III SEMINÁRIO INTERNACIONAL VIOLÊNCIA E CONFLITOS SOCIAIS: ILEGALISMOS E LUGARES MORAIS Grupo de Trabalho: CIDADANIA SEXUAL, DIVERSIDADE E DIREITOS HUMANOS: INTERSECÇÕES ENTRE DIFERENÇA, PODER E VIOLÊNCIA. Titulo do Trabalho: DELEGACIAS ESPECIALIZADAS DE ATENDIMENTO A MULHER: OS PROBLEMAS E DESAFIOS NO COMBATE A VIOLÊNCIA Autoras: Mary Alves Mendes (UFPI) / Poliana de Sousa Silva (UFPI) 2 Delegacias Especializadas de Atendimento a Mulher: os problemas e desafios no combate a violência1 MENDES, Mary Alves2 SILVA, Poliana de Sousa 3 Introdução A trajetória feminina na sociedade é marcada por lutas pela igualdade de direitos. Apesar dos avanços e conquistas obtidas ao longo desse processo, ainda não se pode atestar uma igualdade de gênero, seja no âmbito da esfera pública ou privada. Um dos graves indicativos dessas desigualdades é a violência doméstica e familiar contra as mulheres. Estudos na área de gênero mostram estados alarmantes dessa discriminação que acontece todo dia em todo lugar, em todas as classes sociais, raças e etnias, seja na sua forma física, psicológica, sexual ou patrimonial. Trata-se de uma questão complexa, devido o caráter plural e multifacetado que apresenta (DINIZ & PONDAAG 2006; SAFFIOTI, 2004; STREY, 2001). Os mecanismos institucionais são peças fundamentais no combate e enfrentamento dessa problemática, a exemplo das Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher – DEAMs, pois além de ser o contato inicial dessas mulheres com o Estado, buscando solução para o problema, o atendimento é uma ferramenta essencial no acolhimento, encorajamento e proteção das vítimas (VELAQUEZ, 2006). Nesse sentido, é primordial que o atendimento prestado seja adequado, não só em termos das condições físico-estruturais, mas em relação à qualificação dos profissionais, sobretudo, no que se refere ao conhecimento de gênero que, em geral, é construindo socialmente de forma desigual e discriminatória, fincando suas bases 1 Trabalho apresentado no III Seminário Internacional violência e conflitos sociais: ilegalismos e lugares morais, ocorrido de 6 a 9 de dezembro de 2011, em Fortaleza – CE. Esse texto é uma versão modificada do trabalho apresentado no XXVIII Congresso Internacional da Associação LatinoAmericana de Sociologia, realizado na UFPE, de 06 a 10 de setembro de 2011. Esse trabalho é resultado da pesquisa Violência de Gênero em Teresina: analisando o atendimento nas Delegacias Especializadas, realizada sob a coordenação de Mary Alves Mendes. 2 Doutora em Sociologia, Professora do Departamento de Ciências Sociais, da UFPI e coordenadora da pesquisa. 3 Concludente do Curso de Bacharelado em Ciências Sociais, da UFPI. Bolsista de Iniciação Cientifica – PIBIC/UFPI. 3 através dos processos de socialização, que vão desde a infância e se estendem ao longo da vida (BOURDIEU, 2002; MENDES, 2008; MENDES & SILVA, 2010). Se a construção social de gênero é importante no estabelecimento e constituição das práticas de violência doméstica, não se pode desconhecê-la nas políticas públicas de gênero como aplicação de medidas socioeducativas aos “agressores”, “vítimas”, “filhos” e nem muito menos na formação/capacitação dos profissionais que trabalham com essa questão. Sendo assim, a capacitação profissional, no que se refere às questões de gênero se torna fundamental para um bom atendimento, não só porque permite compreender os interstícios que envolvem as práticas violentas no contexto familiar, mas porque possibilita orientar e conduzir esses sujeitos (“vítimas” e “agressores”) na reflexão de suas práticas e tomada de decisão. Como orienta a lei Maria da Penha e a Norma Técnica de Padronização das DEAMs, a punição judicial sem o devido acompanhamento socioeducativo e ressocializador, pode vir a banalizar e impedir um eficaz combate e enfrentamento do problema. Mas será que medidas socioeducativas estão, de fato, acontecendo como parte do atendimento das Delegacias Especializadas no País? Os sujeitos que se encontram na situação de “vítimas e de “agressores”, assim como suas famílias são encaminhados aos órgãos especializados para um trabalho sócioeducativo e ressocializador? Os profissionais estão aptos, capacitados, de fato, para o atendimento? Eles próprios recebem atendimento psicossocial para efetivar melhor o seu trabalho? Delegacias Especializadas, como mecanismos institucionais de combate e enfrentamento a violência contra a mulher. As Delegacias Especializadas de Atendimento a Mulher – DEAM foram criadas nos anos 80, atendendo, em parte, às reivindicações do movimento feminista brasileiro que denunciava a violência e homicídios conjugais de homens contra mulheres, repercutindo e mobilizando para a criação de Centros, Comissões, Conselhos e Delegacias Especializadas. Em 1985 foi criada a primeira Delegacia Feminina no Brasil, na cidade de São Paulo (MACHADO, 2002). Com a criação da Lei Maria da Penha, as DEAMS assumiram um papel, ainda, mais importante no combate e enfrentamento desse tipo de violência, 4 devendo não só prestar assistência às mulheres em situação de violência, como promover medidas integradas de prevenção. Essas instituições passam a ter papel decisivo no enfrentamento à violência contra a mulher, não só pela abertura e acesso das mulheres a essa rede de serviços, principal meio de prevenção e repressão, mas também por fazer parte da política nacional contra a violência de gênero no país. Com isso, as DEAMs ganham atenção especial, no que diz respeito às Políticas Públicas de Gênero, considerando que a partir dessas iniciativas articularam-se ações e investimentos de Ministérios e Secretarias Especiais do Governo Federal que destinou recursos para ampliação das instalações das DEAMs, qualificação dos profissionais, reaparelhamento e aquisição de veículos, armamento e equipamentos. Fazem parte da Política Nacional de Prevenção, Enfrentamento e Erradicação da Violência contra as mulheres e se pauta nos eixos de prevenção, assistência e repressão devendo funcionar de forma integrada junto a rede de atendimento composta de hospitais, juizados especiais, casas abrigo, centros de referência, defensoria pública (SPM, 2007; SENASP, 2006). De acordo com a Norma Técnica de Padronização de Atendimento dessas Delegacias Especializadas, advindas da modernização da polícia civil e da Lei Maria da Penha, destaca-se o papel pedagógico e especializado dos seus profissionais, onde as ações de prevenção, registro de ocorrências, investigação e repressão de atos e condutas criminosas baseadas no gênero, devem ser feitas de forma acolhedora, com escuta ativa por equipes de agentes policiais profissionalmente qualificados em violência de gênero. Uma escuta ativa implica atenção, observação e isenção de preconceitos por parte dos profissionais. Significa, também, considerar as mulheres como sujeitos de direitos, a fim de proporcionar o rompimento do seu silêncio e isolamento. Esse atendimento deve ser conduzido por policiais capacitados em violência de gênero. Tal capacitação, que pode ser feita por meio de cursos à distância ou presencial, deve ser estendida a todos os profissionais da segurança pública que, de algum modo, atendem às mulheres em situação de violência. Apesar da maior participação das DEAMS no combate à violência de gênero e dos avanços no rompimento do silêncio das vítimas, há grandes dificuldades no trabalho realizado por essas instituições, quando comparada a sua articulação com outros serviços de proteção e encaminhamento, na falta de sensibilização dos 5 profissionais, preconceitos, dificuldades de informar com clareza, concentração dos serviços nas capitais (PASINATO & SANTOS, 2008). Como parte de uma ação política de combate a violência de gênero, um aspecto relevante no atendimento das Delegacias Especializadas diz respeito à qualificação dos profissionais na área de gênero, pois eles não estão imunes a preconceitos e discriminações, considerando que foram socializados e fazem parte de uma cultura machista havendo, portanto, a possibilidade de terem internalizado tais valores e práticas ou sofrido suas influências, o que pode ter reflexos e interferir no atendimento. A isenção de preconceitos, julgamentos e o diálogo entre profissionais e sujeitos atendidos, principalmente as vítimas, são importantes porque podem definir o prosseguimento ou a interrupção do processo de denúncia. Nas DEAMs, objeto de investigação desse estudo4, se pôde observar, em geral, atendimentos profissionais mecânicos e poucos humanizados, dificuldade de escuta ativa, de sensibilidade e compreensão junto aos sujeitos atendidos, como mostra o exemplo de uma funcionária que ao registrar o Boletim de Ocorrência inicia o atendimento de forma fria e impaciente, solicitando à mulher seu RG, nome, estado civil, sem cumprimentá-la e nem olhar diretamente para a sua face, dessa forma: “Me dê seu RG. Diga o nome da senhora? Estado civil? Diga aí o que lhe trouxe aqui?” (Observação: 22/06, DEAM ZC). Nesse outro exemplo a vítima diz ao funcionário: “Estou muito nervosa, porque meu marido é militar e estou expondo ele para seus colegas”. O funcionário, que parece não se comover, indaga: “Fale o que lhe trouxe aqui?”. A vítima indaga: “Tenho mesmo que falar tudo?”. E o funcionário responde: “Aqui a gente não obriga à senhora a falar nada, mas sabe que ao vir aqui vai se expor, senão como podemos representá-la? (Observação: 23/06, DEAM ZC). 4 Delegacias Especializadas de Atendimento a Mulher Zona Centro e Zona Norte, em Teresina- Pi. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, realizada através de observações sistemáticas do atendimento profissional durante o período de agosto de 2009 a julho de 2011. No estado do Piauí, a primeira Delegacia Especializada de Atendimento a Mulher foi criada em 1989, na cidade de Teresina. Atualmente existem oito Delegacias Especializadas, localizadas nas cidades de Parnaíba, Piripiri, São Raimundo Nonato, Floriano, Campo Maior e na capital, onde há três delegacias. Além das DEAMs, o Estado conta com Conselhos de Defesa dos Direitos da Mulher (de âmbito estadual, localizado em Teresina; de âmbito municipal, localizados nas cidades de Floriano e São Raimundo Nonato; duas casas abrigo (localizadas respectivamente em Teresina e São Raimundo Nonato); Serviço de Referência para Atendimento às vítimas em casos de violência sexual, localizados em hospitais e maternidades da capital e de alguns municípios (SENASP, 2006; SSP-PI, 2011). 6 A forma impaciente e mecânica como o funcionário conduz o depoimento, faz como que a senhora, que já entrou na sala bastante nervosa, fique ainda mais tensa. Após ser avisada sobre a necessidade de falar tudo, começou a chorar. O funcionário retira-se da sala, chama a filha que a aguardava na recepção para consolá-la retornando vinte minutos depois, quando a referida mulher já se encontrava mais calma. Acredita-se que a reação de estresse que carregava essa mulher, devido às agressões sofridas, se agravou pelo acolhimento profissional não adequado, expresso na forma técnica e fria de interpelar. A forma de diálogo e acolhimento não adequado dos profissionais tem sérias implicações. Uma crítica, um suspiro ou mesmo um gesto de desdém em relação ao que está sendo relatado, podem ser interpretados como desinteresse e censura ao que está sendo dito, podendo ter como reação o silêncio ou a parcialidade do relato ou depoimento. A sensibilidade, atenção, postura, tom de voz e respeito, são alguns fatores que devem estar presentes nos procedimentos dos profissionais (STREY, WERBA & NORA, 2004; ARAÚJO, MARTINS & SANTOS, 2004; MACHADO, 2002; VELAZQUEZ, 2006). A falta de sensibilidade e desconhecimento de gênero pode fazer com que os profissionais tragam para seu ambiente de trabalho valores e atitudes machistas e preconceituosas prejudicando o atendimento, ao causar constrangimentos, desistências e confusões pela forma de abordagem, como se pode ver nesse exemplo abaixo: Eu só queria que ele me devolvesse meu filho, mas essa funcionária que está fazendo o B.O, disse que aqui só resolve se for para prender ele, eu não quero que ele seja preso, só que me deixe em paz e devolva minhas filhas, que estão sendo maltratadas por ele (Observação: 17/06, DEAM ZN). Outra demonstração de atitude profissional não adequada, diz respeito à situação em que o funcionário ao encerrar o depoimento faz comentários com o colega de trabalho, em tom de brincadeira, demonstrando machismo e reprovações à mulher, ao dizer: “Sabe o que é isso, é muito chifre, como é que um homem não dá uns tabefes numa mulher dessa” (Observação: 23/06, DEAM ZC). As mulheres ao decidirem fazer a denúncia, devem ter liberdade para expressar seus reais sentimentos e vivências sem serem questionadas, julgadas e acusadas pela situação que lhes trouxe novamente a DEAM, pois tais procedimentos trazem sérias implicações ao processo de enfrentamento e combate 7 da violência, obstacularizando a fala desses sujeitos e o prosseguimento da denúncia (ARAÚJO, MARTINS & SANTOS, 2004; MACHADO, 2002; STREY, WERBA & NORA, 2004). Essas inadequações profissionais parecem não ocorrer só em relação às mulheres que se encontram na situação de vítimas, mas também em relação aos homens que se encontram na situação de agressores. Alguns comentários de homens que se encontravam esperando o atendimento mostraam haver certa censura por parte de alguns profissionais no tratamento a eles dispensados, como se pode ver abaixo: Nessa delegacia da mulher, eles não dão informação, se a gente quiser saber de algo tem que ligar e eles ainda tratam mal, principalmente se for homem. Um dia eu liguei para saber sobre minha audiência e eles me trataram muito mal (Observação: DIA 09-11-2010. DEAM ZN). Quando ouvimos falar em delegacia da mulher já ficamos com medo, porque aqui nós somos os errados e só isso. Nem todos os homens são errados, nós acabamos pegando fama de coisas que alguns moleques fazem com suas esposas. Hoje, cada vez mais, nós estamos perdendo a razão perante a justiça (Observação: Dia 14-01-2011. DEAM ZC). Observou-se também numa das audiências de conciliação com um casal, que a funcionária pouco dava chances de escutar o rapaz sobre sua versão na história, advertindo-o, constantemente, pelo fato dele estar na delegacia na condição de agressor. Após a “vítima” fazer seu relato, a profissional pergunta ao rapaz o que ele tem a dizer, mas fala de forma dura e a todo o momento o interrompe e diz: “O que o senhor fez não é justificável. A partir do momento que o senhor agiu agredindo sua esposa, já perdeu toda a razão”. Ao que o rapaz responde: Doutora, mas ela me traiu várias vezes e a gente tava brigando muito. Eu não sei o que aconteceu. Eu tava embriagado e reconheço que o que fiz não é certo, só quero separar e seguir minha vida. Fiquei muito chateado com a traição e bebi para me refugiar”. Doutora, minha mulher não gostava de regue, mas conheceu uma vizinha e começou ultimamente fazer coisa errada, ia para festa sem mim, com essa mulher, saia com outros homens (choro). Eu não agüentava mais, por isso comecei a beber e quando bebia me lembrava dela me traindo, ai ficava com raiva. Quando eu chegava do trabalho, os vizinhos ficavam comentando e isso, também, me deixou com raiva (Observação: Dia 25-01-2011. DEAM ZC). O tratamento imparcial e respeitoso deve ser empregado profissionalmente a homens e mulheres. Em relação especificamente aos “agressores” é necessário 8 pensar que simplesmente tratá-los como vilões, com direito a punição e afastamento da família, sem medidas socioeducativas e ressocializadoras que possam fazê-los refletir sobre suas práticas não encerra o ciclo da violência no contexto familiar (MUSZKAT, 2006; PASINATO & SANTOS, 2008; SNSP, 2006; VELAZQUEZ, 2006). Quanto ao atendimento, no que se refere às condições estruturais, também se observou problemas que consolidam um atendimento não adequado, apesar desse aspecto de melhoria infra-estrutural fazer parte dos planos de modernização da policia civil e da Norma Técnica de Padronização do Atendimento. As delegacias observadas não proporcionam um ambiente facilitador e nem acolhedor, seja pelo difícil acesso físico e geográfico ao local, ou pela falta de instalações adequadas para acesso de pessoas com necessidades especiais. Observou-se que o atendimento, em geral, é demorado e não muito organizado para a demanda atendida, sobretudo, nos primeiros dias da semana. Não há uma distribuição de senhas por ordem de chegada, prioridade (gestantes, idosos ou mulheres com crianças de colo) ou assunto específico a tratar (denúncia, depoimento, assistência social, audiência, apoio psicossocial), o que causa, algumas vezes, transtornos e insatisfações aos que procuram seus serviços. Não há privacidade reservada às “vítimas” enquanto esperam o atendimento, visto que só existe uma sala de recepção, onde ficam juntos no mesmo recinto “vítimas” e “agressores”. Algumas vezes se pôde perceber discussões entre casais e coações de alguns agressores e seus parentes às “vítimas”. Os prédios aonde funcionam as delegacias especializadas não parecem ser locais próprios e construídos, especificamente, para abrigá-las, mas adaptados para o funcionamento. A sala de recepção e demais dependências não são confortáveis, há faltas freqüentes de material de consumo e de expediente para realização dos trabalhos e atendimento ao público. Apesar de haver uma sala reservada para crianças, em uma das delegacias (ZC), é pouco utilizada e não há um profissional específico para dar-lhes assistência, enquanto as mães são atendidas. A sala de recepção não tem som ambiente que traga certa tranqüilidade e relaxamento a quem espera atendimento. O som vem de um televisor que está, quase sempre, sintonizado em programas policiais ou de cunho dramáticos, o que pode deixar o clima ainda mais tenso. Em suma, nas delegacias estudadas, observou-se que as condições físicoestruturais são precárias, com espaços físicos impróprios para proporcionar um 9 atendimento de qualidade, falta segurança e privacidade aos sujeitos que esperam atendimento, principalmente às vítimas; há longas esperas no atendimento, principalmente, na área de depoimentos e audiências; grande número de não comparecimento dos homens à delegacia para depor, devido à desistência das mulheres em levar a frente o processo de denúncia; o quadro de funcionários é reduzido em alguns setores; há fragilidades profissionais, no que se refere à formação e/ou capacitação na área de gênero; há carência de material de expediente para realização do trabalho, insatisfação profissional em relação às atividades desempenhadas, desvalorização do trabalho no meio policial, sobrecarga de funções e baixos salários; inexistência de atendimento continuado nos casos já atendidos. Considerações Finais A transversalidade da problemática que envolve a violência de gênero requer que se ampliem freqüentemente os debates e análises sobre a questão. No combate e enfrentamento à violência contra a mulher, no Brasil, há uma rede atendimento na qual estão inclusas as Delegacias Especializadas da Mulher, através dos serviços que prestam aos sujeitos em situação de violência. Saber se esses serviços são adequados, é fundamental ao combate da violência de gênero. A boa qualidade dos serviços implica, de fato, na diminuição das ocorrências e recorrências das práticas violentas. Espera-se, portanto, dessas instituições boas condições estruturais e qualificação profissional como elementos primordiais ao bom atendimento dos seus profissionais isenção de preconceitos e discriminações de gênero, uma vez que devem ser capacitados na área de gênero. Ressalta-se, porém, que a capacitação, em si, não indica necessariamente um bom atendimento. Existem outros fatores que acabam influenciando na concepção de gênero que esses profissionais trazem consigo e que, muitas vezes, entra em conflito com a própria natureza do trabalho que exercem, além de ter reflexos sobre ele. É preciso, então, considerar que nem mesmo os profissionais que trabalham nas Delegacias Especializadas estão isentos de preconceitos, é um árduo e longo processo de desconstrução a que devem, também, freqüentemente, daí a importância da capacitação continuada estar submetidos na área de gênero. 10 As universidades, por sua vez, através dos seus especialistas, poderiam prestar esses serviços. Acredita-se que as políticas públicas voltadas para gênero, como o combate a violência, devem considerar a complexidade e a amplitude da sua operacionalização, de forma que ofereçam serviços mais eficazes. Nesse sentido, instituições como as delegacias especializadas, na figura dos seus profissionais, devem evitar posições unilaterais que dividam as relações vividas pelos atores inseridos no contexto de violência em certos e errados, devem ir, além disso, saber os reais significados que sustentam as bases dessas práticas e trabalhar na sua desconstrução. É preciso ir além da simples dicotomia e punição para adentrar as ações socioeducativas, tão bem postas na lei, mas frágeis na prática. O homem é parte de um sistema de interações sociais e somente retirado do âmbito familiar ou punido por suas atitudes violentas, sem que lhe seja proporcionado refletir sobre suas atitudes, resulta em exclusão das relações sociais sem efetivamente erradicar a violência. Na prática, os serviços prestados pelas DEAMs deixam a desejar, no que se refere ao cumprimento das normas técnicas de padronização exigidas. A partir das observações feitas constatou-se que o atendimento, de modo geral, não é adequado, tanto no que diz respeito às condições estruturais, como à qualificação profissional e precisa melhorar, visando melhor eficácia e, conseqüentemente, menor número de desistências dos sujeitos envolvidos nos casos de violência. Propõe-se a implementação de medidas que venham melhorar as condições físico-estruturais e logísticas das DEAMs, em discussão, a fim de tornar o ambiente mais acessível, acolhedor e confortável, assim como favorecer a privacidade das “vítimas” e “agressores”, através de recintos separados de espera; acompanhamentos profissionais continuados dos casos atendidos, visando reduzir o numero de desistências a recorrência de práticas violentas e mortes das vítimas; melhor organização do atendimento através do uso de recursos tecnológicos e de informática como a utilização de senhas digitais, para agilizar e minimizar o tempo de espera; aplicação ou encaminhamento de medidas socioeducativas e ressocializadoras junto aos agressores, vítimas e família; capacitação continuada aos profissionais na área de gênero, a fim de desconstruir estereótipos e 11 preconceitos de gênero; programa de apoio psicossocial freqüente aos profissionais; valorização, melhores condições de trabalho e de salário. As discussões e análises, aqui empreendidas, não trataram de desqualificar os serviços das Delegacias Especializadas investigadas, nem apoiar práticas de violência ou defender agressores, mas de entender a violência de gênero como uma questão bem mais complexa e ampla do que dispor de mecanismos institucionais, atribuir culpas e punir, é preciso entender as entrelinhas e meandros dos pontos nevrálgicos que perpassam essa problemática para poder abordá-los com eficácia. Nesse sentido, são igualmente importantes no contexto de análise da violência doméstica as instituições e seus profissionais, as “vítimas”, “agressores” e suas famílias. As escutas ativas e as medidas socioeducativas devem contemplar igualmente o atendimento aos homens que se encontram na situação de agressores, as mulheres que se encontram na situação de vítimas e também seus familiares. O atendimento adequado é uma ferramenta eficaz no processo de combate, porém não tão fácil de ser instituído e processado. 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