EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. COLÊNDA CÂMARA CÍVEL EXMO. SR. DR. DESEMBARGADOR RELATOR Agravo de Instrumento com Pedido de Efeito Suspensivo/Concessivo Pedido Liminar Urgente XXXXXXXXX e Outros, todos residentes e domiciliados nesta cidade de Canoas – RS no Parque Jorge Laner, bairro Niteroi, por seu procurador firmatário, “ ut “ instrumento procuratório em apenso, vêm, respeitosamente à presença de V. EXA. interpor o presente recurso de AGRAVO DE INSTRUMENTO COM PEDIDO DE EFEITO SUSPENSIVO/CONCESSIVO contra o MUNICÍPIO DE ......., pessoa jurídica de direito público, consoante os fatos e fundamentos que abaixo seguem: I- PRESSUPOSTO DE ADMISSIBILIDADE 1. DA LESÃO GRAVE E DE DIFÍCIL REPARAÇÃO (ART. 22 C/C ART. 527, INC. II DA LEI 11.187/05). O presente recurso deve ser admitido na sua forma instrumental e não retida, tendo em vista o cumprimento do requisito de admissibilidade, qual seja, a existência de lesão grave e de difícil reparação. É que os ora Agravantes estão em situação de total vulnerabilidade social, ocupando área municipal, sobre a qual pesa ordem de reintegração de posse de caráter imediato. 2. Isto quer dizer que, a persistir a r. decisão interlocutória ora atacada, os Agravantes terão de desocupar a área na qual estão residindo com as suas famílias. Há que se levar em conta ainda que a área ora em debate está ocupada por mais de 3.000 pessoas ou mais ou menos 900 famílias. Mais. As aludidas famílias já receberam a visita dos Oficiais de Justiça designados para cumprimento da ordem, bem como da Brigada Militar, para efetuarem o despejo, os quais, por falta de efetivo, não o fizeram. Então, quer se crer que a desocupação acontecerá a qualquer momento, motivo pelo qual se utiliza, inclusive do presente expediente de plantão para a apreciação das presentes razões de agravo de instrumento. 3. Assim, cabe frisar que resta por demais caracterizado o pressuposto da lesão grave e de difícil reparação dos Agravantes, já que se não for enfrentado este recurso na forma instrumental, estes terão que desocupar a área em debate que resulta na única moradia das 900 famílias residentes no local, não tendo, definitivamente, local para onde ir, já que estão em estado de vulnerabilidade social e sem poder exercer de garantia constitucional social, que é a moradia. 4. Pelo exposto, requerem estes Agravantes se digne V. EXA. em receber o presente recurso de agravo na sua forma instrumental, a fim de que se possa apreciar o pleito de suspensão da ordem de reintegração de posse e posterior exame de mérito. II-DOS FATOS Com base na apreciação de medida liminar postulada em ação de Reintegração de Posse ajuizada pelo ora Agravado o dd. juízo “a quo“ entendeu por deferir a liminar pleiteada para determinar a desocupação da área em questão de maneira imediata, sem prazo mínimo para desocupação voluntária. Em suas razões, a r. decisão ora guerreada tratou de acolher os argumentos expendidos na vestibular possessória, sustentando que a posse exercida pelos Agravantes é imprópria e caracterizadora de esbulho, eis que se trata de “invasão“. II- DA REALIDADE SOCIAL DOS AGRAVANTES Com o devido respeito à decisão ora recorrida, esta não merece prosperar. Efetivamente, segue em anexo o cadastro das famílias que residem no local e que nos dá conta de que são famílias de trabalhadores que constam todas com crianças e adolescentes e que são famílias que não têm moradia fixa, vivendo de aluguel ou de favor, conforme o caso. Definitivamente, os Agravantes não são invasores, são cidadãos como quaisquer outros que buscam conquistar o seu direito constitucional à moradia digna. Não há neste caso nenhum tipo de medida clandestina ou que tenha caráter violento, eis que a defesa da moradia pelos Agravantes se dá de maneira organizada, sem atos violentos e sem qualquer ofensa à ordem pública. Com efeito, os Agravantes estão na posse do imóvel objeto da presente demanda judicial desde o dia 28.04.2006. São pessoas de elevado estado de necessidade e que viviam sem moradia nesta cidade pagando quando possível, aluguéis ou então vivendo de favor em casa de parentes ou amigos. Por sua vez, o Agravado não vem dando a constitucional destinação econômica e social ao imóvel em questão, já que junta matrícula do imóvel datado de 1995, seja em: a) termos econômicos, o imóvel encontra-se em situação de abandono há mais de 10 (dez) anos, conforme se depreende de pesquisa realizada perante o Registro de Imóveis desta cidade de Canoas, o que impede o desenvolvimento econômico daquela localidade; b) termos sociais, nitidamente o espaço urbano não está cumprindo a sua função social, o que afronta a moderna legislação urbanística, em particular, o Estatuto da Cidade. Por outro lado, os ocupantes promoverão o desenvolvimento econômico, mediante a circulação de bens e serviços no local, bem como o desenvolvimento social com o assentamento de um número aproximado de 900 ( novecentas ) famílias na área, as quais estão em risco social e ainda viabilizar as condições dignas de sobrevivência humana. Em verdade, os ocupantes fazem parte de famílias desprovidas de um mínimo necessário de assistência social, o que caracteriza o seu estado de necessidade e sua legítima defesa da dignidade da pessoa humana. II.1- DOS PROCESSOS DE LUTA PARA A CONQUISTA DA MORADIA PELOS AGRAVANTES A fim de viabilizar a moradia dos ora Agravantes na área de propriedade do Agravado, a qual está abandonada e subutilizada, a comunidade local, representada pelos ora Agravantes participaram de REUNIÃO perante o Executivo Público Municipal, onde já se encaminhou uma tratativa de acordo com a realização de cadastro das famílias ocupantes do local, ao que se depreende da última parte da inclusa ATA DE REUNIÃO acostada com a presente peça recursal. Mais, em tal reunião além da assessoria jurídica do Município, estava também presentes o Secretário responsável pelas políticas públicas da municipalidade, e demais Vereadores da cidade, os quais concordaram com os termos da Ata de reunião, e muito embora frisarem a existência de uma decisão judicial, não se negaram em receber os Agravantes e em efetuarem os cadastros das famílias. É do corpo da Ata de Reunião realizada na data de 04 de maio de 2006: “...o Município se compromete em fazer o cadastramento das famílias que estão na área ...disponibilizando equipes de cadastramento. Após será feita avaliação das famílias que realmente tenham necessidade de moradia...” . Dessa forma, já existe o comprometimento público com uma solução negociada para a presente questão, quando existe uma aproximação dos Agravantes com o Município, que tentam encontrar solução para este grave problema social que é a falta de moradia, devendo, portanto ser suspenso o cumprimento da presente reintegração de posse. Portanto, a presente problemática não pode ser analisada de modo reducionista, mas sim de acordo com a mais avançada compreensão científica da complexidade, em superação ao caráter fragmentário da ciência moderna cartesiana, tal como sustenta FRITJOF CAPRA (A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 1999, p. 23 e 46): “Quanto mais estudamos os principais problemas de nossa época, mais somos levados a perceber que eles não podem ser entendidos isoladamente. São problemas sistêmicos, o que significa que estão interligados e são interdependentes.” “Na mudança do pensamento mecanicista para o pensamento sistêmico, a relação entre as parte e o todo foi invertida. A ciência cartesiana acreditava que em qualquer sistema complexo o comportamento do todo podia ser analisado em termos da propriedades de suas partes. A ciência sistêmica mostra que os sistemas vivos não podem ser compreendidos por meio da análise. As propriedades das partes não são propriedades intrínsecas, mas só podem ser entendidas dentro do contexto do todo maior. (...)” III- Do Estado de Abandono da Área Ocupada Por conseguinte, resta claro e transparente neste feito o completo ESTADO DE ABANDONO da área ocupada por mais de 10 anos. Tal VAZIO URBANO está por contaminar de precariedade à propriedade do Agravado, nos termos do Estatuto da Cidade. O imóvel urbano deve CUMPRIR A SUA FUNÇÃO SOCIAL, qual seja a de conferir local para moradia das pessoas. Não pode o Agravado, o qual é pessoa jurídica de direito público, e, portanto, obrigada ao cumprimento da lei e da Constituição Federal deixar ao relento imóvel de sua propriedade por tão longo tempo, em detrimento de milhares de pessoas que não possuem onde morar com dignidade. De outra parte, causa espanto a narração dos fatos da inaugural, a qual tenta de todas as formas dar conotação de clandestinidade e de violência para a ocupação ocorrida e ainda força a argumentação na tentativa de caracterizar a posse nova. Ora, nada mais absurdo, os ocupantes são pessoas como qualquer outra que trabalham e tem a sua família, o que estão fazendo é reivindicar legitimamente por um direito e se socorrendo da lei ( Estatuto da Cidade ) e do Judiciário. Ademais, a presente demanda tem um caráter social pungente, que trata de uma das questões mais cruciais da sociedade brasileira, que é o acesso à moradia digna. Em assim sendo, o olhar que o direito deve direcionar ao tema deve ser feito no conjunto do seu ordenamento jurídico, não se prendendo a terminologismo (invasão), nem tampouco a uma visão legalista do direito. Inclusive é assim que tem entendido o Superior Tribunal de Justiça – STJ em arestos cuja ementa segue abaixo: “A melhor interpretação da lei é a que se preocupa com a solução justa, não podendo o seu aplicador esquecer que o rigorismo na exegese dos textos legais pode levar a injustiças.“ ( RSTJ 4/1554 e STJ-RT 656/188 ) Assim também tem entendido o Min. Sálvio de Figueiredo em RSTJ 26/378: a citação é da pg. 384: “A interpretação das leis não deve ser formal, mas sim, antes de tudo, real, humana, socialmente útil. (...) Se o juiz não pode tomar liberdades inadmissíveis com a lei, julgando “ contra legem “, pode e deve, por outro lado, optar pela interpretação que melhor atenda às aspirações da Justiça e do bem comum“. IV- Falta Dos Pressupostos Para Concessão Do Pedido De Reintegração De Posse NÃO COMPROVAÇÃO DA POSSE PELO MUNICÍPIO Veja-se que o Agravado, não procedeu na devida comprovação da posse da área, que efetivamente não a tem, posto que a referida área está ociosa e abandonada por mais de 10 anos. Nos termos do art. 927 e seus incisos do CPC, existe a necessidade de comprovação de inúmeros requisitos pela Agravada para ver concedido o seu pleito de reintegração de posse, o que não se verifica nestes autos, uma vez que não se constata a propriedade da área pela matrícula, nem tampouco se comprova a posse exercida por esta sobre a área, requisito para a concessão da medida. V- O Direito à Moradia como Garantia Social Com efeito, o direito fundamental e constitucional à moradia é regra de garantia social que guarda aplicação imediata pelo Poder Judiciário, devendo ser conferida a manutenção de posse aos ora Embargantes da área ocupada, tendo em vista a inegável comprovação do vazio urbano representado pela área a qual está sem exteriorização da propriedade por mais de 10 anos. Nesta linha tem entendido a imensa doutrina jurídica, em especial o emérito jurista Ingo Wolfgang Sarlet, quando trabalha com o Princípio Jurídico do Não Retrocesso. Tal Princípio nasce dentro do direito constitucional, como suporte de atendimento dos direitos fundamentais sociais dos cidadãos, os quais são reconhecidos pela Constituição Federal Brasileira. Sustenta o aludido autor que: “Por via de conseqüência, o artigo 5º, parágrafo 1º da Constituição, impõe a proteção efetiva dos direitos fundamentais não apenas contra a atuação do poder de reforma constitucional (em combinação com o artigo 60, que dispõe a respeito dos limites formais e materiais às emendas constitucionais), mas também contra o legislador ordinário e os demais órgãos estatais (já que medidas administrativas e decisões jurisdicionais também podem atentar contra a segurança jurídica e a proteção de confiança), que, portanto, além de estarem incumbidos de um dever permanente de desenvolvimento e concretização eficiente dos direitos fundamentais (inclusive e, no âmbito da temática versada, de modo particular os direitos sociais) não pode – em qualquer hipótese – suprimir pura e simplesmente ou restringir de modo a invadir o núcleo essencial do direito fundamental ou atentar, de outro modo, contra as exigências da proporcionalidade”(in “A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no direito constitucional”, página web:www.tex.pro.br) VI- Da Concessão De Uso Especial para Fins De Moradia Nos termos da medida provisória nº 2.220/2001, no seu art. 1º fica estabelecido que: “Aquele que, até 30 de junho de 2001, possui como seu, por cinco anos, ininterruptamente, e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural. “ Verifica-se da referida legislação que a tese até hoje perseguida de que a propriedade pública é sagrada, não encontra mais vazão e sustentação na legislação atual. É que até mesmo a área pública é passível de concessão de uso, por lei, desde que cumpridas as suas exigências. Obviamente que não se quer perseguir tal direito nesta demanda, em função do não atendimento de tais requisitos. Porém, é curial demonstrar a este colendo colegiado que os conceitos de antes sofrerão e estão sofrendo um processo de questionamento, por que não se admite que se proceda na desocupação de área habitada por famílias que é considerada como pública somente porque a terra tem o status de pública. Veja-se que já existe legislação e ampla doutrina que entendem a quebra do mito da propriedade pública em benefício da conquista da moradia digna das pessoas, o que sem dúvida alguma é um franco avanço nas relações sociais e somente vem a contemplar os direitos de quem ainda não conquistou o seu direito constitucional à moradia. VII- Direito Constitucional à Moradia e Dever do Estado Estatuto da Cidade Por outro lado, a própria legislação procedeu num franco avanço na matéria relacionada ao direito a moradia quando consagra garantia individual a função social da propriedade na Carta Magna ( art. 6º ) e posteriormente ainda, regulamenta os arts. 182 e 183 também da Constituição Federal, quando da promulgação da Lei 10257/2001 – Estatuto da Cidade. Tal legislação irá prever como diretriz, dentre várias, no art. 2º, inc. XIV: “- regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socio-econômica da população e as normas ambientais;“ Mais adiante ainda estabelece no seu art. 39 que: “A propriedade urbana cumpre a sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas, respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta Lei. “ Ademais, mister destacar a necessidade da hermenêutica constitucional, ou seja, de interpretação da presente demanda conforme a constituição, o que se encontra assentado pelo próprio Supremo Tribunal Federal, com fundamento nas lições, dentre outros, de José Joaquim Gomes Canotilho, motivo pelo qual as saídas processuais devem ser sopesadas frente a direitos fundamentais garantidos e intrinsecamente ligados a Magna Carta, tais como dignidade, vida e moradia, conforme recente publicação do Senado Federal (Estatuto da Cidade – Guia para Implementação pelos Municípios e Cidadãos, p. 163): “O direito à moradia é reconhecido como um direito humano em diversas declarações e tratados internacionais de direitos humanos, nos quais o Estado Brasileiro participa. Entre tantos, destaca-se os seguintes: a Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948 (artigo XXV, item 1), o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (artigo 11), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1965 (artigo V), a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Dicriminação Contra a Mulher de 1979 (artigo 14.2., item h), a Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 (artigo 21, item 1), a Declaração sobre Assentamentos Humanos de Vancouver, de 1976 (Seção III (8) e Capítulo II (ª3), a Agenda 21 sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento de 1992 (Capítulo 7, item 6).” Tal como afirmou o EXMO. MIN. MARCO AURÉLIO, deve ser "retirada a maior eficácia possível dos preceitos constitucionais contidos na carta de 1988, principalmente quando estão colocados no campo da garantias constitucionais". E ainda como ensina o PROF. DR. WALTER CLAUDIUS TOHENBURG: “(...) extrair dos direitos fundamentais o máximo de conteúdo e realização que possam oferecer, de onde uma maximização ou otimização, não apenas em termos teóricos – que devem ultrapassar a linguagem genérica e adota disposições específicas –, mas igualmente de repercussão prática, assim que busque uma real implementação dos direitos fundamentais (efetividade dos direitos fundamentais), a despeito das vicissitudes – como a ausência de regulamentações suficientes ou a nãoinclusão entre prioridades políticas de governo. Há de se ter em vista que a elaboração teórica dos direitos fundamentais encontra-se bastante apurada, mas, infelizmente, não se faz acompanhar e uma prática efetiva.” Também deve ser destacado que a presente demanda não se trata de uma simples possessória, mas também de uma ação judicial que pretende a salvaguarda do interesse público, na defesa do direito humano à moradia de aproximadamente 900 (novecentas) famílias e de cerca de milhares de pessoas humanas, de acordo com o artigo 6º da Constituição Federal. Nesse sentido, merecem ser recordadas as valorosas lições, expostas há quase 20 (vinte) anos, pelo DES. JOSÉ MARIA ROSA TESHEINER, no julgamento dos Embargos Infringentes n. 100287119, do 1º Grupo Cível do Tribunal de Alçada do Estado do Rio Grande do Sul, em 18.11.1983: “Esta não é uma possessória, igual a tantas outras, em que são indivíduos os que contendem. Aqui, uma coletividade se apresenta como ré. Busca-se reintegrar na posse uns poucos e demitir da posse uma comunidade... Essa é a peculiaridade a destacar desde logo, porque não se encontra na lei solução expressa para a hipótese como a presente.” VIII- Da Função Social Da Posse e Da Propriedade A pretensão dos Agravantes foi norteada pela busca do mais elementar direito inerente as civilizações ocidentais: o Direito de Morar. Essa pretensão encontra respaldo jurídico nas razões de fato e de direito alinhados nesta peça. No entanto, nessa “altura” das argumentações expendidas, a compreensão da nova noção de propriedade urbana, agasalhada pela Constituição Federal de 1988 é essencial ao deslinde da questão aqui proposta. Sob esse paradigma, permitem-se os Agravantes, reproduzir as conclusões de EROS ROBERTO GRAU, sobre o aumento das Responsabilidades impostas pelo Poder Constituinte Originário, na Carta Política de 1988, aos proprietários de solo urbano: “(...) se a propriedade dotada de função social não estiver sendo atuada de modo que essa função seja atendida, teremos que o detentor de propriedade como tal já não será mais titular de direito (de propriedade) sobre ela.” Eros Roberto Grau, A Propriedade na Nova Constituição. In: O Patrimônio Imobiliário do Poder Público. São Paulo: Fundação de Desenvolvimento Administrativo, 1989, p. 111. “A função social da propriedade imobiliária, ensina Luiz Edson Fachin, corresponde a uma formulação contemporânea da legitimação do título que encerra a dominialidade. Em outras palavras, a tutela da situação proprietária passa pelo respeito a situação não proprietária. O Código Civil precisa ser estudado à luz da Constituição Federal. O direito de propriedade, embora não seja concedido ou reconhecido em função da sociedade, deve ser exercido em função desta, produzindo e abrigando, e não servindo de reserva de capital a enriquecer o seu domino, em detrimento dos objetivos fundamentais de nossa República de construir uma sociedade justa e solidária.” (KATAOKA, Eduardo Takemi. Declínio do Individualismo e Propriedade, in TEPEDINO, Gustavo (coord.): Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 464-465. “Nos dias atuais, contudo há uma nítida tendência para apreciar direitos outros que os subjetivos obtidos, de maneira precípua, por via do negócio jurídico. Hoje, interesses transindividuais e coletivos, como o dos consumidores lesados por um fornecedor de massa, ou danos ambientais angariam tutela judicial. Isso representa um verdadadeiro turning point jurídico. A doutrina já tem assinalado que se aponta para a tutela dos interesses legítimos (...). O conceito de legitimidade está mudando. De um titular de direito subjetivo, passa-se ao “portador adequado” (...).” GONDINHO, André Osório. Função social da propriedade, in TEPEDINO, Gustavo (coord.): Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 399. “A terra, urbana ou rural, é um dos elementos fundamentais da vida humana. Nela a vida se desenvolve, nela a vida se sustenta. A propriedade imóvel, desta forma, deve ser utilizada de acordo com a sua função social, assegurando a realização dos objetivos básicos da vida.” GONDINHO, André Osório. Função social da propriedade, in TEPEDINO, Gustavo (coord.): Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 399. Em recentes e instigantes artigos, Fábio Konder Comparato e Rosalina Pinto da Costa Rodrigues Pereira defendem o entendimento de que à propriedade que não cumpra os requisitos da função social da propriedade, conforme definidos nos quatro incisos do artigo 186 da Constituição Federal, não está assegurada a proteção possessória prevista na legislação infraconstitucional, principalmente aquela proteção prevista no Código Civil. Embora essa posição, como veremos, seja compartilhada por um grande número de especialistas em direito constitucional, faz-se necessária uma abordagem mais aprofundada sobre o pensamento dos dois autores, em função da relevância e consistência de sua argumentação. Argumentando que a única garantia legal reservada à propriedade rural e urbana que não cumpre sua função social é a indenização em caso de desapropriação, ambos os autores mencionados são incisivos em afirmar que não pode o Poder Judiciário prestar tutela jurisdicional de defesa da posse em relação a imóvel que não cumpre sua função social, sob pena de estender a este tipo de propriedade garantias diversas daquela única prevista na Constituição Federal (indenização em caso de desapropriação). A Constituição obriga o juiz a enfrentar, ainda que sem requerimento da parte, o tema pertinente à “função social da propriedade". (Bernardo Mançano Fernandes et alli. A Questão Agrária e a Justiça. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2000, página 207) IX- Do Inadequado Deferimento da Liminar De Reintegração de Posse De todo o acima exposto, conclui-se que a medida liminar deferida e que determina a desocupação da área do estado de maneira imediata, não se traduz como a melhor alternativa jurídica para o conflito apresentado. É que o Direito não pode ficar alheio a vida e aos problemas sociais. O comando interno e subjetivo da ordenação ora atacada nos diz que no momento em que se proceda na desocupação da área em questão, o direito será respeitado e vingará a paz social. Ora, que paz social é esta, que coloca milhares de pessoas ao léu, sem terem para onde ir ?? O deferimento da medida liminar, neste caso específico, jamais pode ser considerada como medida adequada para enfrentamento de um grave problema social como este, e que sabe-se o Poder judiciário não pode se furtar, como instituição que integra o Poder Estatal que é. Nesse sentido, o posicionamento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, em acórdão relatado pelo eminente DES. RUI PORTANOVA: Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, 5a Câmara Cível, Agravo de Instrumento n. 197193535, Rel. Des. Rui Portanova, j. 26.03.1998. “AÇÃO POSSESSÓRIA – SEM TERRA OU SEM TETO – LIMINAR – Pelos termos da lei, no ponto liminar do litígio o juiz tem duas opções: deferir ou indeferir o pedido liminar. Logo, as duas soluções (o deferimento e o indeferimento do pedido liminar), estão rigorosamente dentro da lei. Vale a pena notar, tratar-se apenas de uma decisão liminar (tão rápida e transitória como toda decisão liminar) e não a decisão definitiva. (aliás, nestes casos, a solução liminar deferitória e que tem se tornado definitiva). O direito e fato, valor e norma. Nos casos de ocupação de área por grupos de famílias de (sem teto ou sem terra) o valor social e tão relevante do que o valor da lei. Por isso, a melhor solução sempre tem vindo pela via conciliatória. Ora, em sede de decisão liminar o projeto conciliatório fica totalmente frustrado. Assim, resta importante oportunizar-se a formação do contraditório e a possibilidade de maior participação do juiz na avaliação das razões de ambas as partes e na busca de uma solução negociada.” Também em recente decisão, o TJGRS, através de sua 19ª Câmara Cível, relator Carlos Rafael dos Santos Junior, negou efeito suspensivo ao agravo impetrado pelos proprietários de uma gleba de terras rurais ocupada, em parte, por famílias de trabalhadores rurais sem-terra, cuja liminar de reintegração de posse foi indeferida pelo juízo de origem. A decisão prolatada, pelo Tribunal, confirmou a decisão do Juiz da Comarca de Passo Fundo, Dr. Luis Christiano Eger Aires, que para indeferir a medida liminar postulada para desocupação do imóvel rural, invocou, para além do conflito entre o direito patrimonial e o direito à vida digna, a falta de elementos que indicassem que a propriedade cumpria sua função social, exigida pelo artigo 5º, incisos XXII e XXIII, da Constituição Federal. “Portanto, para alguém exigir a cautela judicial de proteção à sua posse ou propriedade, necessita fazer prova adequada de que esteja usando ou gozando desse bem ‘secundum beneficium societatis’, ou seja, do acordo com os interesses da sociedade e não apenas seus próprios interesses ou de sua família, principalmente quando o grau desse exercício é diminuto como na hipótese, já que ocupados apenas três hectares no universo da propriedade.”1 “Nos autos da demanda possessória, pelo menos nas peças que aportaram ao agravo, não existe demonstração do atendimento da normaem debate. Por outro lado, não se deve descurar da circunstância de que a questão, a rigor, adentra o campo da política social e fundiária de nosso Estado e da União, cuja solução efetiva se tem postergado por absoluta inércia e falta de ações decididas, prontas e eficazes daqueles a quem incumbiria , por lei, encontrar e implementar a paz social, que parece buscada somente no discurso.”2 Conclui-se do até aqui exposto que o conceito de propriedade, nos dias de hoje sentiu um processo de evolução por força do andar das relações sociais. Assim, o conceito absoluto de propriedade consagrado em vários estatutos políticos, jurídicos e teóricos não pode ser mais visto com o olhar do passado. Torna-se 1 2 Processo nº 02100885509 A.I. 70003434388, 19ª Câmara Cível – TJRS. necessária, sem a menor sombra de dúvidas uma visão contextualizada do termo abstrato propriedade. X- Das Razões para a Concessão do Efeito Suspensivo/Concessivo da Liminar Pleiteada DA LESÃO GRAVE E DE DIFÍCIL REPARAÇÃO. Em persistindo a presente situação, em que os Agravantes têm uma decisão contra si para desocupação da área de maneira imediata, mais de 900 ( novecentas) famílias ficarão sujeitas ao completo abandono e não terão para onde ir, já que estes lutam justamente pelo direito humano de moradia digna em detrimento do vazio urbano representado pelo imóvel ocupado. Com o devido respeito, isto apesar de ser um problema de caráter social não pode ficar longe da apreciação do Poder Judiciário, o qual, no entender destes Agravantes, deve se posicionar de maneira a comprometer-se com a condição de dignidade destas pessoas, nos termos do que define a lei. ANTE TODO O EXPOSTO, requerem estes Agravantes, uma vez estando presentes pela narração dos fatos as figuras do perigo da demora e a fumaça do bom direito, se digne V. EXA., nos termos dos artigos 527, inc. II cumulado com o art. 558 todos do CPC em conceder efeito suspensivo/concessivo da r. decisão ora atacada “ in limine “, no início do litígio e sem a ouvida da parte contrária para: a) suspender a determinação de desocupação da área em questão pelos Agravantes, bem como suspender a determinação de identificação dos Agravantes, permitindo o direito de entrada e saída dos mesmos da área ocupada; Após, quando do enfrentamento do mérito, requerem estes Agravantes seja totalmente reformada a r. decisão do juízo “ a quo “ indeferindo-se na sua totalidade a liminar pleiteada pelo Agravado. Por fim requer que lhes seja conferido o benefício da gratuidade da justiça, haja vista que são pessoas de condição financeira pobre e que não têm condições de arcar com as custas processuais deste feito sem que isso inviabilize o seu sustento e o de sua família. Pedem Deferimento.