E N T R E V "UTI não é lugar de palhaço!" "Nem de crianças!", respondeu Michael Christensen à afirmativa de uma médica. Michael é o fundador da Clown Care Unit, que originou o programa "Doutores da Alegria", dirigido pelo ator Wellington Nogueira, no Brasil. Quem nunca viu a cor da dor, branca como uma parede de hospital? Naquele ambiente exasperante e tenso, onde a cura e a esperança costumam travar batalhas mortais e sangrentas com o sofrimento e a morte, circulam médicos e enfermeiros apressados, aparelhos mais assustadores que certos sintomas clínicos, medo, choro, palhaços... Palhaços? Sim, palhaços. Espalhando risos e brincadeiras pelos quartos e corredores das alas pediátricas dos hospitais Nossa Senhora de Lurdes, Emílio Ribas e Albert Einstein, eles se ocupam, desde 1991, em fazer complicadíssimas transfusões de milk-shake, extrações de mal humor, e ministrar pílulas de alegria instantânea na ponta dos narizes desses pequenos pacientes. São os "Doutores da Alegria" que, com seu trabalho de artistas, buscam reconciliar crianças enfermas com o riso e a alegria. O projeto artístico foi trazido ao Brasil pelo ator Wellington Nogueira que atuou como clown (palhaço) no Clown Care Unit, projeto semelhante no qual o ator brasilero se inspirou. O Clown Care Unit foi criado em 1986 por Michael Christensen, diretor dos clowns do Big Apple Circus de Nova Iorque e hoje, além do "filhote" brasileiro, também está presente na França e Alemanha. Wellington Nogueira começou sozinho, com uma quase utopia. Hoje, os "Doutores da Alegria" se transformaram numa entidade cultural sem I S T A Foto: Juan Estevez fins lucrativos e conta com o trabalho de mais oito atores e a proposta de se multiplicar a longo prazo. Foi com o ator Wellington Nogueira, o "Doutor Zinho", que Viver Psicologia foi conversar para saber mais sobre este projeto. VIVER : Os "Doutores da Alegria" têm raiz num trabalho que começou nos Estados Unidos, em Nova Iorque. Qual o começo desta história? WELLINGTON NOGUEIRA Eu morava em Nova Iorque. Fui para lá estudar teatro, me formei ator, começou a "pintar" trabalho e eu fui ficando. Eu tinha aula de teatro "clown" na escola e fui me envolvendo com a cultura clown, mas tinho ido para lá estudar teatro musical. E sempre que eu estava envolvido com algum projeto clown era entre um e outro projeto daquilo que eu chamava teatro sério, comercial, o teatrão. Mas nesses hiatos eu trabalhava com os clowns, porque lá em Nova York um ator não pode ficar parado, senão os músculos apodrecem. Então, fui conhecendo esses clowns e em 88 me convidaram para fazer um teste, para poder fazer este trabalho nos hospitais. Minha primeira reação foi bem negativa. Sinceramente, achei que não era minha praia e nem era que não tivesse estrutura, mas achei a ideia patética. Era pré-conceito, ignorância mesmo. Minha intenção era só pegar os elementos da comédia e, como ator, ficar mais aberto. VIVER - Era uma espécie de laboratório? NOGUEIRA - Sabe a necessidade que um ator tem de trabalhar o corpo? Então vai fazer kabuki, vai fazer artes marciais, trapézio. O clown para mim era isso. Meus ídolos eram Lucille Bali, irmãos Marx, que na verdade eram clowns sem maquiagem. Eu nunca tinha vestido uma roupa de palhaço, uma maquiagem completa. Mas minha amiga achava que eu tinha sensibilidade para fazer esse VIVER PSICOLOGIA E N T R trabalho e pediu que eu pelo menos fosse ver, antes de dar meu veredicto. Então fui até lá, num hospital super longe, e quando eu vi o trabalho meu queixo caiu. Foi como uma revolução na minha cabeça. Pela primeira vez eu tinha visto o trabalho de um artista tocar a vida de uma pessoa de uma maneira tão contundente e tão eficaz. E era feito com total integridade artística, não tinha nenhum caráter de beneficência ou benevolência, ou comiseração. E eu estava acostumado a ver atitudes de comiseração, de dó: "vamos fazer alguma coisa pras crianças porque eu tenho tanta culpa e preciso me livrar disso". Mas não tinha nada disso, eles eram profissionais mesmo. Aí eu não queria mais fazer o trabalho porque dizia "eu não tenho a técnica, não tenho a grandeza, eu não tenho a maestria que esses caras têm". Mesmo assim, uns dois meses depois eu fiz o teste e os pingos caíram nos is, porque aquilo que eu tinha visto eu finalmente tinha vivenciado. Foi uma experiência da qual não vou me esquecer nunca mais. VIVER - Isso teve reflexos na sua vida pessoal também? NOGUEIRA - Foi uma época de pingos nos is total porque, a partir do momento em que eu abracei o clown, eu estava entrando naquela fase dos 30 anos, que é uma fase de transição to- tal, e todas aquelas inseguranças foram ficando para trás. Porque o clown, que eu relutava tanto em assumir dentro de mim, era o menino, o moleque. E o menino teve espaço para sair, para viver, para sustentar o adulto; e o adulto ficou com aquele monte de espaço livre para poder crescer. Em todos os sentidos foi uma mudança muito radical na minha vida. E quando comecei a trabalhar com esse projeto no Memorial Hospital, um centro de pesquisa de câncer em Nova Iorque, tive contato com muitas crianças brasileiras que estavam lá. Era muito legal ver a reação das crianças e das famílias. Tem crianças com as quais eu me comunico até hoje. VIVER - Como foi sua volta para o Brasil? NOGUEIRA - Meu pai, no final de 90, ficou doente, num processo terminal, e eu vim pro Brasil como se fosse a única coisa que ele estivesse esperando para poder morrer. Só que, na hora que eu voltei, fui usando com meu pai um pouco do que tinha aprendido durante aqueles anos de hospital e meu pai também foi E V I surpreendendo a gente porque ele não morreu e acabou saindo do hospital. Quando eu cheguei no Brasil, independentemente de saber se meu pai iria viver ou morrer, eu tinha certeza do que queria fazer: voltar para cá, porque eu queria acompanhar o processo dele. Teve um dia que ele estava em coma e justamente neste dia eu tinha marcado de fazer, lá no Incor, onde ele estava, um dia de "Doutores da Alegria" para as crianças. Porque meu pai sabia do projeto, já tinha falado para todas as enfermeiras e elas tinham pedido para eu marcar um dia. Mas nesse dia meu pai estava em coma e emocionalmente eu não estava com a mínima vontade de fazer. Tentei pular fora e fui falar com a enfermeira. Mas ela argumentou que as crianças já estavam esperando, na maior expectativa, e eu resolvi fazer. E me lembro que comentei que, se eu tivesse qualquer crédito por aquilo, que fosse jogado na conta do meu pai. Então, fiz meu trabalho e por volta de 2:30 ou 3:00 fui até a UTI ver meu pai. Quando cheguei ele estava sentado, tomando soda e comendo pêra e me perguntando como tinha sido. De manhã ele tinha estado em coma e para mim aquilo foi como um sinal me dizendo que era hora de voltar mesmo, que tinha coisas para fazer no Brasil. Daí voltei para Nova Iorque para resolver meus compromissos e em 91 voltei para o Brasil. VIVER - Como foi trazer o projeto para o Brasil? NOGUEIRA - Eu falava do meu trabalho, as pessoas curtiam, achavam legal; até que um dia saiu uma matéria na "Vejinha" falando sobre o meu trabalho de ator e tudo o mais e falando do meu trabalho nos hospitais. A partir daí, foi uma bola de neve que começou a rolar. Entre os hospitais que me chamaram, o Nossa Senhora de Lurdes me chamou a atenção, pela maneira como eles abordaram o assunto. Eles estavam voltados para começar um processo de humanização do hospital. Eu conheci o hospital, as pessoas, a administradora, que na época era a Cristiane D 'Andréa; e saí de lá com a sensação de que era ali que deveria começar. Então, com poucas expectativas e dinheiro nenhum eu comecei, sozinho, indo lá uma vez por semana. Ao final de dois meses e meio houve uma avaliação, que foi positiva, e eles resolveram montar o projeto como ele deveria ser. Tive a oportunidade de contratar mais uma atriz, treinei-a, enfim, comecei a fazer S T A o projeto como ele deveria ser, porque o ideal é que este trabalho seja feito por casais. Ou duplas, mas de preferência casal, porque tem criança que se relaciona melhor com a figura masculina e outras, com a figura feminina. A dupla permite uma capacidade maior de jogo entre as pessoas. Se você percebe que não está conseguindo estabelecer contato com determinada criança, o outro entra na jogada e ajuda a fazer isso, tem muita troca. VIVER - Então, o senhor começou a trabalhar no Nossa Sra. de Lurdes e eles bancaram o projeto? NOGUEIRA - Eles começaram dando uma ajuda de custo. E era muito importante para mim me sentir completamente autónomo. Em linguagem comercial, quando você paga, você quer, você se sente dono, proprietário; e eu nunca quis ter este tipo de vínculo com ninguém para não ter a obrigação de ter que fazer um projeto que não desse ou ter que adequá-lo às necessidades de uma instituição ou empresa. Nós começamos recebendo uma ajuda de custo e toda a infra-estrutura: fax, xerox, mala direta, etc. Esse era o investimento deles, e até hoje é assim. Nos dando força para crescer como entidade autônoma que pudesse, aí então, angariar patrocínio. Inscrevi o projeto na lei Mendonça; e quando ganhamos a lei Mendonça, pensei: "agora ninguém mais segura", porque essa era uma coisa que eu não esperava, por ser tão inusitado. Mas, a partir dai, pudemos procurar patrocinadores. O primeiro patrocinador foi a Construbase e quando terminou o contrato e estava tudo acertado com um outro grande patrocinador, com uma estrutura muito maior, a empresa pulou fora. E eu pude ver o quanto é frágil a relação que conta com um único patrocinador. VTVER - Como, então, se resolveu o impasse? NOGUEIRA - Eu fiquei um bom tempo no limbo, pagando os artistas do meu bolso. Vendi o meu carro, de vez em quando pintava o dinheiro de algum comercial. Até que apresentei o projeto para o Itaú, pensando que ia receber um belo de um "não" e, para minha surpresa, eles o aceitaram. Nós já estávamos no limite, e eu estava pensando em ir embora, voltar para os Estados Unidos. Coloquei na minha cabeça que se não conseguisse nenhum patrocínio significativo até 30 de E N T R setembro, deveria aceitar o fato de que talvez o Brasil ainda não estivesse preparado para este tipo de trabalho e ir embora. No dia 28 consegui o patrocínio. Acho que era para ser mesmo. E pensando em socializar a coisa, tivemos a ideia de transformar os "Doutores da Alegria" numa entidade cultural sem fins lucrativos. É bom se tivermos patrocínio, mas a gente também pode receber doação das pessoas. O projeto começou em Nova Iorque. Eu o trouxe para o Brasil, uma das airizes o levou para Paris e outra para a Alemanha. Em cada país ele tem uma característica específica. No Brasil, além da humanização hospitalar através da arte, ou da humanização através da arte, como eu diria, há um trabalho de formação dos artistas. Esse nosso espaço tem o objetivo de no futuro formar clowns, formar artistas de nível internacional, divulgar e apoiar a ideia da humanização através da arte. E criar um trabalho de pesquisa de linguagem para poder levar um trabalho como este para adultos, terceira idade, e fazer alguma coisa semelhante fora dos hospitais, em outros locais inusitados. VIVER - Este projeto também parece ter um caráter bastante democrático, não? NOGUEIRA - Hoje, para este trabalho acabar vai ser muito mais difícil porque tem muito mais gente respondendo por ele, não só eu. E um projeto como esse que está falando de arte, cultura, de certa forma, de educação, psicologia, comportamento e que, enfim, tem tantas vertentes, não pode ficar só na minha mão. Eu sou um simples ator, com uma característica que eu acho que é de empreendedor cultural, mas uma coisa como essa tem que ser encampada por uma sociedade, se tiver que continuar, com integridade. E como eu acredito que o Brasil também está numa fase de mudança, acho que este é o momento propicio. A gente está vindo reciclar conceitos, reciclar ideias. A própria ideia do clown, do palhaço. Eu por muito tempo neguei esta imagem porque na minha cabeça era uma coisa mambembe, de lona furada, pobre, de beira estrada... Essas imagens tem seu valor. É preciso ser muito forte, como artista, para levar as coisas nestas condições. Mas por que tem que ser sempre nestas condições? Acredito que o Brasil está cheio de Charles Chaplins, cheio de olds Arrelias, que não têm como estudar isso e aperfeiçoar essas técnicas. Eu VIVER PSICOLOGIA E V I S T A tive a sorte de poder ter ido aos Estados Unidos, estudar porque NOGUEIRA - O brasileiro é muito minha condição financeira permitia. criativo, é fabuloso. Você imagina se pudermos ordenar isso em termos de VIVER - Como o senhor avalia a profissionalismo e técnica? Vamos reação das crianças diante do estar ensinando a muita gente como fazer as coisas. Ë aquela coisa que seu trabalho? eu acho que o Ayrton Senna repreNOGUEIRA - Eu vou me atrever a sentava muito bem: técnica, discidizer que em 100% das vezes elas são plina, dedicação, profissionalismo a positivas, porque a reação das toda prova, com a ginga brasileira, crianças é sempre espontânea. Só o com a criatividade do brasileiro. fato de elas reagirem já é um estímulo Imagina agora se pudermos fazer isto legal. Quando a criança está dentro dentro das artes. E o trabalho dos do hospital, ela perde totalmente o "Doutores da Alegria" não é controle sobre a vida e sobre o corpo entretenimento, é trabalho. Nós dela. Esse controle vai em primeiro estamos indo com uma sacola de lugar para o médico, depois para a possibilidades pra sacar da criança enfermeira, dai para o auxiliar de qual é o canal. Será que é a mágica, enfermagem, daí para os pais e será que o malabarismo? E colocar depois chega na criança. Então, toda isto à disposição da criança, não a essência dela está afundada. submeter a criança a isto. E a minha como diretor artístico é suprir Quando a gente vai trabalhar com a parte artista, dando condições, dando criança, a gente procura justamente oaulas gente fera. Foi aí que começar um trabalho de resgate deste surgiu com a necessidade um apoio no controle, sobre a vida, sobre o corpo campo psicológico. E de conheci uma e sobre as ideias dela. Nós nunca psicóloga, MorganaeuMasetti, que invadimos um quarto, nós colocamos compreende exatamente a dimensão a cabeça na porta e perguntamos se deste trabalho e ela começou a podemos entrar. Se a criança deixa, trabalhar com a gente criando esta a gente entra. Se ela não deixa, estrutura de apoio para eles. E, com bárbaro! Nós somos os médicos para o novo patrocínio, tivemos condições quem ela pode falar isso. E nós de iniciar uma pesquisa para podemos dizer: "Tá bom. Outra hora identificar o efeito do nosso trabalho a gente volta.". Às vezes até o que esta sobre o hospital e as crianças. É uma criança precisa é falar um "não " pesquisa ainda só qualitativa, mas os para alguém. Dali a meia hora, já resultados são muito bons e até passou, pronto. Já falou seu não, já surpreendentes. nivelou as pessoas. A coisa boa do projeto é poder entrar em contato VIVER - No que este trabalho com a parte saudável das crianças, modificou sua relação com as sem negar sua enfermidade, mas indo crianças? além, buscando sua essência. Pela minha vivência, o que sei é que todas NOGUEIRA - Para mim enriqueceu elas, principalmente as que passam muito.'Não sei se para as crianças por um processo longo de internação, melhorou alguma coisa, acho até que só querem uma coisa: estar lá fora fiquei mais chato, mas para mim brincando e sendo iguais às outras, melhorou muito, passei a sacá-las um levando uma vida normal. No hospi- pouco mais. E eu brinco, me coloco tal é muito difícil, porque o ambiente no lugar delas, com a idade delas. Eu é tenso, ninguém pode errar, ninguém me lembro que uma vez entrei no sabe o que vai acontecer, tudo está quarto de um adolescente e ele olhou por um fio. E a gente entra justamente pra mim e disse: "Era só o que me ai. E quando a gente consegue faltava!" Eu entrei, me apresentei e estabelecer o contato com a criança, ele disse: "Você não é nem engra é ela mesma que diz pra gente o que çado ". Aí eu sentei do lado dele e não fazer. O que é legal é que muitas vezes só concordei como comecei a me parece que nós estamos fazendo lamentar por isso, numa onda de alguma coisa pela criança, mas na auto-comiseração. Aí ele começou a maior parte das vezes elas é que estão rir. A amiga que estava me obser fazendo por nós. Eu me sinto vando me disse: "Você hoje aprendeu honrado cada vez que uma criança uma lição. Ele te colocou numa po aquiesce ao nosso oferecimento e sição e te fez sentir-se como ele: uma quer que a gente trabalhe com ela. merda. A partir dai, ele viu que você entendeu o sofrimento dele. Agora, VIVER - Tendo trabalhado nos sim, você ganhou a confiança dele Estados Unidos antes de trazer o para poder trabalhar". Essas coisas projeto ao Brasil, como o senhor me fascinam. compara o nível profissional Texto: Rosemeire Campos daqui com relação ao que se vê lá fora?