3a
EM
TEXTOS
TEXTO 1
O indivíduo em combate com o cidadão
A apresentação dos membros como indivíduos é a marca registrada da
sociedade moderna. A “individualização” agora significa uma coisa muito
diferente do que significava há cem anos atrás e do que implicava nos
primeiros tempos da era moderna – os tempos da exaltada “emancipação” do
homem da trama estreita da dependência e do controle. A mesa foi virada e a
tarefa que costumava ser a de defesa da autonomia privada contra as tropas
avançadas da “esfera pública” se inverte. Hoje a tarefa é defender, reequipar e
repovoar o evanescente domínio público. Não é mais verdade que o público
tente colonizar o privado. O que se dá é o contrário: é o privado que coloniza o
espaço público, espremendo e expulsando o que quer que não possa ser
expresso inteiramente no vernáculo dos cuidados e iniciativas privadas.
O espaço público não é muito mais que uma tela gigante em que as aflições
privadas são projetadas sem cessar, é onde se faz a confissão de segredos e
intimidades privadas e onde o que cada vez mais é percebido como questões
públicas são os problemas privados de figuras públicas. E assim há também
outro obstáculo, como Tocqueville há muito suspeitava: libertar as pessoas
pode torná-las indiferentes. O indivíduo é o pior inimigo do cidadão sugeriu ele.
O cidadão é uma pessoa que tende a buscar seu próprio bem-estar através do
bem-estar da cidade – enquanto o indivíduo tende a ser morno, cético ou
prudente em relação à causa comum, ao bem comum, à boa sociedade ou à
sociedade justa. Em suma: o outro lado da individualização parece ser a
corrosão e a lenta desintegração da cidadania.
Texto adaptado do livro Modernidade Líquida, de Zigmunt Bauman.
TEXTO 2
O modo de navegação social: a malandragem, o “jeitinho” e o “você sabe
com quem está falando?”
Roberto DaMatta, estudioso dos costumes e hábitos do Brasil, propõe neste
capítulo de seu livro “O que é o Brasil?” analisar os fenômenos do jeitinho, da
malandragem e o “você sabe com quem está falando?”. Ele diz que há duas
esferas que permeiam a vida do brasileiro, a “casa” que é onde predominam os
valores familiares, a esfera privada, o relaxamento, a hierarquia e valores
pessoais; e a “rua” que é onde predominam o trabalho, a esfera pública, a
continência, os valores igualitários, o indivíduo, o Estado e o universal.
Dentre e entre estas duas esferas é onde acontece a vida do brasileiro e os tais
“fenômenos” teriam surgido da dificuldade deste de se adaptar aos valores
igualitários da rua, em detrimento dos valores pessoais e hierárquicos da casa.
Segundo DaMatta, tais fenômenos também ocorrem porque a lei no Brasil não
corresponde à realidade dos que a vivem, e propõe o seguinte exemplo: diante
de um agente do estado (cobrador, caixa, policial, etc) que impõe ao cidadão a
dura frase: “não pode!”, este recorre a valores da casa, tenta evocar uma certa
familiaridade com o agente do estado para obter um certo privilégio e transpor
o terrível “não pode!”, eis o famoso “jeitinho” brasileiro. Já o “você sabe com
quem está falando?” seria uma versão extremada e corrompida do jeitinho, e
também muito menos simpática, esta versão aparece quando o cidadão, por ter
qualquer relação com alguma figura importante que goza de certo status social,
seja médico, advogado, político ou etc, se acha no direito de invocar esta sua
familiaridade para transpor o “não pode!” e age com repressão contra a
repressão, gerando sempre uma situação desconfortável.
A malandragem, então, seria o modo profissional de botar o jeitinho em prática,
e o malandro seria seu expert, o malandro seria também uma espécie de
profissional em levar uma boa vida, usando sempre a malandragem para atingir
seus objetivos e conseguir privilégios. Mas esta malandragem não seria
violenta, não uma forma de coerção, mas sim um modo elegante, simpático de
passar a perna nos outros, usando a lábia e a sedução ao invés de ameaça e
violência.
DaMatta diz que grandes coisas boas e horríveis acontecem graças ao jeitinho,
é graças a ele que o brasileiro consegue levar a vida ganhando pouco dinheiro
e respeito, graças a ele muitas obras de arte são produzidas, mas é também no
jeitinho que está a raiz da corrupção dos políticos.
TEXTO 3
A liberdade dos pós-modernos
José Murilo de Carvalho
Um número cada vez maior de
cidadãos decide sobre assuntos
privados
cada
vez
menos
importantes
Em conferência feita em 1819, Benjamin Constant -o político e ensaísta francosuíço, não o general brasileiro- elaborou uma distinção que se tornou clássica,
entre a liberdade dos antigos e a liberdade dos modernos. A liberdade dos
antigos teria existido nas cidades-estados da Grécia, sobretudo em Atenas. Era
a liberdade que tinha o cidadão de participar, diretamente e na praça pública,
das deliberações sobre os negócios da cidade. Era uma liberdade positiva, isto
é, o cidadão era livre para participar da vida pública.
Ela não incluía a liberdade civil, pois o cidadão era submetido ao interesse da
coletividade. Sócrates foi um dos que pagaram por essa subordinação. Ela
também não era incompatível com a existência de muitos não-cidadãos, como
as mulheres e os escravos. Pode-se mesmo dizer que a presença dos
escravos era essencial para que os cidadãos pudessem se dedicar em tempo
integral à causa pública em exercício direto da democracia.
Esse conceito de liberdade ressurgiu durante o período jacobino da Revolução
Francesa, graças a sua incorporação à teoria da vontade geral de Rousseau. O
fato levou Benjamin Constant, um liberal que não era inimigo da revolução,
mas que se preocupava com a dificuldade de ela se transformar em sistema de
governo, a argumentar que a liberdade dos antigos não era compatível com os
tempos modernos, com a sociedade européia do começo do século 19. O
comércio e a indústria tinham se desenvolvido extraordinariamente, as relações
sociais tinham se tornado mais complexas, não havia mais escravos. A grande
maioria dos cidadãos precisava cuidar da própria vida, enriquecendo ou
simplesmente sobrevivendo. Poucos dispunham do lazer necessário para se
dedicarem aos negócios públicos.
O que os cidadãos pediam não era participação direta no governo, mas que o
governo -ou o Estado em geral- os deixasse em paz, os livrasse das restrições
à liberdade civil de trabalhar e ganhar dinheiro. Pediam uma liberdade
negativa. O cuidado dos negócios públicos, os modernos o deixavam nas mãos
de representantes que para isto escolhiam em eleições a que cada vez maior
número de cidadãos e cidadãs era admitido. Acoplada à liberdade negativa dos
modernos, nascia, na formulação de Benjamin Constant, a democracia
representativa,
exercida
indiretamente
pelos
cidadãos.
Em artigo anterior ("Boliche solitário", publicado no Mais! de 28/03/1999),
discuti a onda de apatia social e política que, segundo alguns analistas, estaria
invadindo os Estados Unidos nos últimos anos. Tal apatia se manifestaria na
queda dos índices de participação política, representada pelo voto, e dos
índices de envolvimento em associações voluntárias de todo tipo. Houve várias
contestações a essa visão pessimista, algumas negando a validade dos dados
ou a dimensão do fenômeno, outras discordando de sua interpretação.
Comento aqui apenas as últimas.
Alguns de seus porta-vozes admitem a existência da apatia e da perda de
confiança no governo. Mas contestam que elas sejam necessariamente um
mal. Poderiam ser mesmo interpretadas como sintoma positivo. Refletiriam o
fato de que a ação do Estado na administração da economia é hoje cada vez
menos necessária e cada vez menos relevante. Ao se omitirem, os cidadãos
estariam simplesmente sinalizando a percepção desse fato, estariam indicando
que teriam chegado à conclusão de que os complexos assuntos econômicos
de hoje se governam melhor por si mesmos, isto é, pelo mercado, sem
necessidade de interferência do Estado.
A insistência dos governos nacionais em resolver problemas que escapam a
sua competência e jurisdição é que estaria levando a seu descrédito e ao
consequente aumento da apatia política. A apatia seria, nessa visão, sinal
positivo do surgimento de uma nova liberdade. Essa nova liberdade seria em
parte uma retomada, em dimensão mais radical, da liberdade dos modernos
que foi por algum tempo reprimida pelo intervencionismo estatal surgido na
década de 1930. Estaríamos, assim, assistindo ao nascimento de uma
liberdade que poderíamos chamar de pós-moderna, mais negativa ainda do
que a liberdade dos modernos, e ao surgimento de uma nova democracia
caracterizada pela ausência de participação.
Benjamin Constant preocupava-se com o perigo de que a liberdade dos
modernos levasse ao desaparecimento da consciência dos assuntos públicos e
ao excessivo poder e falta de controle dos representantes eleitos pelos
cidadãos. Tal preocupação desaparece na visão pós-moderna, uma vez que o
Estado se torna irrelevante. O que importa para o cidadão pós-moderno é
gozar de toda a liberdade individual para fazer as escolhas cada vez mais
variadas que o mercado lhe oferece. Ele precisa de liberdade para escolher o
novo carro, o laptop mais em conta, o melhor financiamento para a casa
própria, o plano de saúde e de aposentadoria mais adequado, o mais eficiente
servidor da Internet, a companhia telefônica que oferece tarifas mais baratas, o
lugar onde vai passar as próximas férias, a universidade para onde vai mandar
o filho ou filha. Ele é um cidadão essencialmente privado, se isso é possível,
pois na nova democracia o público se despolitiza e desvanece.
A liberdade dos antigos representava o poder que tinham poucos cidadãos de
decidir sobre os assuntos públicos que diziam respeito a eles e aos muitos nãocidadãos. A liberdade dos modernos significava o poder de muitos cidadãos de
escolher os poucos representantes que deveriam decidir em seu nome sobre
os assuntos públicos. A liberdade dos pós-modernos é o poder de um número
cada vez maior de cidadãos de decidir sobre assuntos privados cada vez
menos relevantes. Façam sua escolha.
FONTE: Folha on-line. (30/5/1999)
TEXTO 4
A fonte de legitimidade do sistema político democrático contemporâneo encontra-se no
mecanismo de escolha dos governantes pelos governados. O modelo representativo de
governo que dele se origina é legitimado pela capacidade que o representante tem de traduzir
a vontade popular sob a forma de políticas públicas. No entanto, percebemos um declínio das
relações de identificação entre representantes e representados, proveniente – dentre outros
fatores – da perda da confiança nas instituições políticas. Esse processo acaba produzindo
ciclos viciosos na esfera institucional, levando à apatia política.
Nesse sentido, a criação de mecanismos de intervenção direta da população sobre a
distribuição de políticas públicas tem sido encarada como fundamental para esta crise de
legitimidade, na medida em que amplia a percepção dos representantes com relação à
realidade objetiva dos governados, assim como admite a instauração de ciclos virtuosos na
esfera pública através do funcionamento de múltiplas instâncias de controle social.
IN: COSTA, Homero. DEBILIDADE DO SISTEMA PARTIDÁRIO E CRISE DE REPRESENTAÇÃO
POLÍTICA NO BRASIL.
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