notários e dar as boas vindas a este grupo de
77 estagiários de onde sairão os futuros notários de Portugal e que após a obtenção do
título, que não será fácil sem muito trabalho e dedicação, se juntarão aos restantes 368
profissionais, que desempenham um papel fundamental para a vida económica do país e
para a paz social que se deseja.
Quem me escutou há cerca de um ano na cerimónia da nossa tomada de posse,
ou teve a oportunidade de ler o meu discurso que foi publicado no site da Ordem, deve
estar a recordar-se de muitas destas palavras que propositadamente me encontro aqui
hoje a repetir. Quero sublinhar que nesta data e até mais convicto do que há um ano,
fruto do persistente, dinâmico e sério trabalho que todos os notários continuam a
desenvolver, também graças ao entusiasmo e ao número de candidatos que temos na
plateia, volto a repetir o que já disse: temos plena confiança na revitalização da nossa
profissão e temos a certeza de um futuro que, embora muito difícil, será alicerçado na
união e no envolvimento de todos os colegas, e este estágio é a prova cabal disso
mesmo.
CAROS ESTAGIÁRIOS,
O Notariado é uma das mais velhas instituições de Portugal. Há quem diga
mesmo que é anterior à fundação da nacionalidade. Mas seguindo o ensinamento de
Bernardo de Sá Nogueira, doutorado nesta Universidade de Lisboa, com uma tese
histórica sobre o notariado: “Tabelionado e Instrumento Público em Portugal: Génese e
Implantação” (1212-1279), podemos dizer que o notariado público moderno apoiado no
instrumento público, surgiu em Portugal após 1214 (reinado de D. Afonso II). É
verdade que o marco cronológico do início do Tabelionado em Portugal pode situar-se
entre 1212-1214 pois alguns tabeliães ajuramentados movimentavam-se já na órbita da
corte Afonsina. Efetivamente, 1212 é o ano da noticia sobre a existência do primeiro
tabelião (Martim Martins, de Guimarães). Contudo, o primeiro documento tabeliónico
data de 1214, feito por Mendo Eanes, tabelião de Santarém e foi uma carta de venda.
Assim, 2014, no ano em que os Srs Estagiários se apresentarão a provas
públicas para serem notários, esta instituição fará 800 anos de História, e nós cá
estaremos para festejar tudo isso.
E sabem que o notário ou tabelião sempre foi um oficial público?
Assim era efetivamente, os reis utilizavam os tabeliães como parte integrante
da afirmação do seu poder (poder público, poder do rei) sobre os poderes privados
(senhorios e os clérigos).
E o Brasil ainda nem tinha sido descoberto. Quando em 22 de Abril de 1500, a
frota de Pedro Álvares Cabral chegou a uma terra nunca antes conhecida por um
europeu foi um escrivão, Pêro Vaz de Caminha, que se dirigiu ao rei D Manuel I,
anunciando por carta terem descoberto uma nova terra. O Brasil surgiu para o mundo
com um ato de notário, a verdadeira certidão de nascimento daquele formidável país.
Em matéria legislativa, destaco um marco dos mais importantes nesta
evolução histórica para que percebam o que muitos não sabem ou não querem entender.
Em 23 de Dezembro de 1899, surge a primeira Lei orgânica do Notariado
português. Nela os notários aparecem como magistrados de jurisdição voluntária que só
podiam ser nomeados entre os bacharéis formados em direito e a sua atividade era
controlada pelo Conselho do Notariado. Este órgão era composto pelo presidente do
Tribunal da Relação de Lisboa, por dois juízes nomeados pelo governo e por dois
notários eleitos pelos seus pares. Ora, esta composição e constituição do Conselho
Superior do Notariado exprimiu de forma inequívoca a autonomia da função notarial
perante as funções judiciais e administrativas.
Após isso, e num processo de vários anos que teve lugar sobretudo a partir de
1923 a função notarial foi progressivamente funcionarizada e os notários tornaram-se
funcionários públicos desde 1945 até 15 de Fevereiro de 2005.
MINHAS SENHORAS E MEUS SENHORES,
CAROS ESTAGIÁRIOS,
Agora vou deixar a história de lado mas tenho de fazer aqui uma breve
reflexão sobre o notariado e o funcionalismo público.
Para alguns, felizmente poucos, conceitos como a fé pública, oficial público ou
notariado enquanto função pública confundem-se com funcionalismo público, como se
fosse necessário ser-se funcionário da administração pública, inserido hierarquicamente
na administração direta ou indireta do Estado, para se poder exercer a função notarial.
Permitam-me citar uma professora de Coimbra, que por sinal também é
membro do atual Conselho do Notariado, a Dra Mónica Jardim:
“ deve entender-se que a função de tal oficial público é de exercício privado,
uma vez que nela vão indissociavelmente ligados aspetos de interesse privado que não
compete a um estado de Direito Democrático assumir ou tutelar. Isto porque em causa
estão relações privadas, dos particulares entre si, não uma qualquer relação indivíduo
Estado.
Ou seja, interesses somente privados que os respetivos sujeitos particulares
dispõem ou regulamentam como entendem, exercendo a autonomia privada.
Ora, como se sabe, um Estado de Direito Democrático não tem legitimidade
para intervir na harmonização ou composição de tais interesses, estando, ao invés,
obrigado a respeitar as disposições dos respetivos titulares.
Na verdade, um Estado de Direito Democrático tem apenas o dever de se
assegurar que tais funções sejam desempenhadas por profissionais cientifica e
moralmente qualificados e independentes que gozem da confiança dos particulares e
que estes possam livremente escolher.
O notário, enquanto operador jurídico, da Lei e da vontade das partes, tem de
ser completamente independente no exercício da sua função, autónomo e responsável,
não subordinado, devendo apenas à lei e à vontade das partes.
Em resumo, a funcionarização não é compatível com o notariado latino. É um
mal próprio dos povos desprovidos de liberdade”.
MINHAS SENHORAS E MEUS SENHORES,
CAROS ESTAGIÁRIOS,
Como já sabemos, com o Decreto-Lei n.º 26/2004, de 4 de Fevereiro, teve
lugar a “privatização” – ou mais acertadamente: a “desfuncionarização” do notariado
em Portugal.
Do preâmbulo deste diploma, que aprovou o Estatuto do Notariado, retiramos
as seguintes notas fundamentais que mais não fazem que consagrar em Portugal as
regras e os princípios que caracterizam o notariado do tipo latino ou continental: trata-se
da “primeira vez que no nosso país uma profissão muda completamente o seu estatuto,
passando do regime de função pública para o regime de profissão liberal; a nova figura
de notário “reveste uma dupla condição, a de oficial, enquanto depositário de fé pública
delegada pelo Estado, e a de profissional liberal, que exerce a sua atividade num quadro
independente”, ficando, pois, o notário, a exercer uma profissão liberal e,
simultaneamente, com “prerrogativas que o farão participar da autoridade pública”.
Na sua condição de oficial público o notário confere autenticidade aos
documentos, que adquirem por isso uma especial força probatória, e assegura o seu
arquivamento, competindo-lhe conservar os que por lei devam ficar no arquivo notarial
e os que lhe forem apresentados pelos interessados para esse fim. A vertente pública da
sua função está sempre presente e por isso este profissional atua na dependência do
Ministério da Justiça em tudo o que diga respeito à fiscalização e à disciplina.
Já na sua condição de profissional liberal ele é um jurista independente,
imparcial, escolhido livremente pelas partes, competindo à respectiva Ordem a
sindicância, em termos deontológicos, da sua atuação.
A natureza pública e privada da função notarial é incindível e em Portugal existe
uma classe única de notários.
Como princípios fundamentais, e para que não se esquecesse as especiais
prerrogativas de autoridade pública deste profissional que como prerrogativa tem direito
de usar o selo branco, o legislador consagrou o numerus clausus, a delimitação
territorial da função, o exercício exclusivo da atividade, a autonomia e a imparcialidade.
Imparcialidade, porque o notário tem a obrigação de manter a equidistância
relativamente a interesses particulares susceptíveis de conflituar, abstendo-se,
designadamente, de assessorar apenas um dos interessados num negócio.
Autonomia, porque o notário exerce as suas funções com independência, quer
em relação ao Estado quer a quaisquer interesses particulares.
Exclusividade, porque as suas funções são incompatíveis com quaisquer outras
funções remuneradas, públicas ou privadas, com as excepções previstas por lei.
A referida reforma consagrou também outros dois princípios fundamentais para
a atividade notarial: o numerus clausus e a delimitação territorial da função. Em
Portugal, tal como na generalidade dos países da União Europeia, não é notário quem
quer, nem onde quer, cabendo ao Governo fixar o número de notários e a sua
localização.
Dos princípios expostos, que alicerçam os aspectos fundamentais da atividade
notarial, conclui-se que esta se distingue de uma comum profissão liberal e se aproxima,
indiscutivelmente, de uma função pública.
MINHAS SENHORAS E MEUS SENHORES,
CAROS ESTAGIÁRIOS,
Todos sabemos, ou deveríamos saber, que o nosso sistema de direito civil é o
romano – germânico. Já nem todos saberão que também o é em 21 dos 27 países da
União Europeia. Muito menos que este sistema abrange 2/3 da população mundial. Que
existe em 13 dos 20 países do G-20. Em 7 dos 10 países com maior rendimento per
capita do mundo. Ou, ainda, que inclui a própria China e que nos últimos 10 anos
tomaram posse cerca de 20 000 novos notários (latinos) neste país.
Todos sabemos, ou deveríamos saber, que neste sistema de direito civil o
Notário (latino) não é um mero prestador de serviços que se possa encaixar, sem mais,
na pura lógica de Mercado, como se um vulgar profissional liberal se tratasse.
O notário, a quem foram delegados poderes de autoridade pública, elabora e
redige os documentos de acordo com a vontade dos interessados mas também conforme
com a lei e aos quais é conferida fé pública.
Nessa medida, a força executiva das obrigações resultantes desses documentos
autênticos advém diretamente desse instrumento sem necessidade de confirmação
judicial.
Assim, os elementos caracterizadores dos documentos autênticos
– a sua
fiabilidade e a fé pública que deles emana – garantem a segurança e a certeza jurídica
nas respectivas transações para as partes envolvidas e para o comércio jurídico em geral.
Por outro lado, este procedimento de autenticação permite assegurar a proteção
de todos os consumidores, cidadãos e empresas, previne os litígios e contribui para
pacificação de todas as relações sociais.
Ora, forçoso é concluir que esta missão do Notário está, portanto, forçosamente
baseada e requer o estatuto de oficial público, estatuto este que implica o cumprimento
de extensos deveres profissionais e a fiscalização direta de uma autoridade pública,
como estabelecido e consagrado no seu estatuto profissional.
É, igualmente, por virtude desta qualidade de oficiais públicos que detêm, que os
Notários estão sujeitos a regras e procedimentos específicos de acesso à função notarial
e aquisição do título de notário, bem como de atribuição de licença para instalação de
Cartório.
Na verdade, no quadro de privatização operada, a índole liberal atribuída à
organização da profissão, não pôs em causa a qualidade de oficial público do Notário e
as prerrogativas de autoridade pública que detém não são meramente acessórias ou
marginais.
O referido estatuto de oficial público, o regime de numerus clausus e da
competência territorial, os princípios da atividade notarial, tais como, o princípio da
legalidade, da imparcialidade e da exclusividade (que aliás decorre do modelo judicial),
o seu regime de incompatibilidades e impedimentos, bem como a tomada de posse
mediante juramento perante o Ministro da Justiça e o Bastonário da Ordem dos
Notários, como condição legalmente consagrada para o início da atividade – são
consequências jurídicas evidentes do exercício da autoridade pública por parte dos
Notários.
Por fim, confirmando tudo o quanto se expôs, ressaltamos que se encontra já
para promulgação e posterior publicação, a Lei que atribui aos Notários a competência
para o processamento do processo de Inventário.
Estes processos que, em regra se destinam a pôr termo à comunhão hereditária
ou conjugal, nos casos em que não há acordo para o efeito, vão sair da alçada dos
tribunais e passarão a ser tramitados nos cartórios notariais, precisamente porque o
legislador português entende que os notários exercem poderes públicos, como uma
atividade quase judicial ou “parajudicial”, de apoio e de suporte à atividade judiciária.
Salvo melhor opinião, parece-nos indiscutível que o notário em Portugal
participa direta e especificamente na autoridade pública.
CAROS ESTAGIÁRIOS,
Vivemos um momento histórico dos mais difíceis e indefinidos da nossa
história democrática a que não escapa o notariado português.
Os Srs estagiários que trabalharem, que estudarem e se aplicarem conseguirão
obter o título de notário e assim exercer esta nobre profissão em Portugal.
No decurso deste período de estágio o Estatuto do Notariado e Estatuto da
Ordem dos Notários vão ser modificados. No final do processo legislativo que já se
iniciou, para a necessária adaptação dos mencionados Estatutos à Lei 2/2013, de 10 de
Janeiro - Lei das Associações Públicas profissionais, temos esperança de obtermos a
roupagem legislativa adequada e necessária para o bom desempenho das funções
notariais nos anos vindouros.
Termino agora como há um ano, continuaremos a propor ao Governo as
medidas que a classe entenda mais adequadas à boa administração da Justiça, sempre no
pressuposto que é fundamental definir com clareza o núcleo essencial da actividade
Notarial em face das restantes profissões jurídicas, tornando o sistema legal em Portugal
novamente claro, eficaz, seguro e autosuficiente, recuperando, desta forma, a
credibilidade de todos na justiça em Portugal.
A partir de hoje contamos com todos vós.
Depois do Porto de honra, ao trabalho!
A todos o nosso muito obrigado.
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Agradeço a todos a vossa presença nesta data histórica para a