EGRÉGIO TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL.
COLÊNDA CÂMARA CÍVEL
EXMO. SR. DR. DESEMBARGADOR RELATOR
Agravo de Instrumento
com Pedido de Efeito Suspensivo/Concessivo
Pedido Liminar
Urgente
XXXXXXXXX e Outros, todos residentes e domiciliados
nesta cidade de Canoas – RS no Parque Jorge Laner, bairro Niteroi, por seu procurador
firmatário, “ ut “ instrumento procuratório em apenso, vêm, respeitosamente à presença
de V. EXA. interpor o presente recurso de AGRAVO DE INSTRUMENTO COM
PEDIDO DE EFEITO SUSPENSIVO/CONCESSIVO contra o MUNICÍPIO DE
......., pessoa jurídica de direito público, consoante os fatos e fundamentos que abaixo
seguem:
I- PRESSUPOSTO DE ADMISSIBILIDADE
1.
DA LESÃO GRAVE E DE DIFÍCIL REPARAÇÃO (ART. 22 C/C ART. 527,
INC. II DA LEI 11.187/05). O presente recurso deve ser admitido na sua forma
instrumental e não retida, tendo em vista o cumprimento do requisito de
admissibilidade, qual seja, a existência de lesão grave e de difícil reparação. É que os
ora Agravantes estão em situação de total vulnerabilidade social, ocupando área
municipal, sobre a qual pesa ordem de reintegração de posse de caráter imediato.
2.
Isto quer dizer que, a persistir a r. decisão interlocutória ora atacada, os
Agravantes terão de desocupar a área na qual estão residindo com as suas famílias. Há
que se levar em conta ainda que a área ora em debate está ocupada por mais de 3.000
pessoas ou mais ou menos 900 famílias. Mais. As aludidas famílias já receberam a
visita dos Oficiais de Justiça designados para cumprimento da ordem, bem como da
Brigada Militar, para efetuarem o despejo, os quais, por falta de efetivo, não o fizeram.
Então, quer se crer que a desocupação acontecerá a qualquer momento, motivo pelo
qual se utiliza, inclusive do presente expediente de plantão para a apreciação das
presentes razões de agravo de instrumento.
3.
Assim, cabe frisar que resta por demais caracterizado o pressuposto da
lesão grave e de difícil reparação dos Agravantes, já que se não for enfrentado este
recurso na forma instrumental, estes terão que desocupar a área em debate que resulta
na única moradia das 900 famílias residentes no local, não tendo, definitivamente, local
para onde ir, já que estão em estado de vulnerabilidade social e sem poder exercer de
garantia constitucional social, que é a moradia.
4.
Pelo exposto, requerem estes Agravantes se digne V. EXA. em receber o
presente recurso de agravo na sua forma instrumental, a fim de que se possa apreciar o
pleito de suspensão da ordem de reintegração de posse e posterior exame de mérito.
II-DOS FATOS
Com base na apreciação de medida liminar postulada em ação de
Reintegração de Posse ajuizada pelo ora Agravado o dd. juízo “a quo“ entendeu por
deferir a liminar pleiteada para determinar a desocupação da área em questão de
maneira imediata, sem prazo mínimo para desocupação voluntária.
Em suas razões, a r. decisão ora guerreada tratou de acolher os
argumentos expendidos na vestibular possessória, sustentando que a posse exercida
pelos Agravantes é imprópria e caracterizadora de esbulho, eis que se trata de
“invasão“.
II- DA REALIDADE SOCIAL DOS AGRAVANTES
Com o devido respeito à decisão ora recorrida, esta não merece
prosperar. Efetivamente, segue em anexo o cadastro das famílias que residem no local e
que nos dá conta de que são famílias de trabalhadores que constam todas com crianças e
adolescentes e que são famílias que não têm moradia fixa, vivendo de aluguel ou de
favor, conforme o caso.
Definitivamente, os Agravantes não são invasores, são cidadãos
como quaisquer outros que buscam conquistar o seu direito constitucional à moradia
digna. Não há neste caso nenhum tipo de medida clandestina ou que tenha caráter
violento, eis que a defesa da moradia pelos Agravantes se dá de maneira organizada,
sem atos violentos e sem qualquer ofensa à ordem pública.
Com efeito, os Agravantes estão na posse do imóvel objeto da
presente demanda judicial desde o dia 28.04.2006. São pessoas de elevado estado de
necessidade e que viviam sem moradia nesta cidade pagando quando possível, aluguéis
ou então vivendo de favor em casa de parentes ou amigos.
Por sua vez, o Agravado não vem dando a constitucional
destinação econômica e social ao imóvel em questão, já que junta matrícula do imóvel
datado de 1995, seja em:
a) termos econômicos, o imóvel encontra-se em situação de
abandono há mais de 10 (dez) anos, conforme se depreende de pesquisa realizada
perante o Registro de Imóveis desta cidade de Canoas, o que impede o desenvolvimento
econômico daquela localidade;
b) termos sociais, nitidamente o espaço urbano não está
cumprindo a sua função social, o que afronta a moderna legislação urbanística, em
particular, o Estatuto da Cidade.
Por outro lado, os ocupantes promoverão o desenvolvimento
econômico, mediante a circulação de bens e serviços no local, bem como o
desenvolvimento social com o assentamento de um número aproximado de 900 (
novecentas ) famílias na área, as quais estão em risco social e ainda viabilizar as
condições dignas de sobrevivência humana.
Em verdade, os ocupantes fazem parte de famílias desprovidas de
um mínimo necessário de assistência social, o que caracteriza o seu estado de
necessidade e sua legítima defesa da dignidade da pessoa humana.
II.1- DOS PROCESSOS DE LUTA PARA A CONQUISTA DA MORADIA PELOS AGRAVANTES
A fim de viabilizar a moradia dos ora Agravantes na área de
propriedade do Agravado, a qual está abandonada e subutilizada, a comunidade local,
representada pelos ora Agravantes participaram de REUNIÃO perante o Executivo
Público Municipal, onde já se encaminhou uma tratativa de acordo com a realização de
cadastro das famílias ocupantes do local, ao que se depreende da última parte da inclusa
ATA DE REUNIÃO acostada com a presente peça recursal.
Mais, em tal reunião além da assessoria jurídica do Município,
estava também presentes o Secretário responsável pelas políticas públicas da
municipalidade, e demais Vereadores da cidade, os quais concordaram com os termos
da Ata de reunião, e muito embora frisarem a existência de uma decisão judicial, não se
negaram em receber os Agravantes e em efetuarem os cadastros das famílias. É do
corpo da Ata de Reunião realizada na data de 04 de maio de 2006:
“...o Município se compromete em fazer o cadastramento das famílias que estão na
área ...disponibilizando equipes de cadastramento. Após será feita avaliação das
famílias que realmente tenham necessidade de moradia...” .
Dessa forma, já existe o comprometimento público com uma
solução negociada para a presente questão, quando existe uma aproximação dos
Agravantes com o Município, que tentam encontrar solução para este grave problema
social que é a falta de moradia, devendo, portanto ser suspenso o cumprimento da
presente reintegração de posse.
Portanto, a presente problemática não pode ser analisada de modo
reducionista, mas sim de acordo com a mais avançada compreensão científica da
complexidade, em superação ao caráter fragmentário da ciência moderna cartesiana, tal
como sustenta FRITJOF CAPRA (A Teia da Vida. São Paulo: Cultrix, 1999, p. 23 e
46):
“Quanto mais estudamos os principais problemas de nossa
época, mais somos levados a perceber que eles não podem
ser entendidos isoladamente. São problemas sistêmicos, o
que significa que estão interligados e são
interdependentes.”
“Na mudança do pensamento mecanicista para o
pensamento sistêmico, a relação entre as parte e o todo foi
invertida.
A ciência cartesiana acreditava que em qualquer sistema
complexo o comportamento do todo podia ser analisado
em termos da propriedades de suas partes.
A ciência sistêmica mostra que os sistemas vivos não
podem ser compreendidos por meio da análise. As
propriedades das partes não são propriedades intrínsecas,
mas só podem ser entendidas dentro do contexto do todo
maior. (...)”
III- Do Estado de Abandono da Área Ocupada
Por conseguinte, resta claro e transparente neste feito o completo
ESTADO DE ABANDONO da área ocupada por mais de 10 anos. Tal VAZIO
URBANO está por contaminar de precariedade à propriedade do Agravado, nos termos
do Estatuto da Cidade.
O imóvel urbano deve CUMPRIR A SUA FUNÇÃO SOCIAL,
qual seja a de conferir local para moradia das pessoas. Não pode o Agravado, o qual é
pessoa jurídica de direito público, e, portanto, obrigada ao cumprimento da lei e da
Constituição Federal deixar ao relento imóvel de sua propriedade por tão longo tempo,
em detrimento de milhares de pessoas que não possuem onde morar com dignidade.
De outra parte, causa espanto a narração dos fatos da inaugural, a
qual tenta de todas as formas dar conotação de clandestinidade e de violência para a
ocupação ocorrida e ainda força a argumentação na tentativa de caracterizar a posse
nova. Ora, nada mais absurdo, os ocupantes são pessoas como qualquer outra que
trabalham e tem a sua família, o que estão fazendo é reivindicar legitimamente por um
direito e se socorrendo da lei ( Estatuto da Cidade ) e do Judiciário.
Ademais, a presente demanda tem um caráter social pungente,
que trata de uma das questões mais cruciais da sociedade brasileira, que é o acesso à
moradia digna. Em assim sendo, o olhar que o direito deve direcionar ao tema deve ser
feito no conjunto do seu ordenamento jurídico, não se prendendo a terminologismo
(invasão), nem tampouco a uma visão legalista do direito. Inclusive é assim que tem
entendido o Superior Tribunal de Justiça – STJ em arestos cuja ementa segue abaixo:
“A melhor interpretação da lei é a que se preocupa com a solução justa, não
podendo o seu aplicador esquecer que o rigorismo na exegese dos textos legais pode
levar a injustiças.“ ( RSTJ 4/1554 e STJ-RT 656/188 )
Assim também tem entendido o Min. Sálvio de Figueiredo em
RSTJ 26/378: a citação é da pg. 384:
“A interpretação das leis não deve ser formal, mas sim, antes de tudo, real,
humana, socialmente útil. (...) Se o juiz não pode tomar liberdades inadmissíveis
com a lei, julgando “ contra legem “, pode e deve, por outro lado, optar pela
interpretação que melhor atenda às aspirações da Justiça e do bem comum“.
IV- Falta Dos Pressupostos Para Concessão Do Pedido De Reintegração De Posse
NÃO COMPROVAÇÃO DA POSSE PELO MUNICÍPIO
Veja-se que o Agravado, não procedeu na devida comprovação da posse
da área, que efetivamente não a tem, posto que a referida área está ociosa e abandonada
por mais de 10 anos.
Nos termos do art. 927 e seus incisos do CPC, existe a necessidade de
comprovação de inúmeros requisitos pela Agravada para ver concedido o seu pleito de
reintegração de posse, o que não se verifica nestes autos, uma vez que não se constata a
propriedade da área pela matrícula, nem tampouco se comprova a posse exercida por
esta sobre a área, requisito para a concessão da medida.
V- O Direito à Moradia como Garantia Social
Com efeito, o direito fundamental e constitucional à moradia é regra de
garantia social que guarda aplicação imediata pelo Poder Judiciário, devendo ser
conferida a manutenção de posse aos ora Embargantes da área ocupada, tendo em vista
a inegável comprovação do vazio urbano representado pela área a qual está sem
exteriorização da propriedade por mais de 10 anos.
Nesta linha tem entendido a imensa doutrina jurídica, em especial
o emérito jurista Ingo Wolfgang Sarlet, quando trabalha com o Princípio Jurídico do
Não Retrocesso. Tal Princípio nasce dentro do direito constitucional, como suporte de
atendimento dos direitos fundamentais sociais dos cidadãos, os quais são reconhecidos
pela Constituição Federal Brasileira. Sustenta o aludido autor que:
“Por via de conseqüência, o artigo 5º, parágrafo 1º da
Constituição, impõe a proteção efetiva dos direitos
fundamentais não apenas contra a atuação do poder de
reforma constitucional (em combinação com o artigo 60, que
dispõe a respeito dos limites formais e materiais às emendas
constitucionais), mas também contra o legislador ordinário e
os demais órgãos estatais (já que medidas administrativas e
decisões jurisdicionais também podem atentar contra a
segurança jurídica e a proteção de confiança), que, portanto,
além de estarem incumbidos de um dever permanente de
desenvolvimento e concretização eficiente dos direitos
fundamentais (inclusive e, no âmbito da temática versada, de
modo particular os direitos sociais) não pode – em qualquer
hipótese – suprimir pura e simplesmente ou restringir de
modo a invadir o núcleo essencial do direito fundamental ou
atentar, de outro modo, contra as exigências da
proporcionalidade”(in “A eficácia do direito fundamental à
segurança jurídica: dignidade da pessoa humana, direitos
fundamentais e proibição de retrocesso social no direito
constitucional”, página web:www.tex.pro.br)
VI- Da Concessão De Uso Especial para Fins De Moradia
Nos termos da medida provisória nº 2.220/2001, no seu art. 1º fica
estabelecido que:
“Aquele que, até 30 de junho de 2001, possui como seu, por cinco anos,
ininterruptamente, e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de
imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua
família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação
ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a
qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural. “
Verifica-se da referida legislação que a tese até hoje perseguida
de que a propriedade pública é sagrada, não encontra mais vazão e sustentação na
legislação atual. É que até mesmo a área pública é passível de concessão de uso, por lei,
desde que cumpridas as suas exigências.
Obviamente que não se quer perseguir tal direito nesta demanda,
em função do não atendimento de tais requisitos. Porém, é curial demonstrar a este
colendo colegiado que os conceitos de antes sofrerão e estão sofrendo um processo de
questionamento, por que não se admite que se proceda na desocupação de área habitada
por famílias que é considerada como pública somente porque a terra tem o status de
pública.
Veja-se que já existe legislação e ampla doutrina que entendem a
quebra do mito da propriedade pública em benefício da conquista da moradia digna das
pessoas, o que sem dúvida alguma é um franco avanço nas relações sociais e somente
vem a contemplar os direitos de quem ainda não conquistou o seu direito constitucional
à moradia.
VII- Direito Constitucional à Moradia e Dever do Estado
Estatuto da Cidade
Por outro lado, a própria legislação procedeu num franco avanço
na matéria relacionada ao direito a moradia quando consagra garantia individual a
função social da propriedade na Carta Magna ( art. 6º ) e posteriormente ainda,
regulamenta os arts. 182 e 183 também da Constituição Federal, quando da
promulgação da Lei 10257/2001 – Estatuto da Cidade.
Tal legislação irá prever como diretriz, dentre várias, no
art. 2º, inc. XIV:
“- regularização fundiária e urbanização de áreas
ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas
especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a
situação socio-econômica da população e as normas ambientais;“
Mais adiante ainda estabelece no seu art. 39 que:
“A propriedade urbana cumpre a sua função social
quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no
plano diretor, assegurando o atendimento das necessidades dos cidadãos quanto à
qualidade de vida, à justiça social e ao desenvolvimento das atividades econômicas,
respeitadas as diretrizes previstas no art. 2º desta Lei. “
Ademais, mister destacar a necessidade da hermenêutica
constitucional, ou seja, de interpretação da presente demanda conforme a constituição, o
que se encontra assentado pelo próprio Supremo Tribunal Federal, com fundamento nas
lições, dentre outros, de José Joaquim Gomes Canotilho, motivo pelo qual as saídas
processuais devem ser sopesadas frente a direitos fundamentais garantidos e
intrinsecamente ligados a Magna Carta, tais como dignidade, vida e moradia, conforme
recente publicação do Senado Federal (Estatuto da Cidade – Guia para
Implementação pelos Municípios e Cidadãos, p. 163):
“O direito à moradia é reconhecido como um direito
humano em diversas declarações e tratados internacionais
de direitos humanos, nos quais o Estado Brasileiro
participa. Entre tantos, destaca-se os seguintes: a
Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948
(artigo XXV, item 1), o Pacto Internacional de Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais de 1966 (artigo 11), a
Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de
Discriminação Racial de 1965 (artigo V), a Convenção
sobre a Eliminação de Todas as Formas de Dicriminação
Contra a Mulher de 1979 (artigo 14.2., item h), a
Convenção sobre os Direitos da Criança de 1989 (artigo
21, item 1), a Declaração sobre Assentamentos Humanos
de Vancouver, de 1976 (Seção III (8) e Capítulo II (ª3), a
Agenda 21 sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento de
1992 (Capítulo 7, item 6).”
Tal como afirmou o EXMO. MIN. MARCO AURÉLIO,
deve ser "retirada a maior eficácia possível dos preceitos constitucionais contidos na
carta de 1988, principalmente quando estão colocados no campo da garantias
constitucionais".
E ainda como ensina o PROF. DR. WALTER
CLAUDIUS TOHENBURG:
“(...) extrair dos direitos fundamentais o máximo de
conteúdo e realização que possam oferecer, de onde uma
maximização ou otimização, não apenas em termos
teóricos – que devem ultrapassar a linguagem genérica e
adota disposições específicas –, mas igualmente de
repercussão prática, assim que busque uma real
implementação dos direitos fundamentais (efetividade dos
direitos fundamentais), a despeito das vicissitudes – como
a ausência de regulamentações suficientes ou a nãoinclusão entre prioridades políticas de governo. Há de se
ter em vista que a elaboração teórica dos direitos
fundamentais encontra-se bastante apurada, mas,
infelizmente, não se faz acompanhar e uma prática
efetiva.”
Também deve ser destacado que a presente demanda não
se trata de uma simples possessória, mas também de uma ação judicial que pretende a
salvaguarda do interesse público, na defesa do direito humano à moradia de
aproximadamente 900 (novecentas) famílias e de cerca de milhares de pessoas humanas,
de acordo com o artigo 6º da Constituição Federal.
Nesse sentido, merecem ser recordadas as valorosas lições,
expostas há quase 20 (vinte) anos, pelo DES. JOSÉ MARIA ROSA TESHEINER, no
julgamento dos Embargos Infringentes n. 100287119, do 1º Grupo Cível do Tribunal de
Alçada do Estado do Rio Grande do Sul, em 18.11.1983:
“Esta não é uma possessória, igual a tantas outras, em
que são indivíduos os que contendem. Aqui, uma
coletividade se apresenta como ré. Busca-se reintegrar
na posse uns poucos e demitir da posse uma
comunidade... Essa é a peculiaridade a destacar desde
logo, porque não se encontra na lei solução expressa
para a hipótese como a presente.”
VIII- Da Função Social Da Posse e Da Propriedade
A pretensão dos Agravantes foi norteada pela busca do
mais elementar direito inerente as civilizações ocidentais: o Direito de Morar.
Essa pretensão encontra respaldo jurídico nas razões de
fato e de direito alinhados nesta peça. No entanto, nessa “altura” das argumentações
expendidas, a compreensão da nova noção de propriedade urbana, agasalhada pela
Constituição Federal de 1988 é essencial ao deslinde da questão aqui proposta.
Sob esse paradigma, permitem-se os Agravantes,
reproduzir as conclusões de EROS ROBERTO GRAU, sobre o aumento das
Responsabilidades impostas pelo Poder Constituinte Originário, na Carta Política de
1988, aos proprietários de solo urbano:
“(...) se a propriedade dotada de função social não
estiver sendo atuada de modo que essa função seja
atendida, teremos que o detentor de propriedade como
tal já não será mais titular de direito (de propriedade)
sobre ela.”
Eros Roberto Grau, A Propriedade na Nova Constituição.
In: O Patrimônio Imobiliário do Poder Público. São
Paulo: Fundação de Desenvolvimento Administrativo,
1989, p. 111.
“A função social da propriedade imobiliária, ensina Luiz
Edson Fachin, corresponde a uma formulação
contemporânea da legitimação do título que encerra a
dominialidade. Em outras palavras, a tutela da situação
proprietária passa pelo respeito a situação não
proprietária. O Código Civil precisa ser estudado à luz da
Constituição Federal.
O direito de propriedade, embora não seja concedido ou
reconhecido em função da sociedade, deve ser exercido
em função desta, produzindo e abrigando, e não servindo
de reserva de capital a enriquecer o seu domino, em
detrimento dos objetivos fundamentais de nossa
República de construir uma sociedade justa e solidária.”
(KATAOKA,
Eduardo
Takemi.
Declínio
do
Individualismo e Propriedade, in TEPEDINO, Gustavo
(coord.): Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio
de Janeiro: Renovar, 2001, p. 464-465.
“Nos dias atuais, contudo há uma nítida tendência para
apreciar direitos outros que os subjetivos obtidos, de
maneira precípua, por via do negócio jurídico. Hoje,
interesses transindividuais e coletivos, como o dos
consumidores lesados por um fornecedor de massa, ou
danos ambientais angariam tutela judicial. Isso representa
um verdadadeiro turning point jurídico. A doutrina já tem
assinalado que se aponta para a tutela dos interesses
legítimos (...).
O conceito de legitimidade está mudando. De um titular
de direito subjetivo, passa-se ao “portador adequado”
(...).” GONDINHO, André Osório. Função social da
propriedade, in TEPEDINO, Gustavo (coord.):
Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio de
Janeiro: Renovar, 2001, p. 399.
“A terra, urbana ou rural, é um dos elementos
fundamentais da vida humana. Nela a vida se
desenvolve, nela a vida se sustenta. A propriedade
imóvel, desta forma, deve ser utilizada de acordo com
a sua função social, assegurando a realização dos
objetivos básicos da vida.” GONDINHO, André Osório.
Função social da propriedade, in TEPEDINO, Gustavo
(coord.): Problemas de Direito Civil-Constitucional. Rio
de Janeiro: Renovar, 2001, p. 399.
Em recentes e instigantes artigos, Fábio Konder Comparato e
Rosalina Pinto da Costa Rodrigues Pereira defendem o entendimento de que à
propriedade que não cumpra os requisitos da função social da propriedade, conforme
definidos nos quatro incisos do artigo 186 da Constituição Federal, não está assegurada
a proteção possessória prevista na legislação infraconstitucional, principalmente aquela
proteção prevista no Código Civil. Embora essa posição, como veremos, seja
compartilhada por um
grande número de especialistas em direito constitucional, faz-se necessária uma
abordagem mais aprofundada sobre o pensamento dos dois autores, em função da
relevância e consistência de sua argumentação.
Argumentando que a única garantia legal reservada à propriedade
rural e urbana que não cumpre sua função social é a indenização em caso de
desapropriação, ambos os autores mencionados são incisivos em afirmar que não pode o
Poder Judiciário prestar tutela jurisdicional de defesa da posse em relação a imóvel que
não cumpre sua função social, sob pena de estender a este tipo de propriedade garantias
diversas daquela única prevista na Constituição Federal (indenização em caso de
desapropriação).
A Constituição obriga o juiz a enfrentar, ainda que sem
requerimento da parte, o tema pertinente à “função social da propriedade". (Bernardo
Mançano Fernandes et alli. A Questão Agrária e a Justiça. São Paulo: Editora Revista
dos Tribunais, 2000, página 207)
IX- Do Inadequado Deferimento da Liminar
De Reintegração de Posse
De todo o acima exposto, conclui-se que a medida liminar
deferida e que determina a desocupação da área do estado de maneira imediata, não se
traduz como a melhor alternativa jurídica para o conflito apresentado. É que o Direito
não pode ficar alheio a vida e aos problemas sociais. O comando interno e subjetivo da
ordenação ora atacada nos diz que no momento em que se proceda na desocupação da
área em questão, o direito será respeitado e vingará a paz social. Ora, que paz social é
esta, que coloca milhares de pessoas ao léu, sem terem para onde ir ?? O deferimento da
medida liminar, neste caso específico, jamais pode ser considerada como medida
adequada para enfrentamento de um grave problema social como este, e que sabe-se o
Poder judiciário não pode se furtar, como instituição que integra o Poder Estatal que é.
Nesse sentido, o posicionamento do Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul, em acórdão relatado pelo eminente DES. RUI
PORTANOVA:
Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, 5a
Câmara Cível, Agravo de Instrumento n. 197193535, Rel.
Des. Rui Portanova, j. 26.03.1998.
“AÇÃO POSSESSÓRIA – SEM TERRA OU SEM
TETO – LIMINAR – Pelos termos da lei, no ponto
liminar do litígio o juiz tem duas opções: deferir ou
indeferir o pedido liminar. Logo, as duas soluções (o
deferimento e o indeferimento do pedido liminar),
estão rigorosamente dentro da lei. Vale a pena notar,
tratar-se apenas de uma decisão liminar (tão rápida e
transitória como toda decisão liminar) e não a decisão
definitiva. (aliás, nestes casos, a solução liminar
deferitória e que tem se tornado definitiva). O direito e
fato, valor e norma. Nos casos de ocupação de área por
grupos de famílias de (sem teto ou sem terra) o valor
social e tão relevante do que o valor da lei. Por isso, a
melhor solução sempre tem vindo pela via
conciliatória. Ora, em sede de decisão liminar o projeto
conciliatório fica totalmente frustrado. Assim, resta
importante oportunizar-se a formação do contraditório
e a possibilidade de maior participação do juiz na
avaliação das razões de ambas as partes e na busca de
uma solução negociada.”
Também em recente decisão, o TJGRS, através de sua 19ª
Câmara Cível, relator Carlos Rafael dos Santos Junior, negou efeito suspensivo ao
agravo impetrado pelos proprietários de uma gleba de terras rurais ocupada, em parte,
por famílias de trabalhadores rurais sem-terra, cuja liminar de reintegração de posse foi
indeferida pelo juízo de origem.
A decisão prolatada, pelo Tribunal, confirmou a decisão do Juiz
da Comarca de Passo Fundo, Dr. Luis Christiano Eger Aires, que para indeferir a
medida liminar postulada para desocupação do imóvel rural, invocou, para além do
conflito entre o direito patrimonial e o direito à vida digna, a falta de elementos que
indicassem que a propriedade cumpria sua função social, exigida pelo artigo 5º, incisos
XXII e XXIII, da Constituição Federal.
“Portanto, para alguém exigir a cautela judicial de proteção à sua
posse ou propriedade, necessita fazer prova adequada de que esteja usando ou gozando
desse bem ‘secundum beneficium societatis’, ou seja, do acordo com os interesses da
sociedade e não apenas seus próprios interesses ou de sua família, principalmente
quando o grau desse exercício é diminuto como na hipótese, já que ocupados apenas
três hectares no universo da propriedade.”1
“Nos autos da demanda possessória, pelo menos nas peças que
aportaram ao agravo, não existe demonstração do atendimento da normaem debate.
Por outro lado, não se deve descurar da circunstância de que a questão, a rigor,
adentra o campo da política social e fundiária de nosso Estado e da União, cuja
solução efetiva se tem postergado por absoluta inércia e falta de ações decididas,
prontas e eficazes daqueles a quem incumbiria , por lei, encontrar e implementar a paz
social, que parece buscada somente no discurso.”2
Conclui-se do até aqui exposto que o conceito de propriedade, nos
dias de hoje sentiu um processo de evolução por força do andar das relações sociais.
Assim, o conceito absoluto de propriedade consagrado em vários estatutos políticos,
jurídicos e teóricos não pode ser mais visto com o olhar do passado. Torna-se
1
2
Processo nº 02100885509
A.I. 70003434388, 19ª Câmara Cível – TJRS.
necessária, sem a menor sombra de dúvidas uma visão contextualizada do termo
abstrato propriedade.
X- Das Razões para a Concessão do Efeito Suspensivo/Concessivo da Liminar
Pleiteada
DA LESÃO GRAVE E DE DIFÍCIL REPARAÇÃO. Em
persistindo a presente situação, em que os Agravantes têm uma decisão contra si para
desocupação da área de maneira imediata, mais de 900 ( novecentas) famílias ficarão
sujeitas ao completo abandono e não terão para onde ir, já que estes lutam justamente
pelo direito humano de moradia digna em detrimento do vazio urbano representado pelo
imóvel ocupado. Com o devido respeito, isto apesar de ser um problema de caráter
social não pode ficar longe da apreciação do Poder Judiciário, o qual, no entender destes
Agravantes, deve se posicionar de maneira a comprometer-se com a condição de
dignidade destas pessoas, nos termos do que define a lei.
ANTE TODO O EXPOSTO, requerem estes Agravantes, uma vez
estando presentes pela narração dos fatos as figuras do perigo da demora e a fumaça do
bom direito, se digne V. EXA., nos termos dos artigos 527, inc. II cumulado com o art.
558 todos do CPC em conceder efeito suspensivo/concessivo da r. decisão ora atacada “
in limine “, no início do litígio e sem a ouvida da parte contrária para:
a) suspender a determinação de desocupação da área
em questão pelos Agravantes, bem como suspender a determinação de
identificação dos Agravantes, permitindo o direito de entrada e saída dos mesmos
da área ocupada;
Após, quando do enfrentamento do mérito, requerem estes
Agravantes seja totalmente reformada a r. decisão do juízo “ a quo “ indeferindo-se na
sua totalidade a liminar pleiteada pelo Agravado.
Por fim requer que lhes seja conferido o benefício da gratuidade
da justiça, haja vista que são pessoas de condição financeira pobre e que não têm
condições de arcar com as custas processuais deste feito sem que isso inviabilize o seu
sustento e o de sua família.
Pedem Deferimento.
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