Doutores da Alegria: O riso também requer cuidado
Autoria: Andrea Leite Rodrigues, Valéria Pereira Motta e Thomaz Wood Junior
Resumo: Gerir entidades sem fins lucrativos encerra desafios complexos. Sua cultura
organizacional revela caráter alternativo e militante. O crescimento das atividades, o
escasseamento de fontes governamentais de sustentação, a necessidade de entender-se com a
mídia e de prestar contas aos públicos parceiros, faz com que estas organizações se vejam
premidas a buscar formas de gestão mais estruturadas. A moral da equipe, sua motivação e as
dificuldades vivenciadas com a complexidade das tarefas faz surgir um espaço para uma
ferramenta de análise do grupo, onde cada colaborador possa falar e ser ouvido sobre seu
desempenho, suas expectativas e frustrações. Os Doutores da Alegria desenvolveram uma
metodologia de trabalho para discutir desempenho e propor caminhos de desenvolvimento e
bem estar para a equipe, visando a continuidade do desenvolvimento da própria entidade.
Introdução
O caso em questão traz uma experiência de gestão em uma organização sem fins
lucrativos brasileira, cuja missão é levar o teatro clown a crianças hospitalizadas. O
crescimento de suas atividades, o reconhecimento de sua competência e originalidade do
trabalho, inclusive pela ONU, fizeram-na buscar ferramentas de gestão mais sofisticadas. Em
maio de 1999, os Doutores da Alegria contavam com vinte e cinco atores e dez profissionais
na administração. Por características que detalharemos a seguir, a entidade atravessava
momento delicado, em que a equipe interna necessitava de um instrumento de gestão que a
levasse a discutir o papel de cada um na entidade, dando e recebendo do grupo elementos para
rever sua trajetória e seu papel no desenvolvimento da organização.
Os Doutores da Alegria: Porque Alegria é o Melhor Remédio
Os Doutores da Alegria formam uma entidade sem fins lucrativos de artistas de teatro
clown (palhaços) que atuam em hospitais pediátricos.
O conceito de teatro clown é pouco conhecido no Brasil e define uma área do teatro
cômico que trabalha com técnicas circenses e com a desconstrução dos personagens que cada
indivíduo desenvolve para estar no mundo (Massetti, 1998).
No final dos anos 80, o elenco de atores do Big Apple Circus de Nova York foi
convidado a realizar uma apresentação no Presbiterian Hospital, para crianças cardiopatas
internadas. Os artistas fizeram uma performance a partir das rotinas médicas e elementos do
universo hospitalar. Ao trabalhar com elementos assim, os artistas tomaram coisas geradoras
de medo nas crianças e possibilitaram que as encarassem com humor, através da fantasia da
transformação. Esta atitude gerou na equipe médica grande interesse e surgiu daí a idéia de
inserir a arte do teatro clown no hospital como caminho para levar as crianças a uma atitude
mais positiva em relação à internação e ao próprio tratamento.
Em 1991, Wellington Nogueira, ator brasileiro que atuava no Big Aple Circus ,
retornou ao Brasil e iniciou o trabalho junto ao Hospital Nossa Senhora de Lourdes, atual
Hospital da Criança, localizado na zona sul de São Paulo. No início, o programa se
desenvolveu em bases voluntárias, mas logo passou a contar com patrocínio empresarial,
forma de sustentação mais importante até os dias de hoje.
Atualmente os Doutores da Alegria atuam em oito hospitais em São Paulo e dois no
Rio de Janeiro. Cada instituição é visitada duas vezes por semana, sempre no mesmo dia e
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hora, por uma dupla de atores. Esta forma de atuação reforça o vínculo com a criança e,
sobretudo, com os profissionais de saúde, pois dá continuidade e robustez à proposta de
inserir um trabalho artístico como forma de transformação do ambiente hospitalar. O projeto é
totalmente mantido com recursos privados, divididos da seguinte forma: 90% provem de
patrocínio empresarial, captado com o apoio da Lei de Incentivo Fiscal (também conhecida
como Lei Rouanet), sendo os atuais patrocinadores são Telemar e Tilenol, marca da JansenCillag; os outros 10% provém de pessoas físicas ou jurídicas que contribuem com o projeto
através da Central de Sócios Mantenedores ou formas alternativas, como participação em
eventos e palestras.
A forma de atuação da entidade guarda características incomuns dentre as entidades
sem fins lucrativos no Brasil. Todo corpo de colaboradores, artistas e administração, é
remunerado regularmente, em bases mensais. O quadro de profissionais da administração
configurou-se ao longo do projeto pelas necessidades de estruturação, devido ao crescimento.
A tônica da alegria pela transformação e da inserção da arte em espaços inusitados
compõe o cerne do trabalho dos Doutores da Alegria. A definição de sua missão, levar alegria
a criança hospitalizada, seus pais e profissionais de saúde, através da arte do teatro clown,
coloca os parâmetros de sua atuação e propõe uma forma de funcionamento que privilegie o
humor e o hábito de encarar qualquer dificuldade ou obstáculo como recurso.
Em 1999, o projeto passava por momento de crescimento intenso. O valor total de
orçamento aumentava ano a ano, bem como as tarefas de gestão. A freqüente exposição na
mídia favorecia assédio constante e busca contínua por parte de estudantes, profissionais de
saúde e toda sorte de público interessado na questão da arte como transformação de ambientes
de trabalho.
Nesta época, juntou-se à equipe um administrador profissional, com a missão de
estruturar os processos organizacionais de forma a permitir o crescimento e contínua
viabilização do trabalho artístico.
O caso que ora descrevemos parte do momento em que tal administrador se defronta
com as particularidades da equipe de administração do projeto. Considerando que o
desenvolvimento do corpo artístico foi sempre a maior preocupação, não havia, até então,
nenhuma ação estruturada que contemplasse as demandas desta equipe. A metodologia de
trabalho que apresentaremos foi aplicada apenas aos profissionais da administração, pois os
artistas mereceram metodologia à parte.
A atuação do administrador começou em janeiro de 1999 e em maio foi convidada
uma profissional de consultoria em recursos humanos para aconselhar, em bases voluntárias,
um trabalho de aprofundamento do conhecimento da equipe, suas queixas, ambições e
expectativas. Tal trabalho encerrava o desafio de desenvolver uma metodologia para entender
e atuar no desempenho, sem perder de vista as características organizacionais de base.
Configuração do problema e desenvolvimento da metodologia
A consciência da necessidade do desenvolvimento de uma ferramenta de avaliação
surgiu com uma reivindicação da própria equipe. Dois pontos eram colocados como cruciais:
a) Dar e receber contribuição sobre desempenho individual e do grupo. Neste particular,
a equipe ressentia-se de, em quase oito anos de trajetória, nunca ter passado por
experiência de trabalho para avaliar clima e qualidade de relações, nem receber apoio
formal para condução de desenvolvimento profissional. Vale ressaltar que até aquele
momento as avaliações eram realizadas de maneira informal, conforme oportunidade
no momento de trabalho. Com o crescimento da organização esse processo informal
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que antes gerava proximidade, comprometimento e confiança, começou a se
transformar em algo que gerava insegurança e certo desconforto para a equipe;
b) Rever a questão da remuneração, não só em termos de reajustes, mas dando os
primeiros passos para o estabelecimento de políticas claras, onde cada colaborador
pudesse ter algo além do comprometimento com a causa como parâmetro para ser
remunerado. Este aspecto era particularmente delicado, pois as possibilidades de ação
são limitadas ao fato de que o aumento da receita não é fruto direto de melhoria de
performance, pois a captação de recursos enfrenta obstáculos que por vezes vão além
da própria equipe.
O desafio foi aplicar uma metodologia de avaliação de desempenho, mas sem esquecer
que o objetivo era reforçar o vínculo de cada colaborador com a equipe e com a entidade,
dando-lhe a oportunidade ter da equipe e da liderança um retorno sobre seu desempenho e
atitude e, em contrapartida, poder também dar sua colaboração e visão para o
desenvolvimento dos outros parceiros.
O desenvolvimento dos trabalhos possibilitou um formato em que a liderança,
formada por quatro pessoas, elegeu parâmetros para avaliar cada colaborador e discutiu com
cada um seu trabalho, desenvolvimento e possibilidades de remuneração, sempre tendo em
mente as limitações da entidade. Por seu turno, a equipe também desenvolveu material para
contemplar a atuação dos líderes e dar-lhes sua visão de atuação, expectativas e propostas de
desenvolvimento para a liderança. De modo sucinto, tive-se:
a) Cada membro da equipe descreveu suas responsabilidades, levando sempre em conta a
percepção de cada um sobre o que lhe cabia fazer. Claro está que apenas esta tarefa já
revelava superposição ou omissão em trabalhos importantes para o desenvolvimento
de uma entidade em expansão;
b) Tais responsabilidades foram classificadas em competências técnicas e genéricas para
atuação;
c) Definiu-se um formulário de avaliação de desempenho contento quatro graus de
avaliação de cada responsabilidade e atividade (requer muita melhoria, requer
melhoria, na média e acima da média)
d) Cada colaborador se avaliou e foi avaliado pela liderança, num processo de reunião
individual com discussão de cada ponto relatado. Este foi o embrião de um plano de
desenvolvimento para cada colaborador e para a equipe;
e) A liderança também se avaliou e foi avaliada pela equipe.
Conclusão
O caso aponta para a possibilidade do uso de uma ferramenta de gestão corporativa em
um universo organizacional que privilegia informalidade, criatividade e baixo grau
hierarquização. Para isso, é necessário tomar a metodologia comum e fazer uma reconstrução
que contemple as características da organização, observando sua cultura, missão e história.
Referências Bibliográficas
MASETTI, M. Soluções de Palhaço. Transformações na Realidade Hospitalar. São Paulo:
Palas Athena, 1998.
STAKE, R. Case Studies. IN: DENZIN, N.K., LINCOLN, Y.S. (editors) Handbook of
qualitative research. Thousand Oaks: Sage, 1994.
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